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CIÊNCIA POLÍTICA ESTADO E POLÍTICA NO BRASIL: UM OLHAR PRELIMINAR O BICHO Vi ontem um bicho Na imundície do pátio Catando comida entre os detritos. Quando achava alguma coisa, Não examinava nem cheirava: Engolia com voracidade. O bicho não era um cão, Não era um gato, Não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem. (Manoel Bandeira) • O ESTADO MODERNO, como instituição liberal e laica, resulta de um processo histórico e gradual que envolveu diferentes atores sob fortes conflitos na medida em que ia se estabelecendo. • O Brasil destoa desta tendência; suas singularidades permitem identificar um “continuísmo” a cada mudança de regime (colônia, império, república) onde a elite no poder conseguiu articular alterações sem incluir a maioria da população, evitando grandes rupturas sociais, propriamente dito. Alterações significativas na esfera política, sob o ponto de vista modernizante, se percebem somente a partir da década de 1930. • É possível dizer que a construção do ordenamento político máximo inicia, literalmente, com a chegada dos navios trazendo a família real de Portugal. • O Estado, no Brasil, não brota dos anseios da sociedade organizada, mas, é claro, acaba se constituindo em relação a esta. • É necessário um olhar abrangente, pois nada é gratuito; há uma história, um porquê. Muito do que hoje se percebe, se explica pela formação: como o Brasil lançou as bases para seus arranjos políticos e formação do seu Estado. AS RAÍZES DA POLÍTICA BRASILEIRA • O Brasil foi colônia durante 400 anos. • Ser colônia significa que ter a obrigação de gerenciar a vida e os recursos em função da metrópole. Não há economia local. Os olhos se voltam para o mercado externo. O valor da colônia está em ser fonte de riqueza mineral e agrícola, especialmente do que era escasso na Europa. • Depois, o que era produzido em Portugal, aqui devia também ser consumido, até o que não tinha qualidade ou serventia. Enfim, o sistema colonial, baseado no regime mercantilista, construiu um Estado forte que protegeu durante muitos anos os interesses da elite mercantil, garantindo monopólios e privilégios. Política era isso... • Fundamentos da colonização portuguesa na América: grande propriedade; escravidão e produção para o mercado externo (mercantilismo). • A sociedade colonial brasileira estratificada em quatro classes: no topo da pirâmide estavam os proprietários rurais, grandes comerciantes e cidadãos do litoral; no meio encontravam-se os pequenos proprietários rurais e urbanos, mineradores, comerciantes e funcionários públicos; mais abaixo os agregados das fazendas, os artesãos, capangas e índios; e, na base, os escravos. E, como lembra Carvalho, as relações sociais giravam em torno de dois eixos: violência e paternalismo (“favor” dos ricos para com os pobres, mantendo a ausência de autonomia). Quanto a esfera política, evidenciam-se duas marcas ou “colunas” sobre as quais a sociedade e a política do Brasil imperial se ancoravam: o “patrimonialismo” e o “coronelismo”. São dois conceitos elucidativos e muito importantes para a compreensão dos aspectos centrais das relações de poder na histórica brasileira. PATRIMONIALISMO “[...] a mistura, o conluio, entre poder estatal e o poder privado. [...] o Estado distribui seu patrimônio – terras, empregos, títulos de nobreza e honoríficos – a particulares em troca de cooperação e lealdade.” O que resulta disso é a inexistência de cidadania. Há, antes, “[...] súditos envolvidos num sistema de trocas com o Estado, regido pelo favorecimento pessoal do governante, de um lado, e pela lealdade pessoal do súdito, de outro”. E do ponto de vista objetivo, a relação que o governo mantém com a sociedade pode ser definida como “clientelismo”. CORONELISMO Resulta da relação clientelista entre Estado e interesses particulares. Trata-se de um sistema político; uma complexa rede de relações que vai desde o coronel até o presidente da República, envolvendo compromissos recíprocos. A princípio, o coronel era o título do comandante máximo da Guarda Nacional criada em 1831, em substituição as ordenanças da época colonial. Este regimento não era pago pelo Estado e não estava submetido à sua burocracia. Normalmente a guarda era sustentada pelos próprios comandantes, em sua maioria grandes proprietários rurais ou ricos comerciantes, o que fazia dos coronéis homens de grande poder político local. O que se evidencia é a troca de favores e interesses. O “coronelismo” atingiu seu apogeu durante a Primeira República (1889-1930). O coronel apoiava o governador, que apoiava o coronel. ASPECTOS DA DEMOCRACIA BRASILEIRA • O que dizer da democracia no Brasil? • Considerando que este regime prima pela soberania popular, pela igualdade política e, se ainda, considerarmos a perspectiva de uma democracia substantiva, que sublinha a cidadania plena, temos de reconhecer que há inúmeras fragilidades. • Nossa trajetória democrática é recente. • Falar da democracia no Brasil, “[...] não há conhecimento acumulado, consistente.” • Não se pode exigir além do real. • O atual regime democrático brasileiro começa a se constituir em meados da década de 1980, quando tem fim o regime autoritário iniciado em 1964, com o golpe militar que tomou da sociedade civil o poder, concentrando-o nas mãos das Forças Armadas. Hoje, a situação do Bra-sil, em termos de política institucional, está estabilizada (legal), porém, se ampliarmos o foco de análise, tentando captar a realidade social através da verificação da correspondência entre o que é “legal” e o comportamento social e as condições de vida, há várias instabilidades. • A democracia formal (institucional) vai bem; já a democracia de fato (a inclusão do povo, o acesso aos direitos cidadãos), deixa a desejar. • Democracia, deixando as discussões teóricas de lado, passa por posturas pessoais nas interações humanas. Intolerâncias, preconceitos e dogmatismos impendem qualquer desenvolvimento da política e de regimes democratizantes, que dêem conta da violência e da grande desigualdade social em que o Brasil se encontra, realidade que, sem dúvida, coloca em xeque qualquer idéia de ordenamento político que se pretenda justo. O grande teste da democracia política de que gozamos desde 1985, e o grande desafio dos brasileiros, será produzir e implementar políticas que reduzam a desigualdade que nos separa e a violência que nos amedronta. A desigualdade é hoje o equivalente da escravidão no século XIX. José Bonifácio dizia da escravidão que ela era um câncer que corroia as entranhas da nação e ameaçava sua existência. O mesmo se pode dizer hoje da desigualdade. (José Murilo de Carvalho )
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