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como pergunta a mais esquecida da filosofia: o que quer dizer ser? Para aprender a perguntar essa pergunta, Heidegger tomou o caminho de determinar 68 positiva e ontologicamente o ser do ser-aí humano em si mesmo, no lugar de entendê-lo, com a metafísica até então vigente, como mero finito a partir de um ser infinito sendo eternamente. O privilégio ontológico que o ser do ser-aí humano ganhou para Heidegger determinou sua filosofia como “ontologia fundamental”. As determinações ontológicas do ser-aí humano finito, Heidegger denominou de determinações da existência, existenciais, e estabeleceu esses conceitos fundamentais com metódico discernimento frente aos conceitos fundamentais da metafísica até então vigente, as categorias dos entes diante-da-mão. Que o ser-aí humano não tem seu ser próprio no caráter-do-diante-da-mão [Vorhandenheit] que se deixa firmar, mas sim na mobilidade do cuidado, com o qual ele é, preocupado em torno a seu ser, o seu próprio futuro, isto é o que Heidegger não queria perder de vista, ao tocar novamente na pergunta imemorial pelo sentido do ser. O ser-aí humano se destaca por compreender-se a partir de seu próprio ser. Graças à finitude e temporalidade do ser-aí humano, que a pergunta pelo sentido de seu ser não quer deixar apaziguar, determinou-se para ele a pergunta pelo sentido de ser no horizonte do tempo. O que a ciência ponderando e medindo firma como ente, o diante-da-mão, tem de se deixar compreender, da mesma forma que o eterno interpretado para além de toda humanidade, a partir da seguridade de ser [Seinsgewißheit] central da temporalidade humana. Esse foi o novo lance de Heidegger. Mas sua meta, pensar o ser como tempo, permaneceu tão velada, que Ser e Tempo foi justamente caracterizado como fenomenologia hermenêutica, porque a autocompreensão apresenta o fundamento próprio dessa pergunta. Visto a partir desse fundamento, a compreensão de ser da metafísica tradicional se mostra como uma forma de queda da compreensão de ser originária, realizada no ser-aí humano. Ser não é apenas pura presença [Anwesenheit] e ser-diante-da-mão estacionado [gegenwärtige]. Em sentido próprio o ser-aí finito-historial “é”. Em seu projeto no mundo [Weltentwurf] tem lugar tão-logo o à-mão [Zuhandene] – e apenas por fim o apenas-diante-da-mão. A partir do fenômeno hermenêutico da autocompreensão, várias formas de ser, que não são nem historiais e nem apenas diante-da-mão, não têm contudo nenhum lugar adequado. A atemporalidade das relações matemáticas, que não são meramente entes diante-da-mão passíveis de serem firmados, a atemporalidade da natureza que sempre se repete em seu círculo, que a nós mesmos nos perpassa e determina desde o inconsciente, e finalmente, a atemporalidade do arco-íris da arte que se arqueia sobre toda distância 69 historial, pareciam delinear os limites da possibilidade de interpretação hermenêutica que o novo lance de Heidegger havia inaugurado. O inconsciente, o número, o sonho, o ciclo da natureza, a maravilha da arte – tudo isso parecia ser abarcável apenas à margem do ser-aí que se sabe historialmente e se compreende em si mesmo, como uma espécie de conceitos- limite. Assim foi uma surpresa quando Heidegger, em 1936, tratou da origem da obra de arte em algumas conferências. Mesmo se esse trabalho se tivesse tornado acessível à publicidade somente em 1950 como primeira parte da coletânea Caminhos de Floresta, mesmo assim seu efeito com certeza teria começado muito mais cedo. Pois já tinha muito tempo que as preleções e conferências de Heidegger recaíam por toda parte sobre um palpitante interesse e encontravam um amplo alargamento em cópias e relatórios, que o levaram rapidamente ao falatório por ele próprio tão furiosamente caricaturizado. Na verdade, as conferências sobre a origem da obra de arte significaram uma sensação filosófica. Não só porque agora a arte foi incluída no princípio hermenêutico da autocompreensão humana em sua historialidade, porque foi até mesmo compreendida nessas conferências – como na crença poética de Hölderlin e Georges – como o ato de fundação de mundos totalmente historiais; a genuína sensação que significou a nova tentativa de pensamento de Heidegger foi a surpreendente nova conceitualização que se antecipou em meio a esse tema. Lá se falava de mundo e terra. O conceito de mundo já era, então, desde antes um dos conceitos hermenêuticos condutores de Heidegger. O mundo como o todo de relações do projeto do ser-aí desenhava o horizonte que precedia todas as projeções do cuidado do ser-aí humano. O próprio Heidegger citou a história desse conceito de mundo e especialmente o sentido antropológico do novo testamento desse conceito, como ele próprio o utilizava, totalmente diferente do conceito da totalidade do diante-da- mão e historicamente legitimado. Mas o surpreendente, então, era que esse conceito do mundo tinha no conceito de terra um contra-conceito [Gegenbegriff]. Pois enquanto que o conceito do mundo, como o do todo no qual se insere a auto-interpretação humana, era passível de se elevar a uma intuição evidente a partir da autocompreensão do ser-aí humano, o conceito de terra soava como uma entoação primordial mítica e gnóstica, que teria direito de cidadania no máximo no mundo da poesia. Manifestamente, era da poesia de Hölderlin, à que então Heidegger se voltava com apaixonada intensidade, que ele levou o 70 conceito de terra para seu próprio filosofar. Mas com que direito? Como podia o ser-aí autocompreensor em seu ser, o ser-no-mundo, esse novo e radical ponto de partida de toda pergunta transcendental, entrar em uma relação ontológica com um conceito como ‘terra’? Mas o novo lance de Heidegger em Ser e Tempo certamente não era simplesmente uma repetição da metafísica espiritualista do Idealismo alemão. O compreender-se-em-seu- ser do ser-aí humano não é o auto-saber do Espírito absoluto de Hegel. Não é nenhum autoprojeto, mas antes sabe em sua própria autocompreensão de ser que não é senhor de si e seu próprio ser-aí, mas antes já se encontra em meio ao ente e assim está para se assumir como já se encontra. Ele é projeto projetado. Foi uma das mais brilhantes análises fenomenológicas de Ser e Tempo, em que Heidegger analisou como situabilidade [Befindlichkeit26] essa experiência-limite da existência, de já se encontrar em meio ao ente, e dispensou à situabilidade, à afinação, o desvendamento [Erschließung] próprio do ser-no- mundo. O já situável [Vorfindlich] de tal situabilidade apresenta manifestamente, porém, os limites mais externos até aonde se podia avançar a autocompreensão historial do ser-aí humano. Desse conceito-limite [Grenzbegriff] hermenêutico da situabilidade e da afinação não há nenhuma via para um conceito assim como o de terra. Qual o direito de tal conceito? Como ele pode encontrar seu enraizamento? A visada importante que o estudo de Heidegger sobre a origem da obra de arte inaugurou é que “terra” é uma determinação necessária de ser da obra de arte. Para reconhecer que significação principal possui a pergunta pela essência da obra de arte e como ela se concatena às perguntas fundamentais da filosofia, requeria-se abertamente a visada nos preconceitos presentes no conceito de uma estética filosófica. Requeria-se uma superação do próprio conceito de estética. É sabido que a estética filosófica é a mais nova dentre as disciplinas filosóficas. Só no século XVIII, na expressiva redução do racionalismo do Esclarecimento, é que se fizeram válidos o direito estável do conhecimento sensível e, com isso, a relativa independência do juízo de gosto frente ao entendimento e seus conceitos. Como o nome da disciplina, também sua autonomia sistemática data da estética de Alexander Baumgarten. Kant, então, firmou a significação