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REPENSANDO A ANÁLISE DE DISCURSO: CONTRIBUICÕES DA HERMENÊUTICA DE PAUL RICOEUR Giovandro Marcus Ferreira* “Eu direi de maneira resumida que de um lado a noção de texto é um bom paradigma para a ação humana, de outro, a ação é um bom referente para toda uma categoria de texto” Paul Ricoeur A hermenêutica de Paul Ricoeur tem um caráter aplicado. Ao longo de seus estudos, vários domínios do saber foram analisados e por conseguinte, enriquecidos com sua contribuição filosófica. Entre eles, encontra-se sua contribuição junto à Semiologia. Ricoeur, na sua busca de conflitos de interpretação, encontra neste campo de estudo, um terreno propício para desenvolver um diálogo fecundo. A reflexão de Ricoeur em torno da Semiologia deparou-se com os estruturalistas, originários da vasta corrente linguística que teve como precursor Ferdinand Saussure: a Semiologia de Roland Barthes, a Semiótica de Algirdas Julien Greimas, a crítica literária de Gérard Genette... Todos estes pensadores tinham em comum uma reflexão arraigada somente nas estruturas do texto, em detrimento da exclusão da intenção presumida dos seus autores.1 * Professor no Departamento de Comunicação Social - UFES, doutor em Ciências da Informação pelo Institut Français de Presse et Communication, Universidade de Paris II. 1As críticas e diálogo mantido com A.-J. Greimas foram condensados por Paul Ricoeur em 3 artigos reagrupados no seu livro Lectures 2. Ver RICOEUR, Paul, “La grammaire narrative de Greimas” (1980), “Figuration et configuration. A propos du Maupassant de A.-J. Greimas” (1976), “Entre herméneutique et sémiotique (1990), in Lectures 2 - La contrée des philosophes, Paris, Seuil, 1992. Neste nosso texto queremos mostrar a contribuição de Ricoeur à análise de discurso pelo seu círculo hermenêutico, edificado pelas três mimesis. Através da noção de mundo a configurar, mundo configurado e mundo refigurado, Paul Ricoeur evidencia um duplo processo que se estabelece no ato de comunicação: o processo de transformação ou de configuração e o processo de negociação. A construção dos sujeitos discursivos (Se Sujeito Enunciador e Sd Sujeito Destinatário) estão numa relação de reciprocidade com os sujeitos extra-discursivos, inseridos em contextos diversos. O ato de comunicação é influenciado por este duplo processo e não somente pela relação dos sujeitos internos ao discurso. A apresentação do círculo hermenêutico ou de semiotização global de Ricoeur nos leva, necessariamente, a repensar os postulados que determinam a relação dos sujeitos discursivos. O objetivo, então, deste nosso artigo é de evidenciar ao longo da apresentação do círculo hermenêutico de Ricoeur, os imperativos que nos levam a repensar os postulados que norteiam os estudos da análise de discurso. 1. O posicionamento da relação Se-Sd num processo global de significação Para Ricoeur quando alguém diz alguma coisa à uma outra pessoa sobre qualquer coisa, abrem-se três frentes: a mediação do signo, o reconhecimento do outro implicado no ato de interlocução e por fim, a relação ao mundo também solicitada na visão referencial do discurso. Ele considera assim que o discurso é um lugar de intercessão dessas três problemáticas. Os sujeitos no interior do discurso, tanto explorados estudos semiológicos através da relação (Se-Sd), estão posicionados de fato num círculo mais amplo denominado círculo hermenêutico. A superação do círculo semiológico, considerado como uma totalidade do processo de significação, é dificilmente alcançada pela própria Semiologia. É preciso esgarçar o processo de significação, para assim vê-lo numa outra perspectiva. A Hermenêutica participa desta empreitada quando ela tem como objetivo “reconstruir o conjunto das operações pelas quais uma obra se levanta sobre o fundo opaco do viver, do agir e do sofrer, e se dá para um outro, a um leitor que recebe e por conseguinte muda o seu agir”.2 Assim, as operações conduzidas por certos semiólogos não são que uma parte do círculo hermenêutico, que Ricoeur esboça através das três mimesis.3 Isso significa que em torno da configuração efetuada pela relação entre os sujeitos discursivos (Se-Sd) desdobra-se dois processos que são levados em conta neste círculo tridimencional. O círculo semiológico se torna assim uma das mímesis (II), que agora se encontra entre duas outras. Ela é precedida pela prefiguração ou mímesis I e sucedida pela refiguração ou mímesis III. Nós poderemos apresentar as três mímesis da maneira seguinte: CÍRCULO HERMENÊUTICO OU SEMIOTIZAÇÃO GLOBAL Processo de configuração (transformação) ½½ ½½ ½½ ½½ Mundo a Sujeito Falante Mundo Sujeito Falante Mundo Configurar ½½ Configurado ½½ Refigurado (Mímesis I) ½½ (Mímesis II) ½½ (Mímesis III) ½½ ½½ ½½ ½½ Processo de negociação (transação) 2RICOEUR, Paul, Temps e Récit, vol. 1, Paris, Editions du Seuil, 1983, p. 106-107. 3 Termo mímesis (mimese em português) é bem explorado por Aristóteles em seu livro Poética. Aristóteles usa com frequência este termo, sem por isso ter a preocupação de definí-lo. A etimologia da palavra mimoi, leva a uma tradução de mímesis por imitação, representação. Se a tradução mantém a palavra imitação para assegurar uma coerência com a tradição retórico-poética, é preciso dizer que o termo mímesis de Aristóteles não representa uma pura cópia, como poderia deixar transparecer pelas concepções de seu mestre Platão. A mímesis aristotélica comporta “a ação de imitar um modelo, mas também o resultado desta ação, a representação deste modelo”. Ver a introdução feita por Michel Magnien do livro Poética, edição francesa. ARISTOTE, Poétique, Paris, Librairie Générale Française, 1990. Estas três mímesis contituem um processo de semiotização ou significação global no qual Paul Ricoeur tenta demonstrar que o tempo é estruturado como uma narração - récit. A passagem pela narrativa marca a elevação do tempo do mundo ao tempo do homem, como alguns idiomas fazem a diferença, o alemão, por exemplo, entre tempo fora da língua Zeit e o tempo da língua Tempus.4 Assim, pelo processo das três mímesis, Ricoeur edifica conjuntamente uma teoria do texto e uma teoria da ação.5 As mímesis descrevem o duplo aspecto do signo. De um lado, ele não é a coisa ao qual ele se refere, quer dizer, ele não se metamorfoseia com sua referência, mas de outro lado, ele invoca o referente, ele é uma “representação” ou “imitação” daquilo a que ele se refere. Este duplo aspecto condensa a força e a fraqueza do signo, de onde origina-se o funcionamento dialético das três mímesis. “De um lado, o signo não é a coisa referenciada. Ele está recolhido em relação ao seu referente e ele engendra, por esta razão, uma nova ordem que se ordena à uma intertextualidade. De outro lado, o signo designa alguma coisa, e é preciso ser atento a esta segunda função, que intervêm como uma conpensação no que toca à primeira, caso ela compensa o exílio do signo na sua ordem própria... O signo realiza um recolhimento em relação às coisas, e a frase regressa a linguagem ao mundo.”6 Esta relação entre a linguagem e a realidade, onde a “linguagem se constrói de uma certa maneira marginalmente à experiência”, leva a um universo quase autônomo. Nesta perspectiva, uma legitimidade é acordadaa certos estudos sobre o discurso que não levaram em conta o universo extra-linguístico. Tais estudos se aprofundaram no “exílio do signo”, uma etapa fundamental do funcionamento do discurso, mas não a única. Não se pode ignorar o extra-linguístico, no momento em que as questões e os objetivos da utilização da linguagem ultrapassam os domínios internos ao discurso. Este patamar mais vasto das implicações do 4WEINRICH, Harald, Le temps, Paris, Editions du Seuil, 1973. 5RICOEUR, P., Du texte à l’action, Op. cit. 6RICOUER, P., La critique et la conviction, Paris, Calmann-Lévy, 1995, p. 259-260. funcionamento do signo, do discurso, é melhor detectado pela articulação entre as três mímesis trabalhadas por Paul Ricoeur. 2. A mímesis I ou porque o mundo se torna discurso A estruturação do discurso ou mediação simbólica da ação requer uma pré- compreensão do mundo pelo sujeito falante. Ricoeur condiciona esta exigência ao conhecimento ou domínio do sujeito falante a três fatores básicos: estruturas inteligíveis, recursos simbólicos e aspecto temporal. As estruturas inteligíveis correspondem à cadeia conceitual da qual dispõe o sujeito falante. Esta cadeia conceitual vai distinguir o domínio da ação e este do domínio do movimento físico. Ele permite identificar um agente e os motivos de sua ação, a diferença entre o “porque” e o “quem”. A inteligibilidade do mundo encontra-se na relação entre a compreensão prática e a compreensão narrativa. Parte-se do pressuposto que os sujeitos falantes - o narrador e seu auditório - são familiarizados com termos como agente, objetivo, meio, circunstância, ajuda, cooperação, conflito, sucesso, fracasso, etc; mas também com as regras sintáticas que engendram as modalidades narrativas do discurso, e por conseguinte as regras que compõem a ordem diacrônica da história.7 A relação entre inteligência prática e narrativa é ao mesmo tempo uma relação de pressuposição - é preciso se familiarizar para discernir os “componentes” de uma ação e as regras que dão sentido à narração. A relaçãoentre inteligência prática e narrativa coloca em evidência o processo de transformação, onde o mundo a significar torna-se mundo significado, quer dizer, a coisa apresentada torna-se pela narração a coisa re-presentada. Assim, para que o mundo a significar se torne mundo significado, precisa-se de recursos “a 7Ricoeur recorre à distinção feita no campo semiótico entre a ordem paradigmática e sintagmática para clarificar a relação entre a cadeia conceitual da ação e as regras de composição narrativa. “Como sendo uma questão relevante para a ordem paradigmática, todos os termos relativos à ação são sincrônicos, neste sentido as relações de intersignificação que existem entre fins, meios, agentes, circunstâncias e todo o resto, são perfeitamente reversíveis. Entretanto, a ordem sintagmática do discurso implica o caráter irredutivelmente diacrônico de toda história contada... Compreender o que é uma narração, é preciso ter um controle das regras que governam sua ordem sintagmática..” RICOEUR, P., Temps et récit, op. cit., p. 111-112. ação pode ser contada, quando ela já foi articulada em signos, regras, normas: a partir de então ela é simbolicamente mediada.”8 Este aspecto da mímesis I já suscita todo um campo de análise antropológica e sociológica sobre o posicionamento do sujeito falante diante do mundo e de seu auditório. A ação simbólica não é então ligada ao espírito, mas ao posicionamento do sujeito falante no que toca às tramas que todo o contexto implica. Se Clifford Geertz, pela via da Antropologia, analisa a cultura como um sistema de significação simbólica,9 a sociologia construtivista põe em destaque a construção do espaço social pela via de uma pluralidade de chãos sociais numa constante relação de força e de sentido. Cada chão tem uma certa autonomia na construção de sistemas simbólicos. Os posicionamentos dos sujeitos (cooperação, oposição, competição...) são frutos da dinâmica interior de uma determinado chão social e de sua relação com os demais chãos sociais. Todo este conjunto de relações dá sentido às ações dos diversos sujeitos implicados.10 Caso não se ultrapasse o círculo semiológico, o pesquisador dificilmente observará a importância das várias disciplinas no estudo da significação, ao mesmo tempo que não se percebem também as diferentes dimensões e desdobramentos do processo de significação. O sujeito falante utiliza-se do sistema simbólico “em função de”, pode-se dizer em função da relação com seu auditório, mas, acima de tudo, pela maneira na qual ele se coloca no mundo ou no chão social onde ele está inserido. Na sua descrição hermenêutica, Paul Ricoeur vê as ações como “quase-textos”, na medida em que os símbolos nos seus contextos oferecem regras de significação em função das quais tal conduta pode ser interpretada. O termo simbólico introduz assim regras de descrição e de interpretação para as ações singulares e também regras no sentido de normas de conduta. 8Idem ibidem, p. 113. 9Ver GEERTZ, C., A interpretação das culturas, Rio de Janeiro, Editora Guanabara, 1989. 10Ver BOURDIEU, Pierre, Questions de sociologie, Paris, Les Editions de Minuit, 1984. “Em função dessas normas imanentes à uma cultura, as ações podem ser estimuladas ou apreciadas, isto é, julgadas de acordo com uma escala de preferência moral. Elas recebem assim um valor relativo, que faz com que uma ação seja melhor que uma outra. Estes graus de valor, atribuidos inicialmente às ações, podem ser estendidos aos próprios agentes, que são tomados por bons, ruins, melhores ou piores.”11 A terceira e última característica da pré-compreensão da ação são os aspectos temporais. A vida quotidiana ordena um em relação ao outro na perspectiva do antes, do agora e do depois, ou então, passado, presente e futuro. A articulação conveniente e elementar entre eles é o indutivo da narração, que concomitantemente indica a constituição temporal da Preocupação (Souci),12 isto é, a intra-temporalidade dos seres no mundo. “A intra-temporalidade é definida por uma característica de base da Preocupação: a condição a ser lançada entre coisas tende a dar a descrição de nossa temporalidade dependente de descrição das coisas de nossa preocupação. Este aspecto reduz a Preocupação às dimensões da preocupação... É sempre a preocupação que determina o sentido do tempo...”13 11RICOUER, P., Temps et récit, op. cit, p. 116. 12 O estudo do Souci ou da Preocupação na filosofia é antigo e ambíguo como atesta Matin Heidegger no seu livro O ser e o Tempo. Na cultura grega a Preocupação aparece, inicialmente com certos pré-socráticos, sob a forma de ansiedade provocada pela dureza da vida, engajamento no casamento, na paternidade, nos deveres da vida pública. A Preocupação em Sócrates refere-se “ter atenção” à uma coisa, sobretudo a Preocupação com os outros. Na perspectiva platônica a reflexão sobre tal tema é dirigida à aplicação de espírito à si próprio, concentração sobre si mesmo, à busca do eu essencial. A noção de Preocupação será investigada, mais tarde, pelos epicuristas e estóicos; como também por filósofos cristãos, pela tradição neiplatônica entre outras. No século XIX, a Preocupação reaparece com destaque na literatura (Goethe...), na filosofia (Nitetzsche...), onde este último retoma a perspectiva antiga: as preocupações sufocam a Preocupação de si mesmo, isto é, as preocupações da vida protegem os homens da Preocupação deles próprios, da angústia de viver. Deste ponto parte Heidegger, evidanciando que a Preocupação de si mesmo é tautológica já que não existeuma Preocupação que não seja de si mesmo, quer dizer, é a procupação que constitui o eu: A Preocupação de si mesmo é essencial ao ser humano por estar sempre adiantado de si mesmo, aberto ao futuro, sem ser jamais totalmente ele mesmo. Para Heidegger, este é o modo próprio do ser humano. Porém, ele alerta que existem várias maneiras de se procupar e a Preocupação pode levar a um distanciamento de nós mesmos em detrimento de objetos particulares que fazem a trama da vida quotidiana, cuja a posse e a perda nos preocupam. No estudo da Preocupação em Ricoeur existe todo um diálogo com a produção heideggeriana. Hoje a reflexão em torno da Preocupação é um tema em relevo em certos meios filosóficos. Ver: HEIDEGGER, Martin, Être et Temps, Paris, Gallimard, 1986. DELSON, Chantal, Le Souci contemporain, Bruxelles, Editions Complexe, 1986. Ver também o dossier “Le Souci - éthique de l’individualisme”, in Magazine Littéraire, n° “345, juillet-août 1996. 13RICOUER, P., Temps et Récit, op. cit., p. 121 e 124. O ser no tempo é assim visto e interpretado em função da representação ordinária do tempo. Nossa Preocupação nos coloca sempre em relação ao mundo numa perspectiva “é tempo de fazer algo”. É nesta ótica que a narração tem, entre outros sustentáculos, a temporalidade que vertebra a pré-compreensão da produção discursiva. É sobre o pedestal da intra-temporalidade que se construirão “conjuntamente as configurações narrativas e as formas mais elaboradas de temporalidade que os correspondem”.14 Enfim, para que se tenha imitação ou representação da ação - a elaboração discursiva, configuração ou mímesis II - é necessário pré-compreender o agir humano na sua semântica, seu simbolismo e sua temporalidade. Como afirma Ricoeur15 “É sobre esta pre-compreensão, comum ao poeta e ao seu leitor, que se eleva a intriga (construção discursiva) e com ela a mimética textual e literária.”16 3. A mímesis II ou “o reino de como se...” A mímesis II é o pivô das três mímesis. Ela se encontra, enquanto configuração, entre outras duas mímesis, a prefiguração e a refiguração. A configuração é a faculdade da linguagem de se configurar (configurare, dar forma ou figura de) no seu espaço próprio, no seu “exílio” face às coisas. Ricoeur conserva a noção de Aristótoles na qual a configuração dá forma ao mundo, à ação num processo de imitação criativa. Assim, estando constituída por uma dupla face - imitação e criação - a configuração segue duas dinâmicas. De um lado, a dinâmica externa na sua capacidade de apreensão das coisas ou na sua capacidade de projeção fora de, engendrando a “coisa do texto” e; de outro 14Idem ibidem, p. 125. 15Nesta declaração de Ricoeur, já se observa uma articulação entre a mímesis I e III, quando ele faz alusão ao leitor. Commo já ressaltamos, as três mímesis devem ser vistas numa relação dialética e não num processo linear entre diferentes momentos. 16RICOUER, P., Temps et Récit, op. cit., p. 125. lado, a dinâmica interna, face explorada pela semiologia que coloca todo o empreendimento na relação dos sujeitos internos do discurso, sujeito enunciador e sujeito destinatário. A mímesis II é um “espaço” de integração ao nível interno e de mediação ao nível externo. Ela alcança a integração do chão textual pelo funcionamento da intriga,17 e la faz a mediação fora de seu chão com a prefiguração e a refiguração. Ricoeur estabelece, pelo menos, 3 mediações da intriga : (1) ela transforma eventos em história contada, (2) une fatores heterogêneos e (3) engendra nos eventos, ou melhor na história, aspectos temporais. A mediação do evento em história contada transforma eventos desintegrados em uma história atribuindo-lhes relações. Pela intriga, eventos se tornam uma história contada dentro de uma totalidade inteligível. Uma história contada é mais do que uma enumeração ou uma sucessão de eventos. A ação de configuração torna-se compreensível “de tal maneira que se pode perguntar qual é o ‘tema’ da história”.18 A composição dos fatores heterogêneos reúne agentes, objetivos, meios, interações, circunstâncias, resultados inesperados... Esta combinação de fatores diferentes, Ricoeur a coloca na transição entre mímesis I e a mímesis II, ou na composição da ordem sintagmática na projeção sobre o eixo paradigmático. Para Ricoeur esta passagem ou projeção sintagmático- paradigmática é obra da própria atividade da configuração. A terceira mediação da intriga está nos aspectos temporais. Ela realiza uma ligação entre duas dimensões temporais, uma cronológica e outra não cronológica. A dimensão cronológica permite que a narração se estabeleça em episódios. “Ela caracteriza a história como sendo feita de eventos”. A dimensão episódica da narração transforma o tempo narrativo em representação linear. Pois é esta dimensão que nos faz interrogar os episódios com questões como : “... e então ?”, “o que acontecerá em seguida ?” ... Assim, os episódios 17A noção de “mise en intrigue” em Ricoeur é substituída por certos interpretes como ato de construção do sentido no discurso. Pela virtude da intriga “objetivos, causas, acasos são reunidos sob a unidade temporal de uma ação total e completa... ela (a intriga) reune e integra numa história inteira e completa os eventos múltiplos e dispersos e assim esquematiza a significação inteligível que se encontra na narração tomada como um todo.” Idem ibidem, p. 9-10. 18 Idem ibidem, p. 125. podem ser considerados como uma série aberta de eventos. Porém, estes episódios entram em uma ordem de sucessão e ficam irreversíveis, como os fatos físicos e humanos. A dimensão não cronológica transforma os eventos em história. É esta dimensão que faz a composição “configurante”, onde uma figura é extraída de uma sucessão de fatos pela construção de uma dialética viva. O ato de configuração transforma os paradoxos da história – sucessão de fatos – numa coisa que tem sentido e permite assim que a história possa ser seguida. “O ato configurante consiste em ‘tomar num conjunto’ as ações de detalhe ou isso que nós chamamos de incidentes de uma totalidade temporal... Seguir uma história, é avançar ao meios de contigentes e aventuras sob a conduta de uma espera que encontra sua realização na conclusão... É esta capacidade da história de ser seguida que constitui a solução poética do paradoxo de distenção- intenção”.19 A configuração possui duas outras características complementares que asseguram a mediação externa com a mímesis III ou a refiguração : a esquematização e a tradicionalidade. Como diz Ricoeur, “A imaginação produtiva além de não ser sem regras, constitui uma matriz geradora de regras”.20 As categorias do entendimento são esquematizadas pela imaginação produtiva, pois tem uma função de síntese. A esquematização cria uma sedimentação em vários níveis da narração. Ela pode se encontrar nas características formais da concordância/discordância, nos gêneros (tragédia grega, as tradições narrativas – hebráica, céltica...), nas obras singulares (Ilíadas...). Assim, a tradição pode construir-se pela sedimentação em vários aspectos da narração : forma, tipo, gênero. Pode-se dizer que a imaginação produtora cria paradígmas nestes diversos níveis.21 19 Idem ibidem, p. 129 e 130. 20 Idem Ibidem, p. 133. 21 Idem ibidem. Estes dois aspectos colocam em relevo a noção de práticas textuais que o modelo semiótico textual desenvolveu no centro de seu funcionamento.22 A noção de práticas textuais reforça a concepção de “contrato” pelo background histórico edificado pela esquematização e tradicionalidade. Tais aspectos vão orientar a relação do sujeito enunciador no seu ato de linguagemou de configuração e o sujeito destinatário ou auditório, segundo Ricoeur, no seu ato de refiguração. Todas estas regras da esquematização mudam com o aparecimento de novas invenções, porém a mudança é lenta e encontra resistências em razão do processo de sedimentação. Assim, se nós observarmos a evolução da tradicionalidade, podemos perceber, como ressalta Ricoeur, uma tradição que “navega” entre a sedimentação e a inovação. Enfim, a esquematização e a tradicionalidade são categorias que unem as operações de configuração, seja no caso da produção da escritura, seja no caso do processo de leitura ou de refiguração que nós veremos em seguida. Antes de terminar a exposição da mímesis II, é importante colocar em relevo que a esquematização e a tradicionalidade chocam de frente com a perspectiva de estudo que se enclausura unicamente na relação dos sujeitos internos ao discurso. É bom enfatizar, que discursos precedentes criam hábitos de produção e de reconhecimento que vão influenciar os novos discursos. A contestação, a continuidade, enfim, o maior ou menor grau de ruptura com os discursos anteriores tem haver com a evolução de estilos, gêneros... – aspectos intrísecos à evolução de um determinado discurso ; mas também com as expectativas criadas naqueles que produzirão e recepcionarão outros discursos. Há uma relação de forte reciprocidade entre o que se encontra no interior e fora do discurso, ou seja a oposição entre estes dois domínios é solidária, como enfatiza Ricoeur. “Nada atesta melhor que as duas características – esquematização e tradicionalidade – pelos quais nós terminaremos a descrição da intriga ao estado da mímesis II. Estas características contribuem particularmente a quebrar os preconceitos que opõem o que está ‘dentro’ e ‘fora’ do texto. Esta oposição é estritamente solidária de uma concepção estática e fechada da estrutura do texto. 22 Ver WOLF, Mauro, As teorias da comunicação, Lisboa, Editorial Presença, 1988. A noção de uma atividade estruturante, visível na operação da intriga, transcende esta oposição. Esquematização e tradicionalidade estão eivadas de categorias de intriga entre a operação da escritura e a operação da leitura”.23 4. A mímesis III ou a força do auditório A refiguração é o último vetor das três mímesis na qual o signo retorna ao mundo da ação. Ela não busca reproduzir o real, a restruturar o mundo do leitor na sua confrontação com o mundo da obra. Ela expressa a capacidade do texto para reorganizar o mundo do leitor, mudando, contestando, remodelando suas expectativas. A tese de Paul Ricoeur, no que refere-se à conclusão das mímesis, é que a refiguração contém uma força que provoca incidências em todo o círculo hermenêutico. O leitor, neste caso, é o “mediador entre a linguagem e o mundo”, ou numa formulação mais incisiva ele é “atravessador”, o “passante” (passeur).24 Se o “exílio” da configuração (mimésis II) é forte no que toca às “coisas do mundo” (o que justifica em parte certas pesquisas no domínio da semiótica na sua lógica interna ao discurso), a mesma intensidade existe em sentido contrário, isto é, no movimento do signo na “reconquista do real perdido”. A refiguração é um condutor da configuração que comporta sempre a indeterminação em relação as expectativas do auditório. É por isso que certos teóricos do estudo do discurso dizem que "o leitor "fiel" a um jornal, ele o é porque sabe precisamente, de antemão, qual o tipo de discurso ele irá encontrar" .25 Observamos aqui que o “papel” da mímesis III de Ricoeur é bem influenciada pelos estudos sobre a estética da recepção da Escola de Constância – Alemanha, em especial os trabalhos realizados por H. R. Jauss e W. Iser. Jauss enfatiza que o efeito de uma obra (ele 23 Idem ibidem, p. 145. 24 RICOEUR, P., La critique et la conviction, op. cit.. 25VERON, Eliséo, L’analyse du contrat de lecture : une nouvelle méthode pour les études de positionnement estudou sobretudo a obra literária) pressupõe um apelo ou um esplendor vindo do texto, mas também uma receptividade do destinatário que dele apropria.26 É uma forma de encontro de dois apelos oriundos de espaços distintos – da produção e do reconhecimento do discuso. Na Escola de Constância foi desenvolvida uma reflexão onde um texto se torna uma obra pela correlação o texto e a recepção. A indeterminação desta interação é bem elaborada por Iser que também trabalha com a noção de “horizonte” para designar a construção do leitor nas estratégias textuais. 27 Iser usa uma definição lacônica para falar do ato de refiguração : “Ele (o ato de refiguração) apresenta uma perspectiva do mundo perspectiva esta que não faz parte deste mundo”.28 Por isso, que a produção discursiva (literatura, jornalismo, publicidade....) está numa constante evolução. Um novo texto pode influenciar a tradição de um gênero de discurso, que repercutirá nas novas posturas daqueles que estarão na recepção. Por sua vez, estas novas posturas irão repercutir em leituras diversas daqueles que estão na produção de textos, na suas buscas de melhor cativar seu público. Jauss coloca em relevo duas instâncias ou horizontes distintos. De um lado, há o efeito que é determinado pela obra, guardando suas ligações com o passado de onde ela se originou e, de outro lado, a recepção, dependente do destinatário “ativo” e “livre”, que modifica através de sua existência presente os termos do diálogo, o todo sobre o pano de fundo costurado pelas normas estéticas de sua época. Estes dois componentes formam, segundo Hans Jauss, os elementos constituintes da tradição, um determinado pelo texto e outro pelo destinatário ou auditório. Assim, a des supports de presse, in Les medias, expérience, recherches actuelles, applications, Paris, IREP, 1985. 26 JAUSS, H. R., Pour une esthétique de la réception, Paris, Gallimard, 1978. 27 W. Iser declara em sua obra, que ele pegou emprestado a noção de horizonte nos trabalhos de Alfred Schütz. É preciso também ressaltar que certas formulações da Escola de Constância é quase uma “deriva” da hermenêutica de Gadamer. A noção de horizonte, ou melhor, “fusão de horizontes”é proeminente nos estudos deste hermeneuta acerca da Estética, da História e da Linguística. A noção de tradição foi igualmente bem trabalhada por Gadamer, que Ricoeur usa para explorar a ligação entre configuração e refiguração. Ver GADAMER, Hans-Georg, Vérité et méthode, Paris, Seuil, 1996. Ver também ISER, Wolfgang, L’acte de lecture, Bruxelles, Pierre Mardaga Editeur, 1986. 28 ISER, W., op. cit, p. 9. refiguração é a fusão do “mundo do texto” e do “mundo do destinatário”, influenciada pelos julgamentos históricos do leitor. “É neste duplo sentido da palavra horizonte que a situação e horizonte permanecem como noções correlatas. Esta pressuposição geral implica que a linguagem não constitui um mundo a parte. Ela não é nem mesmo um mundo. Porque nós estamos no mundo e afetados por situações, nós tentamos nos orientar sobre o modo de comprensão e nós temos algo a dizer, uma experiência a partilhar, transformada em linguagem”.29 5. Texto e contexto : uma relação de oposição solidária Posicionar o processo de significação a partir do círculo hermenêutico, nos permite de ultrapassar o problema da redução de certos estudos incritos no domínio da semiótica e/ou semiologia que se restringem na única relação entre os sujeitos discursivos. O círculo hermenêutico, proposto por Ricoeur, põe em evidência dois processos : um de transformação – a passagem da apresentaçãodas coisas pela sua representação ; e a transação ou negociação – entre o posicionamento dos sujeitos implicados na produção e reconhecimento do discurso. Este duplo processo faz emergir os sujeitos que estão no interior do discurso ou da intriga (Se e Sd) e estes que estão em negociação permanente, externos às tramas da intriga, sujeitos marcados pela influência da situação, do contexto, dos chãos sociais. É por causa desses sujeitos historicamente determinados, que estão em relação nas situações de comunicação, que um mesmo enunciado pode ter de incidências totalmente diferentes. Assim, uma mesma questão, como por exemplo – Você tem relações sexuais com frequência ? – não terá certamente a mesma significação se ela for feita por um médico a um de seus pacientes ou por um professor a uma de suas alunas. 29 RICOUER, P., Temps et récit, op. cit., o. 147-148. O círculo hermenêutico realiza um percurso dialético colocando a significação como resultado da composição de dois processos : o processo de transformação alcançado pela apropriação da língua e o processo de negociação conduzido pelas situações de comunicação. O modelo semiótico, em especial o semiótico-textual, não consegue responder de maneira satisfatória à problemática suscitada no processo de significação. Este modelo fica reduzido basicamente às relações internas ao discurso. O público ou auditório é ainda um tipo de “fantasma” que não teve êxito de ser corporificado e de ter algo a dizer à construção do sentido do discurso pela pungência da recepção estética. É por esta via – de negociação entre os sujeitos falantes, numa íntima reciprocidade com o processo de configuração ou de transformação – que instaura-se uma perspectiva dialogal ou contratual em torno de uma obra, isto é, da produção e do reconhecimento do discurso.30 Portanto, o novo patamar do processo de significação faz apelo à contrução do sentido através da dinâmica linguística e extra-linguística para melhor apreender a evolução da relação entre a obra e o público (um jornal com seus leitores...). É preciso, então, ampliar o chão de análise para que possamos responder, de maneira mais satisfatória (as vezes também mais convincente) às questões implicadas em torno do discurso. As três mímesis, que edificam o círculo hermenêtico de Ricoeur, nos ajudam a melhor apreender as tramas de uma semiotização global, onde os sujeitos posicionados no interior e fora do discurso são plenos de sentido para entendermos as estratégias adotadas para produzir ou reconhecer os discursos. 30 A relação entre o intra e o extra discursivo conheceu ao longo do estudo do ato de linguagem ou da fala uma variedade de abordagens. Podemos detectar dois extremos. De um lado uma visão postulando que toda significação pode ser apreendida pela língua, ou seja, a língua tem a capacidade de reter os diversos sentidos. Logo não é preciso ressaltar os dois espaçoscriadores de sentido, ficando somente em evidência a enunciação, a maneira como os sujeitos apropriam-se da língua. Esta perspectiva é explorada pela pragmática de certos discípulos de Austin. De outro lado, existe uma visão de caráter sociologizante, originária entre outras da sociologia de Bourdieu, onde a situação de comunicação é determinantes em relação às trocas linguísticas. Assim, a produção de sentido é apreendida pelo estudo do contexto onde estão inseridos os sujeitos falantes e no qual se realiza a comunicação. O ponto de vista que nós insistimos neste artigo recusa estas duas perspectivas, uma vez que admitimos e existência de uma relação de reciprocidade profunda entre estes dois “espaços” criadores de sentido. Afirmamos, assim, que no processo de significação ou semiotização global, há duas instâncias que estão em pé de igualdade. De um lado a teoria da ação e de outro a teoria do texto ou da enunciação. Para um conhecimento das duas perspectivas antagônicas que foram acima comentadas ver : AUSTIN, J. L., Quand dire, c’est faire, Paris, Seuil, 1970. BOURDIEU, Pierre, Ce que parler veut dire, Paris, Fayard, 1982. Afirmar que um jornal vende mais do que outro somente pela relação que ele forja entre os sujeitos discursivos, é uma atitude limitada. Realmente, existe uma efetiva ligação que ocorre através do suporte de imprensa (o produto jornal), mas a ligação não é a única desenvolvida, e nem tampouco, todas as causas de mudança ou continuidade do discurso se situam no seu âmbito. A análise de discurso clama por uma abordagem interdisciplinar que ajude a conhecer também os sujeitos sociais ou extra-discursivos que irão influênciar e serão influenciados pelos sujeitos que se encontram no interior do discurso (Se – Sd). Assim, as tramas desenvolvidas no interior e fora do discurso (texto e contexto) estão sob um patamar idêntido, numa relação de reciprocidade, a partir do círculo hermenêutico. O externo ou o mundo das ações se torna quase um texto e a convergência não é gratuita entre estes dois circuitos. A hermenêutica de Ricoeur faz com que textos sejam paradigmas para a ação, e ações se tornem uma espécie de referente para toda uma categoria de textos.31 O que era negligenciado ou desprezado torna-se nesta abordagem um desdobramento fundamental para compreender um discurso, com menos riscos de mutilar certos aspectos importante de sua produção e de seu reconhecimento. 31 RICOEUR, P., Du texte à l’action, Paris, Editions du Seuil, 1986.
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