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PSICOPEDAGOGIA E EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS Márcia Haydée Cavalcanti Schmid* Universidade Federal Fluminense – UFF / RJ RESUMO O presente trabalho consiste no início de uma pesquisa sobre o entrecruzamento da Educação de Jovens e Adultos e os estudos realizados no campo da Psicopedagogia. Pretende-se apresentar o marco inicial desta pesquisa, ocorrido no IX Curso de Formação de Alfabetizadores do Nordeste, na Universidade Federal Fluminense, em julho de 2001, em que os participantes foram motivados a olhar a sua história e entenderem-se nela, ora como aprendentes**, ora como ensinantes***, e também levar ao conhecimento dos educadores do PAS alguns conceitos chaves que norteiam a visão dos nossos estudos em Psicopedagogia. O trabalho realizado no IX Curso de Alfabetizadores do Nordeste levou à produção de textos individuais, chamados de memorial, que nos apresentam histórias de vida que se relacionam implícita e explicitamente com a nossa prática pedagógica e com o papel que exercemos de educadores, levantando, assim, vários questionamentos acerca da influência de nossos processos de aprendizagem sobre nossa maneira de lidar com o aluno, isto é, com o processo de aprendizagem do outro. Pretende-se, ainda, através da troca de saberes e vivências proporcionada pela Semana de Alfabetização, enriquecer esta pesquisa que aqui se inicia. * Pós-Graduanda em Psicopedagogia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ Pedagoga pela Universidade Federal Fluminense – UFF Coordenadora Pedagógica do Programa Alfabetização Solidária / UFF Membro do Núcleo de Educação e Cidadania – NUEC / UFF ** Ensinante e ***aprendente* são termos de Alicia Fernàndez, psicopedagoga/educadora argentina, que designam uma visão de educador e educando indo além do espaço de aprendizado formal (escola, outras instituições, etc.) para todo espaço de vida do sujeito. Estes termos nos sugerem, ainda, a flexibilidade destes papéis, reconhecendo que o sujeito pode ser num momento ensinante* e noutro aprendente* no processo de aquisição do conhecimento. PSICOPEDAGOGIA E EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS CONTEXTO DA EXPERIÊNCIA: Introdução Visando intensificar os trabalhos realizados no campo da Formação de Profissionais da Educação de Jovens e Adultos, iniciamos pesquisa integrando os estudos nesta área com os estudos da Psicopedagogia. Entendendo que começamos a traçar um caminho inovador, até então não percorrido por nenhum pesquisador, aceitamos o grande desafio e pretendemos avançar no campo da Educação de Jovens e Adultos visando à formação do educador que nela atue. Através das aulas no curso de Pós-Graduação em Psicopedagogia, vivenciadas pela autora deste trabalho, tivemos contato com diversas áreas relacionadas aos problemas de aprendizagem, porém, sentimos a necessidade de uma abordagem que priorizasse a Educação de Jovens e Adultos. Sendo assim, começamos a coletar informações e fazer leituras que nos indicassem o caminho de entrecruzamento da Psicopedagogia e a Educação de Jovens e Adultos. Ao analisar as questões relativas às influências das nossas vivências no processo de aprendizagem na nossa prática pedagógica, vimos que aí se encontra o início para este estudo que pretende ir – e irá – muito além. Apresentaremos inicialmente o campo da Psicopedagogia para que se possa ter um conhecimento geral sobre este assunto e seus conceitos principais. Posteriormente, em breve conclusão, apresentamos nossa proposta de trabalho para a Educação de Jovens e Adultos, especificamente no Programa Alfabetização Solidária. Fundamentação Teórica A psicopedagogia vem com o passar do tempo sofrendo influências de diversas correntes teóricas. A partir da década de 50/60, no seu início, a psicopedagogia tinha uma visão médica, enfocando o problema que acontecia com o sujeito com relação à aprendizagem. Esta visão partia de uma abordagem neuropsicológica, uma vez que existindo um problema de aprendizagem, este deveria ser sanado investigando-se qual o problema (dificuldade) apresentado pelo sujeito, que ocasionava o fracasso escolar. Na década de 60/70, a psicopedagogia é permeada pela visão behaviorista, ou seja, parou de abordar as falhas e começou a trabalhar os condicionamentos, avaliando o desempenho do sujeito. Na década de 80, o estudo de psicopedagogia começa a possuir uma visão social, dialética devido à influência da teoria de Vygotsky que considera relevante o meio social do sujeito para sua aprendizagem. Neste momento, surge o profissional psicopedagogo/educador interdisciplinar, que dá importância ao processo de aprendizagem. Começa-se a pensar porque este sujeito fracassa e não mais como ele fracassa, levando-se em conta o meio social do sujeito. Já na década de 90 até hoje, a psicopedagogia possui a visão da interdisciplinaridade. Sofre influência da Psicolingüística, neurociências e sociologia. A psicopedagogia lida, portanto, com o processo de aprendizagem e trabalha com a construção do ser cognoscente, capaz de construir seu próprio conhecimento, isto é, a psicopedagogia, ao longo dos tempos, passou a objetivar a reconstrução, integração e expansão do sujeito na construção de sua autonomia e o eu cognoscente e sua relação com a aprendizagem. O Sujeito Cognoscente Como discutimos anteriormente, tradicionalmente a aprendizagem era vista como uma estrada de mão única, em que não se levava em conta as relações sociais e que no processo de aprendizagem apenas um elemento detinha o saber com a tarefa de repassá-lo àquele que assim necessitava, sem nenhuma espécie de vínculo, enquanto o outro era visto como alguém a receber o saber, e apenas isto. Atualmente trabalhamos para mudar esta visão e percebemos a aprendizagem como uma via de mão dupla em que aprendente*** e ensinante**, na mesma medida, mas com papéis diferenciados, são agentes do processo. Alicia Fernàndez em "A inteligência aprisionada" nos traz a percepção para além da via, da estrada, aguçando nosso olhar para uma concepção de processo da aprendizagem em que o ensinante** - portador do conhecimento - estabelece uma relação entre este e o aprendente*** - sujeito pensante e portador de sua inteligência - através de seus vínculos firmados. Esta relação é permeada por alguns fatores que, quando postos em jogo, proporcionam o aprendizado. São eles: "seu organismo individual herdado, seu corpo construído especularmente, sua inteligência autoconstruída interacionalmente e a arquitetura do desejo, desejo que é sempre desejo do desejo de Outro". Para se compreender a questão ‘como é que se aprende’, é necessário ter em mente que a presença do ensinante** e do aprendente*** é fundamental, e o vínculo que se estabelece entre ambos é essencial. Segundo Sara Paín, psicopedagoga argentina que muito influenciou Alicia Fernàndez: “A aprendizagem é um processo que permite a transmissão do conhecimento de um outro que sabe a um sujeito que vai chegar a ser sujeito, exatamente através da aprendizagem”. O ensinante** pode transformar o ensinar em conhecimento, através de quatro instâncias de elaboração (orgânica, corporal, intelectual e desejante) e somente ao integrar-se ao saber, o conhecimento é aprendido e pode ser utilizado. O sujeito da aprendizagem possui um saber que o sustenta. Um saber que é produto de sua busca pelo conhecimento, pelo aprender. O processo da aprendizagem acontecerá mediante a articulação de quatro instâncias: desejo, inteligência, organismo e corpo. Estas quatro instâncias constituem o sujeito aprendente***, que por sua vez se constroem ou se instalam através de uma inter-relação constante e permanente com o meio familiar e social. Enfim, Alicia Fernàndez nostrouxe uma dimensão humana para a concepção de sujeito da aprendizagem em que o cuidado ao tratar de tal questão se torna evidente até na escolha dos termos que caracterizam os sujeitos envolvidos neste processo, nos demonstrando que são muito mais que professor-aluno, pai-filho, irmã-irmão, ..., e, são, sim, ensinante** e aprendente***. Processo de Aprendizagem Novamente enfatizamos que a aprendizagem é um processo em que intervêm a inteligência, o corpo, o desejo, o organismo, articulados a um determinado equilíbrio, mas a estrutura intelectual necessita também de um equilíbrio para estruturar a realidade e sistematizá-la. Isso acontece através de dois movimentos que Piaget definiu como: assimilação e acomodação. Assimilação é o movimento do processo de adaptação pelo qual os elementos do ambiente alteram-se para ser incorporados à estrutura do organismo. Acomodação é o movimento do processo de adaptação pelo qual o organismo altera-se, de acordo com as características do objeto com o qual se relaciona. Para Alicia Fernàndez estes movimentos de adaptação proporcionam a arquitetura para a atribuição simbólica de significações pessoais aos processos de aprendizagem individuais. O organismo se sustenta e cresce por meio das relações que faz com o ambiente no qual está inserido. A partir dessas relações ele consegue se adaptar (utilizando-se dos movimentos acima mencionados). Para que ocorra uma adaptação inteligente é necessário que a acomodação e a assimilação se encontrem em equilíbrio sem que uma predomine excessivamente sobre a outra. Sara Paín observa a constituição de diferentes modalidades nos processos representativos que interferem na formação deste equilíbrio. Podem ser descritos como: hipoassimilação/hiperacomodação, hipoacomodação/hiperassimilação. A presença dessas modalidades interfere nas respostas produzidas pelo organismo em sua relação com o meio e conseqüentemente interfere no processo da aprendizagem. Uma aprendizagem normal supõe uma modalidade de aprendizagem na qual se produza um equilíbrio entre os movimentos assimilativos e acomodativos. Aprender é apropriar-se, apropriação que se dá a partir de uma elaboração objetivante e subjetivante. A elaboração objetivante permite apropriar-se do objeto ordenando-o e classificando-o. A elaboração subjetivante tratará de reconhecer e de apropriar-se desse objeto a partir das experiências que o sujeito tem sobre este objeto. Esta dinâmica acontece a partir da articulação das quatro instâncias que constituem o sujeito (desejo, inteligência, organismo e corpo) e do vínculo que este sujeito estabelece com o outro (ensinante** e aprendente***). Vale a pena ressaltar a frase inserida no livro “O saber em jogo”, de Alicia Fernàndez: “Aprender é quase tão lindo quanto brincar”. O aprender acontece de forma gradativa, vai construindo o seu saber, investigando, brincando e criando. Tendo ao seu lado um ensinante** pronto a colaborar, atento as suas necessidades e expectativas. Alguém que valoriza suas experiências e descobertas e que lhe dá a liberdade para ser, criar e conquistar. Problema de Aprendizagem Problemas de aprendizagem se apresentam na ordem de causas externas à estrutura familiar e individual do que fracassa em aprender ou na ordem de causas internas à estrutura familiar e individual. É chamado de problema de aprendizagem reativo ao problema de causas externas à estrutura familiar, que não chegam a aprisionar a inteligência e, para serem trabalhadas na prática, deveríamos ter professores ensinando com prazer e proporcionando prazer para seu aluno ao aprender. Isto seria possível, inicialmente, com criação de planos de prevenção nas escolas visando não só este objetivo, mas também o desenvolvimento do psicopedagogo/educador, quando o fracasso escolar está posto, deve ter a postura de indicar caminhos e meios de ação que favoreçam a não constituição de um sintoma neurótico em relação ao fracasso do ensinante** que encontra empatia no sujeito e sua família. A postura do psicopedagogo/educador frente ao fracasso escolar que provém de causas internas à estrutura individual e familiar do sujeito e que se expõe através de sintoma ou inibição terá de ser especializada, voltada para o sujeito, mãe, com meios de atuação e atividades específicos, já que este problema de aprendizagem afeta a dinâmica individual, interferindo na articulação entre as instâncias da inteligência, do desejo, do organismo e do corpo, levando ao aprisionamento da inteligência e da corporidade. É aí que a atuação do psicopedagogo/educador deve se centrar, buscando a transformação. O sintoma-problema da aprendizagem é o que impõe o aprisionamento do aprender através de desejos inconscientes. Há a possibilidade, mas não há o desejo. Quando falamos de problema de aprendizagem reativo, vemos que pode haver o desejo, mas não oportunidade. Esta questão de problema de aprendizagem está intimamente relacionada às questões sociais e requerem do psicopedagogo/educador novas posturas frente a tais questões e também iniciativas de prevenção. A compreensão da dimensão social do problema de aprendizagem nos ajuda a diferenciar seu caráter sintomático/inibidor como o que o sistema sócio-educativo proporciona (tirando as possibilidades de aprender). Não há regras a respeito deste tema. Pode-se ter evidências de problema de aprendizagem em instituições consideradas excelentes e não se demonstrar casos em ambientes sem estímulos ou ínfimos em relação ao seu sistema educativo. Existem três formas possíveis de manifestação individual do problema de aprendizagem: A primeira é o problema de aprendizagem-sintoma ⇒ o sintoma é o mostrar-se inconscientemente e, para o seu entendimento é necessário o estudo acerca da história do sujeito, que nos dará aquilo que faz a “amarra simbólica” e que, assim, possibilitará a eliminação do sintoma, também compreendido como um “disfarce de si mesmo”, que aprisiona a inteligência, a capacidade de aprender, propriamente dita. Esta é a particularidade do sintoma na aprendizagem: aprisionar a inteligência que não é parte do corpo e sim parte do inconsciente e a aprendizagem é função em que participam as estruturas inteligente e desejante, inconscientes. Podemos e devemos apontar os caminhos para que “solte-se” a inteligência aprisionada, mas temos que saber que o próprio sujeito, e só ele, dará o primeiro passo em busca da sua “liberdade”. O segundo problema de aprendizagem está centrado na exibição cognitiva ⇒ menos comum que os sintomas, requer um “aparato psíquico mais evoluído”. Caracterizando-se pela evitação ao contato com o objeto do pensamento. Não se altera o pensar, mas sim, evita-se pensar, assim como se evita o aprender. O psicopedagogo/educador encontrará mais dificuldade para lidar com a inibição cognitiva do que com o sintoma, e sua abordagem deverá ser diferente. Na inibição, a modalidade de aprendizagem apresenta-se como hipoassimilação/hipoacomodação enquanto que no sintoma a modalidade de aprendizagem refere-se ao conflito e desequilíbrio, mostrando-se como hiperassimilação/hiperacomodação ou vice-versa. O terceiro problema de aprendizagem chamamos de fracasso escolar por problema de aprendizagem reativo ⇒ determinado por fatores externos ao sujeito, demonstra-se na instituição sócio-educativa, que expulsa o aprendente* e promove o repetente exitoso, que se acomoda ao sistema, reproduz, não exerce a autoria, porém vence através da repetição do que outros querem, e o fracassante, que não tem o seu saber reconhecido, que o fracasso é um problema é um problema reativo a um sistema que não os aceita e é obrigado a acumular conhecimentos. Vemos aí uma teia de significações em que o psicopedagogo/educador deve se posicionar a fim de que o aprendente*** possatransformar e libertar sua inteligência até então aprisionada. Conclusão No IX Curso de Formação de Alfabetizadores do Nordeste realizado em julho de 2001, na Universidade Federal Fluminense, pudemos vivenciar uma primeira rica experiência com o nosso novo objeto de estudo. Foi proporcionado aos alunos que relembrassem o que viveram no seu processo de aquisição do conhecimento e depois de muita emoção e recordação, puderam analisar a influência dessas vivências na sua prática em sala de aula. Foi um rico debate em que alfabetizadores se viram, alguns pela primeira vez, com um outro olhar, buscando relações a fim de transformar a história da alfabetização para os adultos que irão lecionar. Após este debate produziram textos, individualmente, chamados de memorial. Estes textos serão publicados por nós e levados para a Semana da Alfabetização, a fim de ilustrar a apresentação deste trabalho. Esta coletânea de textos produzidos pelos alfabetizadores nos reafirma o grande potencial destes sujeitos e, principalmente, faz emergir inúmeras questões acerca de todo o trabalho desenvolvido no âmbito da educação, se constituindo em pistas para análises posteriores. BIBLIOGRAFIA FERNÀNDEZ, Alicia. A inteligência aprisionada. Porto Alegre: ArtMed, 1991. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia – saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1998. GADOTTI, Moacir & ROMAO, José E. Educação de Jovens e Adultos: Teoria, Prática e Proposta. São Paulo: Cortez. SILVA, Maria Cecília Almeida e. Psicopedagogia: em busca de uma fundamentação teórica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
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