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43 Licenciatura em Pedagogia – Disciplina: Psicologia da Educação Aula 4/Texto 1: Diversas concepções de homem subjacentes às abordagens do desenvolvimento humano: Interacionismo (Vygotsky) - A teoria de Vygotski Referência Bibliográfica: DAVIS, Claudia; Oliveira, Zilma de. Psicologia na Educação. São Paulo: Cortez, 2008, p. 49-66. A teoria de Vygotski Um outro tipo de interacionismo é proposto por Lev Seminovitch Vygotski (1896- 1934). Nascido na Rússia, ele escreveu, em sua curta vida, uma ampla e importante obra, da qual apenas alguns livros foram traduzidos para o português. No trabalho de Vygotski e no dos seus seguidores, especialmente no dos seus compatriotas Luria e Leontiev, encontra-se uma visão de desenvolvimento baseada na concepção de um organismo ativo, cujo pensamento é construído paulatinamente num ambiente que é histórico e, em essência, social. Nessa teoria é dado destaque às possibilidades que o indivíduo dispõe a partir do ambiente em que vive e que dizem respeito ao acesso que o ser humano tem a "instrumentos" físicos (como a enxada, a faca, a mesa etc.) e simbó1icos (como a cultura, valores, crenças, costumes, tradições, conhecimentos) desenvolvidos em gerações precedentes. Vygotski defende a idéia de contínua interação entre as mutáveis condições sociais e a base biológica do comportamento humano. Partindo de estruturas orgânicas elementares, determinadas basicamente pela maturação, formam-se novas e mais complexas funções mentais, a depender da natureza das experiências sociais a que as crianças se acham expostas. A forma como a fala é utilizada na interação social com adultos e colegas mais velhos desempenha um papel importante na formação e organização do pensamento complexo e abstrato individual. O pensamento infantil, amplamente guiado pela fala e pelo comportamento dos mais experientes, gradativamente adquire a capacidade de se auto- regular. Por exemplo, quando a mãe mostra a uma criança de dois anos um objeto e diz "a faca corta e dói", o fato de ela apontar para o objeto e de assim descrevê-lo provavelmente provocará uma modificação na percepção 1 e no conhecimento da criança. O gesto e a fala maternos servem como sinais externos que interferem no modo pelo qual o menino ou a menina age sobre seu ambiente: com o tempo, ocorre uma interiorização progressiva das direções verbais fornecidas à criança pelos membros mais experientes de um ambiente social. Esta interiorização progressiva das orientações advindas do meio social não se faz, entretanto, de forma linear. Caso isto ocorresse, não se poderia pressupor, como Vygotski de fato o faz, que a criança seja um ser ativo. Adicionalmente, sua teoria seria, antes de mais nada, marcada por um forte determinismo do social no individual, uma vez que este último simplesmente espelharia o primeiro. O processo de internalização é, ao contrário, um processo ativo, no qual a criança apropria-se do social de uma forma particular. Reside aí, na verdade, o papel estruturante do sujeito: interiorização e transformação interagem constantemente, de forma que o sujeito, ao mesmo tempo que se integra no social, é capaz de posicionar-se frente ao mesmo, ser seu crítico e seu agente transformador. Assim, à medida que as crianças crescem, elas vão internalizando a ajuda externa que se torna cada vez menos necessária: a criança mantém, agora, o controle sobre sua própria conduta. 1 Na formatação original do livro, aqui termina a página 49. 44 Licenciatura em Pedagogia – Disciplina: Psicologia da Educação Através da própria fala, o ambiente físico e social pode ser melhor apreendido, aquilatado e equacionado: a fala modifica, assim, a qualidade do conhecimento e pensamento que se tem do mundo em que se encontra. Ao internalizar instruções, as crianças modificam suas funções psicológicas: percepção, atenção, memória, capacidade para solucionar problemas. É dessa maneira que formas historicamente determinadas e socialmente organizadas de operar com informação influenciam o conhecimento individual, a consciência de si e do mundo. Por exemplo, a visão de mundo e as conseqüentes formas de interagir com as crianças adotadas pelos adultos no século XV diferem substancialmente das utilizadas hoje em dia, especialmente se as compararmos com as do mundo urbano moderno, fortemente influenciado pelos meios de comunicação de massa. Traduzem formas diferentes de organizar, planejar e atuar sobre a realidade. Assim, as funções mentais superiores — como a capacidade de solucionar problemas, o armazenamento e o uso adequado da memória, a formação de novos conceitos, o desenvolvimento da vontade — aparecem, inicialmente, no plano social (ou seja, na interação envolvendo pessoas) e apenas elas surgem no plano psicológico (ou seja, no próprio indivíduo). A construção do real pela criança, ou seja, a apropriação que esta faz da experiência social, parte, pois, do social (da interação com os outros) e, paulatinamente, é internalizada por ela. 2 Segundo Vygotski, a aquisição de um sistema lingüístico reorganiza, pois, todos os processos mentais infantis. A palavra dá forma ao pensamento, criando novas modalidades de atenção, memória e imaginação. Mas não só isto. Além de indicar um objeto do mundo externo, ela também especifica as principais características desse objeto (abstraindo-as das características dos demais objetos), generaliza as características percebidas e as relaciona em determinadas categorias. Daí a importância da linguagem para o pensamento: ela sistematiza a experiência direta da criança e serve para orientar o seu comportamento. A relação entre fala extrema e pensamento modifica-se ao longo do desenvolvimento. Até por volta dos três anos de idade, a fala acompanha, freqüentemente, o comportamento infantil. É comum a criança de dois anos agir e descrever o que faz, ao mesmo tempo. A partir de então observa-se que a fala começa a preceder o comportamento: o menino ou a menina anuncia o que irá fazer a seguir. A fala adquire, pois, uma nova função, que é característica do pensamento complexo: a de planejar a ação, de guiar as atividades da criança. Isto é verificado quando se observa a modificação do "falar para si em voz alta", típico das menores. Após a idade de seis anos, Vygotski notou que o falar em voz alta, para si mesmo, torna-se fragmentado: é substituído por sussurros e começa a "desaparecer", tomando-se uma fala interna, aspecto integral do pensamento e que o direciona. Contudo, sempre que há confronto com situações-problemas de difícil solução, a fala externa volta a aparecer, auxiliando a atividade cognitiva. Dessa maneira, é possível afirmar que Vygotski adota a visão de que pensamento e linguagem são dois círculos interligados. É na interseção deles que se produz o que se chama pensamento verbal, o qual não inclui, assim, nem todas as formas de pensamento, nem todas as formas de linguagem. Existem, portanto, áreas do pensamento que não tem relação direta com a fala, como é o caso da inteligência prática, em geral. Por outro lado, Vygotski dá uma importância tão grande ao pensamento verbal que chega a afirmar que as estruturas de linguagem dominadas pelas crianças passam a constituir as estruturas básicas de sua forma de pensar. Ao reconhecer a imensa diversidade nas condições histórico-sociais em que as crianças vivem, Vygotski não aceita a possibilidade de existir uma seqüência universal de estágios cognitivos, como propõe Piaget. Para Vygotski, os fatores biológicos preponderam sobre os sociais apenas no início da vida das crianças e as oportunidades que se abrem para2 Fim da página 50. 45 Licenciatura em Pedagogia – Disciplina: Psicologia da Educação cada uma delas são muitas e variadas, adquirindo destaque, em sua teoria, as formas pelas quais as condições e as interações humanas afetam o pensamento e o raciocínio. 3 A construção do pensamento complexo e do abstrato Para Vygotski, o processo de formação de pensamento é, portanto, despertado e acentuado pela vida social e pela constante comunicação que se estabelece entre crianças e adultos, a qual permite a assimilação da experiência de muitas gerações. Como já foi dito, a linguagem intervém no processo de desenvolvimento intelectual da criança praticamente já desde o nascimento. Quando os adultos nomeiam objetos, indicando para a criança as várias relações que estes mantém entre si, ela constrói formas mais complexas e sofisticadas de conceber a realidade. Sozinha, não seria capaz de adquirir aquilo que obtém por intermédio de sua interação com os adultos e com as outras crianças, num processo em que a linguagem é fundamental. Em sala de aula, por exemplo, ao ensinar, o professor destaca alguns objetos existentes no ambiente chama a atenção dos alunos para determinados aspectos enquanto negligencia outros e levanta questões acerca dos elementos destacados. Nessa interação com o professor os alunos têm oportunidade para reestruturar sua percepção, discriminar pontes centrais daqueles que são acessórios ou pouco relevantes. Tais formas comportamentais usadas pelo professor na situação de aprendizagem vão sendo apropriadas pelos alunos que podem passar a usá-las de modo independente, ao tentar compreender novos aspectos de ambiente. Desenvolvimento e aprendizagem Vygotski considera três teorias principais que discutem a relação entre desenvolvimento e aprendizagem. Na primeira, desenvolvimento é encarado como um processo maturacional que ocorre antes da aprendizagem, criando condições para que esta se dê. É preciso haver um determinado nível de desenvolvimento para que certos tipos de aprendizagem sejam possíveis. Esta é, em essência, a posição defendida por Piaget. Na segunda teoria, a comportamentalista ou behaviorista, a aprendizagem é desenvolvimento, entendido como acumulo de respostas aprendidas. Nessa concepção, o desenvolvimento ocorre simultaneamente à aprendizagem, ao invés de precedê-la. O terceiro modelo teórico sugere que desenvolvimento e aprendizagem são processos independentes que interagem, afetando-se mutuamente: aprendizagem causa desenvolvimento e vice-versa. 4 Para Vygotski, no entanto, nenhuma das propostas acima é satisfatória, muito embora ele reconheça que aprendizagem e desenvolvimento sejam fenômenos distintos e interdependentes, cada um tornando o outro possível. Questionando a interação entre estes dois processos, Vygotski aponta o papel da capacidade do homem de entender e utilizar a linguagem. Assim, vê a inteligência como habilidade para aprender, desprezando teorias que concebem a inteligência como resultante de aprendizagens prévias, já realizadas. Para ele, as medidas tradicionais de desenvolvimento, que se utilizam de testes psicológicos padronizados, focalizam apenas aquilo que as crianças são capazes de realizar sozinhas. Segundo o especialista russo, a referência do indivíduo com parceiros mais experientes cria uma "zona de desenvolvimento potencial" 5 . Ele usou este termo para se referir a distância entre o nível de desenvolvimento atual — determinado pela capacidade de solução, sem ajuda, de problemas — e o nível potencial de desenvolvimento — medido através da solução de problemas sob a orientação ou em colaboração com as crianças mais experientes. Duas crianças que obtiveram o mesmo resultado num teste de inteligência (e que parecem, portanto, 3 Fim da página 51. 4 Fim da página 52. 5 Em algumas traduções este termo aparece como “zona de desenvolvimento proximal”. 46 Licenciatura em Pedagogia – Disciplina: Psicologia da Educação muito semelhantes em termos de maturação e de aprendizagens prévias) podem ser completamente diferentes, quando se considera os aspectos do desenvolvimento que ainda precisam ser construídos para que se apropriem de aprendizagens previstas para o próximo nível de idade. Desse ponto de vista é possível afirmar que a diferença entre as crianças deve-se, em grande parte, a diferença qualitativas em seu ambiente social, ou seja, a diferente forma de relacionarem-se com as pessoas em seus ambientes. Essas formas auxiliam as crianças a entrarem em sintonia com os procedimentos e os modos de realização das tarefas que se fazem necessários a vida social, favorecendo, conseqüentemente, a construção e o domínio de dadas funções psicológicas. Trata-se, pois, de diferenças qualitativas nos padrões de interação cognitiva presentes em ambientes sociais distintos. Tais padrões permitem, dificultam ou criam sérios entraves à construção do conhecimento por parte das crianças. As diferenças encontradas nos diferentes ambientes sociais das crianças (incluindo o doméstico, o escolar, o de trabalho etc. de cada uma delas) promovem aprendizagens diversas que passam a ativar processos de desenvolvimento também diversos. Portanto, a aprendizagem precederia o desenvolvimento intelectual, ao invés de segui-lo ou de ser com ele coincidente. O conceito de "zona de desenvolvimento potencial" possibilita compreender funções de desenvolvimento que estão a caminho de se 6 completar. Neste sentido, pode ser utilizado tanto para mostrar a forma como a criança organiza a informação, como para verificar o modo como o seu pensamento opera. Tal conceito é de extrema importância para um ensino efetivo. Apenas conhecendo o que as crianças são capazes de realizar com e sem ajuda externa é que se pode conseguir planejar as situações de ensino e avaliar os progressos individuais. Portanto, o papel da educação e, conseqüentemente, o da aprendizagem, ganham destaque na teoria de desenvolvimento de Vygotski, que também mostra que a qualidade das trocas que se dão no plano verbal entre professor e alunos irá influenciar decisivamente na forma como as crianças tornam mais complexo o seu pensamento e processam novas informações. Para Vygotski, em resumo, o processo de desenvolvimento nada mais é do que a apropriação ativa do conhecimento disponível na sociedade em que a criança nasceu. É preciso que ela aprenda e integre em sua maneira de pensar o conhecimento da sua cultura. O funcionamento intelectual mais complexo desenvolve-se graças a regulações realizadas por outras pessoas que, gradualmente, são substituídas por auto-regulações. Em especial, a fala é apresentada, repetida e refinada, acabando por ser internalizada, permitindo à criança processar informações de uma forma mais elaborada. Verificação de leitura 1. Complete: Nos trabalhos de Vygotski, Luria e Leontiev, encontra-se uma visão de desenvolvimento baseado na concepção de indivíduo como ______________________ cujo desenvolvimento _________________________________________________________________ _______________________________________________________________________________ 2. Complete: As possibilidades de que o indivíduo dispõe no ambiente em que vive para o seu desenvolvimento dizem respeito ao acesso que o ser humano tem a ____________________________________________________________________________ Em outras palavras, partindo de __________________________determinadas _______________________, formam-se _________________________________________ dependendo ________________________________________________________________________ 76 Fim da página 53. 7 Fim da página 54. 47 Licenciatura em Pedagogia – Disciplina: Psicologia da Educação 3. Como as crianças adquirem a capacidade para se auto-regular, segundo Vygotski? 4. Qual a relação entre fala externa e pensamento, para Vygotski? 5. O que é a "zona de desenvolvimento potencial"? 6. Qual a contribuição da teoria de Vygotski à educação? Piaget e Vygotski: diferenças e semelhanças Do que foi visto, é possível afirmar que tanto Piaget como Vygotski concebem a criança como um ser ativo, atento, que constantemente cria hipóteses sobre o seu ambiente. Há, no entanto, grandes diferenças na maneira de conceber o processo de desenvolvimento. As principais delas, em resumo, são as seguintes: a) Quanto ao papel dos fatores internos e externos no desenvolvimento Piaget privilegia a maturação biológica; Vygotski, o ambiente social. Piaget, por aceitar que os fatores internos preponderam sobre os externos, postula que o desenvolvimento segue uma seqüência fixa e universal de estágios. Vygotski, ao salientar o ambiente social em que a criança nasceu, reconhece que, em se variando esse ambiente, o desenvolvimento também variará. Neste sentido, para este autor, não se pode aceitar uma visão única, universal, de desenvolvimento humano. b) Quanto a construção real Piaget acredita que os conhecimentos são elaborados espontaneamente pela criança, de acordo com o estágio de desenvolvimento em que esta se encontra. A visão particular e peculiar (egocêntrica) que as crianças mantêm sobre o mundo vai, progressivamente, aproximando-se da concepção dos adultos: torna-se socializada, objetiva. Vygotski discorda de que a construção do conhecimento proceda do individual para o social. Em seu entender a criança já nasce num mundo social e, desde o nascimento, vai formando uma visão desse mundo através da interação com adultos ou crianças mais experientes. A construção do real é então, 8 mediada pelo interpessoal antes de ser internalizada pela criança. Desta forma, procede-se do social para o individual, ao longo do desenvolvimento. c) Quanto ao papel da aprendizagem Piaget acredita que a aprendizagem subordina-se ao desenvolvimento e tem pouco impacto sobre ele. Com isso, ele minimiza o papel da interação social. Vygotski, ao contrário, postula que desenvolvimento e aprendizagem são processos que se influenciam reciprocamente, de modo que, quanto mais aprendizagem, mais desenvolvimento. d) Quanto ao papel da linguagem no desenvolvimento e a relação entre linguagem e pensamento Segundo Piaget, o pensamento aparece antes da linguagem, que apenas é uma das suas formas de expressão. A formação do pensamento depende, basicamente, da coordenação dos esquemas sensoriomotores e não da linguagem. Esta só pode ocorrer depois que a criança já alcançou um determinado nível de habilidades mentais, subordinando-se, pois, aos processos de pensamento. A linguagem possibilita a criança evocar um objeto ou acontecimento ausente na comunicação de conceitos. Piaget, todavia, estabeleceu uma clara separação entre as informações que podem ser passadas por meio da linguagem e os processos que não parecem sofrer qualquer influência dela. Este é o caso das operações cognitivas que não podem ser 8 Fim da página 55. 48 Licenciatura em Pedagogia – Disciplina: Psicologia da Educação trabalhadas por meio de treinamento específico feito com o auxílio da linguagem. Por exemplo, não se pode ensinar, apenas usando palavras, a classificar, a seriar, a pensar com reversibilidade. Já para Vygotski, pensamento e linguagem são processos interdependentes, desde o início da vida. A aquisição da linguagem pela criança modifica suas funções mentais superiores: ela dá uma forma definida ao pensamento, possibilita o aparecimento da imaginação, o uso da memória e o planejamento da ação. Neste sentido, a linguagem, diferentemente daquilo que Piaget postula, sistematiza a experiência direta das crianças e por isso adquire uma função central no desenvolvimento cognitivo, reorganizando os processos que nele estão em andamento. 9 Verificação de leitura 1. Preencha resumidamente o quadro abaixo, comparando as teorias de Piaget e Vygotski. DIFERENÇAS PIAGET VYGOTSKI Papel dos fatores internos e externos no desenvolvimento Processo de construção real Papel da aprendizagem Papel da linguagem no desenvolvimento: relação entre Linguagem e pensamento 10 9 Fim da página 56. 10 Fim da página 57. 49 Licenciatura em Pedagogia – Disciplina: Psicologia da Educação 2. Crescimento e desenvolvimento: o biológico em interação com o psicológico e o social —Que idade você tem, Peter Pan? — Não sei. Só sei que sou bastante criança. Fugi de casa no mesmo dia em que nasci. —No mesmo dia em que nasceu7 Que idéia! E por que, meu caro? —Porque ouvi uma conversa entre meu pai e minha mãe sobre o que eu havia de ser quando crescesse. Ora, eu não queria crescer. Não queria, nem quero nunca virar homem grande, de bigodeira na cara feito taturana. Muito melhor ficar sempre menino, não acha? Por isso fugi e fui viver com as fadas. (Monteiro Lobato, Peter Pan) Peter Pan sabia que crescer significava tomar-se adulto, implicava ter que mudar sua aparência física e assumir novos papéis. Por isso Peter Pan queria continuar menino. Essa era a sua maneira de não enfrentar as mudanças que necessariamente viriam com o crescimento. Ora, quando se fala em crescimento, em geral as pessoas estão se referindo ao aspecto quantitativo da evolução humana. Mas ele não é só isso: a mão da criança, por exemplo, diferencia-se da do adulto não só pelo tamanho, mas também pela destreza, agilidade, maior precisão e controle dos seus movimentos. As razões que provocam o crescimento e ocasionam tantas modificações não são de todo conhecidas. Até hoje, por exemplo, não há consenso entre os bió1ogos a respeito de por que as cé1ulas crescem e se organizam. No entanto, como toda matéria viva tem necessidade de manter um equilíbrio entre meio interno e meio externo, o crescimento pode ser entendido como uma das conseqüências das trocas entre organismo e meio. A alimentação, a luz, a temperatura e a composição química do meio contribuem para a dinâmica de crescimento. De igual maneira, também os hormônios são importantes para o equilíbrio dos diferentes órgãos e tecidos. Os processos de crescimento vegetal, animal e humano apresentam muitas características semelhantes. Todavia, o crescimento humano é essencialmente diferente do crescimento dos demais seres vivos, pois o homem vive em sociedade. Ao longo do convívio social, ele transforma tanto as maneiras através das quais mantém seu equilíbrio face ao meio, como a finalidade mesma do equilíbrio. O crescimento humano não é, desta maneira, mera manifestação do biológico, mas também expressão 11 das condições existentes no mundo social, em especial, dos avanços técnicos e das conquistas culturais. Progressos da medicina, do saneamento, da educação, da agricultura etc. levam não só a novas modalidades de sobrevivência como também a transformações radicais no próprio meio em que se vive. O contraditório é que a sociedade não apenas contribui para melhorar as condições de vida do homem: ela também atua no sentido de piorá-las. Vacinas, anti-bióticos, a divulgaçãode hábitos de higiene, a racionalização da agricultura, o desenvolvimento dos transportes, são, entre muitos outros, benefícios a disposição do homem. Em contrapartida, há os efeitos da poluição do ar, das águas e do meio ambiente em geral, que aumentam a incidência de doenças e provocam mesmo o aparecimento de outras. Dessa forma, o crescimento humano ocorre dentro de um espaço em contínua transformação pela ação social. Nele, o psíquico e o biológico estão em constante interação, de modo que o primeiro impulsiona o segundo em direção a constantes e sucessivas modificações. Na criança, as possibilidades de crescimento existem como capacidades biopsicológicas potenciais. Dessa maneira, a realização efetiva dessas capacidades depende das condições sócio-culturais disponíveis. É diferente se a mesma criança for colocada para viver num 11 Fim da página 58. 50 Licenciatura em Pedagogia – Disciplina: Psicologia da Educação ambiente com boa alimentação e condições sanitárias adequadas, onde existem oportunidades para viver situações de trabalho e de prática de esportes, ou em outro ambiente onde estas características não se encontram presentes. É importante salientar que um menino ou menina desnutrida, por sofrer uma diminuição sensível em seus tônus muscular, apresentem características tais como apatia, menor capacidade de concentração e de atenção etc. Como conseqüência, o padrão de interação estabelecido com ele/ela é menos estimulante do que aquele que se mantém com uma criança robusta, alerta e atenta. Espera-se menos da criança desnutrida e, dada a essa diferente expectativa, altera-se drasticamente a natureza do contato interpessoal: ele fica empobrecido, menos estimulante, mais condescendente. Com isto, as trocas cognitivas e efetivas que a criança desnutrida poderia ter com o seu ambiente empobrecem-se, perdem o vigor. Por isso é possível considerar que o crescimento e o desenvolvimento são processos praticamente inseparáveis, ainda que distintos. A curva do crescimento nem sempre coincide com a do desenvolvimento. A primeira tende a atingir seu ponto mais alto quando a maturação biológica é alcançada. A curva do desenvolvimento, por outro lado, é contínua, acompanhando o homem durante toda a sua vida. 12 O processo de crescimento culmina com o aparecimento de um tipo adulto previsto geneticamente. Já o processo de desenvolvimento propicia a construção do padrão de individualidade que caracteriza cada sociedade. Ambos os processos produzem, no indivíduo, mudanças físicas, mentais, emocionais e sociais. Compreender o crescimento e o de- senvolvimento humano exige, assim, que se pense no homem — e em si mesmo — não apenas do ponto de vista biológico mas, principalmente, como alguém que é historicamente determinado. Verificação de leitura 1. Por que foi dito que "o crescimento humano não é mera manifestação do biológico, mas é também expressão das condições existentes no mundo social"? 2. Por que foi dito que "o crescimento e o desenvolvimento são processos praticamente inseparáveis, ainda que distintos"? 3. Questionando o caráter inato da aptidão, prontidão e inteligência A necessidade de buscar, na Psicologia, uma maneira mais produtiva de se conceber a aprendizagem escolar requer que se tome alguns conceitos mais discutidos, tais como aptidão, prontidão e inteligência, questionando-se o caráter inato que lhes é, em geral, atribuído. A teoria da aptidão é amplamente defendida pela ideologia das diferenças individuais. A aptidão é vista como um "dom", uma certa habilidade inata, que se refere a um estado específico presente no ser humano. Todavia, muito embora seja verdade que existem diferenças no potencial biológico dos indivíduos, não se pode aceitar a noção de que aptidão seja uma "disposição natural", inata e herdada. Na verdade, se os educadores adotarem essa visão, estarão prejudicando as crianças e adolescentes que freqüentam a escola numa sociedade desigual como é a brasileira, onde as oportunidades de se desenvolver através da educação escolar não são uniformes. Justificar o fracasso ou o sucesso dos alunos através da teoria da aptidão — da crença de que uns 13 são mais capazes do que outros para o estudo — é desconsiderar o grande peso exercido pelas condições de vida da família e pela própria instituição escolar sobre a aprendizagem. Defender tal visão significa, sobretudo, ocultar a determinação econômica que se encontra na base do de- senvolvimento humano. 12 Fim da página 59. 13 Fim da página 60. 51 Licenciatura em Pedagogia – Disciplina: Psicologia da Educação Quando se tem duas crianças que desenham bem, possuem boa acuidade visual, percepção adequada de detalhes e cores, precisão no traço e firmeza nas mãos, nada se pode dizer a respeito do desempenho artístico futuro de cada uma delas. Na verdade, se para ambas o prognóstico é promissor, as condições para desenvolver a sensibilidade e o manejo de técnicas de pintura podem ser distintas: uma criança pode ter acesso a boas escolas, a excelentes professores, a materiais ricos e diversificados e a outra, não. Está aí, e não na aptidão, a explicação do sucesso de alguns e do fracasso de muitos. Nesse sentido, é preciso que se tenha claro que determinados fatores (tais como acesso à saúde, alimentação apropriada, lazer enriquecedor, proximidade da cultura letrada, desenvolvimento lingüístico etc.), ao se aliarem a uma escola bem aparelhada, com professores de formação só1ida, que propiciam um ambiente agradável e desafiante aos seus alunos, constituem os elementos centrais para a permanência na escola e construção do saber escolar. Daí a necessidade de se questionar o caráter inato e, portanto, natural da aptidão. É mais adequado entender a aptidão como uma disposição vaga e imprecisa do indivíduo, sobre a qual a educação atua no sentido de promover o desenvolvimento cognitivo, afetivo, motor, social, lingüístico etc. Vista dessa ótica, a aptidão não passa de uma tendência para adquirir e aprofundar novos padrões de ação e de pensamento. Indica possibilidades de aprendizagem, onde preferências naturais se mesclam e se complementam com preferências adquiridas, garantindo os refinamentos e mobilidades necessárias a vida em sociedade. Assim, só se deve considerar as aptidões à luz do meio físico e social em que as crianças vivem, uma vez que este pode ser favorável ou desfavorável àquelas. Vale ainda mencionar que, para aprender qualquer habilidade, inclusive as ensinadas nas escolas, as disposições naturais são freqüentemente contrariadas. Por exemplo, o ato de escrever exige, daquele que escreve, precisão, tensão e manejo do lápis que só com dificuldade se aprende. Escrever não pode, assim, ser considerado como uma "ação natural". A defesa do caráter inato das aptidões individuais acarreta um outro problema: repercute negativamente sobre a auto-estima dos alunos, ou 14 seja, sobre a idéia que cada aluno faz de si mesmo, sobre aquilo que é capaz e sobre a valorização que atribui a si. Quando um professor diz a um aluno que não adianta ele estudar Matemática porque não tem aptidão para aprender essa disciplina, esta interferindo negativamente em sua auto-imagem e, conseqüentemente, em seu desempenho. Na verdade, havendo boas condições de ensino, incluindo incentivo e prática, todas as crianças podem aprender Matemática. A teoria da aptidão não serve, pois, para orientar uma prática que beneficie os alunos, auxiliando-os a dominar e a superar as suas dificuldades de aprendizado. Pelo contrário, ela tem sido usada muitasvezes para esconder atuações inadequadas da escola, deslocando um problema, que é do ensino, para a aprendizagem. A1ém do mais, quem decide se a aptidão está ou não presente? O uso de "testes de aptidão" pode ser enganoso. Tais testes não vão além de quantificar comportamentos e atitudes aparentes: não medem disposições complexas em constante transformação, nem o significado cultural das mesmas, ou seja, a sua utilidade num determinado grupo social. Outro termo também associado à posição inatista é o de prontidão. Refere-se a um processo cumulativo de desenvolvimento que tem o poder de influenciar o proveito retirado das experiências ou práticas atuais. Identifica-se a presença da prontidão pela quantidade de esforços e práticas gastos na aprendizagem: muito esforço para aprender é entendido como uma ausência da prontidão; pouco esforço representa presença de prontidão. Infelizmente, tal noção passou a ser encarada, por muitos educadores, como um estado produzido unicamente por fatores internos do indivíduo, sem quaisquer interferências de fatores externos a ele. considerada dessa forma, a prontidão dependeria apenas da maturação e não de aprendizagens anteriores. Adotando essa visão, os professores acabaram por aceitar, implícita ou rigidamente, que existe uma idade precisa para se aprender determinadas tarefas. Deixaram 14 Fim da página 61. 52 Licenciatura em Pedagogia – Disciplina: Psicologia da Educação de perceber, assim, que o que deve ser considerado na aprendizagem não é tanto a idade da criança como o modo pelo qual ela pensa, sua forma de raciocinar. Naturalmente, o professor não deve expor a criança prematuramente a tarefas que ela ainda não é capaz de dominar, pois isto redundaria em fracasso da aprendizagem ou em aprendizagem à custa de grandes sacrifícios e sofrimentos. Mas o educador pode (e deve) aproveitar ao máximo as oportunidades de aprendizagem, não adiando as mesmas indefinidamente, em busca do "estado ideal" de prontidão. Fundamental é conhecer como o aluno age em determinada situação, propor-lhe sucessivos 15 desafios e participar, com ele, da tarefa de solucioná-los. Neste trabalho, o professor dá pistas aos estudantes para que eles percebam seus comportamentos e aquilo que lhes é exigido. A falta de prontidão para realizar determinadas atividades muitas vezes acaba se transformando em justificativa convincente para alguns professores, sempre que as crianças "não aprendem" na medida do esperado. Como resultado, quem ensina tende a se isentar de toda e qualquer responsabilidade pelo insucesso dos alunos. Não se avalia a atuação docente, não se condena a prática pedagógica em sala de aula. É fato que um certo nível de desenvolvimento, as estruturas cognitivas de que já se dispõe e os objetivos que se busca alcançar determinam, em certa medida, o conteúdo, o método e os matérias de ensino. Por outro lado, não se pode negligenciar o fato de que a eficiência das práticas educativas também influencia a prontidão. Na verdade, quando a prontidão não se encontra presente, essa ausência decorre também de um ambiente educacional pouco estimulante. Já o termo inteligência também recebe tratamento próprio na visão inatista. Tal termo se refere a uma noção complexa e de difícil definição. Até o começo do século atual, a inteligência era encarada como um potencial finito, herdado por ocasião da concepção e que não sofria, ao longo do tempo, quaisquer mudanças qualitativas. Nessa visão, a inteligência era tida como imutável: o ambiente não causava sobre ela nenhum impacto. Contudo, mais recentemente, essa posição foi revista. Sem se desprezar o papel da herança biológica na inteligência, reconhece-se, hoje, que esta pode ser afetada drasticamente pelo ambiente. Nesse sentido, ela pode ser melhor entendida como uma interação complexa entre a hereditariedade e a experiência. Assim, o fato de uma criança ir bem na escola, ser criativa, resolver satisfatoriamente certas situações-problemas e por isso ser tida como inteligente, não pode ser atribuído exclusivamente a uma herança biológica. O sucesso dessa criança deve ser explicado, sobretudo, pela oportunidade que tem de interagir em ambientes estimulantes, seja em casa, na escola, seja na vizinhança. Se ela vivesse em condições diferentes — em um ambiente apático, pouco rico ou motivador — dificilmente ela seria percebida como inteligente e criativa. Nos últimos cem anos, muitos autores se empenharam em tentar "medir" a inteligência, criando, para tal, uma tecnologia bastante sofisticada. Na base desses estudos encontra-se, em geral, um interesse pelas diferenças individuais e pelas formas através das quais estas se manifestam. No entanto, o fato de esse interesse ter estado, pelo menos em 16 seu início, ligado à concepção inatista, fez com que freqüentemente as medidas de inteligência fossem utilizadas de forma inadequada: em vez de servirem para assegurar o acesso a cada horizonte disponível, foram empregadas para diminuir as oportunidades ou provar que determinados indivíduos ou grupos são inferiores a outros. Daí a necessidade de se investigar mais de perto o principal resultado dos esforços para se medir a inteligência: os testes de QI. Entende-se por QI (quociente de inteligência) o resultado alcançado em testes de nível mental, onde uma série de tarefas, em ordem crescente de dificuldades, é apresentada a crianças, adolescentes ou adultos. Cada uma das tarefas do teste está posicionada dentro do nível previsto para uma determinada idade. Imagine-se que uma 15 Fim da página 62. 16 Fim da página 63. 53 Licenciatura em Pedagogia – Disciplina: Psicologia da Educação criança de oito anos respondeu corretamente todos os itens que se supunha que uma criança de nove anos pudesse responder. Quando ela chegou aos quesitos da idade de dez anos, ela só acertou metade deles e, naqueles destinados aos onze anos, só se saiu bem em um quarto. Todos os itens dos doze anos foram errados. A idade mental dessa criança, pois, é de 9 anos + 6 meses (1/2 de um ano) + 3 meses (1/4 de um ano) + 0, o que dá, como resultado, 9 anos e 9 meses (ou seja, 9 anos + 75% de 1 ano). O quociente de inteligência é obtido dividindo-se a idade mental pela idade cronológica e multiplicando-se o resultado por 100. No exemplo dado, o QI dessa criança é de: QI = 9.75 (idade mental) X 100 = 121.8 8 (idade cronol6gica) O fato que deve ser questionado, quando se discute a ação da escola, é que o QI não costuma ser encarado como aquilo que é — o resultado de um teste de inteligência — mas, muitas vezes, é tornado como sinônimo da própria inteligência. Essa concepção circular ("O que é inteligência? — E o resultado que se obtém no teste de QI. — E o que é QI? — E aquilo que mede a inteligência.") chega mesmo a existir entre profissionais. Estes, muitas vezes, não deixam claro nem mesmo o teste ou instrumento no qual o QI se baseia. Como o QI tende a ser encarado como algo estável, pouca ênfase é colocada nos processos que servem de base às modificações qualitativas no modo intelectual de se operar. Nesse sentido, é fundamental esclarecer que o QI é apenas a expressão do nível de habilidades que se tem em um determinado momento, em 17 relação ao grupo etário que serviu de norma para o teste em questão. Não é possível, através de um teste de inteligência, conhecer as razões que levaram a criança ou o adulto a apresentar tal resultado. Infelizmente, entretanto, atribui-se com freqüência o desempenho precário do aluno em um teste, ou mesmo em uma atividadecotidiana, à inteligência "inadequada" ou "insuficiente". Com este raciocínio, não só se deixa de compreender a dificuldade da criança como, sobretudo, impede-se a identificação de suas causas. Esse fato é agravado pela crença de que a inteligência é uma capacidade inata que acompanha os indivíduos desde o nascimento. Com isto, como já foi dito, esquece-se que a hereditariedade, embora contribua para a capacidade intelectual, não a determina geneticamente. A inteligência não é nem fixa nem imutável: seu potencial pode ser plena ou parcialmente utilizado, dependendo das condições ambientais encontradas na família, na escola e na vida em geral. Na escola equiparar a inteligência a uma propriedade inata significa rotular algumas crianças de "incompetentes" sem nenhuma base para tal. As conseqüências — como no caso da aptidão — são desastrosas, na medida em que se supõe que pouco resta para a escola fazer, pois, quando se supõe que o desempenho insatisfatório é culpa das próprias crianças, não se avalia — por não se considerar ser este o foco do problema — a atuação dos professores. Em síntese Por todas as razões acima levantadas, acredita-se que as teorias inatistas de desenvolvimento tenham-se prestado mais a rotular os alunos como "incapazes" do que a promover um real entendimento daquilo que, na verdade, dificulta a aprendizagem. Daí a ênfase dada à visão interacionista do desenvolvimento humano, pois ela não acredita numa rotulação estática dos alunos. Antes, procura apreendê-los dinamicamente, na sua relação com o mundo, em especial com os elementos do ambiente escolar: pessoas, tarefas, concepções. Sobretudo, na visão interacionista, os conceitos de aptidão, prontidão e inteligência sofrem drásticas 17 Fim da página 64. 54 Licenciatura em Pedagogia – Disciplina: Psicologia da Educação transformações: são encarados como construções contínuas do indivíduo em sua relação com o meio. 18 Verificação de leitura 1. Contraponha resumidamente, utilizando o esquema abaixo, explicações inatistas e interacionistas a respeito da aptidão, prontidão e inteligência. Explicação inatista Explicação interacionista Aptidão Prontidão Inteligência 19 18 Fim da página 65. 19 Fim da página 66.
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