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7 A relação saúde-doença Kênia Kemp Para o médico, o estudo da doença exige o estudo da identidade, os mundos interiores que os pacientes criam sob o impulso da doença. Mas a realidade dos pacientes, as formas como eles e seus cérebros constróem seus próprios mundos, não pode ser totalmente compreendida pela observação do comportamento, do exterior. Além da abordagem objetiva do cientista, do naturalismo, também devemos empregar o ponto de vista intersubjetivo, mergulhando, como escreve Foucault, "no interior da consciência mórbida, [tentando] ver o mundo patológico com os olhos do próprio paciente" Sacks1 D e que maneira a antropologia pode auxiliar nacompreensão do tratamento da saúde das pes- soas? Não se trata aqui de conhecer doenças ou de avaliar a eficácia desta ou daquela conduta terapêutica. A antro- pologia se situa naquele terreno onde é possível interpre- tar e compreender o jogo social em que as diferentes con- cepções de corpo, saúde e doença interferem nas relações dos pacientes com as condutas propostas. Interferem na 1. SACKS, O. Um antropólogo em Marte - Sete histórias paradoxais, p. 18. 116 Kênia Kemp medida em que não é possível isolar a doença do doente, a terapêutica do médico e o espaço dos hospitais das sig- nificações sociais que ele carrega. Nem médicos nem pacientes se relacionam de forma neutra com o adoecimen- to. A relação saúde-doença faz parte de um universo so- cial permeado de símbolos, expectativas e referências que se entrecruzam e interagem com o universo da ciência e dos medicamentos. Cada cultura constrói uma explicação própria para a origem, causas e tratamento de determinadas doenças. Essas explicações formam o conjunto de representações, saberes e práticas de um grupo social. A cada representa- ção de doença corresponde um determinado saber e uma terapêutica que façam sentido quando tomadas em conjunto. É o que denominamos de "sistema médico". Há grupos para os quais doenças são resultado da ação de es- píritos através de feitiçarias e cuja terapêutica consiste em expulsar o inimigo do corpo do doente; para outros, a doença possui existência independente do doente e sua te- rapêutica consiste em ingerir substâncias. Para cada re- presentação há pessoas, ora curandeiros, ora médicos, legitimadas para exercer o combate. O ponto de partida é nossa compreensão da doença. Um discurso que se tornou oficial é o da ciência médica. A medicina ocupa tanto espaço simbólico que parece natural que nosso organismo adoeça devido ao ataque exógeno de agentes patológicos ou à disfunção endógena de alguns órgãos. Essa definição tornou-se socialmente apropriada com a divulgação dos saberes produzidos pelas ciências médicas a partir do século XVIII e especialmente XIX. As novas práticas terapêuticas das ciências da saúde - a principal era a medicina, mas a psicologia surgiu nesse período - institucionalizaram-se através dos hospitais, clínicas, manicômios e consultórios. Médicos, psicólogos, odontólogos e enfermeiros tornaram-se os únicos pro- fissionais reconhecidos pelo discurso oficial para intervir no corpo do indivíduo doente. A esse conjunto deno- minamos de "medicina oficial". A relação saúde-doença 117 Esse cenário tem uma história engendrada a partir das demandas do desenvolvimento da sociedade capitalista e da ascensão da burguesia. O "desencantamento do mundo" acabou interferindo em nossa noção de doença e de corpo doente e também nas práticas de tratamento. Essa trajetória fundamentou-se na divisão entre corpo e espírito. A partir dessa cisão damos sentido a outras im- portantes representações de saúde-doença: são elas as religiões e as crenças. A ideia contemporânea de doença foi elaborada a partir dos desenvolvimentos da ciência no século XIX, com a descoberta dos raios-X, o aperfeiçoamento de lentes para microscópio e as incursões no mundo "micro" (a bacte- riologia, os microorganismos). Antes dessas descobertas, o ser humano dependia dos sentidos para explicar estados patológicos. Já os gregos na Antiguidade Clássica con- cebiam uma dimensão não-visível - as noções arcaicas de células, átomos e moléculas - a partir da qual explicavam vários fenómenos naturais. Entretanto, o saber produzido por Hipócrates foi relegado durante a religiosa Idade Mé- dia. A partir do Renascimento, o conhecimento produzido pela civilização grega foi resgatado, possibilitando um imenso impulso no conhecimento científico sobre as doenças.2 A partir da ascensão da burguesia comercial e industrial, esse impulso esteve comprometido com os interesses de dominação de classe. Uma de suas estratégias para obter a hegemonia consistiu em substituir as explicações religiosas por explicações profanas.3 Naquele momento, havia uma disputa de legitimidade entre dois sistemas médicos - um que girava em torno da 2. Uma leitura recomendada para conhecer a história da medicina, trata-se de um livro escrito de forma muito divertida, GORDON, R. A assustadora história da medicina. 3. Para compreender essa história da clínica entre nós, e do percurso da oficialização das ciências médicas como única representante legítima em nossa relação saúde-doença, conferir as obras de Foucault indicadas na bibliografia. 118 Kênia Kemp figura dos padres e orações e o outro composto por benzedeiras, ervateiros e bruxas. A Inquisição teve o papel de interferir nessa disputa. Após isso a disputa passa_a_ ser entre Igreja e ciência. Até então, não se concebia a doença como entidade separada do doente. As alterações na saúde de um indivíduo recebiam explicações de ordem sobrenatural não havendo uma popularização da ideia científica de doença. É dentro dessa história de disputa en- tre as concepções religiosa e científica que podemos compreender o quadro social das terapêuticas médicas e misticismos aos quais os sujeitos recorrem atualmente. Cada cultura constrói uma representação da relação saúde-doença criando um sistema médico coerente com ela. Existem sistemas envolvendo patologias e médicos ao lado de outros representados por energias e práticos, ou ainda espíritos e curandeiros. Todos são sistemas médicos, desde que suas práticas sejam direcionadas para a cura. Faremos um exercício de interpretação de sistemas médicos diferentes do "oficial". Um exemplo sempre lembrado é a medicina oriental. Os saberes orientais têm atraído o olhar antropológico. As ideias taoístas, bastante divulgadas, supõem uma característica holística do universo em que todas as dimensões de existência são intrinsecamente relacionadas e sofrem interferências mútuas. Tanto forças não-visíveis que animam o mundo como relações sociais estão inseridas numa única lógica de funcionamento regidas pela disputa das forças positivas - associadas ao masculino - e ne- gativas - o feminino. A conhecida figura de yin-yang sin- tetiza a ideia de mundo dos taoístas. Para eles, não existe divisão corpo/ espírito, dentro de uma visão holista de universo bem distante do pensamento ocidental. Neste, a realidade se compõe de territórios separados. O predomínio das explicações fundamentadas nas relações de causa- efeito que discriminam diferentes ordens de eventos, faz com que dificilmente tenhamos possibilidade de estabelecer relações entre coisas que concebemos como sendo de naturezas distintas. A relação saúde-doença 119 Assim, a legitimidade das medicinas orientais no Oci- dente é objeto de disputa com nossas crenças religiosas mas sobretudo com os saberes médicos oficiais. Qualquer medicina que fuja aos preceitos institucionalizados da ciên- cia ocidental é denominada "paralela". Essa denominação reforça a centralidade de uma medicina que se diz oficial.4 Nas sociedades tradicionais africanas, australianas ou americanas o pensamento místico-religioso ocupa um lugar central nas explicações de mundo. Elas interferem na definição de doença e de suas terapêuticas.A pessoa adoece devido a um ataque espiritual: ação de magias e enfeitiçamentos - por motivo de vingança, inveja ou pu- nição - ou então dos próprios espíritos. O xamã5 centraliza a cura e aconselhamento. Normalmente, ele prepara um ritual de cura, diferente em cada cultura. Em alguns, o xamã suga o corpo do doente enquanto profere ou canta palavras mágicas, acompanhadas de instrumentos sagrados. Evocam-se poderes do xamã para retirar o espírito maligno expulso juntamente com a doença. Ele pode expelir saliva, que se acredita impregnada do mal. Ou ainda, ao final do ato, o xamã exibe um pequeno objeto de penas ou pedras que materializa a doença, sendo a 4. LAPLANTINE, F.; RABEYRON, P.L. Medicinas paralelas. 5. Segundo o Dicionário de Ciências Sociais, Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1986, o termo "xamã" vem designar "um especialista em curar, adivinhar e outras funções sociais afins, presumivelmente por meio de técnicas de possessão e controle de espíritos." (p. 1305). A palavra "xamã" tem origem russa, derivando do termo siberiano saman, compreendido como sendo da etnia tungu. Os antropólogos empregam o termo na etnografia moderna, referindo-se a xamã e xamanismo "de modo a cobrir uma área de fenómenos análogos em muitas partes do mundo, especialmente entre os esquimós e os povos indígenas americanos (...) com referência a qualquer especialista relacionado com a manutenção ou restauração do equilíbrio de indivíduos ou de uma sociedade por meios rituais." (ibidem) 120 Kênia Kemp prova do sucesso da cura. Outras técnicas rituais foram documentadas. Lévi-Strauss em O feiticeiro e sua magia afirma que a base dessas técnicas está na "eficácia simbólica"6. Esse conceito explicita a abordagem antropológica. Não se trata de debater se os rituais têm realmente algum poder curativo, ou se o mundo dos espíritos de fato existe. Ocorre que os rituais são mesmo poderosos, pois os sujeitos trazem para sua experiência com a doença essas referências simbólicas e elas interferem no tratamento. O que faz então com que os rituais "funcionem"? Lévi-Strauss afirma que, para se obter eficácia simbólica, é necessário que as interpretações simbólicas tenham um sentido comum. Do contrário, o jogo não prossegue e cada sujeito permanece com a sua verdade: o doente é reforçado quanto à ineficácia da terapêutica e o feiticeiro ou_ médico insiste na impossibilidade da cura porque "o doente não colabora". Assim, diz Lévi-Strauss, é necessária a confluência de crenças: do feiticeiro em sua técnica; do doente no feiticeiro; da comunidade no ritual. Quanto à necessidade da crença da comunidade, é bom lembrar que só recomendamos coisas cujos resultados constatamos. Se as pessoas não recorrem a técnicas socialmente legitimadas, apesar do indivíduo se sentir curado, o grupo pode não o reconhece como tal. Nossa cultura é permeada pela coexistência de qua- dros diferentes de representação da doença. Ao mesmo tempo que procuramos o saber médico, também buscamos rituais que fazem as pessoas se sentirem melhor. Então, como os rituais curam? Os espíritos ou o grupo social podem realmente adoecer uma pessoa? Bruxaria "pega"? Esses misticismos, desacreditados pela ciência positivista, fazem parte da vivência de muitas pessoas. A experiência deixa espaço para um imaginário de crenças que cor- 6. LÉVI-STRAUSS, C. "A eficácia simbólica" e "O feiticeiro e sua magia". In: Antropologia estrutural. A relação saúde-doença 121 responde a uma dimensão do adoecimento. O recurso místico permeia toda nossa sociedade, mas apesar disso, distinguimos claramente a cura do corpo da cura espiritual. É frequente esse tipo de relato: Sofro de depressão. Estou em tratamento há algum tempo, fazendo terapia, tomando medicamentos para dormir e ansiolítico. Mas não vou conseguir me curar enquanto não desfizer um "trabalho" que fizeram para mim. Foi há muito tempo e desde aquela época adoeci. Então, além de um médico, frequento um centro espírita. (L, 46 anos, universitária, Campinas, SP) Nessa fala convivem concepções correntes e con- flitantes de saúde-doença. Ao mesmo tempo que há receio de abandonar as terapêuticas da medicina oficial, persiste a necessidade de um tratamento que dê respostas para além do nível biológico do nosso corpo. Em nossa men- talidade dominada pela ideologia científica, um campo de representação simbólica da doença permanece fora de lugar. A depoente acima, ao entrar em um consultório médico, provavelmente expressará sua queixa numa forma adequada à linguagem e concepções médicas. Descreverá a alternância de estados de ansiedade com tristeza ou depressão, a dificuldade em dormir, as consequências disso sobre seu apetite etc. Se esforçará por aprofundar a descrição daquilo que sente. Ao procurar um centro es- pírita7, ela traçará um quadro voltado para as ocorrências de sua vida espiritual que será resgatada na composição de seu estado geral. Trata-se de uma adequação conceituai aojontexto. Em ambos, existe uma referência anterior, re- sultado de um aprendizado das explicações para o 7. No caso do depoimento citado, o centro espírita segue orientação umbandista, onde existem "guias" espirituais que incorporam entidades como "cablocos", "caciques" e "pretos-velhos" que fazem a intermediação das necessidades e sofrimentos dos fre- quentadores com o "nível astral", na busca de curas e acon- selhamentos. 122 Kênia Kemp adoecimento. A lógica presente na formulação da queixa é culturalmente construída. Há relatos colhidos em con- sultórios quanto à dor que "caminha pelo corpo", "parece que tem um bicho que come dentro", "é tão triste que parece que mói os ossos", "está criando raiz". Há dores que aparecem em forma de facadas, socos, agulhadas.8 Esses exemplos ajudam a pensar a construção cultural da queixa e a interpretação habitual dos profissionais de saúde. O ser humano necessita de uma resposta para um estado que aflige e traz dor. Sempre que sofremos - por motivo físico ou psíquico - e durante algum tempo, não perguntamos por uma solução e sim pela origem do problema: "Por que eu? De onde surgiu isso em mini?". A resposta científica pode ser suficiente para algumas pessoas, mas não para todas. São necessárias respostas que alcancem toda a dimensão do sofrimento, pois sua materialidade é apenas uma parte. Nessa lacuna, entra a possível eficácia de respostas de ordem mística. Em nossa sociedade as terapêuticas alternativas muitas vezes se completam com tratamentos da medicina oficial. A antropologia médica tem produzido estudos que buscam compreender os usos sociais das terapêuticas, A ideia básica não é comprovar a eficácia real dos cultos religiosos no tratamento de pessoas doentes e sim compreender a manipulação dos símbolos rituais que podem auxiliar na ordenação de vivências sociais e pessoais em circunstâncias de adoecimento. Ao se voltar para um estudo do ritual, vários antropólogos têm enfatizado seu papel transformativo: manipulando símbolos em um contexto extracotidiano, carregado de emoção, o ritual induz seus participantes a perceberem de forma nova o universo circundante e sua posição particular nesse universo... De fundamental importância nessa perspectiva de análise do ritual é identificar e compreender os processo específicos através dos 8. FERREIRA, J. "O corpo sígnico". In: ALVES, P. e MINAYO, M.C. (orgs.). Saúde e doença. A relação saúde-doença 123 quais o ritual produz uma transformação da experiência de seus participantes.9 A preocupação da antropologia direciona-se para o potencial de transformação da experiência de doença. A manipulação daquilo que não podemos ver, mas que nos proporciona sofrimento, torna-se possível através de me- táforas rituais que "estendem a experiência informe do sujeito a domínios mais concretos e reconhecíveis"10. Tur- ner fala de reordenação de símbolos ordinários dentro da lógica simbólicada magia: ao deslocar as significações co- tidianamente atribuídas a uma nova organização ela fun- damenta novas atitudes. Mais ainda, corporificar a ação invisível do mundo espiritual significa uma possibilidade de manipular uma solução. "Isto não está muito longe da prática do moderno psicanalista. Quando algo é apreen- dido pelo espírito, quando se torna um objeto capaz de ser pensado, pode ser enfrentado e dominado"11. É portanto uma forma cognitiva. Para outro autor, Geertz, o ritual seria uma espécie de "educação sentimental"12. A partici- pação e assistência implica no aprendizado de condutas e respostas emocionais. Essa educação orienta estados de contenção, euforia e emoção. Educando os sentidos, pode- mos desenvolver uma nova atitude ante a doença. Essa lógica ritual parte de uma performance. No espaço ritual, os participantes ocupam novos lugares so- ciais. Esse deslocamento já possibilita um reordenamento do mundo. E executada uma série de procedimentos que metaforicamente reproduzem o universo, localizando o bem e o mal, a saúde e a doença, o centro e seus arredo- res. Com estímulos audiovisuais e olfativos - a ambienta- ção, cores e texturas, música e danças -, o ritual muda a 9. RABELO, M.C.M. "Religião, ritual e cura". In: ALVES, P.C., MINAYO, M.C. de S. (orgs.). Op. cit., p. 48. 10. RABELO, M.C.M. Op. cit., p. 48. H.TURNER, V. O processo ritual, p. 42. 12. GERTZ, C. A interpretação das culturas, p. 317. 124 Kênia Kemp percepção de seus participantes e faz com que sua lógica se desloque do quotidiano. A palavra dita, as sensações, e também a doença, já não são mais as corriqueiras. A cura ritual então se apresenta como "mudança na perspectiva subjetiva pela qual o paciente e comunidade percebem o contexto da aflição"13. Além disso, permite uma demons- tração coletiva de preocupação e dedicação com o doente. Mesmo que simbólica, a expressão de interesse do grupo pelo bem-estar e a reunião de "coisas 'boas'"14 em favor do indivíduo não devem ser desprezadas como fatores de cura. Quando um ritual de cura "falha" e o paciente não obtém melhora significativa, não resulta necessariamente descrença nas técnicas. Lévi-Strauss lembra quê tendemos a reforçar socialmente muito mais os sucessos que os insucessos de qualquer tratamento. Sobre esse fenómeno, Allan Young afirma que "as pessoas raramente vêm uma falha em curar como desafiando suas crenças sobre seus sistemas médicos ou as ideias cosmológicas às quais eles se relacionam". Isto porque "no pensamento quotidiano, o que o paradigma ocidental chama de falhas empíricas são interpretadas em um contexto prático e particularista mais do que como um teste de um determinado sistema médico"15. A lógica ocidental induz a atribuir uma "falha neste caso" e "sucesso a todo o sistema de cura". Uma sociedade mantém determinado sistema médico porque suas práticas são efetivas; onde há só insucessos, o sistema não persiste. Um grupo pode adoecer um indivíduo? Nas sociedades em que a doença é explicada por feitiçarias ou ataque de espíritos, a vítima de uma magia ou bruxaria é ime- diatamente isolada do grupo, pois é considerada portador do mal. Enquanto ela não recorrer a um ritual que expulse esse hospedeiro indesejado, continuará sendo evitada pois 13. RABELO, M.C.M. Op. cit., p. 49. 14. TURNER, V. Op. cit., p.60. 15. YOUNG, A. "Medicai beliefs and practices", pp. 5-24. A relação saúde-doença 125 tem contato com algo cujo poder não se pode determinar. As consequências do isolamento social são sempre as mesmas mas devido a razões diversas. Nas sociedades tradicionais, o motivo está no mundo dos espíritos; na sociedade "moderna" recai sobre questões médicas e sobre condutas pessoais - o sujeito adotou um comportamento socialmente indesejável. Isolada do grupo, rejeitada como portador de algum mal, a pessoa adoece. Lévi-Strauss descreve modificações orgânicas que fazem parte do imenso terreno das doenças psicos- somáticas já popularmente conceituadas, apesar de a fundamentação científica não corresponder exatamente ao uso social. Sem poder adaptar-se a uma situação nova, derivada da exclusão do grupo, o indivíduo sofre alterações no ritmo cardíaco e na pressão sanguínea, perde apetite, apresenta desidratação e lesões de órgãos. A bruxaria social afeta a saúde do indivíduo. Sentindo-se adoecido, mas sem evidência disso, ele provoca em si uma prova da doença - sangramentos, suores e taquicardias, muitas vezes tratadas com insucesso pela medicina oficial. O espaço ritual se espelha com o espaço insti- tucionalizado de consultórios, clínicas e hospitais. O hospital é um espaço social onde o doente perde quase completamente sua importância frente à doença. O corpo do doente é tratado como um espaço de investigação: passa pela destituição de significados, destruição da identidade. A única identidade explorada é a do órgão doente. Num ritual mágico, o corpo do doente é fundamental. Ele é acrescido de significados e inserido numa lógica em que sua identidade contribui para a eficácia do tratamento. É importante evitar maniqueísmos sobre cada um desses espaços de cura. O consultório também é um espaço ritual. A performance que aí ocorre segue normas ri- gorosas16 quanto à disposição do espaço físico, mobiliário, 16. Sobre a conduta das consultas médicas e a relação do imaginário das diferentes classes sociais nesse contexto, ver BOLTANSKI, L. As classes sociais e o corpo. 126 Kênia Kemp A relação saúde-doença 127 relação médico-paciente e a total disponibilidade do doente e seu corpo. Frente à autoridade médica, perde-se a pro- priedade e os pudores corriqueiros sobre o corpo. Apal- pação; invasão de especules, sondas ou das mãos e dedos do médico; narração de episódios íntimos (emissão de sangue, fezes e catarro): tudo isso segue uma lógica ritualizada de condutas extra-cotidianas praticadas por um número reduzido de pessoas que passou por um treinamento legitimador. Além dos rituais mágicos, muitos curandeiros prescrevem o uso de folhas, chás, raízes, emplastros, dietas especiais, resultado de um conhecimento tradicional cuja eficiência fez com que se consolidassem como parte das técnicas daquela cultura. Se essas substâncias nunca tivessem demonstrado eficácia, seu destino seria curto. Atualmente um imenso campo científico investiga esses saberes. A biotecnologia tem-se apropriado do domínio de populações tradicionais sobre as propriedades e uso de substâncias naturais. Outro leque de problematizações está na apropriação de saberes. São apropriações imprevistas, imprecisas quanto ao rigor seja científico seja religioso. Exemplo disso é a compreensão das classes populares sobre as doenças nervosas. Os "nervos" explicam uma gama imensa de necessidades pessoais que extrapolam a definição e o tratamento científico.17 As apropriações populares sobre o significado da possessão e dos estados de transe - associados ao mal - se distanciam de sua compreensão enquanto técnicas rituais ou características do sagrado.18 Que consequências tem a presença do indivíduo adoecido para o grupo social? Além de fenómeno corporal, a doença provoca o afastamento do doente de funções esperadas pelo grupo, o que exige explicações: 17. DUARTE, L.F.D. Da vida nervosa das classes trabalhadoras urbanas. IS.LEWis, I. Êxtase religioso. 't;y O que distingue a doença de outros tipos de comportamento desviante são as técnicas especiais oferecidas pela sociedade através das quais a pessoa doente pode se desculpar e o fato de que a legitimidade social para esse comportamento pode sempre ser transferido a alguma agência para além da vontade pessoal do doente.19 Cada grupo transfere para alguma agência a culpa pela quebra da rotina do trabalho coletivo. Essa agência precisa ser reconhecida como válida por todo o grupo. Os negros trazidos como mão-de-obra escrava adoeciam de banzo, ou "saudadeda terra de origem". Atualmente adoecemos de L.E.R. (lesão por esforço repetitivo), ou "in- tolerância física e emocional às rotinas e instrumentos de trabalho". Legitimamos e reconhecemos em cada lugar e momento histórico um leque de agências que podem nos adoecer e são consideradas suficientes para justificar JXQSSO afastamento das rotinas. Todo um campo de estudos, a etnopsiquiatria, tem crescido principalmente na França20, em decorrência da compreensão da ineficácia do discurso médico quando confrontado com problemas para os quais o paciente atribui outra explicação. A etnopsiquiatria é uma área interdisciplinar em que antropólogos, psicólogos e psi- quiatras procuram traduzir o quadro de referências dos pacientes para inserir-se em sua lógica, e não o contrário, como era comum. Se alguém está convencido de que está doente por ser vítima de um espírito maligno, a etno- psiquiatria procurará conhecer melhor esse imaginário e integrar a lógica médica àquela que lhe é anterior e sustenta as sensações do doente.21 Esses saberes 19.YOUNG, A. Op. cit., p. 14. 20.LAPLANTINE, F. Aprender etnopsiquiatria. 21. Exemplo interessante dessa integração de lógicas distintas é o episódio narrado por LÉVI-STRAUSS, em O feiticeiro e sua magia, quando o índio se convence em usar um certo medicamento apenas quando lhe é dito que "a magia do branco é mais forte que a sua". 128 Kênia Kemp produzidos pela antropologia apontam numa direção que pretende abolir o julgamento de verdades e técnicas que fazem parte de nossas culturas e que permitem o diálogo entre os universos simbólicos que atravessam o jogo social. A caça às bruxas teve seu tempo e exerceu seu papel na busca de hegemonia e coerência da ciência médica como campo distinto de saber. Apesar de o relativismo cultural ter chegado tardiamente, trata-se agora de colocar à disposição dos profissionais de saúde toda a potencialidade da proposta antropológica de ver o mundo através das lentes do outro. Referências bibliográficas ALVES, Paulo C.; MINAYO, Maria Cecília (orgs.). Saúde e doença - Um olhar antropológico. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1998. BOLTANSKI, L. As classes sociais e o corpo. Rio de Janeiro: Graal, 1979. CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1978. DUARTE, L.F.D. Da vida nervosa das classes trabalhadoras urbanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/CNPq, 1986. FERREIRA, Jaqueline. "O corpo sígnico". In: ALVES, P.; MINAYO, M.C. (orgs.). Op. cit. FOUCAULT, Michel. "O nascimento da Medicina Social" e "A casa dos loucos". In: Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1981. . O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1980. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. LAPLANTINE, F.; RABEYRON, P.L. Medicinas paralelas. São Paulo: Brasiliense, 1989. LAPLANTINE, François. Antropologia da doença. São Paulo: Martins Fontes, 1991. . Aprender etnopsiquiatria. São Paulo: Brasiliense, 1994. LÉVI-STRAUSS, Claude. "A eficácia simbólica" e "O feiticeiro e A relação saúde-doença 129 sua magia". In: Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975. LEWIS, lan. Êxtase religioso. São Paulo: Perspectiva, 1977. LOYOLA, M.A. Médicos e curandeiros: conflito social e saúde. São Paulo: Difel, 1984. MAUSS, Mareei. "As técnicas corporais". In: Sociologia e antropologia. São Paulo: Edusp/EPU, 1974. MONTERO, Paula. Da doença à desordem: as práticas mágico- terapêuticas na umbanda. Rio de Janeiro: Graal, 1985. RABELO, M.C.M. "Religião, ritual e cura". In: ALVES, P.C.; MINAYO, M.C. de S. (orgs.). Op. cit. SACKS, Oliver. Um antropólogo em Marte - Sete histórias paradoxais. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. TURNER, Victor. O processo ritual. Petrópolis, Vozes, 1974. YOUNG, Allan. "Medicai beliefs and practices". American Anthropologist, (78):05-24, 1976. . "Anthropologies of illness and sickness". Annual Review of Anthropology, (11): 257-285, 1982.
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