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27 O ouvinte no chiste Dorita de Almeida Julio Mafra∗ A fortuna de um gracejo reside no ouvido de quem o escuta, nunca na língua de quem o faz… William Shakespeare (Love’s Labour’s, Lost, V, 2) Resumo: A partir da leitura de ‘O chiste como processo social’ no ensaio de Freud sobre os chistes, e das sete primeiras aulas (‘As estruturas freudianas do espírito’) do seminário de Lacan sobre as formações do inconsciente, os autores destacam alguns pontos comuns na teoria dos chistes desenvolvida por Freud e Lacan, e alguns pontos enfatizados por cada um dos autores. Palavras-chave: Chiste. Tirada espirituosa. Humor. Cômico. Ouvinte. Outro. Transmissão. Prazer. Agressividade. Passo de sentido. Tanto para Freud como para Lacan o chiste apresenta uma estrutura ternária – há sempre três pessoas em jogo: o chiste é elaborado por uma primeira pessoa, referido a uma segunda pessoa (ausente) através de uma terceira pessoa, seu ouvinte. Ambos enfatizam, igualmente, a necessidade da transmissão do chiste e, ainda, ambos reconhecem que há o que Freud denomina um acordo quanto às inibições internas entre aquele que realiza o chiste e seu ouvinte, e que Lacan chamará de uma comunhão entre o pouco-sentido – em que trata-se de não compreender depressa demais porque, compreendendo depressa demais, não se compreende coisa alguma – e o passo-de- sentido para os dois sujeitos. Freud considera o objetivo de satisfação de uma tendência agressiva ao derivar prazer dos processos psíquicos motivo suficiente para forçar a elaboração do chiste, sem no entanto deixar de excluir a possibilidade de que a produção dos chistes também partilhe outros motivos, os seus determinantes subjetivos, ou seja, os componentes individuais da constituição sexual de uma pessoa. Foi levado a estas considerações por dois fatos: o de que nem todas as pessoas são capazes de utilizar tal método e o de que ninguém se contenta em fazer um chiste apenas para si, é um impulso de contá-lo a alguém que está inextricavelmente ligado à sua elaboração, impulso tão forte que freqüentemente se processa a despeito de sérias apreensões. A base da necessidade de comunicar o chiste a mais alguém estaria, para Freud, de algum modo conectada à gargalhada que produz no ouvinte, gargalhada esta que é negada à primeira pessoa – a despeito do inequívoco prazer que o chiste lhe dá. Os ‘trajetos tortuosos’ para a elaboração do chiste consistem em um estágio inicial, o de jogo com as palavras e pensamentos, que prescinde de uma pessoa como objeto. Já no estágio preliminar de gracejo, caso se consiga salvar o jogo e o nonsense dos protestos da razão, isso requer uma outra pessoa a quem se possa comunicar o resultado, pessoa que transmite a avaliação da tarefa de elaboração do chiste – como se ∗ Psicanalistas, membros da Escola Letra Freudiana 28 o eu não se sentisse, nesse ponto, seguro de seu julgamento. Freud pergunta que parte no chiste é desempenhada por esta outra pessoa, o ouvinte. Freud destaca a função de prazer realizada no chiste, assim como o modo (a gargalhada) pelo qual o chiste é autenticado pelo terceiro (o ouvinte), gargalhada que, ao retornar ao primeiro (agora, por sua vez, ouvinte), é reconhecida por este como um alívio que vem tomar o lugar da economia catéxica. Freud conclui que somos compelidos a contar nosso chiste para mais alguém porque somos incapazes de rir dele nós mesmos – rimos como se fora por ricochete, por contágio: quando fazemos alguma pessoa rir, contando-lhe um chiste, estamos de fato utilizando-a para suscitar nosso próprio riso, através do qual reconheceremos que se trata com efeito de um chiste. Para Freud, a capacidade de deslocamento da energia psíquica ao longo de certos trajetos associativos, a quase indestrutível persistência de vestígios dos processos psíquicos, sugerem uma tentativa de figurar de uma outra forma o desconhecido, encontrando-se, portanto, no riso – não todo o riso, mas certamente no riso originário do chiste – as condições sob as quais uma soma de energia psíquica, usada até então para a catexia, encontra livre descarga. Outro fato observado por Freud é o de que os chistes só produzem efeito integral no ouvinte se lhes chegam como uma surpresa, característica que deve-se ao fato de que a própria natureza do ato de surpreender alguém ou pegá-lo desprevenido implica que não se possa ter êxito uma segunda vez. Freud aponta este fato como o motivo que levaria ao impulso de contar a alguém mais, que ainda não o conheça, um chiste já ouvido, retrocedendo a atenção, na repetição, à primeira ocasião em que foi escutado e recobrando-se desse modo algo da possibilidade de prazer, perdida devido a sua falta de novidade. O essencial para Lacan gira em torno da função do significante no inconsciente, das relações do inconsciente com o significante e suas técnicas, isto é, de analogias estruturais que só são concebíveis no plano lingüístico e que se manifestam entre o aspecto técnico ou verbal da tirada espirituosa e os mecanismos próprios do inconsciente (condensação/metáfora e deslocamento/metonímia). O inconsciente, por ser estruturado como uma linguagem – cuja dimensão essencial é de equivocação e desconhecimento – nos coloca diante do fenômeno de que o exemplo particular é o que nos permite apreender as propriedades mais significativas. Lacan vai tomar o exemplo articulado por Freud do ‘familionário’ para relacioná-lo à fórmula da metáfora, num caso particular da função de substituição. É nesta relação, afirma Lacan, que reside o recurso criador, a força criadora, a força de engendramento da metáfora, que vêm sempre contribuir para aprimorar, complicar, aprofundar, dar sentido de profundidade àquilo que, no real, não passa de pura opacidade. Lacan aborda a tirada espirituosa como uma formação do inconsciente em suas vertentes metafórica e metonímica em que o Outro autentica o que está para além da própria linguagem, o passo-de-sentido. A tirada espirituosa indica a própria dimensão da necessidade do passo como tal, da ausência total de objeto, e tende a recriar um sentido pleno nunca atingido e que está sempre alhures. É na passagem para essa função outra (de designar uma espécie de para-além) que reside a tirada espirituosa, que não é conhecida se não há o Outro ouvinte – não apenas o ouvinte atento, mas o ouvinte que escuta, no verdadeiro sentido da palavra. Lacan menciona as duas vertentes da criação metafórica: a vertente do sentido, aquela que beira a criação poética e que implica um dejeto, algo que é recalcado; e uma espécie de avesso, a coisa metonímica que compõe seu valor literário, que é o que nos permite encontrar a cadeia no fenômeno do discurso, cadeia essa que nos permite seguir 29 a pista do fenômeno inconsciente pois, toda vez que lidamos com uma formação do inconsciente, devemos procurar os ‘destroços’ do objeto metonímico. Freud fala em fachada dos chistes e Lacan acrescenta que a fachada desvia a atenção do Outro do caminho por onde passará a tirada espirituosa e fixa a inibição em algum lugar, a fim de deixar livre, num outro ponto, o caminho por onde passará a fala espirituosa para fazer surgir algo inesperado – no qual se destaca esse fenômeno essencial que é o nó, o ponto onde aparece um significante novo e paradoxal. Para Lacan, a agudeza da tirada espirituosa reside em sua relação com uma dimensão radical que se prende à verdade – é a dimensão de álibi da verdade que a tirada espirituosa designa sempre de lado e que só é vista quando se olha para outro lugar e que permite que, ao olhar para a tirada espirituosa, vejamos o que não está ali, o inconsciente, que só se esclarece e se entrega quando o olhamos meio de lado: isso não é dito, é melhordo que dito. Lacan nota que há, em Freud, a referência expressa ao Outro como terceiro, Outro terceiro que, suportado ou não por um sujeito real, é essencial para inscrever no código a tirada espirituosa e sancionar o vazio, o tropeço, a falha da mensagem, pois é esta sanção do Outro que diferenciará a tirada espirituosa do sintoma. Lacan refere-se ao Outro na tirada espirituosa como podendo se situar em lugares diferentes (ora é o segundo da história contada, ora é quem reconta a mesma história), como uma função que existe na medida em que há fala e que, portanto, circula entre aquele que transmite a tirada espirituosa e seu ouvinte. Em nosso cartel, num primeiro momento, ao lermos o ensaio freudiano sobre os chistes e, correlacionando-o com os registros RSI propostos por Lacan, consideramos: o cômico como da ordem do imaginário (por ocorrer entre duas pessoas: aquela que ri do outro que cai, de algo que cai no campo do Outro); e o humor como simbólico (por poder realizar-se no interior de um único sujeito e por ser o mais elevado mecanismo de defesa do eu, o humor seria uma posição do sujeito quanto a seu sintoma em final de análise, ou seja, uma construção em análise). Quanto à tirada espirituosa, na medida em que apresenta uma estrutura ternária, consideramos que em sua elaboração mesma há referência aos três registros: há uma suspensão do imaginário (da inibição) que produz uma referência ao simbólico (ao código), cuja transgressão faz irromper algo até então impossível de ser dito e ouvido, algo que faz borda com o real. Tentamos articular, ainda, a função do +1 no cartel – que circula entre os cartelizantes através da transferência de trabalho desde sua criação até sua dissolução e transmissão nos espaços da escola – com a função do Outro na tirada espirituosa, que circula desde seu trabalho de elaboração até a necessidade de sua transmissão. BIBLIOGRAFIA: FREUD, S. “Os chistes e sua relação com o inconsciente” in Obras Completas, vol. VIII, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1996. _______ "O Humor" in Obras Completas, vol.XXI, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1996. LACAN, J. O seminário, Livro 5, As formações do inconsciente, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1999.
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