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um “objetivismo” – a obra de arte pensada como um objeto de apreciação estética. A recuperação da questão do ser se mantém como uma dupla tarefa, mas essa dupla tarefa se reformula: não se trata de analisar o modo de ser do ser-aí como ente que se compreende exclusivamente a partir do mundo e de pensar a essência da verdade a partir dessa análise – trata-se de perseguir uma transposição para o acontecimento apropriador que a obra de arte instaura, trazendo consigo mundo, terra e existência do ser-aí humano. Não se trata de destruir a linguagem da metafísica (e, com ela, a ontologia tradicional do “ser-diante-da-mão”) cunhando uma nova linguagem feita de conceitos apropriados ao ser do ente que compreende ser, mas trata-se de levar a cabo essa destruição por uma entrada no âmbito da obra de arte que é, em última instância, o âmbito da composição originária, a Dichtung. Aqui é a estética que tem de ser desbancada, o que significa não apenas que os conceitos de “vivência estética”, de “representação”, de “gênio” 144 têm de ser superados, mas significa, juntamente com isso, uma profunda crítica ao primado do museu e da galeria como lugar e doador de medida da obra de arte. À superação desses conceitos e crítica ao primado do museu e da galeria se acrescenta um balanço de Heidegger sobre o próprio rumo da arte na história, sobre a força de instauração que as próprias obras tiveram ou deixaram de ter em harmonia com a compreensão estética da arte. Este último ponto nos conduz às razões de Heidegger para suas escolhas determinadas de obras de arte privilegiadas. Por que ele se detém de forma tão exclusiva na pintura de Van Gogh e no templo grego? O problema quanto a encontrar a essência da obra de arte, tomada como combate de mundo e terra que se põe em obra na obra, em um Egon Schile ou em um Picasso, é um problema que em certa medida pode ser posto também para a pintura de Van Gogh escolhida por Heidegger. Pois o que significa a efetividade (Wirklichkeit) da obra, tendo em vista o combate de mundo e terra? Heidegger não emprega este conceito em um único nível. Na obra, algo se efetua – a obra é algo de efetivo –; a própria terra é usada na feitura da obra: assim, nesse sentido, o som é mais som na música do que em qualquer ruído, a cor é mais cor na pintura, a pedra é mais pedra uma vez talhada na construção arquitetônica. Nesse sentido, vale notar, a tese de Heidegger sobre a essência da obra vale para toda e qualquer obra, mesmo para aquelas que não se enquadrariam em sua noção de “grande arte”. Mas “efetividade” significa mais do que isso. Também a própria efetividade como a realidade de uma humanidade historial é instaurada com a obra de arte, isto é, vem a ser efetiva, vem a vigorar. Levando isto em consideração, podemos perceber melhor a profunda diferença entre o exemplo da pintura de Van Gogh e o do templo grego, e o verdadeiro salto que o texto de Heidegger opera ao entrar neste último e decisivo exemplo. Por mais rica em conseqüências que tenha sido a recorrência à pintura de Van Gogh – o que inclui toda a crucial discussão sobre o ser do utensílio e o surgimento da “confiabilidade” – trata-se de uma obra que pode ser contada entre as obras da arte figurativa. Que ela possa ser assim circunscrita deve-se à sua pertença epocal, à pertença epocal do próprio artista Van Gogh. Trata-se de uma obra pertencente à era da estética. Ao retroceder ao templo grego, não apenas abandonamos o âmbito do figurativo, mas abandonamos o âmbito de uma existência individual criadora – como a de Van Gogh ou a de qualquer artista do Expressionismo alemão – e encontramos algo que se harmoniza com a tese de Heidegger de 145 que o surgimento da obra de arte envolve, originariamente, uma comunidade de artistas e guardiões, e não uma comunidade de gênios ativos – artistas – e gênios passivos – contempladores. O modo plenamente efetivo como o templo abre um mundo e elabora a terra, isto é, deixa “ampliar-se a amplitude do mundo” e deixa “a terra irromper como aquela que se encerra”, isso a pintura de Van Gogh não pode fazer (mas não é para haver nisso qualquer depreciação, pois justamente não é Van Gogh como “um Van Gogh” que é evocado por Heidegger). Um templo como o de Bassae dá a um povo historial a própria visão que ele tem sobre si mesmo. Ele é, segundo Heidegger, a abertura mesma na qual um povo se compreende. O que está em jogo para Heidegger é se a arte, hoje, “ainda é um modo essencial e necessário em que acontece a verdade para nosso ser-aí historial em decisão, ou, ao contrário, não o é mais? Se não o é mais, então permanece a pergunta: por que é assim?” (UW, p. 84). Por mais que hoje obras sejam verdadeiramente apreciadas no museu, o estado em que em alguém entra ao apreciá-las é um estado do qual se sai com a mesma facilidade e instantaneidade em que a idéia-registro de um “local determinado no mundo” muda ao ser transposta a soleira do museu – não é, por certo, um estado de perduração de uma plenitude de sentido sem a qual não poderíamos sequer ser, por ser nesse estado que nos movemos em nosso cotidiano. Ao dizer que a obra de arte institui história, Heidegger não quer dizer que ela é algo que, entre outras coisas, acontece na história e no mundo e assim pode ser observada “em slides que se permutam”. Quer dizer que, sem a obra, um determinado povo em um determinado instante historial não poderia ser. É nesse sentido que Babich termina seu artigo “From Van Gogh’s Museum to the Temple at Bassae: Heidegger’s Truth of Art and Schapiro’s Art History”, em que versa sobre o deslocamento do museu para o lugar da própria obra, que Heidegger persegue, com o estranhamento e reconhecimento da idéia fundamental em “A Origem da Obra de Arte” de que a obra abre o ser-aí para a pertença ao seu mundo, e que isso se dá no enraizamento à terra em que ela se erige: Em Arcádia eu visitei um templo, famoso na Antigüidade, celebrado por Pausanias por sua simetria, como me foi contado por amigos que falavam de suas visitas. Mas, como o mistério da tumba de Poussin, em Arcádia eu também achei que o que eu procurava não estava lá. Arcádia não é nada como se imagina. Nada à parte das montanhas. (BABICH 2003, p. 167). 146 A discussão de Heidegger em “A Origem da Obra de Arte” é muito menos uma discussão com a estética do que uma discussão com a história do pensamento ocidental em um amplo sentido (o que inclui a crítica à estética), e logo só pode ser compreendida no contexto de seu próprio itinerário desde Ser e Tempo. A introdução de Gadamer, como Heidegger menciona no prefácio, contém um aceno decisivo para o leitor de seus escritos tardios. Partindo deste aceno, retomamos a questão da verdade do ser tal como configurada em Ser e Tempo para compreender o instante decisivo que se opera em “A Origem da Obra de Arte” com o surgimento do conceito de terra e a abordagem da obra de arte. Vimos que essa mudança repercute em retrospecto sobre Ser e Tempo, re-significando o conceito de mundo e, juntamente com este, conceitos caros a Heidegger como o do utensílio. “A Origem da Obra de Arte”, ao modificar o conceito de mundo, pensando-o agora em uma relação ontológica poética com a terra, abre caminho para um novo acesso hermenêutico às coisas e ao mundo; esse acesso se funda, por sua vez, na clareira aberta que nada seria sem a relação poética do ser-aí ao ser, uma vez que nem mesmo a natureza poderia ser enquanto natureza sem o poder de reunião da verdade que se essencializa na obra de arte, a qual vem a ser na “comunidade historial dos criadores e guardiões”. Com isso, por certo, ainda experimentamos uma estranheza no tocante à proveniência da verdade: se por um lado de fato se mostra que o “mundo do ser-aí autocompreensor” não dá conta dessa proveniência, a natureza,