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Categoria: 1 Proponente: Marco Aurélio Crocco Afonso Código: 674 Protocolo: f0cb6bd Título: MOEDA E DESENVOLVIMENTO REGIONAL E URBANO: UMA LEITURA KEYNESIANA E SUA APLICAÇÃO AO CASO BRASILEIRO Resumo: Nos últimos vinte anos a pesquisa sobre as relações entre moeda e desenvolvimento regional e urbano vivenciou grandes transformações e distintos períodos de euforia e marasmo. No início dos anos 1990, uma série de trabalhos sobre o papel da moeda e sistema financeiro na configuração dos territórios vieram a tona, especialmente entre os geógrafos econômicos. As razões para este ressurgimento são várias (Martin 1999). No entanto, três fatos merecem destaque, todos com implicações territoriais importantes: i) as profundas transformações tecnológicas dentro do sistema financeiro, que possibilitaram, não somente o armazenamento de uma quantidade sem precedentes de informação, como também que volumes enormes de recursos financeiros fossem transferidos de um lado para outro do planeta, quase que instantaneamente; ii) o profundo processo de liberalização financeira realizada em quase todos os países do mundo, dentro do contexto do Consenso de Washington; e, iii) o fato de quase a totalidade das crises econômicas desta época tinham um forte componente financeiro no seu interior. Este quadro praticamente impôs aos acadêmicos especializados em economia regional ou geografia econômica a necessidade de se entender melhor o papel da moeda e do sistema financeiro na configuração espacial da economia. O objetivo desta tese é contribuir para a discussão acima mencionada, através de uma revisão teórica crítica dos autores seminais das teorias de desenvolvimento regional e urbano, procurando analisar, a partir do referencial Keynesiano, como a moeda foi tratada nestes trabalhos e quais as suas principais limitações. Além disto, efetua‐se uma investigação empírica sobre o Brasil, procurando mostrar que a atuação dos bancos é diferenciada no território, sendo um elemento fundamental para o entendimento das desigualdades regionais. Descrição: Nos últimos vinte anos a pesquisa sobre as relações entre moeda e desenvolvimento regional e urbano vivenciou grandes transformações e distintos períodos de euforia e marasmo. No início dos anos 1990, uma série de trabalhos sobre o papel da moeda e sistema financeiro na configuração dos territórios vieram a tona, especialmente entre os geógrafos econômicos. As razões para este ressurgimento são várias (Martin 1999). No entanto, três fatos merecem destaque, todos com implicações territoriais importantes: i) as profundas transformações tecnológicas dentro do sistema financeiro, que possibilitaram, não somente o armazenamento de uma quantidade sem precedentes de informação, como também que volumes enormes de recursos financeiros fossem transferidos de um lado para outro do planeta, quase que instantaneamente; ii) o profundo processo de liberalização financeira realizada em quase todos os países do mundo, dentro do contexto do Consenso de Washington; e, iii) o fato de quase a totalidade das crises econômicas desta época tinham um forte componente financeiro no seu interior. Este quadro praticamente impôs aos acadêmicos especializados em economia regional ou geografia econômica a necessidade de se entender melhor o papel da moeda e do sistema financeiro na configuração espacial da economia. Diversas linhas de investigação foram desenvolvidas, ao ponto de Martin (1999) afirmar, ao final dos anos 1990, que uma nova sub‐disciplina da geografia econômica havia surgido. No entanto, apesar deste ressurgimento, durante os anos 2000 este interesse nesta nova sub‐disciplina se estabilizou, sem conseguir torná‐la central na discussão sobre desenvolvimento regional e urbano. Apenas após a crise mundial do final dos anos 2000 é que esta temática volta a ter força, tendo em vista as evidentes implicações espaciais desta crise. Apesar de sua extensão mundial, esta última de forma alguma foi neutra espacialmente, mesmo porque a sua origem (os empréstimos sub‐prime no mercado imobiliário norte americano) também foi espacialmente localizada. A presente tese se encaixa no esforço de tornar central a discussão sobre as relações entre moeda e território dentro do debate sobre desenvolvimento regional e urbano. No entanto, diferentemente de boa parte da literatura sobre o tema, parte‐se de premissa de que o correto entendimento das relações entre moeda e território e de suas implicações de política só poderá emergir a partir da construção de uma Teoria Monetária do Desenvolvimento Regional e Urbano. Para tanto, é necessário que se tenha uma concepção teórica sobre a moeda que permita a esta afetar o comportamento das variáveis reais da economia, tanto no curto, quanto no longo prazo. Esta concepção é encontrada nos escritos de Keynes. Neste contexto, a presente tese busca realizar três contribuições básicas: i. Incorporar uma concepção de moeda, que seja capaz de afetar as variáveis reais da economia, no contexto teórico do desenvolvimento regional e urbano, de forma a contribuir para a construção de uma Teoria Monetária do Desenvolvimento Regional e Urbano; ii. Aprofundar o diálogo entre a contribuição Pós‐Keynesiana para a teoria do desenvolvimento regional, de forma a estender este diálogo à teorias do desenvolvimento urbano, notadamente a Teoria do Lugar Central; e iii. Pesquisar, empiricamente, os desenvolvimentos teóricos propostos a partir de uma base de dados única no Brasil, copilada pelo Laboratório de Estudos em Moeda e Território (LEMTe) do CEDEPLAR / UFMG. Para atingir estes objetivos a tese foi estruturada em duas partes. Na Parte I, toda a discussão teórica é efetuada. No capítulo 1 desta Parte, o referencial teórico Pós‐Keynesiano, que serve de base para toda a tese, é detalhado. Nos três capítulos seguintes, este referencial é utilizado para uma re‐leitura crítica dos principais autores da Teoria do Desenvolvimento Regional, da Teoria do Desenvolvimento Urbano e da Geografia Econômica. Deve ficar claro, que o objetivo desta tese é estabelecer um diálogo com estes autores seminais. Esta opção se baseia no fato destas contribuições ainda serem extremamente atuais, mesmo decorrido mais de 50 anos do surgimento de algumas delas. Na medida da necessidade, alguns trabalhos mais recentes foram incorporados na análise. Assume‐se aqui que a tarefa de tornar a moeda um elemento importante na análise do desenvolvimento regional e urbano deve, necessariamente, começar com uma reflexão crítica dos autores seminais. Encerrando a Parte I, uma reflexão crítica sobre a interpretação Pós‐Keynesiana é efetuada e as contribuições originais deste autor são apresentadas. A Parte II da tese consiste na investigação empírica do tema, onde procura‐se contrastar as contribuições teóricas desenvolvidas na Parte I com dados da economia brasileira. Desta forma, esta Parte começa com uma breve discussão das transformações por que passou o sistema financeiro do Brasil nas últimas duas décadas. Este contexto serviu de base para o desenvolvimento dos dois capítulos seguintes, que analisaram os comportamentos, regional e urbano, do sistema bancário brasileiro. A tese se encera com o detalhamento das suas principais conclusões. Justificativa: O objetivo central desta tese foi contribuir para a construção de uma Teoria Monetária do Desenvolvimento Regional e Urbano. Acredita‐se que este objetivo só possa ser atingido se se considera a moeda como não‐neutra; vale dizer, a moeda, em suas várias dimensões, é capaz de interferir nas decisões dos agentes e, conseqüentemente, afetar o lado real da economia. Dito de outra forma, só é possível falar em Teoria Monetária do Desenvolvimento Regional e Urbano, se a moeda possuir a capacidade de afetar o volume de produção de uma região ou espaço urbano, tanto no curto quanto no longo‐prazo. Caso isto não sejapossível não existiria sentido teórico falar em uma Teoria Monetária do Desenvolvimento Regional e Urbano. Esta é uma premissa fundamental da tese. Para tanto, partiu‐se do entendimento da economia capitalista enquanto uma Economia Monetária de Produção, tal como proposto por Keynes (1979). Os elementos fundamentais desta concepção da economia capitalista, tal como visto no Capítulo 1 da Parte I, dão à moeda um papel chave, na medida em que ela pode interferir no lado real da economia. Frente a um mundo onde a incerteza em relação ao futuro é um condicionante da atividade econômica, tornando esta última uma atividade por natureza especulativa, a capacidade da moeda em ser reserva de valor e, por definição, ser o ativo mais líqüido na sociedade, faz com que sempre exista a possibilidade de ocorrência de deficiências de demanda efetiva. O conceito de preferência pela liqüidez é, portanto, fundamental em uma sociedade capitalista e, quando aplicado ao sistema financeiro, abre a possibilidade do processo de finance e funding não ocorrer. MOEDA E DESENVOLVIMENTO REGIONAL E URBANO: UMA LEITURA KEYNESIANA E SUA APLICAÇÃO AO CASO BRASILEIRO Marco Aurélio Crocco Afonso Tese submetida ao Concurso de Professor Titular Departamento de Ciências Econômicas Universidade Federal de Minas Gerais Abril 2010 ii À Fabiana e Elene iii SUMÁRIO AGRADECIMENTOS .............................................................................................................. 3 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 6 PARTE I - MOEDA E DESENVOLVIMENTO REGIONAL E URBANO EM UMA PERSPECTIVA TEÓRICA .............................................................................................................................. 9 I.1 MOEDA E SISTEMA FINANCEIRO NA TEORIA PÓS-KEYNESIANA: DEFININDO O MARCO TEÓRICO ......... 13 I.1.1 Economia Monetária de produção e seus Fundamentos ....................................... 13 I.1.2 O Debate Sobre Exogeneidade e Endogeneidade da Oferta de Moeda .................. 22 I.1.3 Poupança, Finance e Funding .................................................................................... 30 I.2 AS TEORIAS DE DESENVOLVIMENTO REGIONAL E MOEDA ............................................................ 36 I.2.1 A primeira geração: O Enfoque Keynesiano ............................................................. 37 I.2.1.1 Teoria do Desenvolvimento Desigual ............................................................................................... 38 I.2.1.2 Big Push ............................................................................................................................................. 49 I.2.1.3 Teoria dos Pólos de Crescimento ..................................................................................................... 51 I.2.1.4 Teorias da Base de Exportação ......................................................................................................... 55 I.2.2 O Enfoque da Competitividade ................................................................................. 57 I.3 AS TEORIAS DO DESENVOLVIMENTO URBANO E A MOEDA .......................................................... 64 I.3.1 A Teoria do Lugar Central .......................................................................................... 64 I.4 A MOEDA E A GEOGRAFIA ECONÔMICA: UMA ANÁLISE CRÍTICA.................................................... 80 I.5 ELEMENTOS PARA UMA TEORIA MONETÁRIA DE DESENVOLVIMENTO REGIONAL E URBANO............. 88 I.5.1 Preferência pela Liquidez, Centralidade e Hieraquia urbana e a construção do espaço ................................................................................................................................. 94 PARTE II - DUAS INVESTIGAÇÕES EMPÍRICAS: MOEDA, DESENVOLVIMENTO REGIONAL E HIERARQUIA URBANA NO BRASIL .................................................................................... 101 II.1 EVOLUÇÃO RECENTE DO SISTEMA FINANCEIRO BRASILEIRO ....................................................... 102 II.2 ATUAÇÃO REGIONAL DO SISTEMA BANCÁRIO .......................................................................... 107 II.2.1 Indicadores de Escala do Sistema Bancário ............................................................ 110 II.2.2 Indicadores de Gestão do Ativo ............................................................................. 112 II.2.2.1 Preferência Pela Liqüidez das Agências Bancárias ......................................................................... 115 II.2.2.2 Distribuição Regional de Crédito, Quociente Regional de Crédito e Racionamento de Crédito .. 117 II.2.2.3 Lucratividade das Agências Bancárias ............................................................................................ 122 II.2.2.4 Crédito Total sobre Ativo, Títulos e Valores Mobiliários sobre Ativo e Créditos em Liquidação 128 II.2.3 Indicadores de Gestão do Passivo ........................................................................... 131 II.2.4 Conclusão ................................................................................................................ 134 II.3 HIERARQUIA URBANA E SISTEMA FINANCEIRO NO BRASIL ........................................................ 136 II.3.1 Hierarquia e Estratégia Bancária ........................................................................... 151 II.4 ESTRATÉGIAS BANCÁRIAS COMPARADAS: REGIÃO E HIERARQUIA ............................................... 153 II.4.1 Análise de Componente Principal para as Regiões Administrativas .................... 154 II.4.2 Análise de Componente Principal por Hierarquia do Sistema Financeiro ............ 157 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................. 161 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................................... 167 3 AGRADECIMENTOS Esta tese é o resultado de uma trajetória de pesquisa que se inicia dois anos após o meu retorno da Inglaterra, onde realizei o meu doutoramento. Desde esta época, várias pessoas contribuíram, de diversas formas, para que esta trajetória terminasse na elaboração da presente tese. Neste momento, gostaria de agradecer ‘as suas colaborações. Começo por aqueles que participaram da criação e desenvolvimento do Laboratório de Estudos em Moeda e Território (LEMTe), grupo de pesquisa alocado no CEDEPLAR e por mim coordenado. Este grupo é, sem dúvida alguma, a minha melhor experiência como docente e pesquisador. Experiência única, que me fez aprender todo o significado de ser um professor. Através deste grupo, não somente desenvolvi toda a visão de economia regional expressa nesta tese, mas também acompanhei o desenvolvimento pessoal e profissional de uma série de alunos. Foram vários os alunos de iniciação científica deste grupo que assisti formarem, tornarem-se assistentes de pesquisa, alunos de mestrado e doutorado, e, professor universitário. Assim sendo, gostaria de agradecer o empenho, paciência, contribuição e, principalmente, de terem “vestido a camisa” deste projeto a Bruno, Vanessa, Melissa, Anderson, Mateus, Mara, Raquel, Tininha, Aninha, Wallace, Pedro Amaral, João Prates, Márcio Amaral, Breno, Eduardo, Iara, Cláudio, Carla, Ana Teresa, Fernanda, Rubens, Teófilo, Luiz Paulo e Luciana.Vários professores e pesquisadores também contribuíram para o desenvolvimento do LEMTe, quer seja por um engajamento mais constante, quer seja por trabalhos específicos e esporádicos. Desta forma, gostaria de agradecer a Adriana Amado, Ana Hermeto, Fabiana Santos, Frederico Gonzaga e Gustavo Rocha. Nesta trajetória de reflexão sobre os aspectos monetários do desenvolvimento regional, os cursos oferecidos na Pós-Graduação do CEDEPLAR foram de fundamental importância. Organizados na forma de seminários, estes 4 cursos se constituíram em um ambiente profícuo de discussão acerca desta temática. Assim sendo, gostaria de agradecer a todos os alunos da pós graduação do CEDEPLAR que assistiram aos cursos de Moeda e Território e de Sistema Financeiro e Desenvolvimento. No processo de preparação da tese algumas pessoas foram essenciais. Em primeiro lugar, gostaria de agradecer ao Colegiado de Curso do Programa de Pós Graduação do CEDEPLAR. Durante a elaboração da tese tive que, praticamente, me ausentar das tarefas relacionadas ao meu cargo de Coordenador do Programa de Pós Graduação. Esta ausência foi compensada com uma maior participação no dia a dia da Pós dos demais membros do Colegiado. Por isto agradeço a Ana Hermeto, Fred, Hugo e Rodrigo. Em especial, deixo registrado o meu agradecimento à Ana Hermeto, minha companheira na direção da Pós. Aninha assumiu prontamente minhas funções da coordenação assim que o concurso para titular foi anunciado. Sem esta colaboração, a elaboração da tese teria sido muito mais difícil. Também no processo de elaboração da tese, a contribuição da Carol foi inestimável. Carol me ajudou muito além do que as suas tarefas determinavam. Além de tomar conta de minhas atribuições profissionais, Carol foi de fundamental importância na montagem de meu currículo. Fica aqui o meu agradecimento a uma amiga. Uma pessoa em particular merecer um agradecimento especial: Clélio Campolina. Um mestre que se tornou um grande amigo. Com Campolina fui aluno, assistente de pesquisa, colega de departamento, companheiro de direção de faculdade e co-autor em vários trabalhos. Durante toda esta trajetória profissional, Campolina sempre foi um orientador, estimulador e companheiro. Ao meu “chefe” fica um agradecimento especial. Gostaria também de agradecer a três pessoas de meu círculo pessoal. Ao Luigi, meu irmão mais velho. Durante estes últimos seis anos, companheiro das tardes de domingo torcendo pelo Botafogo, Luigi tem sido muito mais que um irmão. Amigo e conselheiro, pessoal e profissional, agradeço todo o estímulo e paciência com aquele que nunca deixou de se portar como o irmão mais novo. 5 Henrique e Léo têm sido muito mais do que sobrinhos. São dois grandes pequenos amigos que ganhei nesta vida. Estar perto deles, quer seja jogando X- Box, futebol, montando legos ou lutando, me faz lembrar como a vida pode ser mais simples e sincera. Meu enorme agradecimento ao carinho destas duas pessoas maravilhosas. Chegar até este ponto de minha trajetória profissional não teria sido possível sem a Fabiana. Tentar expressar em palavras o significado que ela tem em minha vida é uma tarefa impossível. Qualquer coisa que eu diga, e escreva, sempre ficará aquém do real sentimento e significado que sua presença tem em minha vida. Nada disto teria acontecido sem o seu carinho, amor, e apoio incondicional. Obrigado por tudo, principalmente por me deixar te amar. Por isto tudo, esta tese é dedicada a você. Por fim, gostaria de agradecer a Elene. Em seus dois meses de vida, sua presença nesta reta final de elaboração da tese foi fundamental. Vê-la, me fazia esquecer o cansaço e me dava a alegria necessária para terminar a tese. Muito obrigado, filha. 6 INTRODUÇÃO Nos últimos vinte anos a pesquisa sobre as relações entre moeda e desenvolvimento regional e urbano vivenciou grandes transformações e distintos períodos de euforia e marasmo. No início dos anos 1990, uma série de trabalhos sobre o papel da moeda e sistema financeiro na configuração dos territórios vieram a tona, especialmente entre os geógrafos econômicos. As razões para este ressurgimento são várias (Martin 1999). No entanto, três fatos merecem destaque, todos com implicações territoriais importantes: i) as profundas transformações tecnológicas dentro do sistema financeiro, que possibilitaram, não somente o armazenamento de uma quantidade sem precedentes de informação, como também que volumes enormes de recursos financeiros fossem transferidos de um lado para outro do planeta, quase que instantaneamente; ii) o profundo processo de liberalização financeira realizada em quase todos os países do mundo, dentro do contexto do Consenso de Washington; e, iii) o fato de quase a totalidade das crises econômicas desta época tinham um forte componente financeiro no seu interior. Este quadro praticamente impôs aos acadêmicos especializados em economia regional ou geografia econômica a necessidade de se entender melhor o papel da moeda e do sistema financeiro na configuração espacial da economia. Diversas linhas de investigação foram desenvolvidas, ao ponto de Martin (1999) afirmar, ao final dos anos 1990, que uma nova sub-disciplina da geografia econômica havia surgido. No entanto, apesar deste ressurgimento, durante os anos 2000 este interesse nesta nova sub-disciplina se estabilizou, sem conseguir torná-la central na discussão sobre desenvolvimento regional e urbano. Apenas após a crise mundial do final dos anos 2000 é que esta temática volta a ter força, tendo em vista as evidentes implicações espaciais desta crise. Apesar de sua extensão mundial, esta última de forma alguma foi neutra espacialmente, mesmo porque a sua origem (os empréstimos sub-prime no mercado imobiliário norte americano) também foi espacialmente localizada. 7 A presente tese se encaixa no esforço de tornar central a discussão sobre as relações entre moeda e território dentro do debate sobre desenvolvimento regional e urbano. No entanto, diferentemente de boa parte da literatura sobre o tema, parte-se de premissa de que o correto entendimento das relações entre moeda e território e de suas implicações de política só poderá emergir a partir da construção de uma Teoria Monetária do Desenvolvimento Regional e Urbano. Para tanto, é necessário que se tenha uma concepção teórica sobre a moeda que permita a esta afetar o comportamento das variáveis reais da economia, tanto no curto, quanto no longo prazo. Esta concepção é encontrada nos escritos de Keynes. Neste contexto, a presente tese busca realizar três contribuições básicas: i. Incorporar uma concepção de moeda, que seja capaz de afetar as variáveis reais da economia, no contexto teórico do desenvolvimento regional e urbano, de forma a contribuir para a construção de uma Teoria Monetária do Desenvolvimento Regional e Urbano; ii. Aprofundar o diálogo entre a contribuição Pós-Keynesiana para a teoria do desenvolvimento regional, de forma a estender este diálogo à teorias do desenvolvimento urbano, notadamente a Teoria do Lugar Central; e iii. Pesquisar, empiricamente, os desenvolvimentos teóricos propostos a partir de uma base de dados única no Brasil, copilada pelo Laboratório de Estudos em Moeda e Território (LEMTe) do CEDEPLAR / UFMG. Para atingir estes objetivos a tese foi estruturada em duas partes. Na Parte I, toda a discussão teórica é efetuada. No capítulo 1 desta Parte, o referencial teórico Pós-Keynesiano, que serve de base para toda a tese, é detalhado. Nos três capítulos seguintes, este referencial é utilizado para uma re-leituracrítica dos principais autores da Teoria do Desenvolvimento Regional, da Teoria do Desenvolvimento Urbano e da Geografia Econômica. Deve ficar claro, que o objetivo desta tese é estabelecer um diálogo com estes autores seminais. Esta opção se baseia no fato destas contribuições ainda serem extremamente atuais, mesmo decorrido mais de 50 anos do surgimento de algumas delas. Na medida da necessidade, alguns 8 trabalhos mais recentes foram incorporados na análise. Assume-se aqui que a tarefa de tornar a moeda um elemento importante na análise do desenvolvimento regional e urbano deve, necessariamente, começar com uma reflexão crítica dos autores seminais. Encerrando a Parte I, uma reflexão crítica sobre a interpretação Pós- Keynesiana é efetuada e as contribuições originais deste autor são apresentadas. A Parte II da tese consiste na investigação empírica do tema, onde procura- se contrastar as contribuições teóricas desenvolvidas na Parte I com dados da economia brasileira. Desta forma, esta Parte começa com uma breve discussão das transformações por que passou o sistema financeiro do Brasil nas últimas duas décadas. Este contexto serviu de base para o desenvolvimento dos dois capítulos seguintes, que analisaram os comportamentos, regional e urbano, do sistema bancário brasileiro. A tese se encera com o detalhamento das suas principais conclusões. 9 PARTE I - MOEDA E DESENVOLVIMENTO REGIONAL E URBANO EM UMA PERSPECTIVA TEÓRICA A discussão teórica acerca dos aspectos regionais do sistema financeiro tem recebido tratamento diferenciado de economistas regionais, geógrafos econômicos e especialistas em sistemas financeiros. De uma forma geral, a literatura de economia regional tem dado pouca atenção para o papel desempenhado pela moeda e pelo sistema financeiro no desenvolvimento regional. A maioria destes trabalhos assume que o sistema financeiro é neutro em relação à sua capacidade de interferir no desempenho econômico de regiões. A literatura mainstream sobre desenvolvimento financeiro, por exemplo, tem focado, nos últimos 30 anos ou mais, no denominado “nexus finanças – crescimento”. A ênfase, neste contexto, é centrada na correlação entre variáveis financeiras (e o grau de desenvolvimento do sistema financeiro) e crescimento econômico. A maioria dos economistas vinculados a esta corrente de pensamento afirma que a direção de causalidade na relação citada vai no sentido do primeiro para o segundo, embora evidências empíricas irrefutáveis ainda não tenham sido fornecidas. Nesta literatura, aspectos regionais do desenvolvimento do sistema financeiro têm sido virtualmente negligenciados. De fato, em uma revisão extensa das contribuições mais relevantes desta linha de pesquisa, efetuada por Levine (2004), a palavra “regional” aparece apenas uma vez nas cento e dezoito páginas do artigo; a palavra “região” apenas uma e a palavra geografia nenhuma. Existe apenas um trabalho revisado por Levine que foca sua análise em regiões de um país especifico. Este artigo – escrito por Guiso et al. (2002), mostra que as condições de financiamento locais influenciam o desempenho econômico de distintas regiões da Itália. A conclusão mais importante desses autores é o reconhecimento de que sistemas financeiros nacionais e regionais possuem um papel importante a desempenhar a despeito da crescente integração financeira internacional. É possível, contudo, encontrar na literatura importantes contribuições que mostram a não neutralidade da moeda e do sistema financeiro em termos de seus 10 impactos no lado real da economia, e, desta forma, no desenvolvimento regional, como pode ser observado na literatura Novo – Keynesiana1 e Pós-Keynesiana. De uma forma geral, as principais áreas de pesquisa dentro da vertente Novo-Keynesiana estão relacionadas à investigação sobre: i. a existência ou não de sistemas financeiros regionais (Amos e Wingender 1993; Bias 1992); ii. como falhas de mercado – i.e. assimetria de informação e custos de transação e informação sensíveis à escala – afetam a eficiência do sistema financeiro na alocação de crédito (e, portanto, o desempemho das variáveis reais) entre regiões de um país (Koo and Moon 2004, Miyakoshi and Tsukuda 2004); iii. em que medida a distribuição de diferentes tipos de bancos pelas regiões de um país (a existência sistemas bancários locais) explica as disparidades no crescimento econômico regional (Usai and Vannini 2005; Ozyildirim and Older 2008; Valverde and Fernández 2004); iv. em que medida condições econômicas locais/regionais têm impacto sobre o desempenho de bancos locais/regionais (Meyer and Yeager 2001; Yeager 2004; Emmons et al. 2004; Furlong and Kreiner 2007; Daly et al. 2008); v. como a diversificação geográfica afeta o desempenho dos bancos (Demsetz and Strahan 1997; Morgan and Samolyk 2005); e vi. como a distância entre agências e sedes2 ou entre credores e devedores3 influencia ambos a alocação e a disponibilidade de crédito (Alessandrini 1 Os primeiros trabalhos que procuraram identificar os fatores que podem determinar a ocorrência de racionamento de crédito em mercados regionais foram Roberts e Fishkind (1979) e Moore e Hill (1982). Recentemente, autores Novo Keynesianos como por exemplo, Faini et al. (1993) e Samolyk (1994), exploraram a hipótese de assimetria de informação em mercados regionais para explicar o racionamento de crédito. 2 Também conhecida como “distância funcional”. Esta significa a distância entre níveis dentro de uma organização bancária. De acordo com Alessandrini et al. 2009 (p. 5), by functional distance we refer to the distance between a local branch, where information is collected and lending relationships are established, and its headquarter, where lending policies and ultimate decisions are typically taken. From a theoretical point of view, the importance of functional distance for the lending policies of local branches has its roots in (i) the asymmetric distribution of information and the costs of communication within an organisation, and (ii) the economic, social and cultural differences across communities. 3 Também entendida como “distância operacional” (Alessandrini et al. 2008) 11 and Zazzaro 1999; Berger and DeYoung 2001; Carling and Lundenberg 2005; Brevoot and Hannan 2006; Alessandrini et al 2008). De forma similar a esta última linha de investigação, porém com uma abordagem teórica próxima à geografia econômica, Martin (1999) e Klagge e Martin (2005) fornecem evidências empíricas acerca da assimetria na alocação de crédito entre regiões centrais e periféricas, o que contribui para um padrão de desenvolvimento regional desigual. Estes autores apontam a existência de uma relação não-neutra entre os lados real e financeiro do sistema econômico. De acordo com eles, o sistema financeiro não funciona em uma “estrada espacialmente neutra”. Dito de outra forma, sistemas financeiros não são perfeitamente integrados entre as regiões de um país, de forma que o investimento em uma dada região é dependente da poupança local; a demanda local por financiamento é constrangida pela oferta; e os residentes (firmas e indivíduos) não podem acessar fundos de outras regiões do país. Ou seja, a proximidade geográfica de centros financeiros importa. O resultado seria a concentração de instituições financeiras em localizações centrais e hiatos locacionais de financiamento entre o centro e a periferia. Uma característica comum às visões teóricas acima citadas é o fato dos determinantes dos impactos da moeda e do sistema financeirosobre as regiões estarem associadas a falhas de mercado. Ou seja, não são as características da moeda e da forma de operação do sistema financeiro que permitem uma construção teórica onde tais fatores afetam o desenvolvimento regional, mas sim as falhas de mercado. Caso estas não existissem, não haveria a possibilidade teórica da moeda e o sistema financeiro interferirem na construção e ampliação das desigualdades regionais. A perspectiva teórica defendida nesta tese discorda veementemente desta abordagem ao creditar às características intrínsecas da moeda e da forma de operação do sistema financeiro os determinantes de seus impactos sobre as disparidades regionais. Vale dizer, mesmo em um mundo onde não existissem imperfeições de mercado, estas características intrínsecas garantiriam a possibilidade do lado financeiro interferir, tanto no curto, quanto no longo prazo, na ocorrência de disparidades regionais. 12 No restante desta Parte I será apresentada, de forma crítica, esta abordagem. Para tanto, inicia-se com a discussão dos fundamentos teóricos mais gerais que sustentam a teoria Pós-Keynesiana, notadamente a sua interpretação sobre o papel desemplenhado pela moeda em economias capitalistas, como a que conhecemos hoje. Esta base teórica é utilizada para uma re-leitura crítica dos clássicos da literatura sobre desenvolvimento regional e urbano, buscando entender como tais teorias incorporaram a moeda em suas formulações. Após esta revisão, conclui-se esta parte com uma análise critica da contribuição da teoria Pós-Keynesiana à economia regional. 13 I.1 MOEDA E SISTEMA FINANCEIRO NA TEORIA PÓS-KEYNESIANA: DEFININDO O MARCO TEÓRICO O objetivo desta seção é destacar os princípios teóricos essenciais para o entendimento da abordagem Pós-Keynesiana para economia regional. Não se pretende aqui fazer uma discussão detalhada desta corrente de pensamento, mas apenas analisar aqueles elementos que são necessários à elaboração da “Perspectiva Pós Keynesiana de Economia Regional”. Nesse sentido, entende-se que três questões são fundamentais: i) o conceito de Economia Monetária de Produção, o qual expressa, claramente, como Keynes e os Pós Keynesianos entendem o funcionamento da economia capitalista, tendo a moeda como elemento central; ii) a discussão sobre a oferta de moeda, fundamental para o entendimento tanto dos limites de atuação das autoridades monetárias, como também do papel desempenhado pelo sistema bancário; e iii) as relações entre poupança, finance e funding, essencial para o entendimento do processo de investimento, variável-chave na discussão do conceito de demanda efetiva. Nas próximas seções analisaremos, em detalhe, cada uma destas questões. I.1.1 ECONOMIA MONETÁRIA DE PRODUÇÃO E SEUS FUNDAMENTOS É amplamente reconhecido que Keynes, no período em que escrevia a Teoria Geral (Keynes 1973 [1937]), tinha a convicção de que o que estava escrevendo seria uma grande ruptura com a teoria ortodoxa vigente a época. Apesar disto, Keynes optou, na versão final da Teoria Geral, por não aprofundar o provável confronto com economistas ortodoxos. Assim sendo, embora tenha desenvolvido, nos rascunhos da Teoria Geral, uma análise detalhada do que entendia ser os fundamentos de uma economia capitalista de produção, ele optou por iniciar a sua obra mais importante aceitando, em parte, alguns fundamentos da escola clássica, de forma a mostrar que a sua principal conclusão – a possibilidade de equilíbrio com desemprego involuntário - se sustentaria. 14 No entanto, como ficou evidente nos anos seguintes à publicação da Teoria Geral, esta estratégia não alcançou os resultados esperados, gerando não apenas interpretações equivocadas de sua obra, como também um grande desconforto no próprio Keynes em relação à forma que ele expôs suas críticas à teoria clássica nos dois capítulos iniciais da Teoria Geral. Nestes capítulos, Keynes expõe o que considera ser o cerne da economia clássica que pretende negar e tenta mostrar que os dois postulados centrais da teoria clássica – o primeiro definindo que a salário nominal seria igual à produtividade marginal do trabalho e o segundo definindo que a utilidade marginal do salário, dado o volume de trabalho empregado, sempre se iguala à desutilidade marginal deste trabalho – deveriam ser entendidos como um caso especial e não uma regra geral. 4 Por volta de 1939, o descontentamento de Keynes com esta abordagem já era claro: If the falling tendency of real wages in periods of rising demand is denied … it would be possible to simplify considerably the more complicated version of my fundamental explanation which I have expounded in my General Theory – particularly in Chapter 2, which is the portion of my book which most needs to be revised (Keynes 1973b, p. 401) Embora Keynes não tenha revisto seu livro, foi possível inferir qual seria o caminho que ele tomaria quando veio a público a publicação de seus Collected Writings em 1973. Nesta coletânea encontram-se versões preliminares da Teoria Geral nas quais ele mostra, claramente, sua oposição aos fundamentos da Teoria Clássica, bem como o seu entendimento dos princípios de uma Economia Monetária de Produção. (Keynes 1979). Nos rascunhos da Teoria Geral, Keynes diferenciou os ‘modelos’ de economia que sustentavam a teoria econômica Clássica, dominante a época, e a sua 4 “Paradoxically, Keynes’s attempt in Chapter 2 to differentiate his new theory from the old has resulted in complete misunderstanding of the fundamental difference between The Genera Theory and pre-Keynesian economics and has paved the way for neoclassical revival. His uncritical acceptance of the first postulate (diminishing marginal productivity of labour in the short period) without emphasizing that in his system the postulate does not give us the demand schedule for employment, together with his arguments concerning the stickyness of money-wages and the inability of labour as whole to reduce its real wage, led many to believe that all Keynes’s theory amounted to was an, admittedly realistic, critique of the imperfect operation of the labour market. The cure for unemployment was to bring about supply-side improvements to increase the (downward) flexibility of money and real wages – the neoclassical solution. (Brothwell 1997, p. 4) 15 nova teoria. Tais ‘modelos’ foram denominados por ele de Economia Co-operativa (ou Economia de Trocas Reais), no caso da economia clássica, e de Economia Empresarial (ou Economia Monetária de Produção), no caso de sua teoria. Dentre os vários elementos que diferenciavam tais modelos, o papel desempenhado pela moeda se destaca. Nas palavras de Keynes, a diferença básica entre a teoria ortodoxa e a por ele preconizada estaria no fato de sua teoria lidar com an economy in which money plays a part of its own and affects motives and decisions and is, in short, one of the operative factors in the situation, so that the course of events cannot be predicted, either in the long period or in the short, without a knowledge of the behavior of money between the first state and the last. And it is this which we ought to mean when we speak of a monetary economy (Keynes, 1973 CW XII, 408-9) Uma Economia de Troca seria constituída por produtores e consumidores independentes que trocariam os excedentes de suas produções acima de suas necessidades. Esta troca poderia ocorrer de forma direta (ou seja, mercadoria por mercadoria) ou por algum meio de pagamento, sendo que, no entanto, sempre existiria um mecanismo que assegurasse que toda renda geradano processo produtivo retornasse ao mercado sob a forma de demanda por produtos produzidos. No agregado, sempre existiria um mecanismo que asseguria que o valor nominal das rendas dos fatores de produção seria igual no agregado ao valor da produção. Esta seria uma economia onde a lei de Say predominaria. Nas palavras de Carvalho, economies of the cooperative type admit sectoral disequilibria, local imbalances between supply and demand, but aggregate imbalances are ruled out. There are no disequilibrium-amplifying income effects, even if it is not for the precise basket of goods that is available. This kind of imbalance is removed by the operation of the price system in which relative scarcities and excess supplies are signalled by disparities between market and natural (or long- period equilibrium normal) prices. (Carvalho 1992, p. 39) Nesta economia, a moeda é apenas um conveniente meio para efetuar intercâmbios, sendo sua função transitória e neutra em seus efeitos. Em outras palavras, ela não é capaz de afetar (modificar) os motivos e decisões dos integrantes desta economia: The distinction which is normally made between a barter economy and a monetary economy depends upon the employment of money as a convenient means of affecting exchanges, as an instrument of great convenience, but 16 transitory and neutral in its effect […] an economy, which uses money but uses it merely as a neutral link between transactions in real things are real assets and does not allow it to enter into motives or decisions might be called – for want of a better name – a real-exchange economy (Keynes 1973a, p. 408 ) Em uma clara oposição a este tipo de “Economia” Keynes via a economia em que vivemos como uma Economia Monetária de Produção onde a moeda, além de meio de troca, desempenharia um papel próprio afetando decisões. Para tanto, ela é vista não somente como meio de troca, mas também como reserva de valor, o que faz com que o curso dos eventos não possa ser previsto, seja no curto ou no longo – prazo, sem o conhecimento do comportamento da moeda. O conceito de Economia Monetária de Produção pode ser melhor entendido através da análise de seis princípios, tal como formulado por Carvalho (1992): i) produção; ii) dominância estratégica; iii) temporalidade da atividade econômica; iv) não ergodicidade; v) não pré-conciliação de planos; e vi) propriedades da moeda. No que se segue são expostos estes princípios.5 i. Princípio da Produção A firma é vista como um agente que possui interesses e objetivos próprios, distintos dos objetivos das famílias. Basicamente, a preocupação central de uma firma não seria atender as necessidades dos consumidores, mas sim gerar riqueza em sua forma mais geral, ou seja, moeda – poder de compra em sua forma universal. Seria através da obtenção de uma maior quantidade de moeda, o que possibilitaria à firma uma maior flexibilidade para aproveitar as chances que pudessem surgir para ampliar esta mesma riqueza monetária. É importante notar que não é o fato de existir uma necessidade da população não atendida que faz com que o empresário inicie o processo produtivo, mas sim, a expectativa de acumular riqueza com o atendimento desta necessidade. Assim, o objetivo da firma é atingido quando ela é capaz de aumentar o seu comando sobre a riqueza em sua forma mais líquida, isto é a firma aplica dinheiro para obter mais dinheiro. 5 Uma observação faz-se necessária. Como se sabe, Keynes não apresentou seu entendimento do que seria uma economia monetária de produção na forma de princípios. No entanto, como salienta Carvalho (Carvalho 1992), a leitura dos rascunhos da Teoria Geral permite concluir que o significado destes princípios faziam parte do raciocínio de Keynes. No presente trabalho, segue-se a formalização de princípios feita por Carvalho (1992) que, por sua vez, é um desenvolvimento da proposição feita anteriormente por Davidson. 17 Várias são as citações de Keynes que explicitam este princípio: An entrepreneur is interested not in the amount of product, but in the amount of money which will fall to his share. He will increase his output if by doing he expects to increase his money profit, even though this profit represents a smaller quantity of product than before (…) The choice before him in deciding whether or not to offer employment is a choice between using money in this way or not using it at all (Keynes 1979, p. 82) ii. Princípio da Dominância Estratégica Este princípio refere-se à hierarquia existente nas relações econômicas de uma sociedade capitalista e é uma decorrência do primeiro princípio. Segundo o princípio da dominância estratégica, a capacidade de trabalhadores e firmas determinarem a dinâmica da economia é distinta, sendo que o poder de decisão não é distribuído de forma igualitária, pendendo claramente em favor das firmas: Both the amount of employment and of savings depend of the decisions of firms to produce and to invest. Labours and savers adapt themselves to the firms’ decisions even if they do not realize it and part of the innovative content of The General Theory is to show how this takes place. (Carvalho 1992, p. 45) O que garante este poder nas mãos das firmas é o fato do capital ser “escasso” em relação ao trabalho, lembrando sempre que esta escassez é organizada pelo próprio sistema.6 A firma, neste contexto, detém a iniciativa tanto no mercado de trabalho (demanda por trabalho) como no mercado de capitais (a decisão de investir precede a criação da poupança). Isto significa dizer que a famosa, e de fundamental importância para a teoria ortodoxa, tesoura Marshaliana, onde oferta e demanda se encontram em igualdade de condições, não se observa em uma Economia Monetária de Produção. Vale salientar que este princípio é ainda mais evidente quando se considera que o processo produtivo somente tem início se houver financiamento disponível. Em outras palavras, mesmo que exista mão de obra disposta a trabalhar ao salário em vigor ou talvez até menor, o processo de produção só ocorrerá caso os bancos forneçam o crédito e os empresários avaliem que o processo de produção permite 6 O conceito marxista de exército industrial de reserva neste contexto é extremamente útil. 18 à firma valorizar a sua riqueza de uma melhor forma do que em outras alternativas. iii. Princípio da Temporalidade da Atividade Econômica Este terceiro princípio pode ser resumido na expressão: em uma economia monetária de produção a produção é realizada para a venda no mercado. Apesar de parecer trivial, esta é uma expressão com fortes implicações, sendo, a mais importante, o fato da decisão de produzir preceder a produção, que por sua vez precede a venda. Isto significa dizer que a firma produz sob o comando, ou sob a expectativa, da demanda. Esta última característica é fundamental por dar às expectativas em relação ao futuro comportamento da demanda uma dimensão causal, conferindo à atividade produtiva um caráter inevitavelmente especulativo. Nas palavras de Chick, The time consuming nature of production takes place upon producers the necessity to make decisions based on an estimate, a forecast, of the demand for their product: the goods must be placed on the market before people can buy them, and thus before demand can be known. The existence of money can enhance the difficulty of making that estimate, for when people save for future purchases, they need not place specific orders even if they know what they will want and when. They can hold Money instead, or one ofthe many claims on future Money that a developed financial system provides. This action gives producers no clue as to their future plans (Chick 1983, p. 5) iv. Princípio da Não-Ergodicidade A definição técnica de ergodicidade classifica um sistema como sendo ergódigo se o processo estocástico é tal que as médias de tempo e espaço coincidem após infinitas realizações.7 Ou seja, se um processo estocástico se repete infinitamente, as médias de tempo (tomando-se os resultados em diferentes momentos do tempo) e espacial (no mesmo tempo, porém em locais distintos) tendem a convergir. Como conseqüência, se determinado processo é ergódigo, o dado obtido de observações passadas fornecem uma regra segura para a tomada de decisões sobre 7 Nas palavras de Davidson: “Space averages refer to a fixed time point and are formed as averages over the universe of realisations … Time averages … refer to a fixed realisation and are formed as averages over na indefinite time space” (Davidson 1982-1983, p. 185). 19 o futuro (Davidson 1982-1983, p. 185). Desta forma, sistemas econômicos governados por processos ergódigos possuirão relações ahistóricas e imutáveis. Analogamente, se as médias não convergem o sistema será classificado como não ergódigo, e neste caso, o dado obtido de observações passadas não fornecem uma regra segura para a tomada de decisões sobre o futuro Vale salientar que o conceito de não-ergodicidade implica em entender o tempo como histórico em oposição ao conceito de tempo lógico incorporado na teoria ortodoxa. No tempo histórico, o passado precede o presente que, por sua vez, precede o futuro, não sendo possível ir ao futuro e retornar ao presente. Não é possível reverter decisões presentes sem que se incorra em custos. O conceito de tempo lógico é o expresso em termos tais como t, t+1, t+2, etc, amplamente utilizado em modelos econômicos ortodoxos. Nestes últimos, o agente sabe, ou possuí uma distribuição de probabilidades (objetivas ou subjetivas) sobre o que irá acontecer no tempo t+1, de forma que o agente sempre age com um determinado grau de certeza, mesmo que probabilística. É como se fosse possível ir ao futuro e voltar ao presente, para se tomar uma decisão, com pelo menos uma certeza probabilística. A irreversibilidade do tempo, determinada pelo entendimento do tempo como histórico, faz com que decisões não possam ser repetidas. Ou seja, a irreversibilidade do tempo implica em assumir a existência de decisões cruciais, não-vazias (Shackle 1959). Uma decisão vazia é mera solução formal para um problema também formal. É a situação na qual o indivíduo possui conhecimento completo e certo acerca de todas as possíveis escolhas, bem como de todos os possíveis resultados de cada escolha. É uma ação mecânica e inevitável (Shackle 1959, p. 291).8 Em contraste, uma decisão crucial (não-vazia) implica na impossibilidade desta decisão ser repetida, 8 Nas palavras de Crocco, When one looks at Shackle’s definition of “decision”, one realises that empty decisions are not true “decisions” in his account. He argues for an understanding of “decision” as a commitment to the first step in an action of choosing among a plurality of rival and mutually exclusive hypotheses about which it is impossible to know the relevant consequences (Shackle 1958, p. 35). Obviously, this is far from a situation of complete knowledge and deterministic actions as in the case of empty decisions. (Crocco 2002, p. 15) 20 because its very performance destroys forever the conditions in which it was undertaken, which form an essential part of it (Shackle 1970, p. 109). É uma decisão única que cria novas informações “which agents will need to take into account in the future courses of action” (Andrade, 1997, p. 13). Alguns exemplos de decisões cruciais são investimento, acumulação de riqueza e financiamento. Como tais decisões não podem ser repetidas, inclusive devido ao fato da própria decisão destruir os condicionantes sobre os quais ela foi elaborada, não existe um processo de aprendizado. Na visão de Shackle, quando decisões cruciais são tomadas não existe conhecimento disponível. Uma implicação importante do princípio da não-ergodicidade é o fato dele determinar o surgimento da incerteza.9 Este conceito é de fundamental importância tanto para Keynes quanto para os autores Pós-Keysianos. Uma longa literatura tem tratado deste tema com riqueza de detalhes. No entanto, detalhar tal discussão fugiria ao tema deste trabalho, para o qual o conceito de incerteza utilizado será aquele em que se considera uma situação onde é impossível estabelecer uma distribuição de probabilidades (objetiva ou subjetiva) em relação aos eventos futuros, ou seja, uma situação onde a incerteza não é mensurável.10 v. Princípio da não Pré-Conciliação dos Planos Este princípio afirma que em uma economia monetária de produção não existem instituições de comando que determinem às firmas o que e quanto produzir. Neste contexto, ela tem que decidir com base em expectativas, não sabendo com exatidão o quanto será demandado e o quanto será ofertado em conjunto. Este é o princípio que abre espaço para as expectativas e de formas institucionais de se lidar com a incerteza. Tais instituições têm por objetivo central socializar perdas e reduzir o risco para cada agente individual. Dentre tais 9 Vale salientar que é a não-ergodicidade que cria a incerteza e não a temporalidade das decisões. Se o mundo fosse ergódigo, o fato da produção anteceder a venda (princípio da temporalidade das atividades econômicas) não implicaria em processo especulativo uma vez que o futuro seria um espelho do passado. 10 Para uma discussão detalhada sobre o tema ver Rundle (1993), Davidson (1994), Dow e Hillard (1994), e Crocco (1999), entre outros. 21 instituições talvez a mais importante seja o contrato futuro denominado em moeda. Neste momento é válida uma longa citação de Carvalho A contract reduces uncertainty by establishing flows of resources, real and financial, their timing and their terms, assuring producers of the availability of inputs, on the one hand, and of the existence of outlets for their products, on the other. It serves, as a cost-controlling device for entrepreneurs and as the basis for the calculation of relative rewards that are the field of application of entrepreneurial rationality. Not all flows of goods can be defined in forward contracts (in particular, consumption goods are not produced ‘to order’), so uncertainty cannot disappear completely. But time-consuming productive processes that would be too risky otherwise can be organized on the basis of a system of contracts that ensures its continuity, at least in the face of predicable contingences. (Carvalho 1992, p. 48) vi. Princípio das Propriedades da Moeda Este princípio está fortemente relacionado com o anterior, pois para que um contrato, denominado em moeda, possa servir de instituição coordenadora em um ambiente não – ergódigo se faz necessário que a moeda possua propriedades que garantam a sua estabilidade no tempo. Esta estabilidade se faz necessária, pois, caso contrário, ela não poderia ser aceita como unidade de conta em contratos. Estas propriedades são duas: elasticidades de produção e substituição nulas ou próximas de zero. A elasticidade de produção próxima de zero implica dizer que um aumento da demanda por moeda não gera um aumento em sua produção e, conseqüentemente, um aumento da suadisponibilidade. Já a elasticidade de substituição da moeda próxima de zero implica dizer que as funções da moeda não podem ser exercidas por outro ativo. Tais características, em conjunto, garantem a função de reserva de valor da moeda e, conseqüentemente, sua liquidez, sua capacidade de liquidar dívidas e a sua transformação em poder de compra em sua forma mais geral. Nas palavras de Keynes, The attribute of ‘liquidity’ is by no means independent of the presence of these two characteristics. It is unlikely that an asset, of which the supply can be easily increased or the desire for which can be easily diverted by a change in relative price, will possess the attribute of ‘liquidity’ in the minds of owners of wealth. Money itself rapidly loses the attribute of ‘liquidity’ if its future supply is expected to undergo sharp changes (Keynes 1973 [1936], p. 241n) 22 Os seis princípios listados acima permitem a caracterização da economia capitalista como sendo uma economia onde a moeda não é neutra no longo prazo, podendo o seu comportamento afetar as variáveis reais da economia. Em situações onde o futuro é incerto, o capitalista pode decidir ou não valorizar sua riqueza, mantendo-a em sua forma mais líquida (moeda) ou valorizá-la em ativos cuja reprodução não demande a contratação significativa de mão-de-obra (circuito financeiro). É justamente o refúgio encontrado na liquidez da moeda que faz com que ocorra a possibilidade de ocorrência de desemprego involuntário, mesmo em situações onde existam trabalhadores dispostos a trabalhar em troca de salários menores. Isto ocorreria porque a combinação de futuro incerto e a propriedade de conservar de valor por parte da moeda faz com que o nível de demanda efetiva seja abaixo daquele que garantiria o pleno emprego. Neste contexto, enquanto as expectativas em relação ao futuro não se alterarem positivamente, o nível de demanda efetiva será insuficiente para garantir a plena utilização dos fatores de produção. I.1.2 O DEBATE SOBRE EXOGENEIDADE E ENDOGENEIDADE DA OFERTA DE MOEDA Feita a análise dos fundamentos da concepção Keynesiana de uma Economia Monetária de Produção, passa-se agora para a discussão do segundo ponto teórico necessário para a construção de uma interpretação Pós-Keynesiana de economia regional, qual seja o debate acerca da endogeneidade da oferta de moeda. Como será visto mais a frente, esta discussão está no centro da interpretação Keynesiana de economia regional, pois é através dela que a moeda pode interferir na criação, manutenção e ampliação dos desequilíbrios regionais. O debate acerca da endogeneidade ou exogeneidade da oferta de moeda tem no seu cerne a discussão sobre a capacidade das autoridades monetárias em controlar a base monetária de uma economia. Neste contexto, três interpretações se consolidaram na literatura sobre teoria monetária: i) a vertente neoclássica verticalista; ii) a vertente Keynesiana horizontalista; e iii) a vertente Keynesiana estruturalista. 23 A visão verticalista, fortemente apoiada pelos chamados monetaristas, considera a oferta de moeda completamente controlada pela autoridade monetária. Esta hipótese é de fundamental importância para a validação da Teoria Quantitativa da Moeda, marco central da corrente monetarista. Basicamente, esta visão baseia-se em dois pilares: 1. determinação da base monetária pelo Banco Central, que seria efetuada, essencialmente, por três tipos de operações do Banco Central, a saber: a fixação da taxa de reservas; a realizações de operações de redesconto ou empréstimo de liquidez; e, por fim, realização de operações de mercado aberto; e 2. o entendimento de que o controle da base monetária pelo Banco Central o permite controlar o processo de expansão do crédito. Neste processo as preferências do público e as estratégias bancárias são consideradas estáveis. Implícito, nesta concepção, está o fato da quantidade ofertada de moeda ser fixada de maneira independente da demanda. É a decisão da autoridade monetária, em última instância, que determina a quantidade de moeda não importando o nível de atividade econômica e a demanda por moeda, conseqüentemente. A taxa de juros, nesta concepção, é um mero resultado da decisão sobre as metas quanto aos agregados monetários, não se constituindo em instrumento de política econômica. A vertente endogenista discorda fortemente deste entendimento, notadamente quanto à possibilidade da autoridade monetária ter controle sob a oferta de moeda. No entanto, esta vertente se subdivide em duas, denominadas de horizontalista e estruturalista. Os chamados horizontalistas possuem em Kaldor (1982) e Moore (1988) seus principais representantes. Esta corrente aceita a distinção entre moeda- mercadoria e moeda-creditícia elaborada por Hicks (1967). Segundo este autor, a exogeneidade da oferta de moeda seria uma conceptualização apropriada para uma economia com moeda metálica e com pequeno ou nenhum desenvolvimento do sistema de crédito. Supondo uma economia fechada e sem crédito, a ampliação da renda nominal depende do aumento da quantidade de moeda. Não é possível 24 gastar mais, em termos monetários, do que a quantidade de moeda que se dispõe a cada período. No entanto, com o desenvolvimento do sistema financeiro a moeda bancária passou a ser o principal meio de pagamentos, possibilitando a ocorrência de uma dependência da oferta de moeda em relação à demanda de crédito. Em um sistema de crédito, não existe uma oferta de moeda creditícia independente da demanda. Uma redução de demanda por crédito resulta na anulação da moeda creditícia e, portanto, uma redução do estoque de moeda existente. Simetricamente, quanto ocorre um aumento na demanda por crédito, o sistema bancário pode ampliar a oferta de moeda. O desenvolvimento da teoria da endogeneidade da moeda é datado historicamente, fruto do desenvolvimento tanto da forma de atuação dos bancos, como também das autoridades monetárias. Para melhor entender esta evolução, utiliza-se o arcabouço desenvolvido por Chick (1992 [1986]) e Dow (1999) de estágios de desenvolvimento bancário.11 12 Este arcabouço se mostra extremamente útil uma vez que explicita as mudanças de processos causais na forma de operar dos bancos e como tais mudanças afetam a escolha da teoria mais apropriada para interpretá-los em cada estágio (Dow e Rodriguez-Fuentes, 1997). São seis os estágios de desenvolvimento bancário. No primeiro estágio, os bancos são numerosos e pequenos; os débitos em contas bancárias não são utilizados como forma de pagamento, isto é, os pagamentos são feitos em moeda mercadoria; os bancos são, principalmente, receptores de poupanças. Os depósitos são basicamente poupanças privadas, cuja oferta é exógena ao sistema bancário. 11 Vale notar que o arcabouço desenvolvido por Chick não pretende ser uma teoria de desenvolvimento bancário a ser aplicado de forma generalizada para todo e qualquer sistema bancário nacional. Sua aplicação deve ser adaptada a cada sistema nacional, uma vez que ele foi elaborado tendo-se em mente o sistema inglês (e posteriormente, britânico). Feita esta ressalva, acredita-se que ele possa ser de grande ajuda neste trabalho, não somente para ajudar a explicar o processo de endogenia da oferta de moeda, mas também, como será visto mais adiante, para desenvolver a contribuição Pós-Keynesiana para a teoria de economia regional (para uma visão alternativa, porém não necessariamente contraditória, do processo de evolução dos bancos ver Kregel 1997). 12 Em seu trabalho original, Chick (1992[1986]) descreve cinco estágios de desenvolvimento bancário. Dow (1999) incorpora um sexto estágio. No presente trabalho será utilizada a versão de Dow. 25 These features implied that an expansion of lending would entail a substantial loss of reserves even to the system as a whole. Banks are thus dependent of deposits for reserves and on reserves for lending capacity (Chick 1992 [1986], p. 194) Nesse cenário, a poupança determina o investimento. A capacidade de fornecer crédito está condicionada pela capacidade dos bancos em captar poupanças. Estas, por sua vez, estão condicionadas pela quantidade de moeda ofertada (high-powered money) não demandada pelo público na forma de cash ou por mudanças na preferência do público entre dinheiro vivo e depósitos bancários. Fundamental neste contexto é o fato do montante emprestado não retornar aos bancos sob a forma de depósitos, significando a existência de risco na atividade de concessão de empréstimo. No segundo estágio, o sistema bancário já possui a confiança do público, significando que os depósitos bancários podem ser usados como moeda. Além disso, esta possibilidade é ampliada pela consolidação de acordos de compensação entre bancos e pelo aumento do número de agências. Isto possibilita uma mudança radical no significado dos depósitos, uma vez que passam a representar toda a renda, seja ela destinada ao consumo ou não (poupança). Este desenvolvimento é de fundamental importância para a operação bancária, uma vez que o sistema não perde depósitos com empréstimos. Neste sentido, os bancos são encorajados a emprestar “dinheiro que não possuem” (além das reservas). Nas palavras de Dow, This development is crucial to the development of banking as opposed to financial intermediation. Now that there is less call on the intermediary’s reserves of coin, funds may be lent out without a prior matching deposit. The intermediary can generate what we now know as the ‘bank multiplier’. Deficit units can be financed without prior saving elsewhere in the system. The intermediary, now a bank, can itself create deposits as the counterpart to new lending which add to the local money supply and provide the basis for further financial intermediation (Dow 1999, p. 37) O multiplicador dos depósitos bancários é a teoria relevante: o sistema bancário pode emprestar um valor que é um múltiplo das reservas (sujeito à manutenção de um patamar mínimo de reservas). Nesse cenário, depósitos são uma conseqüência do processo de concessão de crédito. O sistema financeiro possui a capacidade de desenvolver os mecanismos para aumentar o estoque de depósitos bancários. O investimento pode preceder a poupança. 26 O estágio III é caracterizado pelo desenvolvimento de mecanismos de empréstimos inter-bancários, fato este que potencializa o uso das reservas, fazendo com que o multiplicador de depósitos bancários atue de forma ainda mais intensa. Como pode ser notado, este estágio é um aprofundamento do estágio anterior. O quarto estágio marca uma mudança significativa na forma de operação do sistema bancário, e, conseqüentemente na teoria necessária para analisá-lo. Este é o estágio onde a atuação dos bancos centrais sofre uma mudança significativa: ele passa a atuar como emprestador de última instância para qualquer banco que esteja em crise, mesmo que isoladamente.13 Under these circumstances, the supply of reserves has become endogenous, subject to the influence of the banks themselves. In turn, banks can now respond to the demand for loans, rather than being constrained by an exogenous stock of reserves (Dow 1993, p. 38) Neste estágio o banco central assume totalmente a responsabilidade pela manutenção da estabilidade do sistema bancário. No quinto estágio os bancos desenvolvem a administração do passivo, buscando atrair, ou reter, como depósitos, poupanças que poderiam ser mantidas em outras instituições financeiras. Esta é uma conseqüência do aumento da competição por depósitos dos bancos com instituições financeiras não-bancárias. The banks are forced to become much more pro-active, seeking lending opportunities and the deposits to match them, that is, to engage in liability management. This is where financial expansion starts to take on a life of its own, driven by the banks’ concern over market share rather than the financing needs of borrowers in the productive sector. There will always be demand for credit to finance speculation. (Dow 1999 [1986], p. 38 -9) O sexto e último estágio representa uma resposta às conseqüências da expansão do sistema financeiro ocorrida durante o estágio anterior, que não necessariamente tiveram rebatimentos positivos no setor produtivo. Como visto acima, a estratégia de gestão de passivos, através de uma busca constante por reservas, levou à expansão dos depósitos, facilitando o aumento tanto de 13 De acordo com Chick, (1992 [1986]) a atuação do banco central enquanto emprestador de última instância já havia sido defendida há bastante tempo atrás por Bagehot (1873). No entanto, tal intervenção ocorreria apenas quando ocorresse uma crise generalizada do sistema. No estágio IV, discutido acima, esta atuação ocorreria mesmo quando uma crise de liquidez afetasse apenas um único banco. 27 atividades em mercados especulativos, quanto ao aumento da taxa de juros. Estas duas últimas conseqüências significaram um abandono do financiamento de atividades produtivas enquanto estratégia central dos bancos em busca de lucratividade. Assim sendo, observa-se um esforço, por parte das autoridades monetárias, em controlar este processo especulativo e a oferta de reservas através de regras de adequação de capital. A resposta do sistema bancário foi o desenvolvimento da securitização. Banks turned existing loans into marketable securities and developed the provision of financial services in securities markets, facilitating borrowing by means of issuing securities, rather than lending directly themselves. At the same time, they encouraged the development of markets in derivative products which offered banks profit-making opportunities off the balance sheet, and thus not subject to capital requirements (although the requirements have since been changed to try to capture exposure to off – balance sheet risk). (Dow 1999, p. 39) É no contexto do quarto estágio de desenvolvimento bancário, acima descrito, que a teoria da endogenia da oferta de moeda emerge. Dito em outras palavras, este desenvolvimento teórico se situa em um contexto institucional relativo à forma de atuação do sistema bancário. Neste sentido é uma teoria datada no tempo. Além do quadro institucional em vigor, a situação em que os bancos se encontravam ao final da II Guerra também favoreceu o desenvolvimento desta teoria, que pode ser entendida através da evolução dos balanços dos bancos. Pelo lado do ativo, observa-se que os sistemas bancários possuíam um grande volume de títulos públicos devido à necessidade de financiamento dos custos de guerra. Este fato determinou o surgimento de uma grande liquidez, uma vez que estes títulos possuíam uma grande aceitação. Com o crescimento econômico do pós-guerra, os bancos passaram gradativamente a trocar os títulos públicos (resgate dos governos) por títulos e créditos junto ao setor privado, diminuindo a liquidez dos bancos (títulos com menor aceitação). Pelo lado do passivo, observou-se o desenvolvimento do mercado internacional de divisas e o surgimento de uma série de inovações financeiras que facilitavam a obtenção de 28 fundos por parte dos bancos. Com isto ocorreu umaredução progressiva na proporção de reservas mantidas em caixa. Neste contexto, ficou mais difícil para os Bancos Centrais constrangerem os bancos por meio de limitações de reservas sem pôr em risco o sistema. Isto os levou a, na prática, socorrer todo e qualquer banco em situação de restrição de liquidez, dando ao sistema como todo a garantia de que os bancos poderiam emprestar o quanto desejassem, uma vez que o banco central os socorreria sempre que necessário. Nas palavras de Dow, Kaldor’s strongest argument for the passivity of the monetary authorities in the face of expanding credit is that this is what inspires the confidence in the financial system which allows it to flourish; if the authorities were to contemplate refusing to supply reserves on demand, the entire financial system would be threatened by a crises of confidence. (Dow 1999, p. 70) A teoria da endogenia da oferta de moeda teve implicações profundas no debate entre Keynesianos e Monetaristas acerca da eficácia da política monetária no que concerne ao controle das autoridades monetárias sobre a quantidade de moeda na economia. Como visto, na visão verticalista (monetarista), a autoridade monetária controla plenamente a oferta de moeda, sendo assim possível determinar a quantidade de moeda na economia. Como, para esta vertente de pensamento, a quantidade de moeda determina o nível de preços (via teoria quantitativa da moeda), deriva-se, então, que a política monetária se torna o instrumento principal no combate a inflação.14 Já os adeptos da endogenia da moeda preconizam que a autoridade monetária, ao atuar como emprestador de última instância, teria perdido a sua capacidade de controlar a oferta de moeda, limitando-se a definir a taxa de juros que seria cobrada aos bancos em caso de socorro de liquidez. No entanto, afirmam os horizontalistas, os bancos determinariam uma taxa de juros para a concessão de crédito através de um mark-up sobre esta taxa e, desde que o demandante de empréstimo estivesse disposto a pagar esta taxa, o empréstimo seria efetuado. Nas palavras de Moore, 14 Esta interpretação fundamentou as políticas de metas de agregados monetários (precursora do regime de metas de inflação) adotado pelos governos Reagan e Thatcher no final dos anos setenta. 29 The Federal Reserve retains the power to set interest rate at which it will provide lender of last resort liquidity. But it has very limited ability to constrain quantitatively the amount of reserves provided below the demand for them (Moore 1988, p. 39) Ou seja, mesmo que as reservas sejam adquiridas a uma taxa de juros mais alta, os bancos poderão expandir os empréstimos caso a expansão seja rentável (rentabilidade marginal dos empréstimos comparadas aos custos marginais da aquisição das reservas adicionais junto ao Banco Central). A oferta de moeda, nesse caso, acaba se tornando completamente endógena à demanda: uma reta horizontal. A versão horizontalista da oferta de moeda, no entanto, não é unânime na literatura Pós – Keynesiana. Autores como Davidson (1972), Kregel (1984-5), Rousseas (1986), Jarsulic (1989), Dow e Dow (1989), Wray (1990), Pollin (1991), Carvalho (1992), entre outros questionam a hipótese de que os bancos sempre validariam a demanda por crédito. Basicamente, estes autores analisam a atuação dos bancos em termos de sua própria preferência pela liquidez. Portanto, é através da análise da escolha de portfólio por parte dos bancos que a questão da endogenia da moeda deve ser tratada. Assim sendo, para qualquer política adotada pelas autoridades monetárias, a criação real de moeda dependerá do comportamento dos bancos. Estes irão procurar fazer suas decisões de portfólio combinando lucratividade e liquidez: For any given policy of the monetary authorities, the actual creation of money will depend on the behaviour of banks. The portfolio choices of banks are oriented by the need to combine profitability with liquidity. According to the conditions in which existing asset possibilities offer those two attributes, banks will choose an investment policy which will ultimately determine the money supply. (Carvalho 1992, p. 111) Dessa forma, a análise estruturalista fundamenta-se na análise de dinâmicas monetárias centradas nas estruturas financeiras, envolvendo estratégias de valorização das instituições financeiras, o que permite questionar a estabilidade do multiplicador dos meios de pagamento e, conseqüentemente, da estabilidade da velocidade de circulação de moeda. A causa de uma falha de demanda efetiva poderá, então, ocorrer devido tanto ao fato de as firmas preferirem ativos líquidos à produção de bens de capital, quanto ao fato de os bancos escolherem direcionar seus recursos para o circuito financeiro ao invés do circuito industrial: 30 In a sense this approach suggests that the very dichotomy between demand and supply of money is too narrow. It is the same fundamental factor that is in operation in both sides of the market: liquidity preference (Carvalho 1992, p. 112) É importante notar que o sentido de endogenia da oferta de moeda ainda se mantém presente na abordagem estruturalista, embora de forma distinta da observada entre os horizontalistas. Enquanto nestes últimos, a oferta de moeda é endógena à expectativas do setor privado não bancário, nos primeiros a endogenia é garantida e determinada pelo setor bancário exclusivamente. A principal crítica aos horizontalistas é o não reconhecimento da possibilidade de os bancos optarem por alocar seus ativos na circulação financeira. Por fim vale salientar que, como será visto mais a frente, a abordagem estruturalista de oferta de moeda que dá as bases para a interpretação Pós- Keynesiana de desenvolvimento regional. As duas outras interpretações (verticalista e horizontalista) não possuem espaço para que a moeda seja entendida como uma variável importante na dinâmica regional. I.1.3 POUPANÇA, FINANCE E FUNDING15 Uma das mais importantes rupturas com a teoria ortodoxa introduzida por Keynes está na relação entre poupança e investimento. Enquanto que para a teoria clássica estas duas variáveis são faces da mesma moeda, intermediada pela taxa de juros, Keynes estabeleceu teoricamente uma clara distinção entre poupança e investimento. Nas palavras de Carvalho, It is a fundamental proposition of Keynesian economics in any of its forms that the savings decision should be studied separately from the choice as to the form in which saved income should be stored. (Carvalho 1992, p. 147). Keynes argumentava que o ato de poupar era um escolha inter-temporal relacionada com preferências intertemporais e, principalmente, à precaução ante um futuro incerto. Uma vez decido o quanto poupar, uma segunda decisão deve ser tomada: em que forma devem ser mantidos os recursos poupados. Esta segunda 15 A descrição do processo de poupança, finance e funding aqui apresentado baseia-se em Carvalho (1992). 31 decisão, de acordo com a visão ortodoxa, expressa na conhecida Teoria dos Fundos Emprestáveis, seria a obrigatória transformação destes recursos em investimento. Para Keynes, no entanto, esta relação direta não se estabelece, sendo a transformação em investimento apenas uma das opções existente. Esta decisão seria, em última instância, determinada pela preferência pela liquidez dos poupadores. Além de diferenciar poupança de investimento, Keynes também introduziu dois conceitos fundamentais para entender a dinâmica do investimento, quais sejam: finance
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