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7
A relação saúde-doença
Kênia Kemp
Para o médico, o estudo da doença exige o estudo da
identidade, os mundos interiores que os pacientes criam sob o
impulso da doença. Mas a realidade dos pacientes, as formas
como eles e seus cérebros constróem seus próprios mundos, não
pode ser totalmente compreendida pela observação do
comportamento, do exterior. Além da abordagem objetiva do
cientista, do naturalismo, também devemos empregar o ponto de
vista intersubjetivo, mergulhando, como escreve Foucault, "no
interior da consciência mórbida, [tentando] ver o mundo
patológico com os olhos do próprio paciente"
Sacks1
D e que maneira a antropologia pode auxiliar nacompreensão do tratamento da saúde das pes-
soas? Não se trata aqui de conhecer doenças ou de avaliar
a eficácia desta ou daquela conduta terapêutica. A antro-
pologia se situa naquele terreno onde é possível interpre-
tar e compreender o jogo social em que as diferentes con-
cepções de corpo, saúde e doença interferem nas relações
dos pacientes com as condutas propostas. Interferem na
1. SACKS, O. Um antropólogo em Marte - Sete histórias paradoxais,
p. 18.
116 Kênia Kemp
medida em que não é possível isolar a doença do doente,
a terapêutica do médico e o espaço dos hospitais das sig-
nificações sociais que ele carrega. Nem médicos nem
pacientes se relacionam de forma neutra com o adoecimen-
to. A relação saúde-doença faz parte de um universo so-
cial permeado de símbolos, expectativas e referências que
se entrecruzam e interagem com o universo da ciência e
dos medicamentos.
Cada cultura constrói uma explicação própria para a
origem, causas e tratamento de determinadas doenças.
Essas explicações formam o conjunto de representações,
saberes e práticas de um grupo social. A cada representa-
ção de doença corresponde um determinado saber e uma
terapêutica que façam sentido quando tomadas em
conjunto. É o que denominamos de "sistema médico". Há
grupos para os quais doenças são resultado da ação de es-
píritos através de feitiçarias e cuja terapêutica consiste em
expulsar o inimigo do corpo do doente; para outros, a
doença possui existência independente do doente e sua te-
rapêutica consiste em ingerir substâncias. Para cada re-
presentação há pessoas, ora curandeiros, ora médicos,
legitimadas para exercer o combate.
O ponto de partida é nossa compreensão da doença.
Um discurso que se tornou oficial é o da ciência médica.
A medicina ocupa tanto espaço simbólico que parece
natural que nosso organismo adoeça devido ao ataque
exógeno de agentes patológicos ou à disfunção endógena
de alguns órgãos. Essa definição tornou-se socialmente
apropriada com a divulgação dos saberes produzidos pelas
ciências médicas a partir do século XVIII e especialmente
XIX. As novas práticas terapêuticas das ciências da saúde
- a principal era a medicina, mas a psicologia surgiu nesse
período - institucionalizaram-se através dos hospitais,
clínicas, manicômios e consultórios. Médicos, psicólogos,
odontólogos e enfermeiros tornaram-se os únicos pro-
fissionais reconhecidos pelo discurso oficial para intervir
no corpo do indivíduo doente. A esse conjunto deno-
minamos de "medicina oficial".
A relação saúde-doença 117
Esse cenário tem uma história engendrada a partir
das demandas do desenvolvimento da sociedade capitalista
e da ascensão da burguesia. O "desencantamento do
mundo" acabou interferindo em nossa noção de doença e
de corpo doente e também nas práticas de tratamento.
Essa trajetória fundamentou-se na divisão entre corpo e
espírito. A partir dessa cisão damos sentido a outras im-
portantes representações de saúde-doença: são elas as
religiões e as crenças.
A ideia contemporânea de doença foi elaborada a
partir dos desenvolvimentos da ciência no século XIX, com
a descoberta dos raios-X, o aperfeiçoamento de lentes para
microscópio e as incursões no mundo "micro" (a bacte-
riologia, os microorganismos). Antes dessas descobertas,
o ser humano dependia dos sentidos para explicar estados
patológicos. Já os gregos na Antiguidade Clássica con-
cebiam uma dimensão não-visível - as noções arcaicas de
células, átomos e moléculas - a partir da qual explicavam
vários fenómenos naturais. Entretanto, o saber produzido
por Hipócrates foi relegado durante a religiosa Idade Mé-
dia. A partir do Renascimento, o conhecimento produzido
pela civilização grega foi resgatado, possibilitando um
imenso impulso no conhecimento científico sobre as
doenças.2 A partir da ascensão da burguesia comercial e
industrial, esse impulso esteve comprometido com os
interesses de dominação de classe. Uma de suas
estratégias para obter a hegemonia consistiu em substituir
as explicações religiosas por explicações profanas.3
Naquele momento, havia uma disputa de legitimidade
entre dois sistemas médicos - um que girava em torno da
2. Uma leitura recomendada para conhecer a história da medicina,
trata-se de um livro escrito de forma muito divertida, GORDON,
R. A assustadora história da medicina.
3. Para compreender essa história da clínica entre nós, e do
percurso da oficialização das ciências médicas como única
representante legítima em nossa relação saúde-doença, conferir
as obras de Foucault indicadas na bibliografia.
118 Kênia Kemp
figura dos padres e orações e o outro composto por
benzedeiras, ervateiros e bruxas. A Inquisição teve o papel
de interferir nessa disputa. Após isso a disputa passa_a_
ser entre Igreja e ciência. Até então, não se concebia a
doença como entidade separada do doente. As alterações
na saúde de um indivíduo recebiam explicações de ordem
sobrenatural não havendo uma popularização da ideia
científica de doença. É dentro dessa história de disputa en-
tre as concepções religiosa e científica que podemos
compreender o quadro social das terapêuticas médicas e
misticismos aos quais os sujeitos recorrem atualmente.
Cada cultura constrói uma representação da relação
saúde-doença criando um sistema médico coerente com ela.
Existem sistemas envolvendo patologias e médicos ao lado
de outros representados por energias e práticos, ou ainda
espíritos e curandeiros. Todos são sistemas médicos, desde
que suas práticas sejam direcionadas para a cura. Faremos
um exercício de interpretação de sistemas médicos
diferentes do "oficial".
Um exemplo sempre lembrado é a medicina oriental.
Os saberes orientais têm atraído o olhar antropológico. As
ideias taoístas, bastante divulgadas, supõem uma
característica holística do universo em que todas as
dimensões de existência são intrinsecamente relacionadas
e sofrem interferências mútuas. Tanto forças não-visíveis
que animam o mundo como relações sociais estão inseridas
numa única lógica de funcionamento regidas pela disputa
das forças positivas - associadas ao masculino - e ne-
gativas - o feminino. A conhecida figura de yin-yang sin-
tetiza a ideia de mundo dos taoístas. Para eles, não existe
divisão corpo/ espírito, dentro de uma visão holista de
universo bem distante do pensamento ocidental. Neste, a
realidade se compõe de territórios separados. O predomínio
das explicações fundamentadas nas relações de causa-
efeito que discriminam diferentes ordens de eventos, faz
com que dificilmente tenhamos possibilidade de
estabelecer relações entre coisas que concebemos como
sendo de naturezas distintas.
A relação saúde-doença 119
Assim, a legitimidade das medicinas orientais no Oci-
dente é objeto de disputa com nossas crenças religiosas
mas sobretudo com os saberes médicos oficiais. Qualquer
medicina que fuja aos preceitos institucionalizados da ciên-
cia ocidental é denominada "paralela". Essa denominação
reforça a centralidade de uma medicina que se diz oficial.4
Nas sociedades tradicionais africanas, australianas ou
americanas o pensamento místico-religioso ocupa um lugar
central nas explicações de mundo. Elas interferem na
definição de doença e de suas terapêuticas.A pessoa
adoece devido a um ataque espiritual: ação de magias e
enfeitiçamentos - por motivo de vingança, inveja ou pu-
nição - ou então dos próprios espíritos. O xamã5 centraliza
a cura e aconselhamento. Normalmente, ele prepara um
ritual de cura, diferente em cada cultura. Em alguns, o
xamã suga o corpo do doente enquanto profere ou canta
palavras mágicas, acompanhadas de instrumentos
sagrados. Evocam-se poderes do xamã para retirar o
espírito maligno expulso juntamente com a doença. Ele
pode expelir saliva, que se acredita impregnada do mal.
Ou ainda, ao final do ato, o xamã exibe um pequeno objeto
de penas ou pedras que materializa a doença, sendo a
4. LAPLANTINE, F.; RABEYRON, P.L. Medicinas paralelas.
5. Segundo o Dicionário de Ciências Sociais, Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas, 1986, o termo "xamã" vem designar
"um especialista em curar, adivinhar e outras funções sociais
afins, presumivelmente por meio de técnicas de possessão e
controle de espíritos." (p. 1305). A palavra "xamã" tem origem
russa, derivando do termo siberiano saman, compreendido como
sendo da etnia tungu. Os antropólogos empregam o termo na
etnografia moderna, referindo-se a xamã e xamanismo "de modo
a cobrir uma área de fenómenos análogos em muitas partes do
mundo, especialmente entre os esquimós e os povos indígenas
americanos (...) com referência a qualquer especialista
relacionado com a manutenção ou restauração do equilíbrio de
indivíduos ou de uma sociedade por meios rituais." (ibidem)
120 Kênia Kemp
prova do sucesso da cura. Outras técnicas rituais foram
documentadas.
Lévi-Strauss em O feiticeiro e sua magia afirma que
a base dessas técnicas está na "eficácia simbólica"6. Esse
conceito explicita a abordagem antropológica. Não se trata
de debater se os rituais têm realmente algum poder
curativo, ou se o mundo dos espíritos de fato existe. Ocorre
que os rituais são mesmo poderosos, pois os sujeitos
trazem para sua experiência com a doença essas
referências simbólicas e elas interferem no tratamento. O
que faz então com que os rituais "funcionem"? Lévi-Strauss
afirma que, para se obter eficácia simbólica, é necessário
que as interpretações simbólicas tenham um sentido
comum. Do contrário, o jogo não prossegue e cada sujeito
permanece com a sua verdade: o doente é reforçado quanto
à ineficácia da terapêutica e o feiticeiro ou_ médico insiste
na impossibilidade da cura porque "o doente não colabora".
Assim, diz Lévi-Strauss, é necessária a confluência de
crenças: do feiticeiro em sua técnica; do doente no
feiticeiro; da comunidade no ritual. Quanto à necessidade
da crença da comunidade, é bom lembrar que só
recomendamos coisas cujos resultados constatamos. Se as
pessoas não recorrem a técnicas socialmente legitimadas,
apesar do indivíduo se sentir curado, o grupo pode não o
reconhece como tal.
Nossa cultura é permeada pela coexistência de qua-
dros diferentes de representação da doença. Ao mesmo
tempo que procuramos o saber médico, também buscamos
rituais que fazem as pessoas se sentirem melhor. Então,
como os rituais curam? Os espíritos ou o grupo social
podem realmente adoecer uma pessoa? Bruxaria "pega"?
Esses misticismos, desacreditados pela ciência positivista,
fazem parte da vivência de muitas pessoas. A experiência
deixa espaço para um imaginário de crenças que cor-
6. LÉVI-STRAUSS, C. "A eficácia simbólica" e "O feiticeiro e sua
magia". In: Antropologia estrutural.
A relação saúde-doença 121
responde a uma dimensão do adoecimento. O recurso
místico permeia toda nossa sociedade, mas apesar disso,
distinguimos claramente a cura do corpo da cura
espiritual. É frequente esse tipo de relato:
Sofro de depressão. Estou em tratamento há algum tempo,
fazendo terapia, tomando medicamentos para dormir e ansiolítico.
Mas não vou conseguir me curar enquanto não desfizer um
"trabalho" que fizeram para mim. Foi há muito tempo e desde
aquela época adoeci. Então, além de um médico, frequento um
centro espírita. (L, 46 anos, universitária, Campinas, SP)
Nessa fala convivem concepções correntes e con-
flitantes de saúde-doença. Ao mesmo tempo que há receio
de abandonar as terapêuticas da medicina oficial, persiste
a necessidade de um tratamento que dê respostas para
além do nível biológico do nosso corpo. Em nossa men-
talidade dominada pela ideologia científica, um campo de
representação simbólica da doença permanece fora de
lugar. A depoente acima, ao entrar em um consultório
médico, provavelmente expressará sua queixa numa forma
adequada à linguagem e concepções médicas. Descreverá
a alternância de estados de ansiedade com tristeza ou
depressão, a dificuldade em dormir, as consequências disso
sobre seu apetite etc. Se esforçará por aprofundar a
descrição daquilo que sente. Ao procurar um centro es-
pírita7, ela traçará um quadro voltado para as ocorrências
de sua vida espiritual que será resgatada na composição
de seu estado geral. Trata-se de uma adequação conceituai
aojontexto. Em ambos, existe uma referência anterior, re-
sultado de um aprendizado das explicações para o
7. No caso do depoimento citado, o centro espírita segue orientação
umbandista, onde existem "guias" espirituais que incorporam
entidades como "cablocos", "caciques" e "pretos-velhos" que fazem
a intermediação das necessidades e sofrimentos dos fre-
quentadores com o "nível astral", na busca de curas e acon-
selhamentos.
122 Kênia Kemp
adoecimento. A lógica presente na formulação da queixa
é culturalmente construída. Há relatos colhidos em con-
sultórios quanto à dor que "caminha pelo corpo", "parece
que tem um bicho que come dentro", "é tão triste que
parece que mói os ossos", "está criando raiz". Há dores que
aparecem em forma de facadas, socos, agulhadas.8 Esses
exemplos ajudam a pensar a construção cultural da queixa
e a interpretação habitual dos profissionais de saúde.
O ser humano necessita de uma resposta para um
estado que aflige e traz dor. Sempre que sofremos - por
motivo físico ou psíquico - e durante algum tempo, não
perguntamos por uma solução e sim pela origem do
problema: "Por que eu? De onde surgiu isso em mini?". A
resposta científica pode ser suficiente para algumas
pessoas, mas não para todas. São necessárias respostas
que alcancem toda a dimensão do sofrimento, pois sua
materialidade é apenas uma parte. Nessa lacuna, entra a
possível eficácia de respostas de ordem mística.
Em nossa sociedade as terapêuticas alternativas
muitas vezes se completam com tratamentos da medicina
oficial. A antropologia médica tem produzido estudos que
buscam compreender os usos sociais das terapêuticas, A
ideia básica não é comprovar a eficácia real dos cultos
religiosos no tratamento de pessoas doentes e sim
compreender a manipulação dos símbolos rituais que
podem auxiliar na ordenação de vivências sociais e
pessoais em circunstâncias de adoecimento.
Ao se voltar para um estudo do ritual, vários antropólogos
têm enfatizado seu papel transformativo: manipulando símbolos
em um contexto extracotidiano, carregado de emoção, o ritual
induz seus participantes a perceberem de forma nova o universo
circundante e sua posição particular nesse universo... De
fundamental importância nessa perspectiva de análise do ritual
é identificar e compreender os processo específicos através dos
8. FERREIRA, J. "O corpo sígnico". In: ALVES, P. e MINAYO, M.C. (orgs.).
Saúde e doença.
A relação saúde-doença 123
quais o ritual produz uma transformação da experiência de seus
participantes.9
A preocupação da antropologia direciona-se para o
potencial de transformação da experiência de doença. A
manipulação daquilo que não podemos ver, mas que nos
proporciona sofrimento, torna-se possível através de me-
táforas rituais que "estendem a experiência informe do
sujeito a domínios mais concretos e reconhecíveis"10. Tur-
ner fala de reordenação de símbolos ordinários dentro da
lógica simbólicada magia: ao deslocar as significações co-
tidianamente atribuídas a uma nova organização ela fun-
damenta novas atitudes. Mais ainda, corporificar a ação
invisível do mundo espiritual significa uma possibilidade
de manipular uma solução. "Isto não está muito longe da
prática do moderno psicanalista. Quando algo é apreen-
dido pelo espírito, quando se torna um objeto capaz de ser
pensado, pode ser enfrentado e dominado"11. É portanto
uma forma cognitiva. Para outro autor, Geertz, o ritual
seria uma espécie de "educação sentimental"12. A partici-
pação e assistência implica no aprendizado de condutas e
respostas emocionais. Essa educação orienta estados de
contenção, euforia e emoção. Educando os sentidos, pode-
mos desenvolver uma nova atitude ante a doença.
Essa lógica ritual parte de uma performance. No
espaço ritual, os participantes ocupam novos lugares so-
ciais. Esse deslocamento já possibilita um reordenamento
do mundo. E executada uma série de procedimentos que
metaforicamente reproduzem o universo, localizando o
bem e o mal, a saúde e a doença, o centro e seus arredo-
res. Com estímulos audiovisuais e olfativos - a ambienta-
ção, cores e texturas, música e danças -, o ritual muda a
9. RABELO, M.C.M. "Religião, ritual e cura". In: ALVES, P.C., MINAYO,
M.C. de S. (orgs.). Op. cit., p. 48.
10. RABELO, M.C.M. Op. cit., p. 48.
H.TURNER, V. O processo ritual, p. 42.
12. GERTZ, C. A interpretação das culturas, p. 317.
124 Kênia Kemp
percepção de seus participantes e faz com que sua lógica
se desloque do quotidiano. A palavra dita, as sensações, e
também a doença, já não são mais as corriqueiras. A cura
ritual então se apresenta como "mudança na perspectiva
subjetiva pela qual o paciente e comunidade percebem o
contexto da aflição"13. Além disso, permite uma demons-
tração coletiva de preocupação e dedicação com o doente.
Mesmo que simbólica, a expressão de interesse do grupo
pelo bem-estar e a reunião de "coisas 'boas'"14 em favor do
indivíduo não devem ser desprezadas como fatores de cura.
Quando um ritual de cura "falha" e o paciente não
obtém melhora significativa, não resulta necessariamente
descrença nas técnicas. Lévi-Strauss lembra quê tendemos
a reforçar socialmente muito mais os sucessos que os
insucessos de qualquer tratamento. Sobre esse fenómeno,
Allan Young afirma que "as pessoas raramente vêm uma
falha em curar como desafiando suas crenças sobre seus
sistemas médicos ou as ideias cosmológicas às quais eles
se relacionam". Isto porque "no pensamento quotidiano, o
que o paradigma ocidental chama de falhas empíricas são
interpretadas em um contexto prático e particularista mais
do que como um teste de um determinado sistema
médico"15. A lógica ocidental induz a atribuir uma "falha
neste caso" e "sucesso a todo o sistema de cura". Uma
sociedade mantém determinado sistema médico porque
suas práticas são efetivas; onde há só insucessos, o sistema
não persiste.
Um grupo pode adoecer um indivíduo? Nas sociedades
em que a doença é explicada por feitiçarias ou ataque de
espíritos, a vítima de uma magia ou bruxaria é ime-
diatamente isolada do grupo, pois é considerada portador
do mal. Enquanto ela não recorrer a um ritual que expulse
esse hospedeiro indesejado, continuará sendo evitada pois
13. RABELO, M.C.M. Op. cit., p. 49.
14. TURNER, V. Op. cit., p.60.
15. YOUNG, A. "Medicai beliefs and practices", pp. 5-24.
A relação saúde-doença 125
tem contato com algo cujo poder não se pode determinar.
As consequências do isolamento social são sempre as
mesmas mas devido a razões diversas. Nas sociedades
tradicionais, o motivo está no mundo dos espíritos; na
sociedade "moderna" recai sobre questões médicas e sobre
condutas pessoais - o sujeito adotou um comportamento
socialmente indesejável. Isolada do grupo, rejeitada como
portador de algum mal, a pessoa adoece.
Lévi-Strauss descreve modificações orgânicas que
fazem parte do imenso terreno das doenças psicos-
somáticas já popularmente conceituadas, apesar de a
fundamentação científica não corresponder exatamente ao
uso social. Sem poder adaptar-se a uma situação nova,
derivada da exclusão do grupo, o indivíduo sofre alterações
no ritmo cardíaco e na pressão sanguínea, perde apetite,
apresenta desidratação e lesões de órgãos. A bruxaria
social afeta a saúde do indivíduo. Sentindo-se adoecido,
mas sem evidência disso, ele provoca em si uma prova da
doença - sangramentos, suores e taquicardias, muitas
vezes tratadas com insucesso pela medicina oficial.
O espaço ritual se espelha com o espaço insti-
tucionalizado de consultórios, clínicas e hospitais. O
hospital é um espaço social onde o doente perde quase
completamente sua importância frente à doença. O corpo
do doente é tratado como um espaço de investigação: passa
pela destituição de significados, destruição da identidade.
A única identidade explorada é a do órgão doente. Num
ritual mágico, o corpo do doente é fundamental. Ele é
acrescido de significados e inserido numa lógica em que
sua identidade contribui para a eficácia do tratamento.
É importante evitar maniqueísmos sobre cada um
desses espaços de cura. O consultório também é um espaço
ritual. A performance que aí ocorre segue normas ri-
gorosas16 quanto à disposição do espaço físico, mobiliário,
16. Sobre a conduta das consultas médicas e a relação do imaginário
das diferentes classes sociais nesse contexto, ver BOLTANSKI, L.
As classes sociais e o corpo.
126 Kênia Kemp A relação saúde-doença 127
relação médico-paciente e a total disponibilidade do doente
e seu corpo. Frente à autoridade médica, perde-se a pro-
priedade e os pudores corriqueiros sobre o corpo. Apal-
pação; invasão de especules, sondas ou das mãos e dedos
do médico; narração de episódios íntimos (emissão de
sangue, fezes e catarro): tudo isso segue uma lógica
ritualizada de condutas extra-cotidianas praticadas por
um número reduzido de pessoas que passou por um
treinamento legitimador.
Além dos rituais mágicos, muitos curandeiros
prescrevem o uso de folhas, chás, raízes, emplastros, dietas
especiais, resultado de um conhecimento tradicional cuja
eficiência fez com que se consolidassem como parte das
técnicas daquela cultura. Se essas substâncias nunca
tivessem demonstrado eficácia, seu destino seria curto.
Atualmente um imenso campo científico investiga esses
saberes. A biotecnologia tem-se apropriado do domínio de
populações tradicionais sobre as propriedades e uso de
substâncias naturais.
Outro leque de problematizações está na apropriação
de saberes. São apropriações imprevistas, imprecisas
quanto ao rigor seja científico seja religioso. Exemplo disso
é a compreensão das classes populares sobre as doenças
nervosas. Os "nervos" explicam uma gama imensa de
necessidades pessoais que extrapolam a definição e o
tratamento científico.17 As apropriações populares sobre o
significado da possessão e dos estados de transe -
associados ao mal - se distanciam de sua compreensão
enquanto técnicas rituais ou características do sagrado.18
Que consequências tem a presença do indivíduo
adoecido para o grupo social? Além de fenómeno corporal,
a doença provoca o afastamento do doente de funções
esperadas pelo grupo, o que exige explicações:
17. DUARTE, L.F.D. Da vida nervosa das classes trabalhadoras
urbanas.
IS.LEWis, I. Êxtase religioso.
't;y
O que distingue a doença de outros tipos de comportamento
desviante são as técnicas especiais oferecidas pela sociedade
através das quais a pessoa doente pode se desculpar e o fato de
que a legitimidade social para esse comportamento pode sempre
ser transferido a alguma agência para além da vontade pessoal
do doente.19
Cada grupo transfere para alguma agência a culpa
pela quebra da rotina do trabalho coletivo. Essa agência
precisa ser reconhecida como válida por todo o grupo. Os
negros trazidos como mão-de-obra escrava adoeciam de
banzo, ou "saudadeda terra de origem". Atualmente
adoecemos de L.E.R. (lesão por esforço repetitivo), ou "in-
tolerância física e emocional às rotinas e instrumentos de
trabalho". Legitimamos e reconhecemos em cada lugar e
momento histórico um leque de agências que podem nos
adoecer e são consideradas suficientes para justificar JXQSSO
afastamento das rotinas.
Todo um campo de estudos, a etnopsiquiatria, tem
crescido principalmente na França20, em decorrência da
compreensão da ineficácia do discurso médico quando
confrontado com problemas para os quais o paciente
atribui outra explicação. A etnopsiquiatria é uma área
interdisciplinar em que antropólogos, psicólogos e psi-
quiatras procuram traduzir o quadro de referências dos
pacientes para inserir-se em sua lógica, e não o contrário,
como era comum. Se alguém está convencido de que está
doente por ser vítima de um espírito maligno, a etno-
psiquiatria procurará conhecer melhor esse imaginário e
integrar a lógica médica àquela que lhe é anterior e
sustenta as sensações do doente.21 Esses saberes
19.YOUNG, A. Op. cit., p. 14.
20.LAPLANTINE, F. Aprender etnopsiquiatria.
21. Exemplo interessante dessa integração de lógicas distintas é o
episódio narrado por LÉVI-STRAUSS, em O feiticeiro e sua magia,
quando o índio se convence em usar um certo medicamento
apenas quando lhe é dito que "a magia do branco é mais forte
que a sua".
128 Kênia Kemp
produzidos pela antropologia apontam numa direção que
pretende abolir o julgamento de verdades e técnicas que
fazem parte de nossas culturas e que permitem o diálogo
entre os universos simbólicos que atravessam o jogo social.
A caça às bruxas teve seu tempo e exerceu seu papel
na busca de hegemonia e coerência da ciência médica como
campo distinto de saber. Apesar de o relativismo cultural
ter chegado tardiamente, trata-se agora de colocar à
disposição dos profissionais de saúde toda a potencialidade
da proposta antropológica de ver o mundo através das
lentes do outro.
Referências bibliográficas
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- Um olhar antropológico. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1998.
BOLTANSKI, L. As classes sociais e o corpo. Rio de Janeiro:
Graal, 1979.
CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1978.
DUARTE, L.F.D. Da vida nervosa das classes trabalhadoras
urbanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/CNPq, 1986.
FERREIRA, Jaqueline. "O corpo sígnico". In: ALVES, P.; MINAYO,
M.C. (orgs.). Op. cit.
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GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro:
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LAPLANTINE, F.; RABEYRON, P.L. Medicinas paralelas. São Paulo:
Brasiliense, 1989.
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Martins Fontes, 1991.
. Aprender etnopsiquiatria. São Paulo: Brasiliense,
1994.
LÉVI-STRAUSS, Claude. "A eficácia simbólica" e "O feiticeiro e
A relação saúde-doença 129
sua magia". In: Antropologia estrutural. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1975.
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MINAYO, M.C. de S. (orgs.). Op. cit.
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