115 pág.

Pré-visualização | Página 16 de 32
um integrante de um rebanho e vai seguindo um caminho que ele não traça, que não escolhe, um caminho que ele não sabe qual é, que ele segue apenas dentro de um mecanismos de massa, diríamos nós hoje. Ele diz, não, é preciso, a palavra é de origem grega, é preciso ser de alguma maneira autêntico, voltar a si mesmo, ser autêntico, voltar à sua própria natureza, à sua própria naturalidade, talvez a gente devesse dizer. Jogo e Memória E mais ainda, o homem é capaz de um outro recurso extraordinário porque ele é desviante, porque ele só é livre na medida em que ele desvia, ele pode através do seu equipamento interior, das suas imagens interiores, ele que está tentando sobreviver na construção do seu trabalho interior apenas por recursos próprios, ele tem que fazer uma seleção dentro do seu imaginário pessoal, do seu acervo de lembranças, ele tem que fazer um jogo de imagens. Se a sensação imediata é terrível, como Epicuro sofrendo com cálculos na bexiga, ele pode naquele momento em que a dor é aguda, a dor física é aguda, ele pode substituir, numa técnica que ele é o primeiro a ensinar, substituir essa sensação imediata e dolorosa por uma lembrança prazerosa de alguma sensação passada positiva, ou seja, se nós conseguirmos, é a proposta dele, fazer com que nós fossemos nós mesmos os manipuladores, os diretores do nosso próprio imaginário, se nós 56 conseguíssemos montar o nosso filme interior como sendo um filme, não só da nossa autoria, mas da nossa direção, se nós pudéssemos selecionar as nossas imagens nós poderíamos o tempo todo buscar em nós as imagens positivas e contrabalançar com as imagens positivas as sensações imediatas, escravizantes e dolorosas. A nossa realidade não se mede e não se constrói apenas a cada instante com aquilo que o mundo é a cada instante. A cada instante do mundo corresponde em nós uma multiplicidade, uma infinidade de instantes presentes, passados e futuros, ou seja, a temporalidade que é típica da consciência, a temporalidade dá uma elasticidade interior ao homem e é usando isso adequadamente que o homem consegue livrar-se da adversidade imediata que parece ser um fatalismo e recolher-se à riqueza maior do seu arsenal de imagens e aí, como ele é senhor de si mesmo, ou deve ser senhor de si mesmo, aí onde não existe nenhum Alexandre, aí onde não existe nenhum tirano, onde só ele pode ser o senhor ou o escravo, se ele mesmo se escravizar, é aí que ele vai poder ter a autonomia de viver o instante que ele quer viver, a forma de viver cada instante depende não apenas do instante, digamos assim que lhe é imposto de fora, mas dependendo de como ele usa essas lembranças, esse acervo, esse tesouro de imagens para ver se ele dá uma adesão restrita àquilo que vem de fora, e se for negativa ele está escravizado a dor, ou se ele diante de uma coisa negativa que vem de fora, ele porque tem uma flexibilidade temporal maior de consciência com memória, mas também com esperança, com passado, mas também com expectativa no futuro, ele vai podendo então contrapor-se, ele não é apenas um reflexo das circunstancias. Não há adversidade externa que decida do nosso projeto ético pessoal. Em qualquer circunstância política, social e econômica, não importa, a dimensão pessoal de felicidade, a dimensão pessoal do prazer, a dimensão pessoal da busca do bem, a dimensão pessoal da busca da serenidade, é uma tarefa exclusivamente subjetiva, intransferível e que só pode ser feita por cada um, só que no apoio dos que se aproximam do mesmo ideal e dos que se propõem, juntos no jardim, buscar esse tipo de vida, criar esse tipo de existência. Tetraphármakon 57 Nós podemos perceber bem o significado da ética em Epicuro a partir de um fato que ocorreu no século passado. Certos arqueólogos decobriram no território da Turquia, em Enoanda, os restos, as ruínas de uma muralha onde há uma inscrição. Essa inscrição é curiosa, é estranha porque na verdade são frases de teor filosófico, na verdade, são trechos de um texto de Epicuro, que o epicurista de Enoanda, Diógenes, teria escrito, teria gravado na muralha justamente para que essa mensagem epicurista pudesse estar ao alcance de qualquer um. Qualquer um que passasse por ali, indiscriminadamente, seja homem, mulher, criança, de qualquer nacionalidade pudesse ler aquilo que era uma espécie de resumo da suprema sabedoria humana. Quatro frases podem resumir essa sabedoria e estão nas inscrições de Enoanda. A primeira: não há nada a temer quanto aos deuses. A segunda: não há necessidade de temer a morte. A terceira: a felicidade é possível. A quarta: podemos escapar à dor. Na verdade isso é um resumo, como se fosse uma medicação, como se fosse uma receita, da ética de Epicuro. O modelo da questão da saúde que é uma das imagens mais recorrentes do vocabulário ético aparece aí com toda a clareza. O que Diógenes de Enoanda esta procurando transmitir a qualquer pessoa que passasse nas muralhas da sua cidade é uma espécie de receita, uma espécie de indicação médica de um grande médico da alma que foi seu mestre Epicuro. Esse remédio é um tetraphámakon e é bom lembrar que a palavra, a linguagem é dita pelos gregos sempre como um phármakon, como uma substância que tanto pode ser uma substância que cura, quanto uma substância que envenena, dependendo da dose, dependendo da forma com que ela é transmitida. Aí a receita médica desse médico de almas que é Epicuro, chega através de uma cadeia afetiva de amizade e tende a ser entregue a qualquer um que passe, mostrando exatamente toda a dimensão dessa mensagem ética. A felicidade não é alguma coisa natural, espontânea, a felicidade é uma conquista, é um direito de todo e qualquer um. Ninguém nasceu impedido de ser feliz, ao contrário, todos podem e devem buscar o bem, o prazer, a serenidade e a felicidade e não importando que seja homem, mulher, criança, adulto, estrangeiro, grego, turco, brasileiro, não importa, ele é sempre alguém que nasceu para a felicidade, só que essa felicidade jamais lhe será outorgada ou transmitida, ou doada por uma divindade, por um ser superior. Ela é o resultado de uma labuta, de uma luta, incessante luta 58 de auto domínio e de auto liberação, de criação do espaço da sua autonomia e de busca permanente do seu prazer, do seu prazer sábio, sereno. Onde é território humano, é só humano e ali só depende de nós a conquista do bem, da alegria, do prazer e da felicidade. A Culpa dos Reis Antônio Cândido Eu creio que em uma série sobre a Ética é interessante nós termos alguns exemplos das ações históricas concretas. E talvez também de grandes obras literárias que descrevem num sentido simbólico essas ações históricas. Ricardo II Eu acho que caberia muito no caso uma peça como Ricardo II, de Shakespeare. Porque temos nessa peça um rei que manda e é obedecido e um rei que e depois é assassinado. Nós temos, portanto, problemas éticos muito graves que são problemas de fidelidade, de obediência, de legitimidade, de amizade, de transgressão, tudo isso entra no Ricardo II. O importante aí, mais do que o enredo, o importante são os princípios que estão em jogo. Inicialmente, o princípio que chama mais a nossa atenção é o princípio da legitimidade. Porque é a legitimidade que vai assegurar um sistema de relacionamento na sociedade. O que é bem, o que é mal, o que é certo e o que é errado se organiza em torno da legitimidade, porque se organiza em torno da obediência, ou da desobediência ao rei. É uma peça em que nós temos o conflito da obediência com a desobediência, em outras palavras, o mando com a transgressão. Isso vai assumir nessa peça, Shakespeare