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Uma gramática para professores Sírio Possenti Há diversas gramáticas novas no mercado. Elas são, de certo modo, fruto do desenvolvimento das pesquisas sobre a língua, especialmente nos últimos 50 anos. Tais pesquisas permitiram uma visão mais clara da natureza e das diversas funções das línguas. Por outro lado, os estudos se aproximaram da escola, mais claramente das questões relativas ao ensino de Português. Esse ramo da pesquisa linguística desenvolveu-se como decorrência de fatores como o de o conhecimento mais detalhado da língua permitir que se afirme com clareza que o domínio de uma forma “clássica” não é necessário para o desenvolvimento cultural e profissional dos brasileiros. Sem qualquer desprezo pela tradição, os estudos demonstram que o real português culto brasileiro se separa, em diversos aspectos, do português de Portugal, por um lado, e de um português imaginário que a escola supostamente persegue. As novas gramáticas acompanham outra linha importante de trabalho que se verifica tanto nas ciências humanas quanto nas exatas e biológicas. Elas estão produzindo um conhecimento mais sofisticado de nossa história e realidade. Assim como os estudos de História permitem construir outra visão do passado, os da língua permitem: a) Um conhecimento mais sofisticado de nossa realidade linguística, tanto no que se refere a como se fala quanto a como se escreve – e, por extensão, um conhecimento de nossa língua culta real. b) A construção de metodologias de ensino mais realistas e eficazes – aspecto que decorre da associação de pesquisas em sociolinguística e psicolinguística, por um lado, das pesquisas sobre as práticas de escrita, escolares ou não, que fornecem um guia mais seguro para o aprendizado. A Gramática Pedagógica do Português Brasileiro, de Marcos Bagno, colunista de Carta Fundamental (São Paulo: Parábola Editorial, 2011), é um volume de mais de mil páginas que se insere nesse quadro de pesquisas. De seu estudo, o professor brasileiro (e não só o de português) poderá tirar diversas vantagens. Enumero algumas. A obra trata de questões filosóficas que estão na base das gramáticas tradicionais e que diversos estudos mais recentes põem em questão, caso de alguns critérios de classificação (dicotomias do tipo emoção/razão, abstrato/concreto). Esses critérios produzem efeitos, por exemplo, na classificação “tradicional” das palavras, que fatos mostram não funcionar bem. Por isso, Bagno, entre outras coisas, adota posições mais claras e realistas, propondo novas classificações e mostrando que algumas são relativas. Outro aspecto relevante da obra é apresentar de forma inovadora aspectos da história da Língua Portuguesa, mostrando que sua “origem” é mais complexa do que diz o refrão de sua descendência do latim vulgar. Ainda mais relevante é a análise de numerosos casos de mudança e, mais que isso, a demonstração, com base em fatos, de que a mudança linguística continua e, ainda mais importante, que muitas regras que comandarammudanças do passado continuam funcionando. Se esta gramática só mostrasse esses fatos, já poderia ser considerada revolucionária porque a implicação é que a noção de erro deve ser profundamente revista. Tocar nessa questão pode fazer o leitor pensar que Bagno deixa de se preocupar com a norma culta, que seria adepto de teses equivocadamente atribuídas aos linguistas resumidas no bordão “não há mais erros”. Bagno sabe que, do ponto de vista científico (histórico, estrutural), tal noção é discutível, mas também sabe que a escola tem função específica: permitir que o aluno venha a dominar a norma culta (a distinção entre norma culta e padrão é importante, porque aquela tem valor social, esta, só ideológico). E também sabe – e prova – que a norma culta nem é a antiga nem é a de Portugal. De posse dessas informações, Bagno propõe trabalhar em duas direções que só podem ser simultâneas: a) Acabar com o preconceito contra a fala popular (deve-se vê-la como uma das formas da língua e, talvez, como a futura forma culta); para acabar com o preconceito, só há uma saída: estudar os fatos – de fatos a gramática está cheia; b) Selecionar adequadamente os “problemas” sobre os quais a escola deve centrar fogo, ou seja, aqueles que funcionam como marcadores sociais, as formas de falar e escrever que a sociedade efetivamente rejeita (e que, empregados, podem prejudicar o cidadão); feita esta seleção – tarefa em que a gramática funciona como guia –, atividades de ensino adequadas são sugeridas. É onde entram as pesquisas relativas à aquisição da linguagem e, especialmente, o que se conhece sobre as práticas que levam aprendizes ao domínio da escrita. No capítulo final, Bagno dá uma lista de formas “duplas”: os empregos correntes e os desejáveis em textos que exigem maior monitoramento, uso mais rigoroso da norma padrão. Por isso, é um excelente guia curricular. Não se trata de guia com uma lista de erros a evitar. É uma obra que homenageia o professor porque o considera inteligente e capaz de estudar. Esta é, aliás, a saída em que se deve investir. As receitas já provaram seu fracasso, especialmente para a nova população de alunos e, fato que Bagno destaca, para a nova população de professores. *Sirio Possenti é professor da Unicamp e autor de Por Que (não) Ensinar Gramática na Escola e Os Humores da Língua Revista Carta Capital – versão online – 05.06.2012. Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/cultura/uma-gramatica-para-professores/
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