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O homem essencial: Man of Aran, de Robert Flaherty Jean-Louis Comolli Tradução: Oswaldo Teixeira Um. Man of Aran é de 19341. Seriam necessários mais de dois anos para rodar o filme e depois montá-lo. E isso porque a montagem, neste caso, não sucede a filmagem: ela a acompanha e – de fato – a precede, a guia2. Filmar, montar, filmar. Esse lugar central da montagem, em pleno processo de filmagem, faz de Man of Aran uma experiência limite na história do cinema. Cada filmagem é, à sua maneira, uma aventura; as documentárias, então, mais ainda, pois são feitas (em geral) fora do estúdio, em condições de vida e de trabalho às vezes difíceis. Há uma proposição romântica que vê a filmagem como uma série de provas a serem cumpridas, das quais o filme tiraria algo de sua força ou de sua beleza… Tal é, evidentemente, o caso de Man of Aran: isolamento, o céu sempre prestes a desabar naquelas ilhas no fim do mundo, está tudo lá… No entanto, essas rajadas de ondas e vento não são nada perto daquelas que o filme levanta. Uma tempestade de película. Um furor de cinema. Flaherty experimenta em Man of Aran uma nova maneira de fazer um filme. Filmar, ver, montar, refilmar. Servir-se da montagem como programa de filmagem. Mundo às avessas. Entrada em uma dimensão mágica. A lógica onírica do cinema substitui aquela do mundo ordinário. Como? Filmar após ter montado, escrever após ter filmado, fazer, desfazer e refazer sem fim? Uma estranha investida “documentária”, um estranho “documentarista”. Pois de uma ponta à outra esse filme é composto, testado, rodado, ajustado, fabricado sob medida. Não tenhamos medo da palavra: ele é encenado da forma mais 1 Publicado originalmente em Images documentaires, nº 20. 2 Sobre a aventura dessa filmagem-montagem, remeto à obra de Gilles Delavaud e Pierre Baudry, La mise en scène documentaire – Robert Flaherty, L’homme d’Aran et le documentaire, e à notável análise filmada que fizeram de Man of Aran. Texto e fita VHS editados pelo Ministério da Cultura e da Educação Nacional (coleção “Magie-Image”, “analyse filmique”, 1995). 1 Vivian Realce Vivian Realce Vivian Realce Vivian Realce minuciosa. Tanto mais porque essa encenação, eu dizia, se adapta e se presta às provas de verdade efetuadas pela montagem. Como tudo isso foi possível? As ilhas de Aran não são Hollywood. Dois. Flaherty começa, com efeito, por instalar um verdadeiro estúdio na casa que aluga em uma das ilhas. Um laboratório com máquina de revelação, bacias, extrato revelador, para poder tratar cotidianamente seus copiões. Uma sala de projeção para poder vê-los à noite. Uma sala de montagem, sobretudo, para poder montá-los, a princípio por conta própria, depois recorrendo a um montador que ele traz por dez, doze, quinze meses… Quanto mais Flaherty filma, mais ele monta. Quanto mais ele monta, mais quer filmar de novo… A work in progress: o que é filmado de dia, revelado à tarde, visto à noite, montado nos dias seguintes torna-se o esboço ou a aproximação ou o programa – o roteiro – do que será filmado amanhã etc. Tentativas, erros, correções, novas tentativas. Uma investida empírica, que atesta uma incansável desconfiança daquilo que é filmado, uma confiança que se apóia unicamente na montagem. Três. Por quê? Adiemos um pouco a resposta. Se Flaherty não confia imediatamente naquilo que vê, naquilo que sabe e tampouco naquilo que faz (no sentido de filmar), se a realidade que se apresenta não lhe parece se bastar e nada garantir, se apenas os copiões e os fragmentos montados falam ao cineasta, é que, para ele, o cinema vem primeiro, a realidade filmada se antecipa à realidade vivida. Atitude notável. Mas estranha para aquele que é conhecido não apenas por ter fundado (Nanook of the North, 1922) o cinema documentário, mas por ter sido o cineasta- profeta de uma contemplação do mundo. Eis aí um contemplativo que se sacrifica para construir o que haveria a ver, para elaborar a hipótese de que finalmente haveria alguma coisa a ser vista… Quatro. A resposta deve (é claro) ser procurada na montagem. O que acontece, para Flaherty, no momento da montagem? O que nele se descobre que a 2 Vivian Realce Vivian Realce Vivian Realce Vivian Realce Vivian Realce filmagem certamente não havia deixado perceber? Que certeza de indiscutível fulgor nele se manifesta? O enigma é este: montar é voltar e tornar a voltar aos lugares do crime, quero dizer, ao ato primeiro, fundador, aquele do registro, da inscrição verdadeira; é tornar reversível o que parecia irreversivelmente registrado; substituir o aqui-e-agora da filmagem por um alhures, uma outra vez. O filme metamorfoseia o mundo, o desloca, o utopiza. A montagem não apenas revela essa plasticidade do mundo: ela a fabrica pacientemente. Man of Aran é um dos filmes mais montados da história do cinema. Tanto pelo número de planos, por sua brevidade (alguns têm apenas poucos fotogramas), pelo recurso sistemático à montagem alternada de ações paralelas, pela fragmentação dos gestos (o homem que levanta uma pedra e a lança), quanto pela multiplicação dos ângulos e das tomadas (a pesca do tubarão, a tempestade final). Um cinema da ação, mas da ação fragmentada, esfarelada. Depois reconstituída filmicamente a partir dessa disseminação primeira (os copiões). Colada, juntada, composta a partir dessas migalhas de tempo e de espaço que a filmagem fabricou. Um mesmo gesto filmado de três, quatro, cinco posições de câmera diferentes, ângulos, planos e distâncias diferentes. Um mesmo conjunto narrativo (a pesca) filmado em vários meses, em vários lugares e luzes, com barcos, tubarões e mesmo pescadores diferentes, e reconstituído na montagem como uma ação única e contínua. Uma tempestade feita de cem pedaços de tempestades gravados em cem momentos diferentes. Inquietude e insistência do olhar – em oposição, mais uma vez, a toda posição contemplativa. O olhar, em Flaherty, se fabrica metro após metro de filme. Nada é dado, tudo é efeito. Cinco. Nada é dado: é preciso filmar para ver (Godard). Montar para ver. Antes, sem o ato cinematográfico, nada de verdadeiramente visível, estamos fora do olhar. O visível, como o olhar, não é um dado, mas um produto. Questão do cinema. Lição dos copiões. É precisamente porque há uma diferença manifesta entre o que ele vê enquadrando e filmando (é Flaherty quem manipula a câmera em seus filmes) e o 3 Vivian Realce Vivian Realce Vivian Realce Vivian Realce Vivian Realce Vivian Realce Vivian Realce Vivian Realce que ele vê depois que os copiões são revelados, na sala de projeção, em seguida na tela de sua moviola, que o cineasta, por uma irresistível necessidade, é levado a ver e a rever o que filmou, como única prova da existência e da potência dos seres e das coisas. Há uma diferença entre aquilo que o cineasta ou o operador de câmera vê e aquilo que é filmado. Essa diferença tem nome: cinema. Ela tem a ver com o fato inalterável de que a máquina cinematográfica registra à sua maneira a cena que se desenrola diante dela. Inscrição verdadeira: é preciso uma câmera (quero dizer: todo o aparelho maquínico que a acompanha, inclusive a película) e um ou vários corpos, uma ou várias coisas, uma ou várias luzes, para que haja registro. Mas esse registro é uma tradução do mundo da experiência sensível na linguagem de uma máquina. Primeira variação: a câmera substitui o nosso olhar binocular por um olhar monocular. Além do mais, esse olhoúnico da objetiva não funciona como o nosso, ele obedece às leis da ótica de maneira bem mais rígida (é uma máquina). Segunda variação, esta de peso: esse olhar ciclópico é enquadrado. O quadro, evidentemente, limita o campo de visão. Fabrica o in e o off, articulação fundamental do cinema (mais que da fotografia, que também é enquadrada, pelo fato de que o registro do movimento dramatiza o quadro). Dessa maneira, o quadro dá acesso a uma escritura do visível e do invisível. Enfim, terceira variação, a menos perceptível, a mais denegada, a gravação é não apenas descontínua, mas também regularmente medida: vinte e quatro ou vinte e cinco fotogramas por segundo. Toda coisa filmada passa por uma peneira de espaço, tempo e medida que a transforma. Se Flaherty fica muito mais tempo vendo o que acontece na sala de montagem do que nas falésias ou nas praias da ilha, é porque a máquina cinematográfica, transformando por seu filtro a realidade observada, nela revela uma nova dimensão, de fato permite que nela apareça uma verdade que não se manifestaria sem esse filtro e que pode, aliás, ser tão decepcionante quanto exaltante. Chamamos de cinegenia a 4 Vivian Realce Vivian Realce Vivian Realce Vivian Realce maneira pela qual a máquina se apropria e faz sua, remodela, redesenha aquilo de que ela se apodera: corpo, rosto, coisa. Essa nova dimensão conferida ao ser ou à coisa filmada é antes de tudo a declaração de que houve um olhar para esse ser ou essa coisa. O cinema inscreve naquilo que filma a idéia, o código, a aura do olhar. Olhar que deve ser um pouco menos humano (a máquina) para que eu possa vê-lo, para que ele seja notado. Passando pelo cinema, o mundo torna-se olhar para o mundo. Mundo como olhar. Seis. Olhar = relação = lugar do espectador na representação. Essa relação, aliás, é antes de tudo, no cinema, aquela que um olhar humano (o espectador) estabelece com uma máquina. Com aquilo que uma máquina faz do olhar humano: outra coisa, algo não totalmente humano. Cada vez mais as máquinas fabricam olhar em nosso lugar, pedimos isso a elas, desejamos que elas tornem outro o nosso olhar, desejamos que nosso olhar nos retorne diferente daquele de um sujeito para um sujeito: as máquinas fazem isso muito bem, nos enviar à parte não humana do homem, aliás elas o fazem cada vez melhor, com a produção das imagens digitais3. O cinema de Flaherty não é “contemplativo” precisamente porque ele age sobre o olhar. Nada em Man of Aran acontece sem o olhar de um ou outro dos personagens, sobretudo o da criança (mise en scène do olhar da infância que atinge o apogeu em Louisiana Story). Essas personagens, essa criança, estão sempre em situação de ação, seus olhares uns para os outros estão sempre ligados às ações urgentes que os implica, elas mesmas ligadas à questão da sobrevivência da família e do grupo. São olhares dramáticos, e a montagem alternada que incessantemente coloca esses personagens e esses olhares sempre em uma relação de interdependência (montagem herdada de Griffith) acentua sistematicamente o motivo do filme, o da confrontação, isto é, da montagem, com o céu, o mar, a terra, com os perigos – tempestades, tubarões. Juntos e confrontados. Montados. 3 Cf. “L’oeil était dans la boîte”, p. 176-177. 5 Vivian Realce Vivian Realce Vivian Realce Vivian Realce Vivian Realce A montagem é aquilo que religa, por oposição, os seres, reduzidos ao gesto e ao olhar, às forças elementares. A insistência de uma fragmentação indica aqui a unidade dividida-resistente do ser. Os planos, os eixos, as luzes, os fragmentos da pesca do tubarão só são tão numerosos, apressados, insistentes para exaltar essa dimensão do ser (homens, animais, elementos), que, para o cine-pensamento de Flaherty, só se cumpre na ação. Essa exaltação é o fato da montagem. É como uma vitória sobre o tempo. As coisas são despossuídas de seu tempo pela velocidade própria do cinema. Flaherty usa o cinema para colocar em dúvida aquilo que, no mundo, estaria supostamente dado. Exaltar cinematograficamente o gesto, por exemplo, equivale a não se satisfazer com sua existência não exaltada. Multiplicar os planos, os cortes no plano, os raccords, os eixos, as objetivas, os pontos de vista, equivale, na dúvida, a se assegurar da existência das coisas multiplicando as maneiras de filmá-las. Pouca fé na solidez do mundo. Mas grande confiança nos poderes do cinema, capaz de colar e de fazer brilharem os fragmentos esparsos de um mundo despedaçado. O que nos conta o filme? Antes do olhar, antes do cinema, o mundo é inteiro, maciço, compacto, inalterável. As coisas estão dadas, fechadas em seus seres. Diante delas, os homens nada seriam se não fossem seres de relação (de linguagem). Sua sobrevivência, sua existência está ligada às relações que são capazes de estabelecer com o vento, a terra, a rocha, o mar, os peixes, as algas… – e com eles mesmos. Tanto quanto a linguagem, convém fabricar o olhar para enfrentar as provas que necessariamente colocam essas relações em jogo. É por isso que o cinema começa por fragmentar o mundo, despedaçá-lo, reduzi-lo a peças. Colocá-lo em dúvida, isto é, em cena. Migalhas postas em relação pelo olhar. A montagem colará novamente os pedaços. Ao final do filme, depois da tempestade, os olhos filmados em plano fechado do homem, da mulher e da criança nos dizem não apenas que aqui (no cinema) os homens resistiram ao mundo, mas que dele fazem parte. 6 Vivian Realce Vivian Realce Vivian Realce Vivian Realce
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