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AMH2005 direito colonial brasileiro

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AMH AR Direito comum e direito colonial (BHZ 2005).doc (10/11/2005 18:39:00) 
1 
 
 
António Manuel Hespanha*, Porque é que existe e em que é que consiste um direito colonial 
brasileiro. 
 
 
 
esde há uns anos que o tema das relações entre a sociedade metropolitana e a sociedade 
brasileira se tem vindo a libertar de algumas imagens historiográficas translatícias, 
adoptando modelos de análise e pontos de vista que se distanciam dos imaginários nacionalistas 
e que incorporam perspectivas mais modernas da historiografia geral. 
Neste texto, abordo uma questão que interessa particularmente aos historiadores do 
poder e das instituições e cuja compreensão necessita de alguns esclarecimentos que a história 
do direito de Antigo Regime pode fornecer. 
 O meu ponto o seguinte. Para se falar de um direito colonial brasileiro - com a 
importância política e institucional que e isto tem -, é preciso entender que, no sistema jurídico 
de Antigo Regime, a autonomia de um direito não decorria principalmente da existência de leis 
próprias, mas, muito mais, da capacidade local de preencher os espaços jurídicos de abertura ou 
indeterminação existentes na própria estrutura do direito comum 1. 
De algum modo, a tendência para andar à procura do leis especiais para o Brasil quando 
se quer comprovar existência de um direito próprio é induzida pelo modo como a historiografia 
espanhola tratou tradicionalmente o chamado “direito das Índias”. Na verdade, só muito 
recentemente – a partir de um livro do historiador argentino Vítor Tau Antzoategui 2 – é que a 
concepção de “direito das Índias” como complexo de leis da coroa foi substituída por uma 
concepção de direito construído pela prática - eventualmente, pela prática dos tribunais – nos 
espaços que o direito comum clássico deixava à regulamentação local, consuetudinária ou 
judicial. 
É certo que a monarquia portuguesa emitiu algumas leis para o Brasil, embora em menor 
quantidades do que as editadas pela monarquia espanhola para a sua América 3. Em todo o caso, 
se se procurara pelo direito do Brasil colonial, é minimamente aí que ele se encontra. Diria 
mesmo que a maior parte destas providências vindas da corte indiciam - quando não as referem 
expressamente - zonas de incumprimento do direito real e, portanto, de existência de um direito 
próprio. 
De seguida, lembraremos os conceitos de direito comum que permitiam que as práticas 
locais se tornassem direito. Mostraremos, depois, como esta abertura às particularidades locais 
era política e doutrinalmente antipática ao poder da coroa, quer elas se referissem à metrópole, 
quer se referissem às colónias. Salientaremos, em todo o caso, como estas virtualidades de 
 
* Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. 
1 Lauren Benton, em “The Legal Regime of the South Atlantic World, 1400-1750: Jurisdictional Complexity as 
Institutional Order”, Journal of World History 11.1 (2000) 27-56, constrói sobre esta base a sua tese de que o direito 
comum “ibérico” (que, na verdade, pouco tinha de específico em relação ao restante direito comum seiscentista e 
setecentista, sobretudo no Sul da Europa) constituiu o principal factor de unificação dos impérios atlânticos de Portugal e 
da Espanha. 
2 Vitor Tau Anzoategui, Casuismo y sistema, Buenos Aires, Instituto de Investigaciones de Historia del derecho, 1992; v. 
também Eduardo Partiré, “Un Derecho Propio de un Derecho Particular, el Derecho Indiano", presentado al Congreso 
sobre "La pervivencia del Derecho Común" organizado por la Univ.Católica Argentina, publicado en la Revista de Historia 
del Derecho n°29, Instituto de Investigaciones de Historia del Derecho, Buenos Aires, 2001, pp. 333-363. 
3 O projecto ius Lusitaniae, dirigido por Pedro Cardim e Ângela Barreto Xavier, disponibilizará em suporte electrónico, 
uma boa parte dessa legislação. Outra banda dispersa, até porque nem sempre revestia a forma mais solene, a de carta 
de lei, consistindo frequentemente em cartas régias, provisões, portarias, alvarás, regimentos, contendo instruções, por 
vezes dirigidas a uma pessoa em concreto. De facto, para além de tudo, nunca podemos perder de vista que o actual 
conceito de lei para compreende, nas práticas formulares de Antigo Regime, uma vasta pluralidade de tipologias 
documentais. O próprio CCM lista uma séria importante de providências normativas, em geral relativas aos distritos 
auríferos de Minas (p. 352-370. 
D 
AMH AR Direito comum e direito colonial (BHZ 2005).doc (10/11/2005 18:39:00) 
2 
diferenciação periférica do direito, embora existissem em todos os lugares das monarquias, eram 
enormemente potenciadas nas situações “de fronteira”, como as colónias. Ao longo do texto, 
daremos alguns exemplos - quase todos referentes a Minas e provenientes do Códice Costa 
Matoso 4 - do vigor destas práticas particularistas periféricas que as fontes continuamente 
referem como divergentes, ou mesmo contrárias, ao direito do Reino. 
 
1. A autonomia do direito colonial como reflexo do pluralismo do ordenamento jurídico 
europeu de Antigo Regime. 
 
a sociedade europeia medieval e moderna, conviviam diversas ordens jurídicas - o direito 
comum temporal, (basicamente identificável com a doutrina da tradição romanística, 
incorporada numa a mole imensa de textos, invariavelmente escritos em latim, e existentes nas 
bibliotecas das universidades e dos tribunais europeus), o direito canónico (direito comum em 
matérias espirituais, obedecendo basicamente à mesma natureza formal) e os direitos dos 
reinos, constantes, antes do mais, de leis que representavam a vontade do soberano, mas 
também do direito estabelecido pelos tribunais do Reino (praxe ou estilo dos tribunais). 
A esta situação de coexistência de ordens jurídicas diversas no seio do mesmo 
ordenamento jurídico tem-se chamado pluralismo jurídico 5, que significa, portanto, a 
coexistência de distintos complexos de normas, com legitimidades e conteúdos distintos, no 
mesmo espaço social, sem que exista uma regra de conflitos fixa e inequívoca que delimite, de 
uma forma previsível de antemão, o âmbito de vigência de cada ordem jurídica. Tal situação 
difere da actual - pelo menos tal como ela é encarada pelo direito oficial -, em que uma ordem 
jurídica, a estadual, pretende o monopólio da definição de todo o direito, tendo quaisquer 
outras fontes jurídicas (v.g., o costume ou a jurisprudência) uma legitimidade (e, logo, uma 
vigência) apenas derivada, ou seja, decorrente de uma determinação da ordem jurídica 
estadual. 
 Referimo-nos, no parágrafo anterior, basicamente a três ordens jurídicas: o direito 
secular comum (tradição romanística), o direito canónico (a tradição canonística) e o direito 
secular próprio (direito do Reino). Estamos, no entanto, a simplificar muito. Diremos brevemente 
porquê. 
 
2. A ambivalência das ordens jurídicas. Divergências doutrinais. 
 
 direito comum, quer o secular, quer o eclesiástico, eram quase exclusivamente de origem 
doutrinal; e, por isso, estavam cheios de controvérsias, de argumentos de sentido diferente, 
desembocando em soluções contraditórias. Pode dizer-se que o tecido do direito não era feito de 
regras, mas antes de problemas; para a resolução dos quais os juristas dispunham de fontes 
contraditórias, logo nos textos de direito romano, e de argumentos de sentidos contrários. A 
abordagem do caso concreto era, por isso, feita de uma forma tentativa, confrontando o caso 
com vários argumentos (ou figuras de direito) possíveis, cada um dos quais justificaria uma 
solução diversa. 
 Dou um exemplo tirado de uma decisão real (embora aqui algo simplificada), que não é 
brasileira, embora trate de um assunto com relevância para o Brasil. Se um pai, em testamento, 
legou uma escrava a um filho e, à data da morte testador, desta tinham nascidocinco filhos, 
estes fazem parte do legado ou devem ser considerados como incluídos na massa da herança, a 
dividir pelos herdeiros ? A resposta a esta questão depende da qualificação doutrinal que 
fizermos dos objectos “escrava” e “filhos de escrava”. Se estes forem tidos como frutos da coisa 
legada, não entrarão na herança, de acordo com a regra de direito comum de que os frutos 
 
4 Códice Costa Matoso. Colecção das notícias dos primeiros descobrimentos da Minas na América que fez o Doutor [...] 
Ouvidor-Geral do Ouro Preto, que tomou posse em Fevereiro de 1749, coord. geral de Luciano Raposo de Almeida 
Figueiredo e Maria Verónica Campos; estudo crítico de Luciano R. de Almeida Figueiredo, S. Paulo, Biblioteca Mário de 
Andrade, s/d [?], 2 vols.. Citações ulteriores: CCM. 
5 Sobre o tema da arquitectura do ordenamento jurídico medieval, exemplarmente, António Manuel Hespanha, Cultura 
jurídica europeia. Síntese de um milénio, ed. bras., Florianópolis, Fundação Boiteux, cap. 6.3. Também, com muito 
maior detalhe, Paolo Grossi, L’ordine giuridico medievale, Bari, Laterza, 1995. 
N 
O 
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3 
seguem o destino da coisa principal. Se forem considerados como objectos independentes da sua 
mãe, não se consideram legados e entrarão, por isso, na partilha do remanescente da herança 6. 
É certo que existia o princípio de que se devia decidir pela opinião comum, incorrendo 
numa violação deontológica, e até em pecado, o jurista que imprudentemente se afastasse da 
solução mais frequentemente adoptada 7. Porém, apesar de se conceber, assim, a prática (local) 
como uma “ciência digestiva”, a escolha entre soluções diversas, quaisquer delas justificáveis 
em direito, criava uma grande margem de liberdade na altura de decidir. É isto que alimenta a 
burocracia judicial ou para-judicial: memoriais jurídicos, litígios judiciais, alegações dos 
advogados das partes, sentenças contraditórias, recursos ou, puramente, a recusa de obedecer 
às ordens mais terminantes do monarca ou dos seus oficiais, mesmo de alto nível, com base 
numa opinião jurídica distinta. 
A incerteza do direito não é igualmente boa ou má para todos. Normalmente, serve os 
mais poderosos, os que têm capacidade de influenciar, de subordinar, de sustentar um litígio 
durante anos em tribunal ou, pura e simplesmente, de se estribarem no parecer de um letrado 
por sua conta para desobedecerem ao direito estabelecido. Como um sinal do seu poder de 
sustentar litígios em tribunal, o abade de um mosteiro do Norte de Portugal (Santa Maria do 
Bouro) levava consigo, quando viajava, uma mula carregada com todos os processos que tinha 
pendentes. 
É, por isso, com este espírito que devemos ler as queixas, frequentes no Brasil ou em 
Portugal, sobre a incerteza do direito e a liberdade dos juristas (ou juízes) na sua interpretação. 
Disso se queixam normalmente os mais fracos ou, por outro razões, os funcionários mais zelosos 
do interesse da coroa. 
Os problemas começavam com a própria interpretação das leis. É que as próprias leis do 
Reino não estão da salvo deste entendimento de que o direito tem muitas faces, abrindo mais 
questões do que aquelas que fecha. 
O que alguns (mas não outros) querem é, portanto, que haja um norte, uma regra certa, 
nas interpretações: “Assim como o leme é o governo da embarcação, assim são os despachos 
para os contadores, e faltando nestes a clareza a respeito das condenações já se põem os 
contadores a adivinhar, e disto nascem dúvidas causadas pelas interpretações que cada um dá 
aos despacho, conforme lhe faz mais conta para se lhe diminuir o que se tem contado ou ao 
menos dilatar a causa, com o pretexto de embargo de erros de contas [...] Só assim se poderão 
evitar muitas maldade e ladroeira que fazem, e com muito grande excesso, os oficiais dos 
contratos e fazenda real” (CCM, I, p. 699). Num papel do povo amotinado de Minas, dirigido ao 
governador D. Pedro de Almeida Portugal, conde de Assumar, em 1720, reclama-se um 
“Regimento para os salários [...] de sorte que se forem lá [no Rio] 4 vinténs de prata não 
duvidem [no Brasil] que sejam de ouro” (CCM, I, 372). 
 
 Pode dizer-se que a interpretação distorcida era a tanto legitimação formal como o 
princípio do abuso aberto dos poderosos locais contra a lei: “querem que os senhores do senado - 
mais exigem os povos de Minas no papel antes citado - moderem as condenações tão 
exorbitantes que costumam fazer sem Regimento nem lei [ … e …] requerem mais que nenhum 
ministro faça vexações ao povo com o seu os despachos violentos, procedendo à prisão e fuga, 
sem as circunstâncias do direito, e que em tudo se observe com ele a lei do Reino” (CCM, I, p. 
373). 
 
3. A possibilidade de impugnação jurídica das leis régias. 
 
as havia mais motivos de incerteza. É que, até aos meados do séc. XVIII, as próprias leis 
reais podiam ser embargadas - ou seja, não apenas não obedecidas, mas ainda 
 
6 Inspiro-me num caso semelhante (sentença da Casa da Suplicação, de 1673) em Manuel Álvares Pegas (ed. Luís Álvares 
Pegas), Commentaria ad Ordiantiones (Adittiones ad Lib. 1 & 2), Ulyssipone, Valentino da Costa Deslandes, 1703, p. 138, 
n. 36 . 
7 A. M. Hespanha, Cultura [...], cit., cap. 6.6.2.3.. 
M 
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4 
positivamente impugnadas na sua validade. Os motivos podiam ser vários. Os mais comuns eram, 
porém, ou a arguição de que o rei estava mal informado 8, ou a invocação de que a providencia 
régia lesava direitos adquiridos. Um exemplo do último tipo foi o que aconteceu, por exemplo, 
em relação a várias leis que fixaram o regime da capitação do ouro nas Minas Gerais, contestadas 
pelas câmaras e pelos contratadores, e embargadas por alguns destes 9, quer com o fundamento 
em que eram contra direito 10, quer ainda com base na irrevogabilidade dos contratos 
anteriormente firmados pela coroa e que as novas leis viessem alterar. As leis, de facto, não 
apenas podiam ver recusada a selagem do Chanceler Mor do Reino (Ord. Fil., I, 2) e, portanto, 
de não poderem valer como leis, as determinações do monarca podiam ser objecto de embargos 
opostos por particulares que se considerassem prejudicados por elas 11. É justamente por esta 
época que a admissibilidade de embargos em relação às leis do rei começa a ser considerada 
como “indecente” na Europa, nomeadamente porque se entende que um monarca iluminado não 
pode emitir leis contrárias à razão do direito. Mas, os obstáculos da distância, a distorção da 
informação, ou o carácter exótico e diferente das colónias, bem poderiam, neste caso, explicar 
ainda a falta de informação. 
 
3.1 Contratos, privilégios e normas gerais. 
 
Esta primazia de contratos e privilégios – a que acabamos de nos referir - sobre as 
normas gerais - de natureza doutrinal ou da natureza legal - constituía um segundo factor de 
particularização (localização) do direito. Muito frequentemente, eram concedidos privilégios, 
por vezes “exuberantes” (como então se dizia) por motivos particulares, por pressão das 
circunstâncias, por favoritismo os ou em troca de favores – mesmo que fossem favores à coroa, 
como o auxílio numa situação de apuro militar ou financeiro. Também muitos contratos eram 
celebrados pelas mesmas razões. Mais tarde, quando se queria proceder à emenda dos erros 
políticos, quando o governador era substituído por um outro mais rigoroso, ou quando a coroa, 
como sucedeu por volta de 1750 em Minas Gerais, queria dar uma nova ordem à administração, 
já as situações a sanear estavam consolidadas por privilégios ou contratos passados. E, então, a 
doutrina era implacável. Como se escreve num memorial, de 1751, contra a obrigação de oscontratadores pagarem as somas do contrato em ouro quintado: “são os contratos dos principies 
leis, e suas condições tem tanta eficácia que os mesmos príncipes contraentes não podem 
encontrar nem modificar o que neles prometeram e estipularam, e neles nada pode inovar-se. E 
quando não é lícita qualquer alteração ao príncipe no seu contrato, menos é facultado a 
qualquer dos seus subalternos” (CCM, I, 570-571). Qualquer que fosse o resultado final, a dúvida 
sobre a prevalência entre contrato e lei permitia decisões diversas. Neste caso concreto, as 
primeiras decisões, do “doutor Procurador da coroa” de Vila Rica dão razão ao contratador 12. Só 
a intervenção de uma junta ad hoc, nomeada pelo governador, reverte a decisão. Embora um 
recurso para a justiça ordinária dos tribunais superiores da colónia ou do Reino pudesse inverter 
de novo o sentido do direito. 
 
3.2 A criação de normas particulares: costumes, graça e privilégio. 
 
 
8 For mera falta ou por ocultamento doloso da verdade (obrepção e subrepção, respectivamente). Arguição 
particularmente adaptada à situação colonial, que o rei não conhecia senão indirectamente, por intermédio de ministros 
que podiam esconder informações relevantes. 
9 Cf. embargo contra da lei de 3.12.1750, que fixou a oitava de ouro em 1200 reis, oposto por contratador (CCM, I, 558). 
10 Num Papel acerca de como se estabeleceu a capitação nas Minas Gerais, datado de 1749, que assim fica-se o regime 
legal como contrário “a todas as disposições das leis e de direito” (CCM, I, p. 492); num outro parecer contra a 
capitação, de 1751, pode ler-se “da mesma sorte, se consultarmos juristas sobre o ponto da promessa que em 24 de 
Março de 1734 fizeram os procuradores das câmaras ao Conde das Galveias, prometendo fazer certo o número do cem 
arrobas em que se funda a sempre venerando lei, estes hão-de de declarar que este fundamento é contrário às regras de 
direito [...]” (CCM, I, 543). 
11 A. M. Hespanha, História de Portugal moderno. Político e institucional, Lisboa, Universidade Aberta, p. 286 ss.; ed. 
bbrasileira, Florianópolis, Fundação Boiteux. 
12 Porém, uma junta nomeada pelo Governador e Capitão Geral da Capitania de Minas, decide o contrário, contra este e 
outros rendeiros, ridicularizando, en passant, a decisão do procurador da coroa local; 1751, cf. CCM, I, 604 e seguintes. 
AMH AR Direito comum e direito colonial (BHZ 2005).doc (10/11/2005 18:39:00) 
5 
Um outro factor de autonomia do direito da colónia reside no modelo de relação entre 
direito geral e direito particular que a modelava a ordem jurídica de Antigo Regime. 
Abaixo do plano do reino, proliferavam as ordens jurídicas particulares, todas elas 
protegidas pela regra da preferência do particular sobre o geral. Por exemplo, as normas que 
protegiam os estatutos (ou direitos das comunas, cidades, municípios), considerando-os, nos 
termos da lei "omnes populi" 13, como ius civile ("dicitur ius civile quod unaqueque civitas sibi 
constituit", [diz-se direito civil o que cada cidade institui para si], Odofredo, século XII), ou seja, 
com dignidade igual à do direito de Roma. Ou as que protegiam o costume (nomeadamente, o 
costume local), cujo valor é equiparado ao da lei ("também aquilo que é provado por longo 
costume e que se observa por muitos anos, como se constituísse um acordo tácito dos cidadãos, 
se deve observar tanto como aquilo que está escrito", D.,1,3,34; v. também os frags. 33 a 36 do 
mesmo título) 14. Ou, finalmente, o regime de protecção dos privilégios, que impedia a sua 
revogação por lei geral sem expressa referência; ou mesmo a sua irrevogabilidade pura e 
simples, sempre que se tratasse de privilégios concedidos contratualmente ou em remuneração 
de serviços ("privilegia remuneratoria") 15. Ou seja, em todos estes casos, ainda que as normas 
particulares não pudessem valer contra o direito comum do reino enquanto manifestação de um 
poder político, podiam derrogá-lo enquanto manifestação de um direito especial, válido no 
âmbito da jurisdição dos corpos de que provinham. E, nessa medida, eram intocáveis. Pois 
decorrendo estes corpos da natureza, a sua capacidade de autogoverno e de edição de direito 
era natural e impunha-se, assim, ao próprio poder político mais eminente. 
 
3.3 Direito estrito e ordens normativas próximas. Fundamentos doutrinais. 
 
A razão da preferência outorgada às normas individuais sobre as normas gerais relaciona-
se também com a estrutura mais profunda do sistema de direito comum. O fundamento do 
direito era, para a visão medieval do mundo, a ordem, um dom gratuito de Deus. Porém, a 
ordem mantinha-se, antes de mais, pela existência de forças íntimas que atraem as coisas umas 
para as outras, de acordo com as suas simpatias naturais (amores, affectiones) transformando a 
criação numa rede gigantesca de simbioses ou empatias. Numa quaestio sobre o amor (Sum. 
theol, IIa.IIae, q. 26, a. 3, resp), S. Tomás define o amor como o (plural, diverso) afecto das 
coisas, sublinhando que estes afectos se exprimem através de diferentes níveis de sensibilidade 
(intelectual, racional, animal ou natural). Isto explica, desde logo, a proximidade e estreita 
relação entre mecanismos disciplinares que hoje são vistos como muito distantes (direito, 
religião, amor e amizade). Para os níveis mais elevados – e menos externos - da ordem, existem 
mecanismos mais subtis, como a fé ou as virtudes, que disparam sentimentos também 
ordenadores (de amizade, de liberalidade, de gratidão, de sentido de honra, de vergonha). Num 
certo sentido, estes mecanismos estão ainda mais próximos da justiça, como virtude que “dá a 
cada um o que é seu” (ius suum cuique tribuit), ou do direito natural, como aquele que a 
natureza ou Deus ensinaram a cada animal (quod Natura [gl. id est Deus] omnia animalia 
docuit). É por isto que os teólogos e os juristas definem este conjunto de deveres de amor, de 
amizade, de gratidão como “como que legais” (quasi legali), cometendo também aos juristas a 
sua guarda destes. 
Todos estes amores criavam, de facto, obrigações. E a estas ainda se podiam acrescentar 
as que surgiam da religião (ou seja, do amor para com Deus e, através dele, para com todas as 
suas criaturas, animais, plantas e entes inanimados incluídos). Bem como as afeições que Deus 
imprimiu nas nossas mentes (afectos intelectuais) ou nos nossos desejos (afectos sensitivos). 
 Em alguns casos, estas ordens normativas supra-jurídicas temperavam o rigor da ordem 
civil (como no caso do adequação do direito civil às posições mais maleáveis da aequitas 
canonica; ou no caso dos juízes criminais, que tinham que compensar a ferocidade da lei penal 
(rigor legis) com a misericórdia (misericordia). Noutros casos, como no da ordem doméstica, as 
 
13 Cf. António Manuel Hespanha, Cultura [...], cit., cap. 6.3.. 
14 "Lex est sanctio sancta, sed consuetudo est sanctio sanctior, et ubi consuetudo loquitur, lex manet sopita" [a lei é 
uma sanção santa, mas o costume ainda é mais santo, e onde fala o costume, cala-se a lei] (Consuetudines 
amalfitenses); Hespanha, 1989, 291 ss. 
15 Cf. António Manuel Hespanha, Cultura [...], ibid. 
AMH AR Direito comum e direito colonial (BHZ 2005).doc (10/11/2005 18:39:00) 
6 
normas decorriam da própria “natureza” (natura, honestas), sendo transcritas para o corpo do 
direito os comandos contidos no “direito do corpo” (na sexualidade, na feminilidade, na 
masculinidade): a fraqueza, a indignidade e a maldade das mulheres; a natureza da sexualidade 
humana (monogâmica, hetero, vaginal: vir cum foemina, recto vaso, recta positio); a natureza 
da comunidade doméstica (unitária, patriarcal). Como a família não era a única instituição 
natural, outras relações humanas tinham pretensões “naturais” em relação ao direito; mesmo 
aquelasinstituições que a cultura actual considera como perfeitamente arbitrárias e disponíveis, 
como os contratos. O conceito cunhado para exprimir estas normas implícitas e forçosas contidas 
em certos tipos de relações era o de “natureza dos contratos” (natura contractus) ou de 
“vestes” dos pactos (vestimenta pacti, como que dizendo que, sem certos atributos formais, os 
acordos [nús] não podiam valer). 
Esta necessidade e possibilidade de transcrever normas de uma ordem na outra tornava-
se possível pela existência de conceitos genéricos que serviam como que de “canais de 
comunicação” entre elas. Entre a ordem política e o direito, as importações e exportações 
faziam-se através de canais como a “utilidade pública” (publica utilitas), bem comum (bonum 
communem), poder absoluto ou extraordinário (absoluta vel extraordinaria potestas), posse de 
estado (possessio status); direitos adquiridos (iura quaesita), estabilidade das decisões jurídicas 
(stare decisis), razão jurídica (ratio iuris) 16. 
Como as hierarquias entre as diferentes ordens normativas eram sensíveis ao contexto 
(case-sensitive) e os modelos de transferência (ou transcrição) não eram fixos, o resultado era 
uma ordem entrecruzada e móvel, cujas particularizações não podiam ser antecipadamente 
previstas. É a isto que se pode chamar a “geometria variável” do direito comum (ius commune). 
Em vez de um sistema fechado de níveis normativos, cujas relações estavam definidas uma vez 
por todas (como os sistemas de fontes de direito do legalismo contemporâneo), o direito comum 
constituía uma constelação aberta e flexível de ordens cuja arquitectura só podia ser fixada em 
face de um caso concreto 17. 
Nesta constelação, cada ordem normativa (com as suas soluções ou seus princípios 
gerais: instituta, dogmata, rationes) era apenas um tópico heurístico (ou perspectiva) cuja 
eficiência (na construção do consenso comunitário) havia de ser posta à prova. Daí que coubesse 
ao juiz fornecer um solução arbitrária 18 em torno da qual a harmonia pudesse ser encontrada 
(interpretatio in dubio est faciendam ad evitandam correctionem, contrarietatem, 
repugnantiam) 19. 
 
4. Flexibilidade do direito em função da graça. 
 flexibilidade jurídica não decorria apenas da pluralidade de ordens normativas e do carácter 
aberto e casuístico da sua hierarquização. 
Resultava também da ideia de que o território do direito era uma espécie de “jardim 
suspenso”, entre os céus e a vida quotidiana. Entre o domínio sobrenatural da religião e o 
domínio das normas jurídicas terrenas. 
Na verdade, as normas jurídicas, as máximas doutrinais e as decisões judiciais 
constituíam as regras da vida quotidiana. Normalmente, cumpriam bem o seu papel. No entanto, 
elas não constituíam o critério último de normação. 
Passava-se com o direito o que se passava com a natureza. Tal como a lei que Deus 
imprimira na natureza (causae secundae [causas segundas], natura rerum [natureza das coisas]) 
para os seres não humanos, também o direito positivado (nas instituições, nos costumes, na lei, 
na doutrina comum) instituíra uma ordem razoavelmente boa e justa para as coisas humanas. No 
 
16 Ou seja, valores políticos eram transformados em valores jurídicos porque o direito permitia que valores externos 
fossem recebidos em nome de conceitos genéricos [vazios, indeterminados], como “utilidade pública”, “bem comum”; 
ou porque o direito reconhecia como jurídicos os valores já admitidos pelos dados da vida social (“posse de estado”); ou 
ainda porque o direito incorporava os comandos de uma razão natural acerca das relações humanas. 
17 Ao contrário do que Lauren Benton, em “The Legal Regime of the South Atlantic World,[...] “, cit., parece insinuar, 
esta flexibilidade do direito da época moderna não se relaciona com particularidades ibéricas, relacionadas com 
contactos inter-étnicos mais estreitos (com mouros e judeus, nomeadamente), mas com a estrutura do ius commune, de 
que os direitos português e castelhano participavam. 
18 “Arbitrium iudex relinquitur quod in iure definitum non est”. 
19 Cf. António Manuel Hespanha, Cultura [...], cit... 
A 
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entanto, acima da lei da natureza, tal como acima do direito positivo, existia a suprema, embora 
frequentemente misteriosa e inexprimível, ordem da Graça, intimamente ligada à própria 
divindade (causa prima, causa incausata). 
No nível político-constitucional, os actos incausados (como as leis ou os actos de graça do 
príncipe), alterando a ordem estabelecida, são, por isso, prerrogativas extraordinárias e muito 
exclusivas dos vigários de Deus na Terra – os príncipes. Usando este poder extraordinário 
(extraordinaria potestas), eles imitam a Graça de Deus, fazendo como que milagres. Como 
fontes dessa graça terrena, introduzem uma flexibilidade quase divina na ordem humana 20. 
Como senhores da graça, os príncipes: 
� Criam novas normas (potestas legislativa) ou revogam as antigas (potestas 
revocatoria); 
� Tornam pontualmente ineficazes normas existentes (dispensa da lei, dispensatio legis); 
� Modificam a natureza das coisas humanas (v.g., emancipando menores, legitimando 
bastardos, concedendo nobreza a plebeus, perdoando penas); 
� Modificam e redefinem o “seu” de cada um (v.g., concedendo prémios ou mercês). 
De certo modo, esta prerrogativa constitui a face mais visível do poder taumatúrgico dos 
reis, a que a tradição europeia tanto recorre. Teorizando esta actividade “livre e absoluta” dos 
reis, João Salgado de Araújo, um jurista português dos meados do séc. XVII, usa expressamente a 
palavra “milagre” (João Salgado de Araújo, Ley regia de Portugal, Madrid, 1627), enquanto que 
outro declara que o príncipe, através da graça, “pode transformar quadrados em círculos” 
(mutare quadratos rotundis, cf. Manuel Álvares Pegas, Commenaria ad Ordinationes, t. IX, p. 
308, n. 85.), na sequência de fórmulas que vêm dos primeiros juristas medievais que discutiram 
os poderes dos papas e dos reis. 
No entanto, esta passagem do mundo da Justiça para o mundo da Graça não nos introduz 
num mundo de absoluta flexibilidade. Por um lado, a graça é um acto livre e absoluto (i.e., 
como se diz do poder absoluto ou pleno do rei: plenitudo potestatis, seu arbitrio, nulli 
necessitate subjecta, nullisque juris publicis limitata, [um poder ou vontade absolutos, livre de 
qualquer necessidade, não limitado por quaisquer vínculos do direito público], Cod. Just., 3, 34, 
2). Mas, por outro lado, a graça não é uma decisão arbitrária, pois tem que corresponder a uma 
causa justa e elevada (salus & utilitas publica, necessitas, aut justitiae ratio). Nem isenta da 
observância da equidade, da boa fé e da recta razão ("aequitate, recta ratio [...], pietate, 
honestitate, & fidei data"), nem do dever de indemnizar por prejuízos colaterais causados a 
terceiros. Em contrapartida, pode tornar-se como que “devida”, em face de actos também 
gratuitos (favores, serviços) que os vassalos tenham feito ao rei, e que, assim, forçavam os reis à 
atribuição de recompensas ou mercês. 
Como a graça não é o puro arbítrio e antes configura um nível mais elevado da ordem, a 
potestas extraordinaria dos príncipes aparece, não como uma violação da justiça, mas antes 
como uma sua versão ainda mais sublime. Para Salgado de Araújo (Ley regia de Portugal, Madrid, 
1627, 46), o governo por estes meios extraordinários da graça – ou seja, tirado fora dos 
mecanismos jurídico-administrativos ordinários – representa uma forma última e eminentemente 
real de realizar a justiça, sempre que esta não pudesse ser obtida pelos meios ordinários. 
Este tipo de flexibilidade correspondia, portanto, à existência de vários e sucessivos 
níveis de ordem. Quanto mais elevados eles estivessem, tanto mais escondidos, inexplicitáveise 
não generalizáveis seriam. A flexibilidade era, então, a marca da insuficiência humana para 
esgotar, pelo menos por meios racionais e explicáveis, o todo da ordem da natureza e da 
humanidade. 
Apesar da distância, a graça também chegava a Minas. 
Por vezes a do rei, directamente ou por intermédio do vice-rei, concedendo mercês ou 
perdoando. Logo desde o início, a história de Minas é a história de um perdão, o de Manuel Borba 
Gato que, a troco da indicação do lugar de novas minas, foi provisoriamente perdoado (1699), 
em nome do rei, pelo Governador do Rio, Artur de Sá e Menezes, quanto à acusação de morte de 
 
20 Cf. António Manuel Hespanha, "Les autres raisons de la politique. L'économie de la grâce" (versão castelhana em La 
gracia del derecho, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1993. 
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um anterior governador (“Com demonstrações de grande gosto, o levantou nos braços Artur de Sá 
e prometeu, em nome de Sua Majestade, o perdão se, com efeito, desse ao manifesto tal 
descobrimento (das minas) e então [ … iria …] dar contra a Sua Majestade do perdão que 
prometera em seu nome em recompensa do serviço que aquele vassalo fizera com aqueles 
descobrimentos, para que, ao mesmo tempo que desse o perdão, achasse merecimentos para 
aquela e mais Mercedes […] deu conta Artur de Sá a Sua Majestade do perdão que, em seu nome, 
prometera de Manuel de Borba Gato pela morte de D. Rodrigo [...] confirmou Sua Majestade o 
perdão e fez-lhe mais a mercê da patente de tenente-general de uma das praças marítimas que 
primeiro vagasse, segundo as lembranças. Já sossegado, livre e premiado de generosa mão do rei 
D. Pedro II, o nosso tenente-general Manuel de Borba Gato mandou vir a sua família para o Rio 
das Velhas e dois genros que tinha, naturais da Ilha de São Miguel, António Tavares e Francisco 
de Arruda. E estes tiraram tanto cabedal que em poucos anos se passaram à Pátria e fundaram, 
cada um, seu Morgado, e vivem regalados com os mimos e fertilidade da Pátria” (CCM, I, 10-
191). À graça régia – sob a forma de alterações na administração e, sobretudo, perdão de faltas – 
recorre também o povo de Vila Rica, vindo amotinado à presença do governador de S. Paulo e 
Minas, em 1720 (CCM, I, 370 ss.). 
 Mas também Minas se sabia que a liberalidade ou graça era uma arma de dois gumes, 
desencadeando uma espiral de deveres a que nem todos queriam estar sujeitos. A história do 
paulista Garcia Rodrigues, contada no “Diário da jornada fez ouvidor Caetano da Costa Matoso 
para minas gerais” (CCM, I, 882) é significativo: “[o rei D. Pedro II] também [lhe] mercê do ofício 
de guarda mor das minas, que ele não cria a aceitar dizendo arrogantemente que não queria que 
el-rei lhe fizesse mercê porque ele é que as queria fazer a el-rei, e levado desta mesma elevação 
de paulista deu a el-rei passagem destes dois rios que no princípio mandava fazer pelos seus 
escravos, sem emolumento, e ofereceu a el-rei dizendo podia fazer nela um bom rendimento” 
(ibid, p. 889). Neste caso, porventura, Garcia Rodrigues era apenas um paulista arrogante e 
pouco interessado em se prender a um cargo que o obrigaria a dividir fidelidades entre a 
comunidade quase independente dos seus patrícios e o poder longínquo e tendencialmente 
invasivo do rei, um poder que, no interior de São Paulo, era quase sinónimo de não poder 21. 
Mas, noutros casos, o cálculo dos custos e benefícios que o aceitar de uma mercê podia causar 
era uma medida de elementar prudência. 
A graça era apanágio dos poderes supremos, imediatos a Deus - o do Rei e o do Papa. Em 
alguns casos podiam ser por estes delegados. Era o que acontecia na dada ou na apresentação 
dos ofícios. Como em todos os casos da delegação de poderes privativos, esta devia ser expressa 
e constar de carta régia ou de regimento. Neste caso dos ofícios, a periferização do poder 
manifestava-se ou pela usurpação por entidades locais (Câmaras, funcionários subalternos ou 
mesmo particulares) da faculdade de os conceder ou pela consolidação, nos titulares dos ofícios, 
do poder de os transmitir, em serventia (por arrendamento), por deixa testamentária ou mesmo 
por venda. Também no Reino encontramos sinais desta usurpação do poder real relativa aos 
ofícios, com a criação de costumes contra legem que punham na mão de outras entidades esta 
importante graça que era a sua concessão. O arrendamento e a deixa a filhos estavam instituídos 
por costume, contra o qual se reage energicamente no reinado de D. José (leis contra o direito 
consuetudinário dos ofícios). Na colónia, estes fenómenos parecem ser muito frequentes, tanto 
no secular, como no espiritual. Segundo o ouvidor da comarca de Vila Rica (c. 1753), o bispo de 
Mariana permitia todos os abusos aos seus oficiais no que respeitava à admissão de ordenandos, 
“por se admitirem todos sem escolha nem eleição, e alguns com um escândalo do bispado, por 
ser público e sabido terem impedimentos animis et corporis e só não se admitem mulatos” (CCM, 
I, 728). Mas, mais do que isso, provia os ofícios cuja apresentação competiria ao rei como grão-
mestre da Ordem de Cristo, cobrando, e com demasia, as respectivas pensões (bid, I, 740). 
 
4.1 A extensão do arbítrio (julgamento de equidade) dos magistrados. Magistrados 
interesses locais. 
 
 
21 “E pegando o secretário de Estado na lista delas [vilas e cidades do domínio real], foi nomeando as que se 
ofereceram; e chegando a de São Paulo, passou por alto [...] porque, Senhor, aquelas vilas não são de Vossa Majestade, 
pois se fossem, obedeceriam aos decretos que Vossa Majestade mandou expedir para todas as partes para que corressem 
as patacas castelhanas a peso [...] e sendo em todas obedecido, nesta foi desprezado” (CCM, I, 188-189). 
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A equidade era um outro factor de flexibilidade do direito. A discussão sobre a equidade 
foi longa na tradição jurídica europeia 22, relacionando-se com várias questões. 
No séc. XII, Graciano ligou esta questão à da legitimidade dos privilégios, i.e., normas 
singulares que se opunham à norma geral: “Por isso, concluímos do que antecede que a Santa 
Madre Igreja pode manter a alguns os seus privilégios e, mesmo contra os decretos gerais, 
conceder benefícios especiais, considerada a equidade da razão, a qual é a mãe da justiça, em 
nada diferindo desta. Como, por exemplo, os privilégios concedidos por causa da religião, da 
necessidade, ou para manifestar a graça, já que eles não prejudicam ninguém” (Decretum de 
Graciano, II, C. 25, q. 1, c. 16). 
A equidade aparece aqui como uma “justiça especial”, não geral e não igual, mas mais 
perfeita do que a justiça igual (da qual a equidade seria a mãe). 
Um passo suplementar e mais elaborado é dado por S. Tomás, na sua discussão sobre 
equidade e justiça (Summa theologica, IIa.IIae, qu. 80, art. 1). Ou seja, ao passo que a justiça 
geral era o produto de uma forma menos refinada e profunda de conhecimento, a justiça 
particular (ou equidade) decorria dessa forma superior de entendimento das coisas que 
alcançava níveis superiores e mais escondidos da ordem do mundo – a gnome. 
No Antigo Regime, esta ideia de percepções não racionais, não discursivas e não 
generalizáveis, nos níveis supremos da ordem, estavam na base de da teoria do direito concebida 
como uma teoria argumentativa, da verdade jurídica como uma verdade “aberta” e “provisória”, 
da teoria do poder de criação jurídica dos juízes (arbitrium iudicis), bem como da legitimidade 
das decisões de equidade, baseadas num conhecimento mais perfeito, nomeadamente dos 
particulares das situações. Nada que melhor conviesse aos magistrados coloniais que tinham na 
suafrente casos que, para além de serem particulares, o eram ainda em virtude das próprias 
condições excepcionais da colónia. 
O número seguinte aborda, justamente, o impacto que tem sobre o direito coumum a 
ideia de particularismo das situações locais. 
 
5. A lei geral cede a abusos que, pela repetição, se transformam em práticas e costumes 
locais. 
 
 facto de provirem da razão não garantia às normas de direito comum uma vigência 
superior, pois da mesma razão decorria a faculdade de cada cidade ou de cada nação de 
corrigir ou adaptar, em face da sua situação concreta, o princípio estabelecido em geral pela 
razão. Pois, embora a razão natural tivesse em vista aquilo que resulta justo na generalidade dos 
casos, a realidade seria tão multiforme 23 que bem se podia conceber que alguma utilidade 
particular exijisse a correcção da norma geral (D.,1,2,16: "o direito singular é aquele que foi 
introduzido pela autoridade do legislador, tendo em vista alguma utilidade particular, contra o 
teor da razão"). Assim, o direito comum vigoraria apenas para os casos em que um direito 
particular não o tivesse afastado; ou seja, como direito subsidiário; de acordo com um princípio 
segundo o qual "as regras do direito [comum] não podem ser seguidas naqueles domínios em que 
foi estabelecida [por um direito particular] uma contradição com a razão do direito", D., 1,2,15). 
Assim, a teoria que o direito comum criou sobre as suas relações com os direitos 
particulares não deixa de ser muito favorável a estes últimos. 
 
5.1 Direitos dos corpos inferiores. 
 
Desde o século XI que os direitos dos reinos pretendem, no domínio territorial da 
jurisdição real, uma validade absoluta, semelhante à do direito do Império (rex superiorem non 
recognoscens in regno suo est imperator [o rei que não reconhece superior é imperador no seu 
reino], Azo, Guilherme Durante), definindo-se como "direito comum do reino". O fundamento 
 
22 António Manuel Hespanha, Cultura [...], cit., cap. 6.3., e bibliografia aí citada. 
23 "Plures sunt casus quam leges" (os casos da vida são mais do que as leis); "nem as leis nem os senatusconsultos podem 
ser redigidos de forma a compreender todos os casos que alguma vez ocorram; basta que contenham aqueles que 
ocorrem o mais das vezes", pode ler-se em D.,1,2,10. 
O 
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10 
doutrinal desta ideia pode encontrar-se num texto do Digesto que afirma que "o que agrada ao 
príncipe tem o valor de lei; na medida em que pela Lei regia, que foi concedida ao príncipe 
sobre o seu poder político [imperium], o povo lhe conferiu todo o seu poder e autoridade", 
D.,1,4,1). 
Sendo, portanto, comum, o direito do reino continha, tal como o ius commune, uma 
ratio iuris que vigorava no seu seio 24 e da qual se podiam extrair consequências normativas, 
com o que adquiria alguma da força expansiva do direito comum imperial. Note-se, porém, que a 
estreita relacionação entre o direito dos reinos e o poder real fazia com que nas relações entre o 
direito real e os direitos locais inferiores vigorassem normas que não funcionavam nas relações 
entre direitos próprios e ius commune, já que a supremacia deste último não decorria da 
superioridade política, mas do seu enraizamento na natureza. Assim, a supremacia do poder real 
sobre os súbditos ("superioritas iurisdictionis", superioridade quanto à jurisdição) traduzia-se 
numa máxima que não podia valer nas relações entre o ius commune e os iura propria - a de que 
"a lei inferior não pode impor-se à lei superior" ("lex superior derrogat legi inferiori", a lei 
superior derroga a inferior; "inferior non potest tollere legem superioris", o inferior não pode 
derrogar a lei do superior), tal como o inferior não pode limitar o poder do superior. Assim, o 
direito do reino é, politicamente, supra-ordenado aos direitos emanados de poderes inferiores do 
reino, o que não acontecia com o ius commune em relação aos iura propria. 
Porém, esta supra-ordenação em termos políticos não exclui a acima referida 
preferência do especial em relação ao geral. Sendo o direito do rei o direito comum do reino, 
valem em relação a ele as mesmas regras que valiam quanto ao ius commune nas suas relações 
com os direitos próprios. E, assim, a afirmação da supremacia política não excluía que, desde 
que esta não estivesse em causa, pudessem valer dentro do reino, nos seus respectivos âmbitos, 
direitos especiais de corpos políticos de natureza territorial ou pessoal. A salvaguarda da 
supremacia política do rei seria garantida, então, por um princípio de especialidade, segundo o 
qual a capacidade normativa dos corpos inferiores não podia ultrapassar o âmbito do seu 
autogoverno 25. 
Esta prevalência dos direitos particulares dos corpos tinha um apoio no direito romano. 
De facto, a “lei” Omnes populi, do Digesto (D., I,1,9) reconhecia que “todos os povos usam de 
um direito que em parte lhes é próprio, em parte comum a todo o género humano”. Apesar de a 
primeira geração de legistas ter sido muito prudente em retirar daqui um argumento em favor da 
supremacia dos direitos comunais, o célebre jurista tercentista Baldo degli Ubaldi encontrou 
justificação teórica robusta para que a validade autónoma do direito local: “Populi sunt de iure 
gntium, ergo regimen populi est de iure gentium: sed regimen non pot est esse sine legibus et 
statutis, ergo eo ipso quod populus habet esse, habet per consequens regimen in suo esse, sicut 
omne animal regitur a proprio spiritu et anima” 26("os povos existem por direito das gentes [i.e., 
natural] e o seu governo tem origem no direito das gentes; como o governo não pode existir sem 
leis e estatutos [i.e., leis particulares], o próprio facto de um povo existir tem como 
consequência que existe um governo nele mesmo, tal como o animal se rege pelo seu próprio 
espírito e alma"). 
A situação americana prestava-se a esta invocação do poder das comunidades locais, 
ecológica e humanamente tão distanciadas da metrópole, para gerarem um direito próprio, 
eventualmente contrário ao do reino. A lonjura dos espaços, com a capacidade de fuga que ela 
conferia e com o esbater das próprias situações jurídicas e consequente dificuldade da sua prova 
ou acertamento, é um tópico corrente. 
Citações judiciais não se faziam nem “nas vilas e menos a irem-nas fazer fora [...], de 
mais que na América [os porteiros que deviam fazer as citações, por nunca encontrarem as 
pessoas a citar] somente são pregoeiros” (cf. CCM, I, 699). Não havendo citações, não há 
processo; e não havendo processo, não há direito oficial. Os oficiais de justiça, invocando o 
particularismo da terra e, nomeadamente, o trabalho que lhes dão a contumácia e rebeldia das 
partes, recusam que se lhes taxem os emolumentos (cf. CCM, I, 704). No eclesiástico, os 
 
24 Que, em todo o caso, não anulava a ratio iuris communis, que permanecia como critério superior (ius naturale). 
25 Para além de se reconhecer que todo o súbdito, mesmo integrado num corpo jurídico inferior, tinha o direito de 
apelar para o rei, caso se sentisse injustiçado; mas o rei teria que decidir de acordo com o direito corporativo desse 
súbdito. 
26
 In Dig. Vet., I, 1, de iust et iure, 9, n.4. 
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habitantes, “ainda que façam danos ou roubos, não fazem caso da excomunhão e outros não lhe 
chega a notícia pelas distâncias do país” (CCM, I, 727); “os que se deixam excomungar fogem e 
mudam de terras sem buscar absolvição” (CCM, I, 727). O mesmo se passa com “os declarados 
que faltam ao preceito da Quaresma [...] fogem e se retiram para outros países e não têm 
domicílio certo, não cuidam em absolver-se nem tirar mandados paraisso” (CCM, I, 734). A prova 
do estado de solteiro ou de outros elementos para se poder casar é tão difícil, que a maior parte 
dos noivos pedem esperas para prova, que acabam por nunca fazer (cf. CCM, I, 732). 
Ou seja, tal como entre os rústicos europeus, o direito estrito não pode valer aqui. E, 
não valendo o direito oficial, proliferam práticas locais, a que os magistrados reais chamam de 
abusos, mas que, na realidade, constituem o direito da colónia, pelo menos nestas mais remotas 
paragens. 
 
6. Direito comum e ordem jurídica colonial. 
 
 tese esboçada nos números anteriores não é a de que foi a estrutura do direito comum que 
provocou o particularismo das ordens jurídicas periféricas, nomeadamente da ordem jurídica 
colonial brasileira. Este é, sem dúvida, o produto da dinâmica de factores locais, de ordem 
geográfica, ecológica, humana e política. No entanto, o modelo de ordenamento jurídico 
proposto pelo direito comum europeu não punha grandes obstáculos doutrinais às tensões 
centrífugas da realidade colonial. Pelo contrário, fornecia uma série de princípios doutrinais e de 
modelos de funcionamento normativo que se acomodavam bem a uma situação como a do sertão 
brasileiro. 
Na verdade, na arquitectura do ius commune, a primeira preocupação não é reduzir à 
unidade a pluralidade de pontos de vista normativos. A primeira preocupação é torná-los 
harmónicos, sem que isso implique que alguns deles devam ser absolutamente sacrificados aos 
outros ("interpretatio in dubio facienda est ad evitandam correctionem, contrarietatem, 
repugnantiam", a interpretação deve ser feita, em caso de dúvida, no sentido de evitar a 
correcção [de umas normas pelas outras], a contradição, a repugnância). Pelo contrário, todas as 
normas devem valer integralmente, umas nuns casos, outras nos outros. Assim, cada norma 
acaba por funcionar, afinal, como uma perspectiva de resolução do caso, mais forte ou mais 
fraca segundo essa norma tenha uma hierarquia mais ou menos elevada, mas, sobretudo, 
segundo ela se adapte melhor ao caso ou à situação em exame 27. Ou seja, as normas funcionam 
como "sedes de argumentos" (topoi, loci), como apoios provisórios de solução; que, no decurso 
da discussão em torno da solução, irão ser admitidos ou não, segundo a aceitabilidade da via de 
solução que abrem. 
A regra mais geral de conflitos no seio desta ordem jurídica pluralista não é, assim, uma 
regra formal e sistemática que hierarquize as diversas fontes do direito, mas antes o arbítrio do 
juiz na apreciação dos casos concretos ("arbitrium iudex relinquitur quod in iure definitum non 
est", fica ao arbítrio do juiz aquilo que não está definido pelo direito). É ele que, caso a caso, 
ponderando as consequências respectivas, decidirá do equilíbrio entre as várias normas 
disponíveis. Este arbítrio é, no entanto, guiado. Pelos princípios gerais a que já nos referimos. 
Mas, sobretudo, pelos usos do lugar ao decidir questões semelhantes (no caso de decisões 
judiciais, stylus curiae), usos que, assim, se vêm a transformar num elemento decisivo de deste 
direito pluralista. 
Como o governar estava, nesta época, muito próximo do julgar, tudo o que se disse sobre 
a teoria do juízo (iudicium) vale também para a teoria do governo (regimen), explicando este 
estilo do governar - sincopado, contraditório, experimental, tantas vezes pactício ou 
complacente com o abuso, que alterna as bravatas com a mais miseranda rendição - da coroa 
portuguesa no Brasil. 
 
 
27 Sobre a estratégia casuísta, v., Com especial referência às colónias espanholas da América, a límpida exposição de 
Tau Anzoategui, Casuismo y sistema [...], cit.. 
A

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