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Confissão. Impossibilidade de invalidação por incapacidade do confitente. Eficácia probatória do depoimento pessoal prestado por incapaz. Vedação ao venire contra factum proprium no sistema de invalidades processuais. Fredie Didier Jr. Professor-adjunto de Direito Processual Civil da Universidade Federal da Bahia. Mestre (UFBA), Doutor (PUC/SP) e Pós-doutor (Universidade de Lisboa). Advogado e consultor jurídico. www.frediedidier.com.br Talita Macedo Mestranda em Direito (UFBA). Professora da Faculdade Baiana de Direito. Advogada. 1. Síntese dos fatos. O espólio de DRC ajuizou ação reivindicatória em face de JFS, tombada sob nº XXXXXXXXXXXXX, em trâmite na Vara dos Feitos de Relações de Consumo Cíveis e Comerciais da Comarca de Seabra/BA. Alegou, em síntese, que o demandado estaria indevidamente na posse do imóvel objeto da lide, o qual comporia o patrimônio do espólio demandante. Além de defender-se nos autos da ação reivindicatória, sob o argumento de que adquiriu a propriedade da área litigiosa em 1975, JFS, em litisconsórcio com MGS, ajuizou ação de usucapião em face do espólio de DRC, requerendo fossem declarados proprietários do referido imóvel em razão do exercício de posse mansa e pacífica por mais de 35 anos. Esta demanda foi distribuída por dependência à ação reivindicatória, sob nº XXXXXXXXXXXXXXXXX. Ao que consta, os autores da ação de usucapião utilizaram, como meio de prova de suas alegações, o depoimento prestado pela representante do espólio nos autos da ação reivindicatória, porquanto ela havia confessado a ausência de oposição à posse exercida por eles sobre o imóvel – ou seja, a posse mansa e pacífica que fundamenta o pedido de declaração do domínio na ação de usucapião. Em seguida, nos autos da ação reivindicatória, a parte demandante requereu a “nulidade do depoimento da Sra. NC” (sic), argumentando que a depoente, então inventariante e representante do espólio, estaria “sofrendo de demência e senilidade” (sic), razão por que seria “completamente inapta para depor em Juízo” (sic). Para comprovar tais alegações, anexou relatório médico segundo o qual a Sra. NRSC apresentaria “déficit de memória moderado” há aproximadamente cinco anos. Consulta-nos JFS, assim, acerca do pedido de invalidação da confissão realizada pela representante do espólio de DRC nos autos da ação reivindicatória, meio de prova que fundamenta a pretensão por ele formulada nos autos da ação de usucapião. É o que se passa a analisar. 2. Ausência de prova do vício de consentimento no momento da confissão. Inexistência de distorção da realidade fática: a omissão de fatos pela confitente não configura confissão. Ocorre a confissão quando a parte reconhece a existência de um fato contrário ao seu interesse e favorável ao do seu adversário, conforme definição expressa no art. 348 do Código de Processo Civil. Trata-se de meio de prova, portanto, formado pelos seguintes elementos: a) sujeito declarante (elemento subjetivo); b) vontade para declarar um fato (elemento intencional); c) fato contrário ao confitente (elemento objetivo). A confissão pode ser produzida em juízo ou fora dele. Sendo judicial a confissão, poderá ser espontânea, quando resultar da iniciativa do confitente, ou provocada, na medida em que extraída do depoimento pessoal prestado pela parte durante a fase instrutória. É importante notar que, embora a confissão decorra da manifestação voluntária da parte que declara a ciência sobre uma situação de fato, sua eficácia independe da vontade do confitente. Os efeitos jurídicos da confissão estão previstos em lei, destacando-se a liberação da parte adversária do ônus de provar o fato confessado (art. 334, II, CPC). Logo, a confissão é ato jurídico em sentido estrito, ou seja, ato voluntário de efeitos necessários, porquanto a sua eficácia jurídica não se submete à vontade de quem o pratica, embora dependa dela; seus efeitos decorrem diretamente da lei. A vontade na confissão dirige-se a declaração de ciência do fato e não à produção de algum efeito jurídico. Trata-se de uma declaração voluntária de ciência de fato; não se trata de declaração de vontade para a produção de determinado efeito jurídico (não é, pois, um ato negocial). O objeto da presente consulta situa-se no plano da validade deste ato jurídico em sentido estrito, pois o espólio autor da ação reivindicatória requereu a invalidação da confissão realizada por sua representante legal ao prestar depoimento pessoal em juízo. Quando declarou a ausência de oposição à posse exercida sobre o bem litigioso, a confitente reconheceu uma situação de fato contrária ao interesse do espólio que estava representando e favorável ao interesse da parte adversária. Como já mencionado, a existência de posse mansa e pacífica é causa de pedir da ação de usucapião movida em face do espólio, distribuída por dependência à ação reivindicatória na qual ocorreu a confissão. O vício alegado como fundamento para invalidar a confissão da representante legal do espólio refere-se ao já citado elemento intencional, pois a discussão gira em torno da capacidade da depoente para manifestar sua vontade de declarar ciência sobre fato contrário ao seu interesse e favorável ao da parte adversária. Conforme se alega nos autos da ação reivindicatória, a confitente estaria “sofrendo de demência e senilidade” (sic), razão por que seria “completamente inapta para depor em Juízo” (sic). O relatório médico apresentado como fonte de prova da alegada incapacidade da confitente, acostado aos autos da ação reivindicatória, apresenta as seguintes informações: “Paciente NRSC, 75 anos, há + 5 anos fez uma isquemia transitória e ficou com déficit de memória moderado com período de ausência (esquecimento) [...], estando sem condições de gerir seus próprios negócios.” (sic) Inicialmente, importa ressaltar que um juízo de validade apenas deve considerar o momento em que foi realizado o ato jurídico: não existe invalidade decorrente de vício superveniente à prática do ato jurídico. Em se tratando da confissão, somente se comprovada a existência de vícios no instante em que foi prestado o depoimento pessoal da parte, poderá se cogitar a sua invalidação. No caso concreto, percebe-se que o relatório médico, no qual se fundamenta o pedido de invalidação da confissão, não é apto para comprovar que a representante do espólio estaria transtornada ao prestar seu depoimento pessoal; mais especificamente, não há prova de que, ao confessar a existência de posse mansa e pacífica da parte adversária sobre o bem imóvel litigioso, possuía a confitente algum transtorno mental. Tal documento apenas informa que a confitente, há aproximadamente cinco anos, sofre de “déficit de memória moderado com período de ausência (esquecimento)”, diagnóstico insuficiente para levar à conclusão de que a confitente seria incapaz de prestar depoimento pessoal em juízo e, ainda, de que ela não saberia o que estava fazendo no momento da confissão. Além da falta de prova quanto à existência do vício no momento em que foi realizada a confissão, o próprio argumento apresentado não sustentaria a invalidação pretendida. Fala-se apenas em omissões da confitente, que, em razão de suposto estado de senilidade, “deixou de relatar fatos relevantes à composição da lide”. Ou seja: o suposto transtorno mental teria causado o esquecimento de fatos relevantes. Não se expôs qualquer nexo causal entre o suposto transtorno e o depoimento confessório. O nexo afirmado foi entre o suposto déficit mental e o esquecimento.Tanto as razões expostas para a invalidação da confissão quanto o relatório médico apresentado são específicos no tocante ao problema psíquico que acometeria a confitente: ausência de memória eventual. É importante notar que não foi aludida qualquer doença ou estado psicológico capaz de gerar, no momento da confissão, a distorção da realidade de fato pela confitente; mencionam-se apenas lapsos de memória e a incapacidade de gestão dos próprios negócios. Segundo se infere da petição por meio da qual foi requerida a invalidação, haveria prejuízo exclusivamente em razão da omissão da representante legal do espólio quanto a fatos considerados relevantes para a solução do litígio, que sequer foram especificados. O motivo apresentado como causa de pedir para invalidar a confissão, em verdade, não gerou os prejuízos alegados nos autos da ação reivindicatória, de modo que não justificaria o sacrifício do referido ato jurídico. Observe-se que a confissão em si, enquanto conduta comissiva que representa, não foi indicada como reflexo da “senilidade” ou da “demência” que acometeria a confitente. Portanto, inexistindo nexo de causalidade entre o estado psicológico alegado e as afirmações realizadas pela representante legal do espólio, não há razão para invalidar a confissão. Eventual invalidação deveria pressupor um prejuízo decorrente da efetiva distorção da realidade de fato pela confitente – comprovadamente causada por seu estado psicológico durante o depoimento o pessoal –, não de mera omissão ou de ausência de informações. O confitente, ao declarar ciência sobre um fato, realiza comportamento ativo. A omissão da parte não configura confissão; no máximo, poderia implicar a confissão ficta se, intimada, não comparecesse para prestar depoimento pessoal ou, comparecendo à audiência, se recusasse a depor (art. 343, §1º, CPC). No caso sob análise, a conduta omissiva da depoente – porque “deixou de relatar fatos relevantes à composição da lide” – não corresponderia a qualquer espécie de confissão. A omissão é, no caso, um ato-fato processual e, nessa qualidade, não passa pelo plano de validade dos atos jurídicos 1 . Deve ser rejeitado o pedido de invalidação da confissão. As alegações e o documento acostado aos autos não demonstram a existência do vício de consentimento no momento em que foi realizada, tampouco a distorção da realidade fática pela representante legal do espólio, ressaltando-se que o comportamento omissivo alegado sequer poderia ser qualificado como confissão. 3. Impossibilidade de invalidação da confissão por incapacidade do confitente. Eficácia probatória do depoimento pessoal prestado por incapaz. Conforme mencionado no tópico anterior, o objeto desta consulta situa-se no plano da validade da confissão. Após o expresso reconhecimento da posse mansa e pacífica sobre o bem litigioso, o espólio, autor da ação reivindicatória e réu da ação de usucapião, requereu a invalidação do ato jurídico – confissão – praticado por sua representante legal, sob o argumento de que lhe faltaria capacidade para depor em juízo. Todavia, ainda que houvesse a demonstração do vício alegado e de sua relação de causalidade com as afirmações feitas pela confitente em seu depoimento pessoal, a consequência jurídica não seria a invalidação da confissão. Explica-se. As hipóteses que autorizam a invalidação da confissão estão previstas no art. 214 do Código Civil, segundo o qual “a confissão é irrevogável, mas pode ser anulada se decorreu de erro de fato ou de coação”. A invalidação deste ato jurídico apenas se justifica, portanto, em razão de erro de fato, que torna falsa a declaração emitida, e de coação, que provoca uma declaração manipulada pela grave ameaça feita ao confitente. 1 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado. 3ª ed. São Paulo: RT, 1983, t. 4, p. 4. Observe-se que só se invalida a confissão se houver dúvida quanto à veracidade do fato afirmado. De acordo com o dispositivo citado, a incapacidade não figura entre as causas aptas a invalidar a confissão. No caso concreto, a demência e a senilidade somente teriam relevância jurídica, para fins de invalidação, se gerassem para a confitente uma falsa percepção da realidade, levando-a a cometer erro de fato. Como se ressaltou, porém, não foi afirmada qualquer doença ou estado psicológico capaz de gerar, no momento da confissão, a distorção dos fatos afirmados pela confitente, pois o vício de invalidade alegado corresponderia à omissão quanto a fatos considerados relevantes para a solução do litígio. A disciplina aplicável à confissão realizada por incapaz está prevista no art. 213 do Código Civil, cuja norma, apesar de não determinar a invalidação do ato jurídico, retira-lhe a eficácia: “Não tem eficácia a confissão se provém de quem não é capaz de dispor do direito a que se referem os fatos confessados.” A incapacidade não gera, como consequência jurídica, a invalidade da declaração; apenas afasta os efeitos de confissão da declaração de fato feita pelo incapaz. A questão sob análise, portanto, não diz respeito à validade, mas à eficácia da manifestação sobre uma realidade de fato. O depoimento judicial prestado por pessoa incapaz não recebe a eficácia de confissão; não será, porém, invalidado. É importante frisar que a lei, exatamente por não se referir à validade da confissão, apenas impede que a declaração de ciência do fato adquira o status de confissão, com os efeitos legais dela decorrentes (art. 334, II, e 350, ambos do CPC). Não se invalida a confissão por incapacidade; só se retira desta declaração a eficácia da confissão. Ainda que se demonstre a ausência de capacidade plena no momento em que foi realizada, a declaração do incapaz continua sendo válida e apta a atestar a ocorrência de uma situação de fato controvertida. A eficácia jurídica que lhe é subtraída em razão da incapacidade diz respeito somente aos efeitos típicos da confissão, sobretudo à dispensa de prova quanto ao fato reconhecido em favor da parte adversária. Na prática, o depoimento pessoal do incapaz, sem os efeitos da confissão, equivaleria ao depoimento de uma testemunha, compondo o material probatório produzido nos autos. Enfim, como observa PONTES DE MIRANDA: “Se a parte não pode confessar sobre o fato, o que ela disse pode ser apreciado como comunicação de conhecimento sem se poder cogitar de confissão.”2 A declaração realizada por meio do depoimento pessoal do incapaz, embora não possa assumir a natureza confessória, deve ser valorada pelo magistrado na formação do seu livre convencimento. A manifestação de ciência sobre o fato não produzirá os efeitos da confissão exclusivamente em razão de um impedimento legal, restrito ao plano de eficácia do ato jurídico – o qual, repita-se, é válido e deve ser considerado como componente do conjunto probatório posto à apreciação do juiz. Sobre o tema, escreve HUMBERTO THEODORO JÚNIOR: “Não se deve negar todo e qualquer efeito ao reconhecimento dos fatos, pela parte, em causas relativas a direitos indisponíveis. (...) Assim, o juiz apreciará a declaração da parte dentro do contexto geral da instrução probatória, dando-lhe valor relativo (e não absoluto), conforme lhe permite o sistema da livre apreciação da prova e da persuasão racional imotivada”.3 Aplicando essas premissas ao caso concreto, conclui-se pela impossibilidade de invalidação do depoimento prestado pela representante legal do espólio, pois o fundamento exposto como causa de pedir – incapacidade da confitente – não poderia gerar aconsequência jurídica pretendida. Ainda que se considere provada a existência do vício de vontade e sua relação de causalidade com a declaração realizada em juízo, não há como falar em invalidação da declaração de ciência de fato. 2 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Comentários ao Código de Processo Civil, 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996. t. 4, p. 318. 3 THEODORO JR., Humberto. Comentários ao Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2003, v. 3, t. 2, p. 418. O reconhecimento da posse mansa e pacífica sobre o bem imóvel litigioso, portanto, em qualquer hipótese, consiste em declaração existente e válida de ciência sobre fato. Poderá, contudo, se reconhecida a incapacidade da representante legal do espólio no momento em que prestou seu depoimento pessoal, perder a natureza jurídica de confissão e os efeitos dela decorrentes. Finalmente, mesmo perdendo a eficácia típica da confissão, o depoimento pessoal prestado pela representante legal do espólio, em se afirmou a posse mansa e pacífica do Sr. JFS sobre o bem imóvel litigioso, permanece como elemento probatório válido e eficaz a ser utilizado na formação do convencimento judicial. Perder-se-ia somente a natureza de confissão, sem que fosse descartada a prova produzida. 4. Necessária propositura de ação anulatória para pleitear invalidação da confissão. No tópico precedente, concluiu-se que a controvérsia analisada diz respeito ao plano de eficácia da confissão. Todavia, caso a incapacidade do sujeito fosse hipótese de invalidação deste ato jurídico, cumpre registrar a inadequação do meio utilizado no caso concreto objeto da consulta. Os meios para invalidar a confissão estão previstos no Código de Processo Civil e dependem do ajuizamento de ações autônomas, com a formação de coisa julgada, quais sejam: a) ação anulatória (art. 486, CPC), se estiver pendente o processo no qual foi realizada a confissão; b) ação rescisória (art. 485, CPC), se já houver transitado em julgado a decisão fundamentada nos fatos confessados. O pedido de invalidação da confissão, portanto, deve ser formulado por meio de nova ação judicial, rescisória ou anulatória, não sendo autorizada a discussão quanto ao vício de consentimento no mesmo processo em que a confissão foi feita. Neste sentido, corretamente, HUMBERTO THEODORO JR.: “O pleito anulatório reclama a instauração de uma nova ação. Não pode o interessado provocar o exame do vício de consentimento em argüição avulsa dentro do processo em que a confissão se deu.”4 Conclui-se, assim, pela impossibilidade de se requerer a invalidação por meio de simples petição apresentada nos autos do processo em que a confissão foi realizada. Especificamente, no caso analisado, a via processual correta seria a ação anulatória, porquanto a controvérsia sobre a validade da confissão decorre de lide ainda pendente. Proposta a referida ação anulatória, em virtude do seu caráter prejudicial, recomendar-se-ia a suspensão dos processos a ela relacionados (art. 265, IV, CPC). 5. A vedação ao venire contra factum proprium no sistema de invalidades processuais. Impossibilidade de invalidação da confissão em decorrência de comportamento contraditório no processo. Conforme mencionado, o espólio autor da ação reivindicatória e réu da ação de usucapião alegou a incapacidade de sua representante legal a fim de fundamentar o pedido de invalidação da confissão por ela realizada, ao reconhecer a posse mansa e pacífica da parte adversária sobre o bem imóvel litigioso. Como prova da incapacidade arguida, apresentou-se relatório médico segundo o qual a confitente sofreria de “déficit de memória moderado” há aproximadamente cinco anos. Ao que parece, tenta-se comprovar que o suposto quadro de senilidade da confitente já estaria sendo acompanhado, durante longo período, pelo médico que elaborou o relatório apresentado na ação reivindicatória. De acordo com este documento e com as afirmações constantes dos autos, os sintomas psíquicos que causariam a incapacidade da representante legal do espólio teriam sido revelados anos antes da data em que ela prestou depoimento pessoal. 4 THEODORO JR., Humberto. Comentários ao Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2003, v. 3, t. 2, p. 429. Embora o alegado estado de senilidade fosse conhecido há quase cinco anos, somente após o depoimento prestado pela representante legal do espólio – por meio do qual reconheceu a posse mansa e pacífica que fundamenta a ação de usucapião proposta pela parte adversária –, foi requerida sua remoção como inventariante, bem assim a invalidação da confissão por ela realizada. Os demais herdeiros sabiam da condição psíquica da inventariante, mas a deixaram depor para, apenas em seguida, verificada a confissão, alegarem sua invalidade. Submeteram-na ao interrogatório judicial apesar de conhecerem o aludido estado de demência; jamais requereram sua interdição ou sua substituição enquanto representante legal do espólio, providência que se tornou conveniente – e necessária – devido ao reconhecimento de uma situação de fato favorável à parte contrária. Note-se que a argumentação desenvolvida para fundamentar o pedido de invalidade esvaziaria qualquer confissão provocada – ou seja, a confissão extraída por meio do depoimento pessoal prestado pela parte. Nesse sentido, destaca-se a seguinte passagem: “ninguém que goze de sua plena capacidade mental aceitaria a perda progressiva de seus bens, permanecendo inerte, acarretando assim um enorme prejuízo para si próprio e todos os seus filhos, a não ser em razão de demência” (sic). É importante ressalvar, contudo, que a declaração emitida pela representante legal do espólio, quanto à posse mansa e pacífica sobre o bem imóvel litigioso, apenas comprova a existência de um requisito para a aquisição da propriedade pela usucapião. Provavelmente, a confitente atestou a situação de fato sem conhecer a consequência jurídica que lhe seria aplicável, não demonstrando qualquer atitude de desapego – a ponto de caracterizar um estado de demência – em relação ao patrimônio de sua família. A pretensão de invalidar a referida confissão, em verdade, configura nítido comportamento contraditório. Intenta-se demonstrar a incapacidade da confitente, atribuindo a razão do reconhecimento de fatos favoráveis à parte adversária ao seu estado psíquico, embora ela jamais tenha sido considerada senil para a prática dos atos processuais nos últimos cinco anos. Ainda que o vício de vontade fosse efetivamente comprovado, por se tratar de conduta desleal e contrária ao princípio da boa-fé, impõe-se rejeitar o pedido de invalidação – ou, conforme a melhor técnica, de ineficácia – da confissão realizada. Explica-se. A boa-fé objetiva, associada aos princípios do contraditório e da cooperação, funda-se na cláusula do devido processo legal, imprimindo conteúdo ético ao processo civil, ao reprimir o exercício inadmissível de poderes processuais, representado por atos contraditórios e desleais. À luz do princípio da boa-fé, não se admite que um sujeito surpreenda os demais com condutas que, embora formalmente fundamentadas, sejam contrárias aos princípios de proteção da confiança e de lealdade que devem informar a relação jurídica processual. O princípio da cooperação está intimamente ligado à boa-fé objetiva, na medida em que se contrapõe a um debate processual obscuro, contrário ao dever de lealdade entre os sujeitos do processo e, por conseguinte, ao devido processo legal. Processo devidoé processo sem surpresas, sem “cartas na manga”, informado por uma relação jurídica clara, que proporciona a ampla defesa e a efetiva possibilidade de as partes influenciarem nas decisões judiciais, bem como evita a decretação de nulidades processuais. A proteção da boa-fé objetiva nas relações jurídicas proíbe o comportamento contraditório e desleal, não admitindo que a conduta anterior de um sujeito, que despertou confiança e justa expectativa na contraparte, seja contrariada em seu prejuízo. Trata-se da vedação ao venire contra factum proprium, que pressupõe duas condutas praticadas pelo mesmo agente, lícitas em si e diferidas no tempo, sendo que a primeira – o factum proprium – é contrariada pela segunda. A vedação ao venire contra factum proprium é regra que rege o sistema de invalidades processuais, impedindo, com fundamento na boa-fé objetiva, a impugnação de atos jurídicos defeituosos. Assim, o princípio da boa- fé tempera o formalismo excessivo, obstando a invalidação do ato processual quando o reconhecimento do vício resulte de comportamento desleal e contraditório 5 . A invalidação (nulidade ou anulabilidade) é sanção aplicável ao ato jurídico defeituoso. Não se pode confundir o defeito do ato com a sanção. Invalidação é a sanção e não o defeito que lhe dá causa. A incapacidade é o vício, a invalidação, a sanção. Não se pode baralhar ato defeituoso com ato inválido; o ato inválido decorre do reconhecimento do defeito pelo magistrado, com a conseqüente destruição do ato. Nem todo ato defeituoso é inválido (dependerá do vício), embora todo ato inválido seja defeituoso. A sanção da invalidade não pode incidir automaticamente sobre o ato defeituoso: sempre resulta de um juízo valorativo – deve-se percorrer um itinerário axiológico entre o reconhecimento deste defeito e a invalidação do ato processual. No caso concreto, mesmo considerando que estaria formalmente amparado – porque se alega vício de vontade no momento em que foi realizada a confissão –, o pedido de invalidação revela-se como comportamento contraditório e contrário ao princípio da boa-fé. Tal pretensão fere a expectativa legítima criada no consulente, autor da ação de usucapião, pelo espólio, autor da ação reivindicatória e réu da ação de usucapião. Essa expectativa consiste na crença legítima de que o espólio não buscaria a invalidação do ato processual, em razão da suposta incapacidade de sua representante legal, sobretudo por ter atuado, durante longo período, embora já conhecido o suposto quadro clínico de “déficit de memória moderado”, como se a representação exercida fosse perfeitamente regular. 5 Ao dispor que a decretação de nulidade não pode ser requerida pela parte que lhe deu causa, o Código de Processo Civil positivou a vedação ao venire contra factum proprium no art. 243.
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