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Programa em Java - Le arquivo Texto e Gera Codificação de Huffman(Arvore) (codifica palavras)

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HuffmanFX/ Casmurro.txt
 
Dom Casmurro 
Texto de refer�ncia:
Obras Completas de Machado de Assis,
vol. I,
Nova Aguilar, Rio de
Janeiro, 1994.
 
�Publicado originalmente
pela Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1899.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
CAP�TULO PRIMEIRO
DO T�TULO
 
Uma noite destas, vindo da cidade
para o Engenho Novo, encontrei no trem da Central um rapaz aqui do bairro, que
eu conhe�o de vista e de chap�u. Cumprimentou-me, sentou-se ao p� de mim, falou
da Lua e dos ministros, e acabou recitando-me versos. A viagem era curta, e os
versos pode ser que n�o fossem inteiramente maus. Sucedeu, por�m, que, como eu
estava cansado, fechei os olhos tr�s ou quatro vezes; tanto bastou para que ele
interrompesse a leitura e metesse os versos no bolso. 
 
� Continue, disse eu acordando. 
 
� J� acabei, murmurou ele. 
 
� S�o muito bonitos. 
 
Vi-lhe fazer um gesto para
tir�-los outra vez do bolso, mas n�o passou do gesto; estava amuado. No dia seguinte
entrou a dizer de mim nomes feios, e acabou alcunhando-me Dom Casmurro.
Os vizinhos, que n�o gostam dos meus h�bitos reclusos e calados, deram curso �
alcunha, que afinal pegou. Nem por isso me zanguei. Contei a anedota aos amigos
da cidade, e eles, por gra�a, chamam-me assim, alguns em bilhetes: "Dom
Casmurro, domingo vou jantar com voc�.� "Vou para Petr�polis, Dom
Casmurro; a casa � a mesma da Ren�nia; v� se deixas essa caverna do Engenho
Novo, e vai l� passar uns quinze dias comigo�.� "Meu caro Dom Casmurro,
n�o cuide que o dispenso do teatro amanh�; venha e dormir� aqui na cidade;
dou-lhe camarote, dou-lhe ch�, dou-lhe cama; s� n�o lhe dou mo�a�.
 
N�o consultes dicion�rios. Casmurro
n�o est� aqui no sentido que eles lhe d�o, mas no que lhe p�s o vulgo de homem
calado e metido consigo. Dom veio por ironia, para atribuir-me fumos de
fidalgo. Tudo por estar cochilando! Tamb�m n�o achei melhor t�tulo para a minha
narra��o; se n�o tiver outro daqui at� ao fim do livro, vai este mesmo. O meu
poeta do trem ficar� sabendo que n�o lhe guardo rancor. E com pequeno esfor�o,
sendo o t�tulo seu, poder� cuidar que a obra � sua. H� livros que apenas ter�o
isso dos seus autores; alguns nem tanto. 
 
 
 
CAP�TULO II
DO LIVRO
 
Agora que expliquei o t�tulo,
passo a escrever o livro. Antes disso, por�m, digamos os motivos que me p�em a
pena na m�o. 
 
Vivo s�, com um criado. A casa em
que moro � pr�pria; fi-la construir de prop�sito, levado de um desejo t�o
particular que me vexa imprimi-lo, mas v� l�. Um dia, h� bastantes anos,
lembrou-me reproduzir no Engenho Novo a casa em que me criei na antiga Rua de
Mata-cavalos, dando-lhe o mesmo aspecto e economia daquela outra, que
desapareceu. Construtor e pintor entenderam bem as indica��es que lhes fiz: � o
mesmo pr�dio assobradado, tr�s janelas de frente, varanda ao fundo, as mesmas
alcovas e salas. Na principal destas, a pintura do teto e das paredes � mais ou
menos igual, umas grinaldas de flores mi�das e grandes p�ssaros que as tomam
nos bicos, de espa�o a espa�o. Nos quatro cantos do teto as figuras das
esta��es, e ao centro das paredes os medalh�es de C�sar, Augusto, Nero e
Massinissa, com os nomes por baixo... N�o alcan�o a raz�o de tais personagens.
Quando fomos para a casa de Mata-cavalos, j� ela estava assim decorada; vinha
do dec�nio anterior. Naturalmente era gosto do tempo meter sabor cl�ssico e
figuras antigas em pinturas americanas. O mais � tamb�m an�logo e parecido.
Tenho chacarinha, flores, legume, uma casuarina, um po�o e lavadouro. Uso lou�a
velha e mob�lia velha. Enfim, agora, como outrora, h� aqui o mesmo contraste da
vida interior, que � pacata, com a exterior, que � ruidosa. 
 
O meu fim evidente era atar as
duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolesc�ncia. Pois, senhor, n�o
consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto � igual, a
fisionomia � diferente. Se s� me faltassem os outros, v�; um homem consola-se
mais ou menos das pessoas que perde; mais falto eu mesmo, e esta lacuna � tudo.
O que aqui est� �, mal comparando, semelhante � pintura que se p�e na barba e
nos cabelos, e que apenas conserva o h�bito externo, como se diz nas aut�psias;
o interno n�o ag�enta tinta. Uma certid�o que me desse vinte anos de idade
poderia enganar os estranhos, como todos os documentos falsos, mas n�o a mim.
Os amigos que me restam s�o de data recente; todos os antigos foram estudar a
geologia dos campos-santos. Quanto �s amigas, algumas datam de quinze anos,
outras de menos, e quase todas cr�em na mocidade. Duas ou tr�s fariam crer nela
aos outros, mas a l�ngua que falam obriga muita vez a consultar os dicion�rios,
e tal freq��ncia � cansativa. 
 
Entretanto, vida diferente n�o
quer dizer vida pior; � outra coisa. A certos respeitos, aquela vida antiga
aparece-me despida de muitos encantos que lhe achei; mas � tamb�m exato que
perdeu muito espinho que a fez molesta, e, de mem�ria, conservo alguma
recorda��o doce e feiticeira. Em verdade, pouco apare�o e menos falo.
Distra��es raras. O mais do tempo � gasto em hortar, jardinar e ler; como bem e
n�o durmo mal. 
 
Ora, como tudo cansa, esta
monotonia acabou por exaurir-me tamb�m. Quis variar, e lembrou-me escrever um
livro. Jurisprud�ncia, filosofia e pol�tica acudiram-me, mas n�o me acudiram as
for�as necess�rias. Depois, pensei em fazer uma Hist�ria dos Sub�rbios,
menos seca que as mem�rias do padre Lu�s Gon�alves dos Santos, relativas �
cidade; era obra modesta, mas exigia documentos e datas, como preliminares,
tudo �rido e longo. Foi ent�o que os bustos pintados nas paredes entraram a
falar-me e a dizer-me que, uma vez que eles n�o alcan�avam reconstituir-me os
tempos idos, pegasse da pena e contasse alguns. Talvez a narra��o me desse a
ilus�o, e as sombras viessem perpassar ligeiras, como ao poeta, n�o o do trem,
mas o do Fausto: A� vindes outra vez, inquietas sombras?... 
 
Fiquei t�o alegre com esta id�ia,
que ainda agora me treme a pena na m�o. Sim, Nero, Augusto, Massinissa, e tu,
grande C�sar, que me incitas a fazer os meus coment�rios, agrade�o-vos o
conselho, e vou deitar ao papel as reminisc�ncias que me vierem vindo. Deste
modo, viverei o que vivi, e assentarei a m�o para alguma obra de maior tomo.
Eia, comecemos a evoca��o por uma c�lebre tarde de novembro, que nunca me
esqueceu. Tive outras muitas, melhores, e piores, mas aquela nunca se me apagou
do esp�rito. � o que vais entender, lendo. 
 
 
 
CAP�TULO III
A DEN�NCIA
 
Ia a entrar na sala de visitas,
quando ouvi proferir o meu nome e escondi-me atr�s da porta. A casa era a da
rua de Mata-cavalos, o m�s novembro, o ano � que � um tanto remoto, mas eu n�o
hei de trocar as datas � minha vida s� para agradar �s pessoas que n�o amam
hist�rias velhas; o ano era de 1857. 
 
� D. Gl�ria, a senhora persiste na
id�ia de meter o nosso Bentinho no semin�rio? � mais que tempo, e j� agora pode
haver uma dificuldade. 
 
� Que dificuldade? 
 
� Uma grande dificuldade. 
 
Minha m�e quis saber o que era.
Jos� Dias, depois de alguns instantes de concentra��o, veio ver se havia algu�m
no corredor; n�o deu por mim, voltou e, abafando a voz, disse que a dificuldade
estava na casa ao p�, a gente do P�dua. 
 
� A gente do P�dua? 
 
� H� algum tempo estou para lhe
dizer isto, mas n�o me atrevia. N�o me parece bonito que o nosso Bentinho ande
metido nos cantos com a filha do Tartaruga, e esta � a dificuldade,
porque se eles pegam de namoro, a senhora ter� muito que lutar para separ�-los.
 
� N�o acho. Metidos nos
cantos? 
 
� � um modo de falar. Em segredinhos,
sempre juntos. Bentinho quase n�o sai de l�. A pequena � uma desmiolada; o pai
faz que n�o v�; tomara ele que as coisas corressem de maneira que... Compreendo
o seu gesto; a senhora n�o cr� em tais c�lculos, parece-lhe que todos t�m a
alma c�ndida... 
 
� Mas, Sr. Jos� Dias, tenho visto
os pequenos brincando, e nunca vi nada que fa�a desconfiar. Basta a idade;
Bentinho mal tem quinze anos. Capitu fez quatorze � semana passada; s�o dois
crian�olas. N�o se esque�a que foram criados juntos, desde aquela grande
enchente, h� dez anos, em que a fam�lia P�dua perdeu tanta coisa; da� vieram as
nossas rela��es. Pois eu hei de crer? ... Mano Cosme, voc� que acha? 
 
Tio Cosme respondeu com um
"Ora!" que, traduzido em vulgar, queria dizer: "S�o imagina��es
do Jos� Dias; os pequenos divertem-se, eu divirto-me; onde est� o gam�o?" 
 
� Sim, creio que o senhor est�
enganado. 
 
� Pode ser, minha senhora. Oxal�
tenham raz�o; mas creia que n�o falei sen�o depois de muito examinar... 
 
� Em todo caso, vai sendo tempo,
interrompeu minha m�e; vou tratar de met�-lo no semin�rio quanto antes. 
 
� Bem, uma vez que n�o perdeu a
id�ia de o fazer padre, tem-se ganho o principal. Bentinho h� de satisfazer os
desejos de sua m�e. E depois a igreja brasileira tem altos destinos. N�o
esque�amos que um bispo presidiu a Constituinte, e que o padre Feij� governou o
Imp�rio... 
 
� Governo como a cara dele!
atalhou tio Cosme, cedendo a antigos rancores pol�ticos. 
 
� Perd�o, doutor, n�o estou
defendendo ningu�m, estou citando. O que eu quero � dizer que o clero ainda tem
grande papel no Brasil. 
 
� Voc� o que quer � um capote;
ande, v� buscar o gam�o. Quanto ao pequeno, se tem de ser padre, realmente �
melhor que n�o comece a dizer missa atr�s das portas. Mas, olhe c�, mana Gl�ria,
h� mesmo necessidade de faz�-lo padre? 
 
� � promessa, h� de cumprir-se. 
 
� Sei que voc� fez promessa... mas
uma promessa assim... n�o sei... Creio que, bem pensado... Voc� que acha, prima
Justina? 
 
� Eu? 
 
� Verdade � que cada um sabe melhor
de si, continuou tio Cosme; Deus � que sabe de todos. Contudo, uma promessa de
tantos anos... Mas, que � isso, mana Gl�ria? Est� chorando? Ora esta! Pois isto
� coisa de l�grimas? 
 
Minha m�e assoou-se sem responder.
Prima Justina creio que se levantou e foi ter com ela. Seguiu-se um alto
sil�ncio, durante o qual estive a pique de entrar na sala, mas outra for�a
maior, outra emo��o... N�o pude ouvir as palavras que tio Cosme entrou a dizer.
Prima Justina exortava: "Prima Gl�ria! Prima Gl�ria!" Jos� Dias
desculpava-se: "Se soubesse, n�o teria falado, mas falei pela venera��o,
pela estima, pelo afeto, para cumprir um dever amargo, um dever amar�ssimo...� 
 
 
 
CAP�TULO IV
UM DEVER AMAR�SSIMO! 
 
Jos� Dias amava os superlativos. Era
um modo de dar fei��o monumental �s id�ias; n�o as havendo, servia a prolongar
as frases. Levantou-se para ir buscar o gam�o, que estava no interior da casa.
Cosi-me muito � parede, e vi-o passar com as suas cal�as brancas engomadas,
presilhas, rodaque e gravata de mola. Foi dos �ltimos que usaram presilhas no
Rio de Janeiro, e talvez neste mundo. Trazia as cal�as curtas para que lhe
ficassem bem esticadas. A gravata de cetim preto, com um arco de a�o por
dentro, imobilizava-lhe o pesco�o; era ent�o moda. O rodaque de chita, veste
caseira e leve, parecia nele uma casaca de cerim�nia. Era magro, chupado, com
um princ�pio de calva; teria os seus cinq�enta e cinco anos. Levantou-se com o
passo vagaroso do costume, n�o aquele vagar arrastado dos pregui�osos, mas um
vagar calculado e deduzido, um silogismo completo, a premissa antes da
conseq��ncia, a conseq��ncia antes da conclus�o. Um dever amar�ssimo! 
 
 
 
CAP�TULO V
O AGREGADO
 
Nem sempre ia naquele passo
vagaroso e r�gido. Tamb�m se descompunha em acionados, era muita vez r�pido e
l�pido nos movimentos, t�o natural nesta como naquela maneira. Outrossim, ria
largo, se era preciso, de um grande riso sem vontade, mas comunicativo, a tal
ponto as bochechas, os dentes, os olhos, toda a cara, toda a pessoa, todo o
mundo pareciam rir nele. Nos lances graves, grav�ssimo. 
 
Era nosso agregado desde muitos
anos; meu pai ainda estava na antiga fazenda de Itagua�, e eu acabava de
nascer. Um dia apareceu ali vendendo-se por m�dico homeopata; levava um Manual
e uma botica. Havia ent�o um anda�o de febres; Jos� Dias curou o feitor e uma
escrava, e n�o quis receber nenhuma remunera��o. Ent�o meu pai prop�s-lhe ficar
ali vivendo, com pequeno ordenado. Jos� Dias recusou, dizendo que era justo
levar a sa�de � casa de sap� do pobre. 
 
� Quem lhe impede que v� a outras
partes? V� aonde quiser, mas fique morando conosco. 
 
� Voltarei daqui a tr�s meses. 
 
Voltou dali a duas semanas,
aceitou casa e comida sem outro estip�ndio, salvo o que quisessem dar por festas.
Quando meu pai foi eleito deputado e veio para o Rio de Janeiro com a fam�lia,
ele veio tamb�m, e teve o seu quarto ao fundo da ch�cara. Um dia, reinando
outra vez febres em Itagua�, disse-lhe meu pai que fosse ver a nossa
escravatura. Jos� Dias deixou-se estar calado, suspirou e acabou confessando
que n�o era m�dico. Tomara este t�tulo para ajudar a propaganda da nova escola,
e n�o o fez sem estudar muito e muito; mas a consci�ncia n�o lhe permitia
aceitar mais doentes. 
 
� Mas, voc� curou das outras
vezes. 
 
� Creio que sim; o mais acertado,
por�m, � dizer que foram os rem�dios indicados nos livros. Eles, sim; eles,
abaixo de Deus. Eu era um charlat�o... N�o negue; os motivos do meu
procedimento podiam ser e eram dignos; a homeopatia � a verdade, e, para servir
� verdade, menti; mas � tempo de restabelecer tudo. 
 
N�o foi despedido, como pedia
ent�o; meu pai j� n�o podia dispens�-lo. Tinha o dom de se fazer aceito e
necess�rio; dava-se por falta dele, como de pessoa da fam�lia. Quando meu pai
morreu, a dor que o pungiu foi enorme, disseram-me, n�o me lembra. Minha m�e
ficou-lhe muito grata, e n�o consentiu que ele deixasse o quarto da ch�cara; ao
s�timo dia, depois da missa, ele foi despedir-se dela. 
 
� Fique, Jos� Dias. 
 
� Obede�o, minha senhora. 
 
Teve um pequeno legado no
testamento, uma ap�lice e quatro palavras de louvor. Copiou as palavras,
encaixilhou-as e pendurou-as no quarto, por cima da cama. "Esta � a melhor
ap�lice", dizia ele muita vez. Com o tempo, adquiriu certa autoridade na fam�lia,
certa audi�ncia, ao menos; n�o abusava, e sabia opinar obedecendo. Ao cabo, era
amigo, n�o direi �timo, mas nem tudo � �timo neste mundo. E n�o lhe suponhas
alma subalterna; as cortesias que fizesse vinham antes do c�lculo que da
�ndole. A roupa durava-lhe muito; ao contr�rio das pessoas que enxovalham
depressa o vestido novo, ele trazia o velho escovado e liso, cerzido, abotoado,
de uma eleg�ncia pobre e modesta. Era lido, posto que de atropelo, o bastante
para divertir ao ser�o e � sobremesa, ou explicar algum fen�meno, falar dos
efeitos do calor e do frio, dos p�los e de Robespierre. Contava muita vez uma
viagem que fizera � Europa, e confessava que a n�o sermos n�s, j� teria voltado
para l�; tinha amigos em Lisboa, mas a nossa fam�lia, dizia ele, abaixo de
Deus, era tudo. 
 
� Abaixo ou acima? perguntou-lhe
tio Cosme um dia. 
 
� Abaixo, repetiu Jos� Dias cheio
de venera��o. 
 
E minha m�e, que era religiosa,
gostou de ver que ele punha Deus no devido lugar, e sorriu aprovando. Jos� Dias
agradeceu de cabe�a. Minha m�e dava-lhe de quando em quando alguns
cobres. Tio
Cosme, que era advogado, confiava-lhe a c�pia de pap�is de autos. 
 
 
 
CAP�TULO VI
TIO COSME
 
Tio Cosme vivia com minha m�e, desde
que ela enviuvou. J� ent�o era vi�vo, como prima Justina; era a casa dos tr�s
vi�vos. 
 
A fortuna troca muita vez as m�os
� natureza. Formado para as serenas fun��es do capitalismo, tio Cosme n�o
enriquecia no foro: ia comendo. Tinha o escrit�rio na antiga rua das Violas,
perto do j�ri, que era no extinto Aljube. Trabalhava no crime. Jos� Dias n�o
perdia as defesas orais de tio Cosme. Era quem lhe vestia e despia a toga, com
muitos cumprimentos no fim. Em casa, referia os debates. Tio Cosme, por mais
modesto que quisesse ser, sorria de persuas�o. 
 
Era gordo e pesado, tinha a
respira��o curta e os olhos dorminhocos. Uma das minhas recorda��es mais
antigas era v�-lo montar todas as manh�s a besta que minha m�e lhe deu e que o
levava ao escrit�rio. O preto que a tinha ido buscar � cocheira, segurava o
freio, enquanto ele erguia o p� e pousava no estribo; a isto seguia-se um
minuto de descanso ou reflex�o. Depois, dava um impulso, o primeiro, o corpo
amea�ava subir, mas n�o subia; segundo impulso, igual efeito. Enfim, ap�s
alguns instantes largos, tio Cosme enfeixava todas as for�as f�sicas e morais,
dava o �ltimo surto da terra, e desta vez ca�a em cima do selim. Raramente a
besta deixava de mostrar por um gesto que acabava de receber o mundo. Tio Cosme
acomodava as carnes, e a besta partia a trote. 
 
Tamb�m n�o me esqueceu o que ele
me fez uma tarde. Posto que nascido na ro�a (donde vim com dois anos) e apesar
dos costumes do tempo, eu n�o sabia montar, e tinha medo ao cavalo. Tio Cosme
pegou em mim e escanchou-me em cima da besta. Quando me vi no alto (tinha nove
anos), sozinho e desamparado, o ch�o l� embaixo, entrei a gritar
desesperadamente: "Mam�e! mam�e!" Ela acudiu, p�lida e tr�mula,
cuidou que me estivessem matando, apeou-me, afagou-me, enquanto o irm�o
perguntava: 
 
� Mana Gl�ria, pois um tamanh�o
destes tem medo de besta mansa? 
 
� N�o est� acostumado. 
 
� Deve acostumar-se. Padre que
seja, se for vig�rio na ro�a, � preciso que monte a cavalo; e, aqui mesmo,
ainda n�o sendo padre, se quiser florear como os outros rapazes, e n�o souber,
h� de queixar-se de voc�, mana Gl�ria. 
 
� Pois que se queixe; tenho medo. 
 
� Medo! Ora, medo! 
 
A verdade � que eu s� vim a
aprender equita��o mais tarde, menos por gosto que por vergonha de dizer que
n�o sabia montar. "Agora � que ele vai namorar deveras", disseram
quando eu comecei as li��es. N�o se diria o mesmo de tio Cosme. Nele era velho
costume e necessidade. J� n�o dava para namoros. Contam que, em rapaz, foi
aceito de muitas damas, al�m de partid�rio exaltado; mas os anos levaram-lhe o
mais do ardor pol�tico e sexual, e a gordura acabou com o resto de id�ias
p�blicas e espec�ficas. Agora s� cumpria as obriga��es do of�cio e sem amor.
Nas horas de lazer vivia olhando ou jogava. Uma ou outra vez dizia pilh�rias. 
 
 
 
CAP�TULO VII
D. GL�RIA 
 
Minha m�e era boa criatura. Quando
lhe morreu o marido, Pedro de Albuquerque Santiago, contava trinta e um anos de
idade, e podia voltar para Itagua�. N�o quis; preferiu ficar perto da igreja em
que meu pai fora sepultado. Vendeu a fazendola e os escravos, comprou alguns
que p�s ao ganho ou alugou, uma d�zia de pr�dios, certo n�mero de ap�lices, e
deixou-se estar na casa de Mata-cavalos, onde vivera os dois �ltimos anos de
casada. Era filha de uma senhora mineira, descendente de outra paulista, a
fam�lia Fernandes. 
 
Ora, pois, naquele ano da gra�a de
1857, D. Maria da Gl�ria Fernandes Santiago contava quarenta e dois anos de
idade. Era ainda bonita e mo�a, mas teimava em esconder os saldos da juventude,
por mais que a natureza quisesse preserv�-la da a��o do tempo. Vivia metida em
um eterno vestido escuro, sem adornos, com um xale preto, dobrado em tri�ngulo
e abrochado ao peito por um camafeu. Os cabelos, em band�s, eram apanhados
sobre a nuca por um velho pente de tartaruga; alguma vez trazia a touca branca
de folhos. Lidava assim, com os seus sapatos de cordov�o rasos e surdos, a um
lado e outro, vendo e guiando os servi�os todos da casa inteira, desde manh�
at� � noite. 
 
Tenho
 ali na parede o retrato
dela, ao lado do marido, tais quais na outra casa. A pintura escureceu 
muito,
mas ainda d� id�ia de ambos. N�o me lembra nada dele, a n�o ser 
vagamente que
era alto e usava cabeleira grande; o retrato mostra uns olhos redondos, 
que me
acompanham para todos os lados, efeito da pintura que me assombrava em 
pequeno. O pesco�o sai de uma gravata preta de muitas voltas, a cara � 
toda rapada, salvo um
trechozinho pegado �s orelhas. O de minha m�e mostra que era linda. 
Contava
ent�o vinte anos, e tinha uma flor entre os dedos. No painel parece 
oferecer a
flor ao marido. O que se l� na cara de ambos � que, se a felicidade 
conjugal
pode ser comparada � sorte grande, eles a tiraram no bilhete comprado de
sociedade. 
 
Concluo que n�o se devem abolir as
loterias. Nenhum premiado as acusou ainda de imorais, como ningu�m tachou de m�
a boceta de Pandora, por lhe ter ficado a esperan�a no fundo; em alguma parte
h� de ela ficar. Aqui os tenho aos dois bem casados de outrora, os bem-amados,
os bem-aventurados, que se foram desta para a outra vida, continuar um sonho
provavelmente. Quando a loteria e Pandora me aborrecem, ergo os olhos para
eles, e esque�o os bilhetes brancos e a boceta fat�dica. S�o retratos que valem
por originais. O de minha m�e, estendendo a flor ao marido, parece dizer:
"Sou toda sua, meu guapo cavalheiro!" O de meu pai, olhando para a
gente, faz este coment�rio: "Vejam como esta mo�a me quer..." Se
padeceram mol�stias, n�o sei, como n�o sei se tiveram desgostos: era crian�a e
comecei por n�o ser nascido. Depois da morte dele, lembra-me que ela chorou
muito; mas aqui est�o os retratos de ambos, sem que o encardido do tempo lhes
tirasse a primeira express�o. S�o como fotografias instant�neas da felicidade. 
 
 
 
CAP�TULO VIII
� TEMPO
 
Mas � tempo de tornar �quela tarde
de novembro, uma tarde clara e fresca, sossegada como a nossa casa e o trecho
da rua em que mor�vamos. Verdadeiramente foi o princ�pio da minha vida; tudo o
que sucedera antes foi como o pintar e vestir das pessoas que tinham de entrar
em cena, o acender das luzes, o preparo das rabecas, a sinfonia... Agora � que
eu ia come�ar a minha �pera. "A vida � uma �pera", dizia-me um velho
tenor italiano que aqui viveu e morreu... E explicou-me um dia a defini��o, em
tal maneira que me fez crer nela. Talvez valha a pena d�-la; � s� um cap�tulo. 
 
 
 
CAP�TULO IX
A �PERA
 
J� n�o tinha voz, mas teimava em
dizer que a tinha. "O desuso � que me faz mal", acrescentava. Sempre
que uma companhia nova chegava da Europa, ia ao empres�rio e expunha-lhe todas
as injusti�as da Terra e do C�u; o empres�rio cometia mais uma, e ele sa�a a
bradar contra a iniq�idade. Trazia ainda os bigodes dos seus pap�is. Quando
andava, apesar de velho, parecia cortejar uma princesa de Babil�nia. �s vezes,
cantarolava, sem abrir a boca, algum trecho ainda mais idoso que ele ou tanto;
vozes assim abafadas s�o sempre poss�veis. Vinha aqui jantar comigo algumas
vezes. Uma noite, depois de muito Chianti, repetiu-me a defini��o do costume, e
como eu lhe dissesse que a vida tanto podia ser uma �pera como uma viagem de
mar ou uma batalha, abanou a cabe�a e replicou:
 
� A vida � uma �pera e uma grande �pera.
O tenor e o bar�tono lutam pelo soprano, em presen�a do baixo e dos
comprim�rios, quando n�o s�o o soprano e o contralto que lutam pelo
tenor, em
presen�a do mesmo baixo e dos mesmos comprim�rios. H� coros numerosos, muitos
bailados, e a orquestra��o � excelente... 
 
� Mas, meu caro Marcolini... 
 
� Qu�?... 
 
E, depois, de beber um gole de
licor, pousou o c�lice, e exp�s-me a hist�ria da cria��o, com palavras que vou
resumir. 
 
Deus � o poeta. A m�sica � de
Satan�s, jovem maestro de muito futuro, que aprendeu no conservat�rio do c�u.
Rival de Miguel, Rafael e Gabriel, n�o tolerava a preced�ncia que eles tinham
na distribui��o dos pr�mios. Pode ser tamb�m que a m�sica em demasia doce e
m�stica daqueles outros condisc�pulos fosse aborrec�vel ao seu g�nio
essencialmente tr�gico. Tramou uma rebeli�o que foi descoberta a tempo, e ele
expulso do conservat�rio. Tudo se teria passado sem mais nada, se Deus n�o
houvesse escrito um libreto de �pera, do qual abrira m�o, por entender que tal
g�nero de recreio era impr�prio da sua eternidade. Satan�s levou o manuscrito
consigo para o inferno. Com o fim de mostrar que valia mais que os outros, � e
acaso para reconciliar-se com o c�u, � comp�s a partitura, e logo que a acabou
foi lev�-la ao Padre Eterno. 
 
� Senhor, n�o desaprendi as li��es
recebidas, disse-lhe. Aqui tendes a partitura, escutai-a, emendai-a, fazei-a
executar, e se a achardes digna das alturas, admiti-me com ela a vossos p�s... 
 
� N�o, retorquiu o Senhor, n�o
quero ouvir nada. 
 
� Mas, Senhor... 
 
� Nada! nada! 
 
Satan�s suplicou ainda, sem melhor
fortuna, at� que Deus, cansado e cheio de miseric�rdia, consentiu em que a
�pera fosse executada, mas fora do c�u. Criou um teatro especial, este planeta,
e inventou uma companhia inteira, com todas as partes, prim�rias e
comprim�rias, coros e bailarinos. 
 
� Ouvi agora alguns ensaios! 
 
� N�o, n�o quero saber de ensaios.
Basta-me haver composto o libreto; estou pronto a dividir contigo os direitos
de autor. 
 
Foi talvez um mal esta recusa;
dela resultaram alguns desconcertos que a audi�ncia pr�via e a colabora��o
amiga teriam evitado. Com efeito, h� lugares em que o verso vai para a direita
e a m�sica, para a esquerda. N�o falta quem diga que nisso mesmo est� a beleza
da composi��o, fugindo � monotonia, e assim explicam o terceto do �den, a �ria
de Abel, os coros da guilhotina e da escravid�o. N�o � raro que os mesmos
lances se reproduzam, sem raz�o suficiente. Certos motivos cansam � for�a de
repeti��o. Tamb�m h� obscuridades; o maestro abusa das massas corais,
encobrindo muita vez o sentido por um modo confuso. As partes orquestrais s�o
ali�s tratadas com grande per�cia. Tal � a opini�o dos imparciais. 
 
Os amigos do maestro querem que dificilmente
se possa acha obra t�o bem acabada. Um ou outro admite certas rudezas e tais ou
quais lacunas, mas com o andar da �pera � prov�vel que estas sejam preenchidas
ou explicadas, e aquelas desapare�am inteiramente, n�o se negando o maestro a
emendar a obra onde achar que n�o responde de todo ao pensamento sublime do
poeta. J� n�o dizem o mesmo os amigos deste. Juram que o libreto foi
sacrificado, que a partitura corrompeu o sentido da letra, e, posto seja bonita
em alguns lugares, e trabalhada com arte em outros, � absolutamente diversa e
at� contr�ria ao drama. O grotesco, por exemplo, n�o est� no texto do poeta; �
uma excresc�ncia para imitar as Mulheres Patuscas de Windsor. Este ponto
� contestado pelos satanistas com alguma apar�ncia de raz�o. Dizem eles que, ao
tempo em que o jovem Satan�s comp�s a grande �pera, nem essa farsa nem
Shakespeare eram nascidos. Chegam a afirmar que o poeta ingl�s n�o teve outro
g�nio sen�o transcrever a letra da �pera, com tal arte e fidelidade, que parece
ele pr�prio o autor da composi��o; mas, evidentemente, � um plagi�rio. 
 
� Esta pe�a, concluiu o velho
tenor, durar� enquanto durar o teatro, n�o se podendo calcular em que tempo
ser� ele demolido por utilidade astron�mica. O �xito � crescente. Poeta e
m�sico recebem pontualmente os seus direitos autorais, que n�o s�o os mesmos,
porque a regra da divis�o � aquilo da Escritura: "Muitos s�o os chamados,
poucos os escolhidos". Deus recebe em ouro, Satan�s em papel. 
 
� Tem gra�a... 
 
� Gra�a? bradou ele com f�ria; mas
aquietou-se logo, e replicou: Caro Santiago, eu n�o tenho gra�a, eu tenho
horror � gra�a. Isto que digo � a verdade pura e �ltima. Um dia, quando todos
os livros forem queimados por in�teis, h� de haver algu�m, pode ser que tenor,
e talvez italiano, que ensine esta verdade aos homens. Tudo � m�sica, meu
amigo. No princ�pio era o d�, e do d� fez-se r�, etc. Este
c�lice (e enchia-o novamente), este c�lice � um breve estribilho. N�o se ouve?
Tamb�m n�o se ouve o pau nem a pedra, mas tudo cabe na mesma �pera... 
 
 
 
CAP�TULO X
ACEITO A TEORIA
 
Que � demasiada metaf�sica para um
s� tenor, n�o h� d�vida; mas a perda da voz explica tudo, e h� fil�sofos que
s�o, em resumo, tenores desempregados. 
 
Eu, leitor amigo, aceito a teoria
do meu velho Marcolini, n�o s� pela verossimilhan�a, que � muita vez toda a
verdade, mas porque a minha vida se casa bem � defini��o. Cantei um duo
tern�ssimo, depois um trio, depois um quatuor... Mas n�o
adiantemos; vamos � primeira parte, em que eu vim a saber que j� cantava,
porque a den�ncia de Jos� Dias, meu caro leitor, foi dada principalmente a mim.
A mim � que ele me denunciou. 
 
 
 
CAP�TULO XI
A PROMESSA
 
T�o depressa vi desaparecer o
agregado no corredor, deixei o esconderijo, e corri � varanda do fundo. N�o quis
saber de l�grimas nem da causa que as fazia verter a minha m�e. A causa eram
provavelmente os seus projetos eclesi�sticos, e a ocasi�o destes � a que vou
dizer, por ser j� ent�o hist�ria velha; datava de dezesseis anos. 
 
Os projetos vinham do tempo em que
fui concebido. Tendo-lhe nascido morto o primeiro filho, minha m�e pegou-se com
Deus para que o segundo vingasse, prometendo, se fosse var�o, met�-lo na
igreja. Talvez esperasse uma menina. N�o disse nada a meu pai, nem antes, nem
depois de me dar � luz; contava faz�-lo quando eu entrasse para a escola, mas
enviuvou antes disso. Vi�va, sentiu o terror de separar-se de mim; mas era t�o
devota, t�o temente a Deus, que buscou testemunhas da obriga��o, confiando a
promessa a parentes e familiares. Unicamente, para que nos separ�ssemos o mais
tarde poss�vel, fez-me aprender em casa primeiras letras, latim e doutrina, por
aquele padre Cabral, velho amigo do tio Cosme, que ia l� jogar �s noites. 
 
Prazos largos s�o f�ceis de subscrever;
a imagina��o os faz infinitos. Minha m�e esperou que os anos viessem vindo.
Entretanto, ia-me afei�oando � id�ia da igreja; brincos de crian�a, livros
devotos, imagens de santos, conversa��es de casa, tudo convergia para o altar.
Quando �amos � missa, dizia-me sempre que era para aprender a ser padre, e que
reparasse no padre, n�o tirasse os olhos do padre. Em casa, brincava de missa,
� um tanto �s escondidas, porque minha m�e dizia que missa n�o era coisa de
brincadeira. Arranj�vamos um altar, Capitu e eu. Ela servia de sacrist�o, e
alter�vamos o ritual, no sentido de dividirmos a h�stia entre n�s; a h�stia era
sempre um doce. No tempo em que brinc�vamos assim, era muito comum ouvir �
minha vizinha: "Hoje h� missa?" Eu j� sabia o que isto queria dizer,
respondia afirmativamente, e ia pedir h�stia por outro nome. Voltava com ela,
arranj�vamos o altar, engrol�vamos o latim e precipit�vamos as cerim�nias. Dominus,
non sum dignus... Isto, que eu devia dizer tr�s vezes, penso que s� dizia
uma, tal era a gulodice do padre e do sacrist�o. N�o beb�amos vinho nem �gua;
n�o t�nhamos o primeiro, e a segunda viria tirar-nos o gosto do sacrif�cio. 
 
Ultimamente
n�o me falavam j� do
semin�rio, a tal ponto que eu supunha ser neg�cio findo. Quinze anos, n�o
havendo voca��o, pediam antes o semin�rio do mundo que o de S�o Jos�. Minha m�e
ficava muita vez a olhar para mim, como alma perdida, ou pegava-me na m�o, a
pretexto de nada, para apert�-la muito. 
 
 
 
CAP�TULO XII
NA VARANDA
 
Parei na varanda; ia tonto, atordoado,
as pernas bambas, o cora��o parecendo querer sair-me pela boca fora. N�o me
atrevia a descer � ch�cara, e passar ao quintal vizinho. Comecei a andar de um
lado para outro, estacando para amparar-me, e andava outra vez e estacava.
Vozes confusas repetiam o discurso do Jos� Dias:
 
"Sempre juntos..." 
 
"Em segredinhos..." 
 
"Se eles pegam de
namoro..." 
 
Tijolos que pisei e repisei
naquela tarde, colunas amareladas que me passastes � direita ou � esquerda,
segundo eu ia ou vinha, em v�s me ficou a melhor parte da crise, a sensa��o de
um gozo novo, que me envolvia em mim mesmo, e logo me dispersava, e me trazia
arrepios, e me derramava n�o sei que b�lsamo interior. �s vezes dava por mim,
sorrindo, um ar de riso de satisfa��o, que desmentia a abomina��o do meu
pecado. E as vozes repetiam-se confusas:
 
"Em segredinhos..." 
 
"Sempre juntos..." 
 
"Se eles pegam de
namoro..." 
 
Um coqueiro, vendo-me inquieto e
adivinhando a causa, murmurou de cima de si que n�o era feio que os meninos de quinze
anos andassem nos cantos com as meninas de quatorze; ao contr�rio, os
adolescentes daquela idade n�o tinham outro of�cio, nem os cantos outra
utilidade. Era um coqueiro velho, e eu cria nos coqueiros velhos, mais ainda
que nos velhos livros. P�ssaros, borboletas, uma cigarra que ensaiava o estio,
toda a gente viva do ar era da mesma opini�o. 
 
Com que ent�o eu amava Capitu, e
Capitu a mim? Realmente, andava cosido �s saias dela, mas n�o me ocorria nada
entre n�s que fosse deveras secreto. Antes dela ir para o col�gio, eram tudo
travessuras de crian�a; depois que saiu do col�gio, � certo que n�o
restabelecemos logo a antiga intimidade, mas esta voltou pouco a pouco, e no
�ltimo ano era completa. Entretanto, a mat�ria das nossas conversa��es era a de
sempre. Capitu chamava-me �s vezes bonito, mocet�o, uma flor; outras pegava-me
nas m�os para contar-me os dedos. E comecei a recordar esses e outros gestos e
palavras, o prazer que sentia quando ela me passava a m�o pelos cabelos,
dizendo que os achava lind�ssimos. Eu, sem fazer o mesmo aos dela, dizia que os
dela eram muito mais lindos que os meus. Ent�o Capitu abanava a cabe�a com uma
grande express�o de desengano e melancolia, tanto mais de espantar quanto que
tinha os cabelos realmente admir�veis; mas eu retorquia chamando-lhe maluca.
Quando me perguntava se sonhara com ela na v�spera, e eu dizia que n�o,
ouvia-lhe contar que sonhara comigo, e eram aventuras extraordin�rias, que
sub�amos ao Corcovado pelo ar, que dan��vamos na Lua, ou ent�o que os anjos vinham
perguntar-nos pelos nomes, a fim de os dar a outros anjos que acabavam de
nascer. Em todos esses sonhos and�vamos unidinhos. Os que eu tinha com ela n�o
eram assim, apenas reproduziam a nossa familiaridade, e muita vez n�o passavam
da simples repeti��o do dia, alguma frase, algum gesto. Tamb�m eu os contava.
Capitu um dia notou a diferen�a, dizendo que os dela eram mais bonitos que os
meus; eu, depois de certa hesita��o, disse-lhe que eram como a pessoa que
sonhava... Fez-se cor de pitanga. 
 
Pois, francamente, s� agora
entendia a como��o que me davam essas e outras confid�ncias. A emo��o era doce
e nova, mas a causa dela fugia-me, sem que eu a buscasse nem suspeitasse. Os
sil�ncios dos �ltimos dias, que me n�o descobriam nada, agora os sentia como
sinais de alguma coisa, e assim as meias palavras, as perguntas curiosas, as
respostas vagas, os cuidados, o gosto de recordar a inf�ncia. Tamb�m adverti
que era fen�meno recente acordar com o pensamento em Capitu, e escut�-la de
mem�ria, e estremecer quando lhe ouvia os passos. Se se falava nela, em minha
casa, prestava mais aten��o que dantes, e, segundo era louvor ou cr�tica, assim
me trazia gosto ou desgosto mais intensos que outrora, quando �ramos somente
companheiros de travessuras. Cheguei a pensar nela durante as missas daquele
m�s, com intervalos, � verdade, mas com exclusivismo tamb�m. 
 
Tudo isto me era agora apresentado
pela boca de Jos� Dias, que me denunciara a mim mesmo, e a quem eu perdoava
tudo, o mal que dissera, o mal que fizera, e o que pudesse vir de um e de
outro. Naquele instante, a eterna Verdade n�o valeria mais que ele, nem a
eterna Bondade, nem as demais Virtudes eternas. Eu amava Capitu! Capitu
amava-me! E as minhas pernas andavam, desandavam, estacavam, tr�mulas e crentes
de abarcar o mundo. Esse primeiro palpitar da seiva, essa revela��o da
consci�ncia a si pr�pria, nunca mais me esqueceu, nem achei que lhe fosse
compar�vel qualquer outra sensa��o da mesma esp�cie. Naturalmente por ser
minha. Naturalmente tamb�m por ser a primeira. 
 
 
 
CAP�TULO XIII
CAPITU
 
De repente, ouvi bradar uma voz de
dentro da casa ao p�:
 
� Capitu!
 
E no quintal:
 
� Mam�e! 
 
E outra vez na casa:
 
� Vem c�! 
 
N�o me pude ter. As pernas desceram-me
os tr�s degraus que davam para a ch�cara, e caminharam para o quintal vizinho.
Era costume delas, �s tardes, e �s manh�s tamb�m. Que as pernas tamb�m s�o
pessoas, apenas inferiores aos bra�os, e valem de si mesmas, quando a cabe�a
n�o as rege por meio de id�ias. As minhas chegaram ao p� do muro. Havia ali uma
porta de comunica��o mandada rasgar por minha m�e, quando Capitu e eu �ramos
pequenos. A porta n�o tinha chave nem taramela; abria-se empurrando de um lado
ou puxando de outro, e fechava-se ao peso de uma pedra pendente de uma corda.
Era quase que exclusivamente nossa. Em crian�as, faz�amos visita batendo de um
lado, e sendo recebidos do outro com muitas mesuras. Quando as bonecas de
Capitu adoeciam, o m�dico era eu. Entrava no quintal dela com um pau debaixo do
bra�o, para imitar o bengal�o do doutor Jo�o da Costa; tomava o pulso � doente,
e pedia-lhe que mostrasse a l�ngua. "� surda, coitada!", exclamava
Capitu. Ent�o eu co�ava o queixo, como o doutor, e acabava mandando aplicar-lhe
umas sanguessugas ou dar-lhe um vomit�rio: era a terap�utica habitual do
m�dico. 
 
� Capitu! 
 
� Mam�e! 
 
� Deixa de estar esburacando o
muro; vem c�. 
 
A voz da m�e era agora mais perto,
como se viesse j� da porta dos fundos. Quis passar ao quintal, mas as pernas,
h� pouco t�o andarilhas, pareciam agora presas ao ch�o. Afinal fiz um esfor�o,
empurrei a porta, e entrei. Capitu estava ao p� do muro fronteiro, voltada para
ele, riscando com um prego. O rumor da porta f�-la olhar para tr�s; ao dar
comigo, encostou-se ao muro, como se quisesse esconder alguma coisa. Caminhei
para ela; naturalmente levava o gesto mudado, porque ela veio a mim, e
perguntou-me inquieta:
 
� Que � que voc� tem? 
 
� Eu? Nada. 
 
� Nada, n�o; voc� tem alguma
coisa. 
 
Quis insistir que nada, mas n�o
achei l�ngua. Todo eu era olhos e cora��o, um cora��o que desta vez ia sair,
com certeza, pela boca fora. N�o podia tirar os olhos daquela criatura de
quatorze anos, alta, forte e cheia, apertada em um vestido de chita, meio
desbotado. Os cabelos grossos, feitos em duas tran�as, com as pontas atadas uma
� outra, � moda do tempo, desciam-lhe pelas costas. Morena, olhos claros e
grandes, nariz reto e comprido, tinha a boca fina e o queixo largo. As m�os, a
despeito de alguns of�cios rudes, eram curadas com amor; n�o cheiravam a sab�es
finos nem �guas
de toucador, mas com �gua do po�o e sab�o comum trazia-as sem
m�cula. Cal�ava sapatos de duraque, rasos e velhos, a que ela mesma dera alguns
pontos. 
 
� Que � que voc� tem? repetiu. 
 
� N�o � nada, balbuciei
finalmente. 
 
E emendei logo:
 
� � uma not�cia. 
 
� Not�cia de qu�? 
 
Pensei em dizer-lhe que ia entrar
para o semin�rio e espreitar a impress�o que lhe faria. Se a consternasse � que
realmente gostava de mim; se n�o, � que n�o gostava. Mas todo esse c�lculo foi
obscuro e r�pido; senti que n�o poderia falar claramente, tinha agora a vista
n�o sei como... 
 
� Ent�o? 
 
� Voc� sabe... 
 
Nisto olhei para o muro, o lugar
em que ela estivera riscando, escrevendo ou esburacando, como dissera a m�e. Vi
uns riscos abertos, e lembrou-me o gesto que ela fizera para cobri-los. Ent�o
quis v�-los de perto, e dei um passo. Capitu agarrou-me, mas, ou por temer que
eu acabasse fugindo, ou por negar de outra maneira, correu adiante e apagou o
escrito. Foi o mesmo que acender em mim o desejo de ler o que era. 
 
 
 
CAP�TULO XIV
A INSCRI��O
 
Tudo o que contei no fim do outro
cap�tulo foi obra de um instante. O que se lhe seguiu foi ainda mais r�pido. Dei
um pulo, e antes que ela raspasse o muro, li estes dois nomes, abertos ao
prego, e assim dispostos:
 
BENTO
 
CAPITOLINA
 
Voltei-me para ela; Capitu tinha
os olhos no ch�o. Ergueu-os logo, devagar, e ficamos a olhar um para o outro...
Confiss�o de crian�as, tu valias bem duas ou tr�s p�ginas, mas quero ser
poupado. Em verdade, n�o falamos nada; o muro falou por n�s. N�o nos movemos,
as m�os � que se estenderam pouco a pouco, todas quatro, pegando-se,
apertando-se, fundindo-se. N�o marquei a hora exata daquele gesto. Devia t�-la
marcado; sinto a falta de uma nota escrita naquela mesma noite, e que eu poria
aqui com os erros de ortografia que trouxesse, mas n�o traria nenhum, tal era a
diferen�a entre o estudante e o adolescente. Conhecia as regras do escrever,
sem suspeitar as do amar; tinha orgias de latim e era virgem de mulheres. 
 
N�o soltamos as m�os, nem elas se
deixaram cair de cansadas ou de esquecidas. Os olhos fitavam-se e
desfitavam-se, e depois de vagarem ao perto, tornavam a meter-se uns pelos
outros... Padre futuro, estava assim diante dela como de um altar, sendo uma
das faces a Ep�stola e a outra o Evangelho. A boca podia ser o c�lice, os
l�bios a patena. Faltava dizer a missa nova, por um latim que ningu�m aprende,
e � a l�ngua cat�lica dos homens. N�o me tenhas por sacr�lego, leitora minha
devota; a limpeza da inten��o lava o que puder haver menos curial no estilo.
Est�vamos ali com o c�u em n�s. As m�os, unindo os nervos, faziam das duas
criaturas uma s�, mas uma s� criatura ser�fica. Os olhos continuaram a dizer
coisas infinitas, as palavras de boca � que nem tentavam sair, tornavam ao
cora��o caladas como vinham... 
 
 
 
 
CAP�TULO XV
OUTRA VOZ REPENTINA
 
Outra voz repentina, mas desta vez
uma voz de homem:
 
� Voc�s est�o jogando o siso? 
 
Era o pai de Capitu, que estava �
porta dos fundos, ao p� da mulher. Soltamos as m�os depressa, e ficamos
atrapalhados. Capitu foi ao muro, e, com o prego, disfar�adamente, apagou os
nossos nomes escritos. 
 
� Capitu! 
 
� Papai! 
 
� N�o me estragues o reboco do
muro. 
 
Capitu riscava sobre o riscado,
para apagar bem o escrito. P�dua saiu ao quintal, a ver o que era, mas j� a filha
tinha come�ado outra coisa, um perfil, que disse ser o retrato dele, e tanto
podia ser dele como da m�e; f�-lo rir, era o essencial. De resto, ele chegou
sem c�lera, todo meigo, apesar do gesto duvidoso ou menos que duvidoso em que
nos apanhou. Era um homem baixo e grosso, pernas e bra�os curtos, costas
abauladas, donde lhe veio a alcunha de Tartaruga, que Jos� Dias lhe p�s.
Ningu�m lhe chamava assim l� em casa; era s� o agregado. 
 
� Voc�s estavam jogando o siso?
perguntou. 
 
Olhei para um p� de sabugueiro que
ficava perto; Capitu respondeu por ambos. 
 
� Est�vamos, sim, senhor; mas
Bentinho ri logo, n�o ag�enta. 
 
� Quando eu cheguei � porta, n�o
ria. 
 
� J� tinha rido das outras vezes;
n�o pode. Papai quer ver? 
 
E s�ria, fitou em mim os olhos,
convidando-me ao jogo. O susto � naturalmente s�rio; eu estava ainda sob a a��o
do que trouxe a entrada de P�dua, e n�o fui capaz de rir, por mais que devesse
faz�-lo, para legitimar a resposta de Capitu. Esta, cansada de esperar, desviou
o rosto, dizendo que eu n�o ria daquela vez por estar ao p� do pai. E nem assim
ri. H� coisas que s� se aprendem tarde; � mister nascer com elas para faz�-las
cedo. E melhor � naturalmente cedo que artificialmente tarde. Capitu, ap�s duas
voltas, foi ter com a m�e, que continuava � porta da casa, deixando-nos a mim e
ao pai encantados dela; o pai, olhando para ela e para mim, dizia-me, cheio de
ternura:
 
� Quem dir� que esta pequena tem
quatorze anos? Parece dezessete. Mam�e est� boa? continuou voltando-se inteiramente
para mim. 
 
� Est�. 
 
� H� muitos dias que n�o a vejo.
Estou com vontade de dar um capote ao doutor, mas n�o tenho podido, ando com
trabalhos da reparti��o em casa; escrevo todas as noites que � um desespero;
neg�cio de relat�rio. Voc� j� viu o meu gaturamo? Est� ali no fundo. Ia agora
mesmo buscar a gaiola; ande ver. 
 
Que o meu desejo era nenhum,
cr�-se facilmente, sem ser preciso jurar pelo C�u nem pela Terra. Meu desejo
era ir atr�s de Capitu e falar-lhe agora do mal que nos esperava; mas o pai era
o pai, e demais amava particularmente os passarinhos. Tinha-os de v�ria
esp�cie, cor e tamanho. A �rea que havia no centro da casa era cercada de
gaiolas de can�rios, que faziam cantando um barulho de todos os diabos. Trocava
p�ssaros com outros amadores, comprava-os, apanhava alguns, no pr�prio quintal,
armando al�ap�es. Tamb�m, se adoeciam, tratava deles como se fossem gente. 
 
 
 
CAP�TULO XVI
O ADMINISTRADOR INTERINO
 
P�dua era empregado em reparti��o dependente
do minist�rio da guerra. N�o ganhava muito, mas a mulher gastava pouco, e a
vida era barata. Demais, a casa em que morava, assobradada como a nossa, posto
que menor, era propriedade dele. Comprou-a com a sorte grande que lhe saiu num
meio bilhete de loteria, dez contos de r�is. A primeira id�ia do P�dua, quando
lhe saiu o pr�mio, foi comprar um cavalo do Cabo, um adere�o de brilhantes para
a mulher, uma sepultura perp�tua de fam�lia, mandar vir da Europa alguns
p�ssaros, etc.; mas a mulher, esta D. Fortunata que ali est� � porta dos fundos
da casa, em p�, falando � filha, alta, forte, cheia, como a filha, a mesma
cabe�a, os mesmos olhos claros, a mulher � que lhe disse que o melhor era
comprar a casa, e guardar o que sobrasse para acudir �s mol�stias grandes.
P�dua hesitou muito; afinal, teve de ceder aos conselhos de minha m�e, a quem
D. Fortunata pediu aux�lio. Nem foi s� nessa ocasi�o que minha m�e lhes valeu;
um dia chegou a salvar a vida do P�dua. Escutai; a anedota � curta. 
 
O
 administrador da reparti��o em que P�dua trabalhava teve de ir ao 
Norte, em comiss�o. P�dua, ou por ordem regulamentar, ou por especial 
designa��o, ficou substituindo o administrador com os
respectivos honor�rios. Esta mudan�a de fortuna trouxe-lhe certa 
vertigem; era
antes dos dez contos. N�o se contentou de reformar a roupa e a copa, 
atirou-se
�s despesas sup�rfluas, deu j�ias � mulher, nos dias de festa matava um 
leit�o,
era visto em teatros, chegou aos sapatos de verniz. Viveu assim vinte e 
dois
meses na suposi��o de uma eterna interinidade. Uma tarde entrou em nossa
 casa,
aflito e desvairado, ia perder o lugar, porque chegara o efetivo naquela
 manh�.
Pediu � minha m�e que velasse pelas infelizes que deixava; n�o podia 
sofrer a
desgra�a, matava-se. Minha m�e falou-lhe com bondade, mas ele n�o 
atendia a
coisa nenhuma. 
 
� N�o, minha senhora, n�o
consentirei em tal vergonha! Fazer descer a fam�lia, tornar atr�s... J� disse,
mato-me! N�o hei de confessar � minha gente esta mis�ria. E os outros? Que
dir�o os vizinhos? E os amigos? E o p�blico? 
 
� Que p�blico, Sr. P�dua? Deixe-se
disso; seja homem. Lembre-se que sua mulher n�o tem outra pessoa... e que h� de
fazer? Pois um homem... Seja homem, ande. 
 
P�dua enxugou os olhos e foi para
casa, onde viveu prostrado alguns dias, mudo, fechado na alcova, � ou ent�o no
quintal, ao p� do po�o, como se a id�ia da morte teimasse nele. D. Fortunata
ralhava:
 
� Jo�ozinho, voc� � crian�a? 
 
Mas, tanto lhe ouviu falar em
morte que teve medo, e um dia correu a pedir � minha m�e que lhe fizesse o
favor de ver se lhe salvava o marido que se queria matar. Minha m�e foi ach�-lo
� beira do po�o, e intimou-lhe que vivesse. Que maluquice era aquela de parecer
que ia ficar desgra�ado, por causa de uma gratifica��o menos, e perder um emprego
interino? N�o, senhor, devia ser homem, pai de fam�lia, imitar a mulher e a
filha... P�dua obedeceu; confessou que acharia for�as para cumprir a vontade de
minha m�e. 
 
� Vontade minha, n�o; obriga��o
sua. 
 
� Pois seja obriga��o; n�o
desconhe�o que � assim mesmo. 
 
Nos dias seguintes, continuou a
entrar e sair de casa, cosido � parede, cara no ch�o. N�o era o mesmo homem que
estragava o chap�u em cortejar a vizinhan�a, risonho, olhos no ar, antes mesmo
da administra��o interina. Vieram as semanas, a ferida foi sarando. P�dua
come�ou a interessar-se pelos neg�cios dom�sticos, a cuidar dos passarinhos, a
dormir tranq�ilo as noites e as tardes, a conversar e dar not�cias da rua. A
serenidade regressou; atr�s dela veio a alegria, um domingo, na figura de dois
amigos, que iam jogar o solo, a tentos. J� ele ria, j� brincava, tinha o ar do
costume; a ferida sarou de todo. 
 
Com o tempo veio um fen�meno
interessante. P�dua come�ou a falar da administra��o interina, n�o somente sem
as saudades dos honor�rios, nem o vexame da perda, mas at� com desvanecimento e
orgulho. A administra��o ficou sendo a h�gira, donde ele contava para diante e
para tr�s. 
 
� No tempo em que eu era
administrador... 
 
Ou ent�o:
 
� Ah! sim, lembra-me, foi antes da
minha administra��o, um ou dois meses antes... Ora espere; a minha
administra��o come�ou... � isto, m�s e meio antes; foi m�s e meio antes, n�o
foi mais. 
 
Ou ainda:
 
� Justamente; havia j� seis meses
que eu administrava... 
 
Tal � o sabor p�stumo das gl�rias
interinas. Jos� Dias bradava que era a vaidade sobrevivente; mas o padre
Cabral, que levava tudo para a Escritura, dizia que com o vizinho P�dua se dava
a li��o de Elif�s a J�: "N�o desprezes a corre��o do Senhor; Ele fere e
cura". 
 
 
 
CAP�TULO XVII
OS VERMES
 
"Ele fere e cura!". Quando, mais tarde, vim
a saber que a lan�a de Aquiles tamb�m curou uma ferida que fez, tive tais ou
quais veleidades de escrever uma disserta��o a este prop�sito. Cheguei a pegar
em livros velhos, livros mortos, livros enterrados, a abri-los, a compar�-los,
catando o texto e o sentido, para achar a origem comum do or�culo pag�o e do
pensamento israelita. Catei os pr�prios vermes dos livros, para que me
dissessem o que havia nos textos ro�dos por eles. 
 
� Meu senhor, respondeu-me um
longo verme gordo, n�s n�o sabemos absolutamente nada dos textos que roemos,
nem escolhemos o que roemos, nem amamos ou detestamos o que roemos; n�s roemos.
 
N�o lhe arranquei mais nada. Os
outros todos, como se houvessem passado palavra, repetiam a mesma cantilena.
Talvez esse discreto sil�ncio sobre os textos ro�dos fosse ainda um modo de
roer o ro�do. 
 
 
 
CAP�TULO XVIII
UM PLANO
 
Pai nem m�e foram ter conosco, quando
Capitu e eu, na sala de visitas, fal�vamos do semin�rio. Com os olhos em mim,
Capitu queria saber que not�cia era a que me afligia tanto. Quando lhe disse o
que era, fez-se cor de cera. 
 
� Mas eu n�o quero, acudi logo,
n�o quero entrar em semin�rios; n�o entro, � escusado teimarem comigo; n�o
entro. 
 
Capitu, a princ�pio, n�o disse
nada. Recolheu os olhos, meteu-os em si e deixou-se estar com as pupilas vagas
e surdas, a boca entreaberta, toda parada. Ent�o eu, para dar for�a �s afirma��es,
comecei a jurar que n�o seria padre. Naquele tempo jurava muito e rijo, pela
vida e pela morte. Jurei pela hora da morte. Que a luz me faltasse na hora da
morte se fosse para o semin�rio. Capitu n�o parecia crer nem descrer, n�o
parecia sequer ouvir; era uma figura de pau. Quis cham�-la, sacudi-la, mas
faltou-me �nimo. Essa criatura que brincara comigo, que pulara, dan�ara, creio
at� que dormira comigo, deixava-me agora com os bra�os atados e medrosos.
Enfim, tornou a si, mas tinha a cara l�vida, e rompeu nestas palavras furiosas:
 
� Beata! carola! papa-missas! 
 
Fiquei aturdido. Capitu gostava
tanto de minha m�e, e minha m�e dela, que eu n�o podia entender tamanha
explos�o. � verdade que tamb�m gostava de mim, e naturalmente mais, ou melhor,
ou de outra maneira, coisa bastante a explicar o despeito que lhe trazia a
amea�a da separa��o; mas os improp�rios, como entender que lhe chamasse nomes
t�o feios, e principalmente para deprimir costumes religiosos, que eram os
seus? Que ela tamb�m ia � missa, e tr�s ou quatro vezes minha m�e � que a
levou, na nossa velha sege. Tamb�m lhe dera um ros�rio, uma cruz de ouro e um
livro de Horas... Quis defend�-la, mas Capitu n�o me deixou, continuou a
chamar-lhe beata e carola, em voz t�o alta que tive medo fosse ouvida dos pais.
Nunca a vi t�o irritada como ent�o; parecia disposta a dizer tudo a todos.
Cerrava os dentes, abanava a cabe�a... Eu, assustado, n�o sabia que fizesse;
repetia os juramentos, prometia ir naquela mesma noite declarar em casa que,
por nada neste mundo, entraria no semin�rio. 
 
� Voc�? Voc� entra. 
 
� N�o entro. 
 
� Voc� ver� se entra ou n�o. 
 
Calou-se outra vez. Quando tornou
a falar, tinha mudado; n�o era ainda a Capitu do costume, mas quase. Estava
s�ria, sem afli��o, falava baixo. Quis saber a conversa��o da minha casa; eu
contei-lha toda, menos a parte que lhe dizia respeito. 
 
� E que interesse tem Jos� Dias em
lembrar isto? perguntou-me no fim. 
 
� Acho que nenhum; foi s� para fazer
mal. � um sujeito muito ruim; mas, deixe estar que me h� de pagar. Quando eu
for dono da casa, quem vai para a rua � ele, voc� ver�; n�o me fica um
instante. Mam�e � boa demais; d�-lhe aten��o demais. Parece at� que chorou. 
 
� Jos� Dias? 
 
� N�o, mam�e. 
 
� Chorou por qu�? 
 
� N�o sei; ouvi s� dizer que ela
n�o chorasse, que n�o era coisa de choro... Ele chegou a mostrar-se
arrependido, e saiu; eu ent�o, para n�o ser apanhado, deixei o canto e corri
para a varanda. Mas, deixe estar, que ele me paga! 
 
Disse isto fechando o punho, e
proferi outras amea�as. Ao relembr�-las, n�o me acho rid�culo; a adolesc�ncia e
a inf�ncia n�o s�o, neste ponto, rid�culas; � um dos seus privil�gios. Este mal
ou este perigo come�a na mocidade, cresce na madureza e atinge o maior grau na
velhice. Aos quinze anos, h� at� certa gra�a em amea�ar muito e n�o executar
nada.
Capitu refletia. A reflex�o n�o
era coisa rara nela, e conheciam-se as ocasi�es pelo apertado dos olhos.
Pediu-me algumas circunst�ncias mais, as pr�prias palavras de uns e de outros,
e o tom delas. Como eu n�o queria dizer o ponto inicial da conversa, que era
ela mesma, n�o lhe pude dar toda a significa��o. A aten��o de Capitu estava
agora particularmente nas l�grimas de minha m�e; n�o acabava de entend�-las. Em
meio disto, confessou que certamente n�o era por mal que minha m�e me queria
fazer padre; era a promessa antiga, que ela, temente a Deus, n�o podia deixar
de cumprir. Fiquei t�o satisfeito de ver que assim espontaneamente reparava as
inj�rias que lhe sa�ram do peito, pouco antes, que peguei da m�o dela e
apertei-a muito. Capitu deixou-se ir, rindo; depois a conversa entrou a
cochilar e dormir. T�nhamos chegado � janela; um preto, que, desde algum tempo,
vinha apregoando cocadas, parou em frente e perguntou:
 
� Sinhazinha, qu� cocada hoje? 
 
� N�o, respondeu Capitu. 
 
� Cocadinha t� boa. 
 
� V�-se embora, replicou ela sem
rispidez. 
 
� D� c�! disse eu descendo o bra�o
para receber duas. 
 
Comprei-as, mas tive de as comer
sozinho; Capitu recusou. Vi que, em meio da crise, eu conservava um canto para
as cocadas, o que tanto pode ser perfei��o como imperfei��o, mas o momento n�o
� para defini��es tais; fiquemos em que a minha amiga, apesar de equilibrada e
l�cida, n�o quis saber de doce, e gostava muito de doce. Ao contr�rio, o preg�o
que o preto foi cantando, o preg�o das velhas tardes, t�o sabido do bairro e da
nossa inf�ncia:
 
Chora, menina, chora, 
Chora, porque n�o tem
��������� Vint�m,
 
a modo que lhe deixara uma impress�o
aborrecida. Da toada n�o era; ela a sabia de cor e de longe, usava repeti-la
nos nossos jogos da puer�cia, rindo, saltando, trocando os pap�is comigo, ora
vendendo, ora comprando um doce ausente. Creio que a letra, destinada a picar a
vaidade das crian�as, foi que a enojou agora, porque logo depois me disse:
 
� Se eu fosse rica, voc� fugia,
metia-se no paquete e ia para a Europa. 
 
Dito isto, espreitou-me os olhos,
mas creio que eles n�o lhe disseram nada, ou s� agradeceram a boa inten��o. Com
efeito, o sentimento era t�o amigo que eu podia escusar o extraordin�rio da
aventura. 
 
Como v�s, Capitu, aos quatorze
anos, tinha j� id�ias atrevidas, muito menos que outras que lhe vieram depois;
mas eram s� atrevidas em si, na pr�tica faziam-se h�beis, sinuosas, surdas, e
alcan�avam o fim proposto, n�o de salto, mas aos saltinhos. N�o sei se me
explico bem. Suponde uma concep��o grande executada por meios pequenos. Assim,
para n�o sair do desejo vago e hipot�tico de me mandar para a Europa, Capitu,
se pudesse cumpri-lo, n�o me faria embarcar no paquete e fugir; estenderia uma
fila de canoas daqui at� l�, por onde eu, parecendo ir � fortaleza da Laje em
ponte movedi�a, iria realmente at� Bord�us, deixando minha m�e na praia, �
espera. Tal era a fei��o particular do car�ter da minha amiga; pelo que, n�o
admira que, combatendo os meus projetos de resist�ncia franca, fosse antes
pelos meios brandos, pela a��o do empenho, da palavra, da persuas�o lenta e
diuturna, e examinasse antes as pessoas com quem pod�amos contar. Rejeitou tio
Cosme; era um "boa-vida"; se n�o aprovava a minha ordena��o, n�o era
capaz de dar um passo para suspend�-la. Prima Justina era melhor que ele, e
melhor que os dois seria o Padre Cabral, pela autoridade, mas o padre n�o havia
de trabalhar contra a igreja; s� se eu lhe confessasse que n�o tinha voca��o...
 
� Posso confessar? 
 
� Pois, sim, mas seria aparecer
francamente, e o melhor � outra coisa. Jos� Dias... 
 
� Que tem Jos� Dias? 
 
� Pode ser um bom empenho. 
 
� Mas se foi ele mesmo que
falou... 
 
� N�o importa, continuou Capitu;
dir� agora outra coisa. Ele gosta muito de voc�. N�o lhe fale acanhado. Tudo �
que voc� n�o tenha medo, mostre que h� de vir a ser dono da casa, mostre que
quer e que pode. D�-lhe bem a entender que n�o � favor. Fa�a-lhe tamb�m
elogios; ele gosta muito de ser elogiado. D. Gl�ria presta-lhe aten��o; mas o
principal n�o � isso; � que ele, tendo de servir a voc�, falar� com muito mais
calor que outra pessoa. 
 
� N�o acho, n�o, Capitu. 
 
� Ent�o v� para o semin�rio. 
 
� Isso n�o. 
 
� Mas que se perde em
experimentar? Experimentemos; fa�a o que lhe digo. Dona Gl�ria pode ser que
mude de resolu��o; se n�o mudar, faz-se outra coisa, mete-se ent�o o Padre
Cabral. Voc� n�o se lembra como � que foi ao teatro pela primeira vez, h� dois
meses? D. Gl�ria n�o queria, e bastava isso para que Jos� Dias n�o teimasse;
mas ele queria ir, e fez um discurso, lembra-se? 
 
� Lembra-me; disse que o teatro
era uma escola de costumes. 
 
� Justo; tanto falou que sua m�e
acabou consentindo, e pagou a entrada aos dois... Ande, pe�a, mande. Olhe;
diga-lhe que est� pronto a ir estudar leis em S�o Paulo. 
 
Estremeci de prazer. S�o Paulo era
um fr�gil biombo, destinado a ser arredado um dia, em vez da grossa parede
espiritual e eterna. Prometi falar a Jos� Dias nos termos propostos. Capitu
repetiu-os, acentuando alguns, como principais; e inquiria-me depois sobre
eles, a ver se entendera bem, se n�o trocara uns por outros. E insistia em que
pedisse com boa cara, mas assim como quem pede um copo de �gua a pessoa que tem
obriga��o de o trazer. Conto estas min�cias para que melhor se entenda aquela
manh� da minha amiga; logo vir� a tarde, e da manh� e da tarde se far� o
primeiro dia, como no G�nesis, onde se fizeram sucessivamente sete. 
 
 
 
CAP�TULO XIX
SEM FALTA
 
Quando voltei a casa era noite.
Vim depressa, n�o tanto, por�m, que n�o pensasse nos termos em que falaria ao
agregado. Formulei o pedido de cabe�a, escolhendo as palavras que diria e o tom
delas, entre seco e ben�volo. Na ch�cara, antes de entrar em casa, repeti-as
comigo, depois em voz alta, para ver se eram adequadas e se obedeciam �s
recomenda��es de Capitu: "Preciso falar-lhe, sem falta, amanh�;
escolha o lugar e diga-me". Proferi-as lentamente, e mais lentamente ainda
as palavras sem falta, como para sublinh�-las. Repeti-as ainda, e ent�o
achei-as secas demais, quase r�spidas, e, francamente, impr�prias de um
crian�ola para um homem maduro. Cuidei de escolher outras, e parei. 
 
Afinal disse comigo que as
palavras podiam servir, tudo era diz�-las em tom que n�o ofendesse. E a prova �
que, repetindo-as novamente, sa�ram-me quase s�plices. Bastava n�o carregar
tanto, nem ado�ar muito, um meio-termo. "E Capitu tem raz�o, pensei, a casa
� minha, ele � um simples agregado... Jeitoso �, pode muito bem trabalhar por
mim, e desfazer o plano de mam�e." 
 
 
 
CAP�TULO XX
MIL PADRE-NOSSOS E MIL
AVE-MARIAS
 
Levantei os olhos ao c�u, que
come�ava a embruscar-se, mas n�o foi para v�-lo coberto ou descoberto. Era ao
outro C�u que eu erguia a minha alma; era ao meu ref�gio, ao meu amigo. E ent�o
disse de mim para mim: "Prometo rezar mil padre-nossos e mil ave-marias,
se Jos� Dias arranjar que eu n�o v� para o semin�rio". 
 
A soma era enorme. A raz�o � que
eu andava carregado de promessas n�o cumpridas. A �ltima foi de duzentos
padre-nossos e duzentas ave-marias, se n�o chovesse em certa tarde de passeio a
Santa Teresa. N�o choveu, mas eu n�o rezei as ora��es. Desde pequenino
acostumara-me a pedir ao C�u os seus favores, mediante ora��es que diria, se
eles viessem. Disse as primeiras, as outras foram adiadas, e � medida que se
amontoavam iam sendo esquecidas. Assim cheguei aos n�meros vinte, trinta,
cinq�enta. Entrei nas
centenas e agora no milhar. Era um modo de peitar a
vontade divina pela quantia das ora��es; al�m disso, cada promessa nova era
feita e jurada no sentido de pagar a d�vida antiga. Mas v�o l� matar a pregui�a
de uma alma que a trazia do ber�o e n�o a sentia atenuada pela vida! O C�u fazia-me
o favor, eu adiava a paga. Afinal perdi-me nas contas. 
 
� Mil, mil, repeti comigo. 
 
Realmente, a mat�ria do benef�cio
era agora imensa, n�o menos que a salva��o ou o naufr�gio da minha exist�ncia
inteira. Mil, mil, mil. Era preciso uma soma que pagasse os atrasados todos.
Deus podia muito bem, irritado com os esquecimentos, negar-se a ouvir-me sem
muito dinheiro... Homem grave, � poss�vel que estas agita��es de menino te
enfadem, se � que n�o as achas rid�culas. Sublimes n�o eram. Cogitei muito no
modo de resgatar a d�vida espiritual. N�o achava outra esp�cie em que, mediante
a inten��o, tudo se cumprisse, fechando a escritura��o da minha consci�ncia
moral sem deficit. Mandar dizer cem missas, ou subir de joelhos a
ladeira da Gl�ria para ouvir uma, ir � Terra Santa, tudo o que as velhas
escravas me contavam de promessas c�lebres, tudo me acudia sem se fixar de vez
no esp�rito. Era muito duro subir uma ladeira de joelhos; devia feri-los por
for�a. A Terra Santa ficava muito longe. As missas eram numerosas, podiam
empenhar-me outra vez a alma... 
 
 
 
CAP�TULO XXI
PRIMA JUSTINA
 
Na varanda achei prima Justina,
passeando de um lado para outro. Veio ao patamar e perguntou-me onde estivera. 
 
� Estive aqui ao p�, conversando
com D. Fortunata, e distra�-me. � tarde, n�o �? Mam�e perguntou por mim? 
 
� Perguntou, mas eu disse que voc�
j� tinha vindo. 
 
A mentira espantou-me, n�o menos
que a franqueza da not�cia. N�o � que prima Justina fosse de biocos, dizia
francamente a Pedro o mal que pensava de Paulo, e a Paulo o que pensava de
Pedro; mas, confessar que mentira � que me pareceu novidade. Era quadragen�ria,
magra e p�lida, boca fina e olhos curiosos. Vivia conosco por favor de minha m�e,
e tamb�m por interesse; minha m�e queria ter uma senhora �ntima ao p� de si, e
antes parenta que estranha. 
 
Passeamos alguns minutos na
varanda, alumiada por um lampi�o. Quis saber se eu n�o esquecera os projetos eclesi�sticos
de minha m�e, e dizendo-lhe eu que n�o, inquiriu-me sobre o gosto que eu tinha
� vida de padre. Respondi esquivo:
 
� Vida de padre � muito bonita. 
 
� Sim, � bonita; mas o que
pergunto � se voc� gostaria de ser padre, explicou rindo. 
 
� Eu gosto do que mam�e quiser. 
 
� Prima Gl�ria deseja muito que
voc� se ordene, mas ainda que n�o desejasse, h� c� em casa quem lhe meta isso
na cabe�a. 
 
� Quem �? 
 
� Ora, quem! Quem � que h� de ser?
Primo Cosme n�o �, que n�o se importa com isso; eu tamb�m n�o. 
 
� Jos� Dias? conclu�. 
 
� Naturalmente. 
 
Enruguei a testa
interrogativamente, como se n�o soubesse nada. Prima Justina completou a
not�cia dizendo que ainda naquela tarde Jos� Dias lembrara a minha m�e a
promessa antiga. 
 
� Prima Gl�ria pode ser que, em
passando os dias, v� esquecendo a promessa; mas como h� de esquecer se uma
pessoa estiver sempre, nos ouvidos, z�s que dar�s, falando do semin�rio? E os
discursos que ele faz, os elogios da igreja, e que a vida de padre � isto e
aquilo, tudo com aquelas palavras que s� ele conhece, e aquela afeta��o... Note
que � s� para fazer mal, porque ele � t�o religioso como este lampi�o. Pois �
verdade, ainda hoje. Voc� n�o se d� por achado... Hoje de tarde falou como voc�
n�o imagina... 
 
� Mas falou � toa? perguntei, a
ver se ela contava a den�ncia do meu namoro com a vizinha. 
 
N�o contou; fez apenas um gesto
como indicando que havia outra coisa que n�o podia dizer. Novamente me
recomendou que n�o me desse por achado, e recapitulou todo o mal que pensava de
Jos� Dias, e n�o era pouco, um intrigante, um bajulador, um especulador, e,
apesar da casca de polidez, um grosseir�o. Eu, passados alguns instantes, disse:
 
� Prima Justina, a senhora era
capaz de uma coisa? 
 
� De qu�? 
 
� Era capaz de... Suponha que eu
n�o gostasse de ser padre... a senhora podia pedir a mam�e... 
 
� Isso n�o, atalhou prontamente;
prima Gl�ria tem este neg�cio firme na cabe�a, e n�o h� nada no mundo que a
fa�a mudar de resolu��o; s� o tempo. Voc� ainda era pequenino, j� ela contava
isto a todas as pessoas da nossa amizade, ou s� conhecidas. L� avivar-lhe a
mem�ria, n�o, que eu n�o trabalho para a desgra�a dos outros; mas tamb�m, pedir
outra coisa, n�o pe�o. Se ela me consultasse, bem; se ela me dissesse: "Prima
Justina, voc� que acha?", a minha resposta era: "Prima Gl�ria, eu
penso que, se ele gosta de ser padre, pode ir; mas, se n�o gosta, o melhor �
ficar". � o que eu diria e direi se ela me consultar algum dia. Agora, ir
falar-lhe sem ser chamada, n�o fa�o. 
 
 
 
CAP�TULO XXII
SENSA��ES ALHEIAS
 
N�o alcancei mais nada, e para o
fim arrependi-me do pedido: devia ter seguido o conselho de Capitu. Ent�o, como
eu quisesse ir para dentro, prima Justina reteve-me alguns minutos, falando do
calor e da pr�xima festa da Concei��o, dos meus velhos orat�rios, e finalmente
de Capitu. N�o disse mal dela; ao contr�rio, insinuou-me que podia vir a ser
uma mo�a bonita. Eu, que j� a achava lind�ssima, bradaria que era a mais bela
criatura do mundo, se o receio me n�o fizesse discreto. Entretanto, como prima
Justina se metesse a elogiar-lhe os modos, a gravidade, os costumes, o
trabalhar para os seus, o amor que tinha a minha m�e, tudo isto me acendeu a
ponto de elogi�-la tamb�m. Quando n�o era com palavras, era com o gesto de
aprova��o que dava a cada uma das asser��es da outra, e certamente com a
felicidade que devia iluminar-me a cara. N�o adverti que assim confirmava a
den�ncia de Jos� Dias, ouvida por ela, � tarde, na sala de visitas, se � que
tamb�m ela n�o desconfiava j�. S� pensei nisso na cama. S� ent�o senti que os
olhos de prima Justina, quando eu falava, pareciam apalpar-me, ouvir-me,
cheirar-me, gostar-me, fazer o of�cio de todos os sentidos. Ci�mes n�o podiam
ser; entre um pirralho da minha idade e uma vi�va quarentona n�o havia lugar
para ci�mes. � certo que, ap�s algum tempo, modificou os elogios a Capitu, e
at� lhe fez algumas cr�ticas, disse-me que era um pouco tr�fega e olhava por
baixo; mas ainda assim, n�o creio que fossem ci�mes. Creio antes... sim... sim,
creio isto. Creio que prima Justina achou no espet�culo das sensa��es alheias
uma ressurrei��o vaga das pr�prias. Tamb�m se goza por influi��o dos l�bios que
narram. 
 
 
 
CAP�TULO XXIII
PRAZO DADO
 
� Preciso falar-lhe amanh�, sem
falta; escolha o lugar e diga-me.
 
Creio que Jos� Dias achou desusado
este meu falar. O tom n�o me sa�ra t�o imperativo como eu receava, mas as
palavras o eram, e o n�o interrogar, n�o pedir, n�o hesitar, como era pr�prio da
crian�a e do meu estilo habitual, certamente lhe deu id�ia de uma pessoa nova e
de uma nova situa��o. Foi no corredor, quando �amos para o ch�; Jos� Dias vinha
andando cheio da leitura de Walter Scott que fizera a minha m�e e a prima
Justina. Lia cantado e compassado. Os castelos e os parques sa�am maiores da
boca dele, os lagos tinham mais �gua e a "ab�bada celeste" contava
alguns milhares mais de estrelas cintilantes. Nos di�logos, alternava o som das
vozes, que eram levemente grossas ou finas, conforme o sexo dos interlocutores,
e reproduziam com modera��o a ternura e a c�lera. 
 
Ao despedir-se de mim, na varanda,
disse-me ele:
 
� Amanh�, na rua. Tenho umas
compras que fazer,
voc� pode ir comigo, pedirei a mam�e. � dia de li��o? 
 
� A li��o foi hoje. 
 
� Perfeitamente. N�o lhe pergunto
o que �; afirmo desde j� que � mat�ria grave e pura. 
 
� Sim, senhor. 
 
� At� amanh�. 
 
Fez-se tudo o melhor poss�vel.
Houve s� uma altera��o; minha m�e achou o dia quente e n�o consentiu que eu
fosse a p�; entramos no �nibus, � porta de casa. 
 
� N�o importa, disse-me Jos� Dias;
podemos apear-nos � porta do Passeio P�blico. 
 
 
 
CAP�TULO XXIV
DE M�E E DE SERVO
 
Jos� Dias tratava-me com extremos de
m�e e aten��es de servo. A primeira coisa que conseguiu logo que comecei a
andar fora, foi dispensar-me o pajem; fez-se pajem, ia comigo � rua. Cuidava
dos meus arranjos em casa, dos meus livros, dos meus sapatos, da minha higiene
e da minha pros�dia. Aos oito anos os meus plurais careciam, alguma vez, da
desin�ncia exata, ele a corrigia, meio s�rio para dar autoridade � li��o, meio
risonho para obter o perd�o da emenda. Ajudava assim o mestre de primeiras
letras. Mais tarde, quando o Padre Cabral me ensinava latim, doutrina e
hist�ria sagrada, ele assistia �s li��es, fazia reflex�es eclesi�sticas, e, no
fim, perguntava ao padre: "N�o � verdade que o nosso jovem amigo caminha
depressa?" Chamava-me "um prod�gio"; dizia a minha m�e ter
conhecido outrora meninos muito inteligentes, mas que eu excedia a todos esses,
sem contar que, para a minha idade, possu�a j� certo n�mero de qualidades
morais s�lidas. Eu, posto n�o avaliasse todo o valor deste outro elogio,
gostava do elogio; era um elogio. 
 
 
 
CAP�TULO XXV 
NO PASSEIO P�BLICO
 
Entramos no Passeio P�blico.
Algumas caras velhas, outras doentes ou s� vadias espalhavam-se
melancolicamente no caminho que vai da porta ao terra�o. Seguimos para o
terra�o. Andando, para me dar �nimo, falei do jardim:
 
� H� muito tempo que n�o venho
aqui, talvez um ano. 
 
� Perdoe-me, atalhou ele, n�o h�
tr�s meses que esteve aqui com o nosso vizinho P�dua; n�o se lembra? 
 
� � verdade, mas foi t�o de
passagem. . . 
 
� Ele pediu a sua m�e que o
deixasse trazer consigo, e ela, que � boa como a m�e de Deus, consentiu; mas
ou�a-me, j� que falamos nisto, n�o � bonito que voc� ande com o P�dua na rua. 
 
� Mas eu andei algumas vezes... 
 
� Quando era mais jovem; era
crian�a, era natural, ele podia passar por criado. Mas voc� est� ficando mo�o e
ele vai tomando confian�a. D. Gl�ria, afinal, n�o pode gostar disso. A gente
P�dua n�o � de todo m�. Capitu, apesar daqueles olhos que o Diabo lhe deu...
Voc� j� reparou nos olhos dela? S�o assim de cigana obl�qua e dissimulada. Pois,
apesar deles, poderia passar, se n�o fosse a vaidade e a adula��o. Oh! a
adula��o! D. Fortunata merece estima, e ele n�o nego que seja honesto, tem um
bom emprego, possui a casa em que mora, mas honestidade e estima n�o bastam, e
as outras qualidades perdem muito de valor com as m�s companhias em que ele
anda. P�dua tem uma tend�ncia para gente reles. Em lhe cheirando a homem chulo
� com ele. N�o digo isto por �dio, nem porque ele fale mal de mim e se ria,
como se riu, h� dias, dos meus sapatos acalcanhados... 
 
� Perd�o, interrompi suspendendo o
passo, nunca ouvi que falasse mal do senhor; pelo contr�rio, um dia, n�o h�
muito tempo, disse ele a um sujeito, em minha presen�a, que o senhor era
"um homem de capacidade e sabia falar como um deputado nas c�maras." 
 
Jos� Dias sorriu deliciosamente,
mas fez um esfor�o grande e fechou outra vez o rosto; depois replicou:
 
� N�o lhe agrade�o nada. Outros,
de melhor sangue, me t�m feito o favor de ju�zos altos. E nada disso impede que
ele seja o que lhe digo. 
 
T�nhamos outra vez andado, subimos
ao terra�o, e olhamos para o mar. 
 
� Vejo que o senhor n�o quer sen�o
o meu benef�cio, disse eu depois de alguns instantes. 
 
� Pois que outra coisa, Bentinho? 
 
� Neste caso, pe�o-lhe um favor. 
 
� Um favor? Mande, ordene, que �? 
 
� Mam�e... 
 
Durante algum tempo n�o pude dizer
o resto, que era pouco, e vinha de cor. Jos� Dias tornou a perguntar o que era,
sacudia-me com brandura, levantava-me o queixo e espetava os olhos em mim,
ansioso tamb�m, como a prima Justina na v�spera. 
 
� Mam�e qu�? Que � que tem mam�e? 
 
� Mam�e quer que eu seja padre,
mas eu n�o posso ser padre, disse finalmente. 
 
Jos� Dias endireitou-se pasmado. 
 
� N�o posso, continuei eu, n�o menos
pasmado que ele, n�o tenho jeito, n�o gosto da vida de padre. Estou por tudo o
que ela quiser; mam�e sabe que eu fa�o tudo o que ela manda; estou pronto a ser
o que for do seu agrado, at� cocheiro de �nibus. Padre, n�o; n�o posso ser
padre. A carreira � bonita, mas n�o � para mim. 
 
Todo esse discurso n�o me saiu
assim, de vez, enfiado naturalmente, perempt�rio, como pode parecer do texto,
mas aos peda�os, mastigado, em voz um pouco surda e t�mida. N�o obstante, Jos� Dias
ouvira-o espantado. N�o contava certamente com a resist�ncia, por mais acanhada
que fosse; mas o que ainda mais o assombrou foi esta conclus�o:
 
� Conto com o senhor para
salvar-me.
 
Os olhos do agregado
escancararam-se, as sobrancelhas arquearam-se, e o prazer que eu contava
dar-lhe com a escolha da prote��o n�o se mostrou em nenhum dos m�sculos. Toda a
cara dele era pouca para a estupefa��o. Realmente, a mat�ria do discurso
revelara em mim uma alma nova; eu pr�prio n�o me conhecia. Mas a palavra final
� que trouxe um vigor �nico. Jos� Dias ficou aturdido. Quando os olhos tornaram
�s dimens�es ordin�rias:
 
� Mas que posso eu fazer?
perguntou. 
 
� Pode muito. O senhor sabe que,
em nossa casa, todos o apreciam. Mam�e pede muita vez os seus conselhos, n�o �?
Tio Cosme diz que o senhor � pessoa de talento... 
 
� S�o bondades, retorquiu
lisonjeado. S�o favores de pessoas dignas, que merecem tudo... A� est�! nunca
ningu�m me h� de ouvir dizer nada de pessoas tais; por qu�? porque s�o ilustres
e virtuosas. Sua m�e � uma santa, seu tio � um cavalheiro perfeit�ssimo. Tenho
conhecido fam�lias distintas; nenhuma poder� vencer a sua em nobreza de
sentimentos. O talento que seu tio acha em mim confesso que o tenho, mas � s�
um, � � o talento de saber o que � bom e digno de admira��o e de apre�o. 
 
� H� de ter tamb�m o de proteger
os amigos, como eu. 
 
� Em que lhe posso valer, anjo do
c�u? N�o hei de dissuadir sua m�e de um projeto que �, al�m de promessa, a
ambi��o e o sonho de longos anos. Quando pudesse, � tarde. Ainda ontem fez-me o
favor de dizer: "Jos� Dias, preciso meter Bentinho no semin�rio". 
 
Timidez n�o � t�o ruim moeda, como
parece. Se eu fosse destemido, � prov�vel que, com a indigna��o que
experimentei, rompesse a chamar-lhe mentiroso, mas ent�o seria preciso
confessar-lhe que estivera � escuta, atr�s da porta, e uma a��o valia outra.
Contentei-me de responder que n�o era tarde. 
 
� N�o � tarde, ainda � tempo, se o
senhor quiser. 
 
� Se eu quiser? Mas que outra
coisa quero eu, sen�o servi-lo. Que desejo, sen�o que seja feliz, como merece? 
 
� Pois ainda � tempo. Olhe, n�o �
por vadia��o. Estou pronto para tudo; se ela quiser que eu estude leis, vou
para S�o Paulo... 
 
 
 
CAP�TULO XXVI
AS LEIS S�O BELAS
 
Pela cara de Jos� Dias passou algo
parecido com o reflexo de uma id�ia, � uma id�ia que o alegrou
extraordinariamente. Calou-se alguns instantes; eu tinha os olhos nele, ele
voltara os seus para o lado da barra. Como insistisse:

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