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“Todo o mundo sabe o que pertence ao calçado. (...) Um utensílio desses serve para a vestimenta dos pés. Correspondentemente à serventia, se para o trabalho no campo ou para a dança, matéria e forma são diferentes” (ib., p. 26). Esta é a visada já alcançada pela análise do utensílio feita por si: “O ser-utensílio do utensílio consiste em sua serventia” (ib., p. 26). Mas, então, Heidegger pergunta se com a serventia nós já apreendemos o caráter de utensílio do utensílio. Para que cheguemos a tal apreensão, “não temos de ir ter com o utensílio útil em seu serviço?” (ib., p. 26). Note-se que não se trata de renegar a serventia como o caráter mesmo do utensílio, antes trata-se de questionar se o conceito de serventia basta para compreender o que é na verdade a própria serventia do utensílio. Saber o que é a serventia não requer, com efeito, acompanhar o serviço mesmo? 114 A camponesa na lavoura veste os sapatos. Somente aqui eles são o que são. Eles o são tanto mais autenticamente, quanto menos a camponesa pensa neles no trabalho ou sequer os percebe ou ainda menos os pressente. Ela está em pé e vai com eles. Assim servem os sapatos efetivamente. Nesse decorrer do uso do utensílio, o caráter utensiliar do utensílio deve efetivamente nos encontrar (ib., pp. 26-7). Contudo, o que é este decorrer do uso do utensílio? Ou melhor, onde se deu este encontro do caráter utensiliar do utensílio conosco? Heidegger ainda não foi claro a respeito; precisamente: não ficou claro se a descrição acima tem o mesmo estatuto da análise anterior acerca da serventia do utensílio ou se tem algum outro estatuto. Qual é, aqui, a forma de transposição para a essência de um ente? Ela é, como em Ser e Tempo, a recuperação ontológica de um modo de ser pré-ontológico, através de conceitos, modo de ser que somente assim vem a ficar transparente para o ente que questiona o ser do ente? Ou se dá aqui uma outra forma de acesso? Heidegger responde a isso na seqüência. Há uma forma infrutífera de olhar para a pintura: (...) enquanto nos presentificarmos apenas em geral um par de sapatos ou até mesmo olharmos para meros sapatos vazios parados, fora de uso, no quadro, nunca experimentaremos o que é na verdade o ser-utensílio do utensílio. Pela pintura de Van Gogh não podemos nem verificar onde ficam os sapatos. Em torno a esse par de sapatos de camponês não há nada ao qual eles poderiam pertencer, de onde poderiam provir, apenas um espaço indeterminado. Nem lhe estão colados torrões de terra da lavoura ou do caminho do campo, o que ao menos poderia dar sinal de sua utilização. Um par de sapatos de camponês e nada mais (ib., p. 27). A alusão à falta de contexto dos sapatos na pintura é claramente irônica. “Meros sapatos vazios parados, fora de uso, no quadro.” Assim é se a pintura for considerada um ente intramundano (no sentido de Ser e Tempo) localizado no interior de um museu, e o par de sapatos, um utensílio copiado na superfície de uma matéria. Mas qual o lugar dos sapatos da pintura? O que significa quando Heidegger aqui usa as expressões “no quadro”, “onde ficam os sapatos”, “em torno a esse par de sapatos”, “de onde poderiam provir”...? E onde está a camponesa à qual ele próprio aludiu? Logo se segue a descrição: Da escura abertura do gasto interior do calçado olha-nos fixamente a fadiga do andar do trabalho. Na dura gravidade do calçado retém-se a tenacidade do lento caminhar pelos sulcos que sempre iguais se estendem longe pelo campo, sobre o qual sopra um vento agreste. No couro fica a umidade e a fartura do solo. Sob as solas demove-se a solidão do caminho do campo pelo final de tarde. No calçado vibra o quieto chamado da terra, sua 115 silenciosa oferta do trigo maduro, sua inexplicável recusa na desolação do campo no inverno. Por esse utensílio passa o calado desassossego pela segurança do pão, a alegria sem palavras por ter mais uma vez suportado a falta, a vibração pela chegada do nascimento e o tremor ante o retorno da morte. À terra pertence esse utensílio e no mundo da camponesa ele é abrigado. É dessa abrigada pertença que o próprio utensílio ressurge para seu repousar-em-si (ib., pp. 27-8). Heidegger não pretende com isso dar uma descrição subjetiva e individual de sua própria “vivência estética” da obra, não pretende estar fantasiando sobre como é o mundo da camponesa e a terra a que pertence o utensílio: a pintura é que o teria mostrado40. Mas a pintura só pôde mostrar isso pela íntima relação que seu ser-obra guarda com o mundo e a terra (voltaremos a isso). O exemplo da pintura de Van Gogh põe em evidência ao mesmo tempo o ser do utensílio e o ser da obra, põe em evidência, também, ao mesmo tempo, a capacidade de revelação própria da obra e a capacidade de revelação própria do lugar mesmo a que pertence o utensílio e a camponesa à qual, por sua vez, o utensílio pertence. Essa duplicidade não é aqui de se ignorar, pois é justamente ela que, num passo fundamental, sustenta a visada de “A Origem da Obra de Arte”. Ela significa que a obra de arte desencobre aquilo que cotidianamente está encoberto. O que está encoberto cotidianamente é, porém, o próprio aberto: o mundo do ser-aí em sua morada sobre a terra, na relação à natureza. Mas, precisamente, o que é este encoberto? Não há um só sentido para isso no texto de Heidegger. Encoberto, na cotidianidade, é o caráter poético do serviço em que o utensílio está imerso. Poético é aqui, num primeiro momento, o que se opõe à “mera serventia”. Aqui de fato não ganhamos uma explicitação de algo assim como um conceito do poético, dada por Heidegger, mas simplesmente percebemos que é algo para o qual ele aponta em seu discurso. Uma descrição geral seria incapaz de manifestar isso que a obra manifesta, e que o pensamento presencia. Por isso é significativa a necessidade de recorrer à própria obra para manifestar o ser do ente – que, note-se, não se resume aqui ao ser do utensílio, mas refere-se também à camponesa e seu mundo. A serventia é justamente 40 Heidegger recebeu várias críticas que buscavam ver em sua interpretação da pintura de Van Gogh uma descrição imbuída de seu subjetivo juízo de gosto. Como aponta Babich, este foi o caso da insistente crítica de Schapiro a Heidegger. Babich busca reler o texto de Heidegger em uma abordagem hermenêutica, problematizando a tensão entre a arte originária que instaura o próprio entorno de uma humanidade e o clamor do “especialista” bem como a hegemonia do museu como medida da cultura. Schapiro, em sua crítica a Heidegger, teria partido da última perspectiva e teria, além disso, fornecido como prova contra Heidegger unicamente preferências subjetivas suas, que entravam em direta contradição com as de Heidegger na medida em que circunscritas ao “ideal fetichista” da fina arte (BABICH 2003, pp. 151-169). 116 o traço do utensílio que continua visível quando o uso cotidiano tornou opaca a originariedade presente em seu uso, quando o utensílio “caiu em usura e se desgastou” (ib., p. 28). Mas “poético” não significa apenas isso. Bem como “encoberto” não significa apenas a imersão na opacidade do que transcorre cotidianamente (o próprio aberto do mundo sobre a terra). Encoberto é também aquilo que a terra doa, aquilo que dela se pode e não se pode esperar, “sua silenciosa oferta do trigo maduro, sua inexplicável recusa na desolação do campo no inverno”. (Adiante retomaremos o poético pensado em relação a esse encobrimento próprio da terra.) Heidegger chega, assim, a uma determinação do ser do utensílio que se diferencia da serventia não apenas em amplitude conceitual, mas pelo caráter poético do pensamento41 que supera a carência do conceito: Toda vez que, ao cair da noite, a camponesa em sua dura mas saudável fadiga depõe os