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A escola de recife - Nelson Saldanha

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I
NELSON SALDANHA
A ESCOLA DO
RECIFE
EDIÇÃO DA FACULDADE DE DIREITO DE CARUARU
CARUARU 
PERNAMBUCO — BRASIL 
— RECIFE —
NELSON SALDANHA
A ESCOLA DO RECIFE
CADERNO N° 66
EDIÇÃO DA FACULDADE DE DIREITO DE CARUARU 
CARUARU 
PERNAMBUCO — BRASIL 
— RECIFE —
PARA
MAURO MOTA e MILTON MELO 
E TAMBÉM PARA 
PINTO FERREIRA,
ANTONIO PAIM,
MIGUEL REALE 
e WILLIAM FERRER COELHO
A E S C O L A DO R E C I F E
Nelson Nogueira Saldanha (*)
Panorama histórico e análise do movimento
ÍNDICE GERAL
Explicação circunstancial
Propósito temático e observação bibliográfica 
CAPÍTULO I — Ambiência e formação
1 — O ambiente recifense ao tempo da gestação ou for
mação da Escola do Recife-.
2 — A vida cultural no Recife pelos anos 60 e 70.
3 — A figura de Tobias Barreto e a constituição de um
“Escola” .
CAPITULO II — Composição da Escola: integrantes e aspectos.
1 — Os componentes da Escola, desde o tempo de Tobic 
Barreto até a morte de Sílvio Romero.
§ 1 — Vista geral.
§ 2 — Componentes iniciais: primeiro, Tobias Ba] 
reto.
§ 3 — Componentes iniciais: segundo, Sílvio Römer 
§ 4 — Seguidores e continuadores: Artur Orlando.
( * ) Professor Adjunto de Teoria do E stad o e Titular de História i 
Pensamento Social e Político da Universidade Federal de Pernambuco.
§ 5 — Ainda seguidores e continuadores: M artins
Júnior.
§ 6 — Seguidores e continuadores: Clóvis Bevilaqua. 
§ 7 — Ainda seguidores e continuadores.
§ 8 — Outros seguidores e continuadores.
§ 9 — Outras figuras.
2 — Setores cultivados pela Escola.
3 — A Faculdade do Recife como berço e foco do movi­
mento.
CAPÍTULO III — Conseqüências e influências. Tentativa de balanço
crítico.
1 — Características dominantes.
2 — Conseqüências e influências.
3 — Para um balanço crítico.
BIBLIOGRAFIA UTILIZADA
EXPLICAÇÃO CIRCUNSTANCIAL
Este trabalho foi escrito, entre novembro e dezembro de 1970, 
como monografia apresentada para concorrer ao “Prêmio Cidade do 
Recife — 1970” . Elaborado no exíguo prazo de cinco semanas, em 
meio aos trabalhos docentes do autor, este é o primeiro a reconhecer 
que o estudo poderia, noutras condições, ter sido mais aprofundado.
Reconhecendo o quanto a premência do tempo utilizado afetou a 
construção do livro, mas crendo-o válido como homenagem historio- 
gráfica ao movimento que visou focalizar, o autor agradece profun­
damente o incentivo que recebeu de alguns amigos, que não o deixa­
ram desistir da tarefa, durante o período em que trabalhou.
Falando de homenagem à Escola do Recife mesma, o autor não 
quer furtar-se a afirmar que o trabalho historiográfico pede sempre 
uma compreensão existencial do passado e de sua relação com o pre­
sente. Os homens de carne e osso que fizeram a Escola do Recife, 
vivendo como viveram numa cidade que hoje nos parece tão peque­
na como antecipação de nossos problemas urbanos, pensaram intensa­
mente e intensamente escreveram, assumindo as questões de seu tem­
po com sofreguidão. Olhando as páginas dos livros daquele tempo, 
notamos a solidariedade entre os tipos gráficos — mais as vinhetas 
e as reliures — e a linguagem mesma que traziam, mais as idéias
que expressavam. A morte dos estilos, como a das vestes e a dos 
problemas, é mais recuperável que a das pessoas, e um pouco para 
isso serve a tarefa de historiar: para recuperar o que se pode, de 
dentro dos longos e sucessivos enterros das gerações.
Retomando o texto, quase um ano depois, p a ra a presente edição, 
tivemos agora oportunidade de fazer uns poucos, pouquíssimos repa-
ros na terminologia. Basicamente, o livro vai tal como foi concebido 
e redigido.
O padrão intelectual da “Escola do Recife” constituiu realmente 
uma atitude intelectual bastante característica. Entre os modos de 
filosofar que têm ocorrido em nosso país, aquele padrão teve sua 
eficácia, cuja compreensão e valorização, diante da circunstância cor­
respondente, nos compete tentar. Seja esta a intenção de nosso 
trabalho.
Aproveito para agradecer, como sempre, às pessoas que me deram 
ajuda datilográfica: desta vez Severina de Lourdes Lima, Carolina 
Alcides, Maria José Costa Pinto, Zélia Alves e Albanete Florencio.
Recife, setembro de 1971.
PROPÓSITO TEMATICO E OBSERVAÇÃO BIBLIOGRAFICA
A chamada Escola do Recife constitui sem dúvida um dos títulos 
de gloria da tradição intelectual de Pernambuco, e, de certa forma, 
do Nordeste inteiro. Carregando semelhante responsabilidade, é natu­
ral que tenha sido tema de tantos estudos, e que já exista em torno 
dela uma bibliografia realmente vastíssima. Acontece, entretanto, 
que o vastíssimo dessa bibliografia corre a troco de uma certa hete- 
rogeneidade, ou antes, digamos, de uma certa dispersão. O numeroso 
material existente, numeroso até demais possivelmente, tem sido insu­
ficientemente sintetizado. Os esforços que têm incidido sobre ele 
trazem mui poucas vezes intenção didática. Somente uma ou duas 
obras possuem o sentido de síntese e sumarização do que foi efeti­
vamente a Escola; com a grande maioria dos trabalhos referentes 
sucede que são vistas parciais, tocantes quer a algum aspecto quer 
a alguns nomes mais altos, ou então includentes do episódio, que foi 
a Escola, em algum panorama cultural maior.
Das sínteses disponíveis, com alcance global e conteúdo realmente 
completo, embora sem enxúndias nem prolixidades, destaca-se inques­
tionavelmente o livro de Antônio Paim, A Filosofia da Escola do 
Recife, lançado pela Editora Saga em 1966. Este estudo, completo 
quanto ao aspecto que elege, ou seja, o filosófico, deixa — como decor­
rência lógica de seu enfoque — deixa de parte toda uma série de 
aspectos e lados que a Escola apresentou. Há também o fato de que 
grande parte da bibliografia existente se centra sobre as figuras pros- 
ceniais do movimento, particularmente Tobias Barreto e Sílvio Rome­
ro. Ora, são figuras, estas duas, que de ta l modo tentam o biógrafo, 
pelo tumultuado de suas vidas, ou mesmo o expositor crítico, pela 
complexa riqueza das obras que deixaram , que os livros sobre eles 
são em muito pouca medida livros sobre a Escola. São livros “sobre 
Tobias”, ou “sobre Sílvio”, nomes próprios que aliás o apego dos estu­
diosos tem feito independentes dos sobrenomes; contrapartida daquele
12 —
irioso uso de escritores lusos e brasileiros, de a té uma ou duas gera- 
cs, de se fazerem conhecer pelos sobrenom es sem o cognato.
Por outro lado, o comportamento doutrinário e proselitístico da 
scola, desde o exem plo de Tobias B arreto, sempre ensejou atitudes 
paixonadas a respeito. Atitudes polarizadas, contra ou a favor, con- 
mdindo-se as figuras com as idéias, confundindo-se determ inadas 
léias com o “progresso” intelectual, ou recusando-se os m éritos do 
rupo por idiossincrasias e crenças. Se se aplicar ao caso a famosa 
istinção de Ortega acerca de idéias e crenças ( “as idéias se têm, nas 
"enças se está” ; “das crenças, às vezes não se tem nem idéia” ), se 
ê justam ente isso: as idéias do grupo, que aliás eram ao mesmo 
impo crenças, ou antes repousavam em crenças, vêm sendo v a lo n ­
adas ou desvalorizadas, como crenças, mais que como idéias.
Tudo isso significa, se se permite, a necessidade de uma recon- 
ideração da Escola. Ao mesmo tempo, de uma reexposição de seus 
ravejamentos intelectuais e de seus suportes históricos, com uma 
essistematização de sua trajetória na evolução cultural do Recife. 
)essa evolução ela foi, por um lado, produto e manifestação; por 
o tro lado, elemento propulsor durante muitos anos — ou antes, 
turante algumas gerações.
Ver a Escola do Recife no Recife: esta seria a tarefa necessária. 
‘No Recife” significa dentro de uma certa fase da vida da cidade, 
iquela em que a metrópole concentrava um sentido maior (ao menos 
geograficamente) que o que lhe cabe hoje: o Recife era considerado:omo o centro da vida do “Norte” . Quando Franklin Távora, ap 
prefaciar seu próprio romance O Cabeleira, dividiu o território lite ­
rário nacional em Norte e Sul (levantando um problema chato mas 
necessàrio que ainda hoje agita e incomoda os críticos literários), teve 
a intenção de situar no “Norte” a ambiência do romance; e a suges­
tão daquela distinção ficaria atuanclo no sentido de fazer concentrar 
em Pernambuco a condição de ponto de referência do “nortism o” : 
tinha sido o estado mais trabalhado pelas lutas emancipacionistas. 
E o Recife, como capital, confirmava semelhante condição pela p r i­
mazia intelectual que entre os estados vizinhos nenhuma outra cidade 
pretenderia negar, nem disputar. A consolidação desta hegemonia 
do Recife, entre as cidades da região, correspondeu a uma série de 
circunstâncias, das quais se poderia mencionar a situação econômica 
de Pernambuco, ainda vivendo dias de bom açúcar e esplendor comer­
cial. No Recife de então, a importação de coisas européias se fazia
Ccrriqueira e generalizada. Então ímportaram-se também livros e 
idéias, em quantidade m aior. P a r te digeridos, parte indigeridos, esses 
livros e essas idéias resultaram , de alguma forma, na Escola do Recife.
- ❖ -
Mencionamos, atrás, o problem a bibliográfico. Voltemos a ele. 
Desde logo para dizer que não temos a pretensão de, com o presente 
ensaio, preencher as lacunas porventura existentes na lista, que já 
qualificamos de vastíssima, dos títulos tocantes ao tem a. Nem, por 
outra parte, pretendemos dar conta, utilizando ou citando, de quantos 
estudos já se consagraram à Escola, ou a seus integrantes, ou a seus 
aspectos.
Há, realm ente, estudos excelentes sobre determinadas figuras, como 
o de Hermes Lima sobre Tobias Barreto ou o de Sílvio Rabello sobre 
Sílvio Romero. O aspecto filosófico da Escola foi analisado por Paim. 
o jurídico está enfocado em trabalhos de Machado Neto e Vamireh 
Chacon. E, se faltam síntese outras (sobre o positivismo existem 
umas três obras de porte, globais), falta também outra coisa: uma 
discriminação compreensível da verdadeira c-omposição da Escola. 
Quem a integrou realmente? Quem foi co-fundador, além de Tobias 
Barreto e Sílvio Romero? Quais foram os seguidores (habitualm ente 
ditos “epígonos” na retórica historiográfica) propriam ente, quais os 
meros simpatizantes, os que aproveitaram idéias do movimento ou 
os apenas relacionados por questões polêmicas, ou por serem da m es­
ma hora, dos mesmos assuntos e das mesmas leituras?
Tentaremos rever essas coisas. Um pequeno balanço, como este, 
não pode ter maiores veleidades. De qualquer sorte, o que faz falta 
para repor certos nomes em seu momento certo é um critério adequado. 
Certas exposições, excelentes como apresentação doutrinária ou n o tí­
cia bibliográfica, deixam indeciso o desenho das posições dos vários 
“integrantes” do grupo, e o leitor se perde um pouco. Na verdade 
a Escola, como um eco que se esmaece lentamente e lentam ente se 
modifica, modificou-se e esmaeceu-se ao passar de geração a geração 
Uma coisa eram as motivações da década 70 do século XIX, quandc 
Tobias Barreto estava preocupado com Guizot e Haeckel, outra eram 
as investigações jurídicas de Bevilaqua e os desafios objetivos que 
Sílvio Romero apontava em 1910.
Um pequeno balanço como este, repita-se, não pode ter maiorei 
veleidades, que as referentes à “compendiar” e “aq u ila ta r” os an v er
— 14 —
; e reversos da Escola. De resto, se dizemos que a Escola se alte- 
ì ao passar por distintas motivações históricas, isto supõe que se 
3 atribua um perfil inicial definido, senão definitivo, um núcleo de 
racterísticas p róprias. Isto porém será visto adiante: se ela teve 
não a denom inada unidade interna. E teve. Teve-a sem ser orto- 
xamente, que é a boa maneira de se te r unidade interna.
CAPÍTULO I
AMBIÊNCIA E FORMAÇÃO 
— O ambiente recifense ao tempo da formação da Escola do Recife.
Não se pode, conforme foi afirmado acima, entender as etapas de 
ansformação que a Escola do Recife atravessou, sem situá-la a par- 
r de sua gênese num determinado cenário histórico. Também não 
i pode considerar seu cenário histórico sem ter em conta a atemosfera 
►ciai e cultural v ivida pelo Recife, com suas características de m etró- 
)le regional então inconteste (mais do que h o je ) . Características 
íe sob o prism a econômico correspondiam ao. fato de ser a cidade 
3saguadouro de uma economia agrária ainda plenamente vigorosa — 
Desar de se prepararem as crises e problemas que desembocariam 
3 Congresso Agrícola Regional de 1878 —, e de ser, por outro lado, 
»co de um comércio nacional e internacional considerável. Sob o 
risma político, o Recife continuava sentindo-se a própria cabeça do 
Leão do Norte”, impávido e rebelde, cheio dos ecos e dos gestos 
e várias revoluções libertárias: no século dezenove mesmo, tinha feito 
Revolução de 1817, a Confederação do Equador e a Praieira, alimen- 
mdo uma tradição de liberalismo e inconformismo verdadeiramente 
npar. Socialmente, Pernambuco apresentava um quadro que se pode- 
ia tomar como típico da brasilidade oitocentista em seu aspecto bási- 
o, ou seja, antropológico: a miscigenação racial, se por um lado 
avoreceu exem plarmente a mobilidade social, permitindo que pardos 
mulatos subissem na escala social, por outro lado ensejou dialetica- 
aente um processo de preconceitualização que, mau grado nossa apre- 
oada democracia racial (só em parte existente), continua a medrar 
errivelmente en tre nós.
O lado positivo da mestiçagem foi aliás, em boa hora e em te r­
nos convincentes, enfatizado por G ilberto Freyre. Desde seu juvenil 
nas definitivo estudo sobre a “Vida Social no Brasil nos meados do 
éculo X IX ” o problema está posto, mas seu completo tratam ento em 
timensão de história social se encontra em “Sobrados e Mucambos”, 
>nde vemos retratada a figura do m ulato que se habilita e se nobi-
- 1 5 -
lita pela transformação em padre ou em bacharel: e para Gilberto 
Freyre, o mulato do romance famoso de Aluízio de Azevedo teria 
sido modelado sobre casos reais, como um tipo.
Vale lembrar, todavia, o lado negativo da mestiçagem, correspon­
dente à formação dos preconceitos de raça e aos ressenteimentos 
correlatos.
Ambos os lados, de resto, vamos encontrar no «aso fundamental 
e exem plar de Tobias Barreto. O padrão mestiço existente na socie­
dade permitiu-lhe “subir” na hierarquia social, vindo a ser professor 
da Faculdade, condição que no tempo correspondia a um status social 
de enorme prestígio. Mas teve de haver-se com um mundo de anti­
patías e reações por conta de seus caracteres somáticos. Donde, ao 
menos em parte, sua agressividade perm anente.
r
Intelec-tualmente, dá para se dizer que as duas grandes forças do 
Recife de então eram a Faculdade de Direito e a Imprensa. Como a 
de São Paulo, a Faculdade do Recife exerceu função por assim dizer 
catalizadora, centralizando o prestígio social e cultural num meio urba­
no bisonho e limitado, como era o das províncias de então, onde aos 
poucos entravam as vias férreas e os costumes novos. Ser bacharel 
tinha de ser grande coisa; ser acadêmico já era muito, era ser um 
personagem .
A importação de idéias européias — francesas em maioria, como 
se sabe — era um processo cultural antigo no país, e vinha desde o 
período colonial, mas agora era mais intenso, agora era uma notícia 
mais completa e mais direta a que se tinha dos debates ideológicos e 
científicos travados na Europa. No Recife, semelhante processo foi 
dos mais representativos: jornalistas e professores, políticos, padres, 
militares, bacharéis, toda a intelligentsia local se debruçava sobre os 
volumes vindos de P aris . Quando Vauthier chegou ao Recife, onde 
construiria o Teatro e outras edificações inconfundíveis, já encontrou 
ebulições intelectuais patentes,que talvez lhe tenham parecido con­
traditórias em relação ao nível global da cultura do povo, e ao aca­
nhado da mentalidade em term os genéricos.
A elite, que Pernam buco até então tivera como portadora de 
rebeldías e leonismos, existia, ainda, nos anos 60; e àquela a ltu ra a 
pobreza urbana da cidade e as limitações do ambiente como periferia 
não impediam que ta l elite estivesse cada vez mais interessada em 
ismos do velho mundo, como socialismo, romantismo, liberalismo etc.
— 16 —
Foi quando chegaram Os ismos filosóficos. V inham liderados 
pelo positivismo e pelo evolucionismo. E logo se revelaram avessos 
à metafísica, ao direito natural e às tradições (que por si mesmos 
não se chamariam de “ismos” se não fossem desafiados e espicaçados 
pelos “ismos” heréticos que chegavam).
2. — A vida cultural no Recife pelos anos 60 e 70
Os anos sessenta e setenta, do século XIX, são o m om ento prepa­
ratório para a eclosão do movimento que se cham ou Escola do Recife. 
Foram anos agitados: basta mencionar que ainda soavam polêmicas 
ligadas à Revolução Praieira de 1848. Mas havia um surto de polê­
micas novas e novos polemistas. Foi em 1867 que Borges da Fonseca, 
antigo agitador praieiro, publicou no Recife o seu “M anifesto Político”, 
com o subtítulo de “Apontamentos de m inha vida política e da vida 
política do Dr. Urbano Sabino Pessoa de M elo”; em 1862 Antônio 
Herculano de Souza Bandeira publicara, prefaciando-a, um a im portan­
te coletânea sobre a reforma eleitoral e a eleição direta; por aqueles 
anos, o alagoano Melo Morais publicava, no Rio, suas furiosas obras, 
meio jornalism o-diatribe meio historiografia-denúncia. Foi também o 
tempo em que, no Recife, Afonso de A lbuquerque Melo editou sua 
catilinària anti-lusitana: “A liberdade no B rasil — seu nascimento, 
vida, morte e sepultura” .
A revolução praieira, impregnada de doutrinagem européia e de 
intenções genéricas, não deixou de ser entranhadam ente recifense 
pelas motivações sociais que carregou (evoque-se a respeito o decisivo 
estudo do professor Amaro Quintas a respeito). Mas o Recife dos 
anos 60 e 70 não constava apenas de ressonâncias heróicas nem de 
permanências polêmicas: era também uma cidade que se alterava aos 
poucos, se bem num ritmo que hoje, ao nosso pulso histórico sempre 
acelerado, possa parecer bem lento. Já não era o Recife dos revo­
lucionários ainda meio coloniais de 1817 ou mesmo de 1824, cidadela 
bitolada e esconsa: era uma cidade com pretensões novas. As figuras 
humanas mudavam. Os “gamenhos” que Lopes Gama satirizou, como 
um Daumier de outra forma (sobre Lopes Gama é impossível ignorar 
o livre exaustivo do professor Valdemar Valente, publicado em 1969), 
os gamenhos da prim eira e trêmula floração romântica cediam o passo 
a novos tipos; esses tipos correspondiam a um começo de classe média 
urbana, a uma nova fixação antropológica resultante de nova fase da 
miscigenação, e a uma nova mentalidade social.
Ao falar em tipos humanos e em mentalidade social, temos for- 
çosamente de retom ar o tema do bacharel. Dito foi, acima, que o
— 17 —
bacharel e ra um personagem: dava-se ares, assumia um papel espe­
cífico, e com um pouco de desenho a crítica histórica acabou por 
pregar-lhe sentido caricato. O certo é que tal crítica já vinha sendo 
feita no século passado mesmo, e que a antipatia posterior contribuiu 
para criar, sobre um equívoco, um pesado preconceito terminológico. 
Bacharéis fo ram os que deram passos decisivos na nossa história, pen­
saram coisas novas, fizeram levantes. Bacharéis fizeram a Escola de 
Recife — precisamente um movimento de bacharéis. Bacharelismo 
(o ismo como afocinhamento na fisionomia da palavra com fins nega­
tivos) já é ou tra coisa, e se existiu com os bacharéis de direito naque­
le tempo, e a té bem pouco, existe hoje com outras áreas profissionais.
Essa afirm atividade da “intervenção dos juristas” foi por sinal, 
há pouco, oportunam ente sublinhada por Luís Delgado num dos me­
lhores capítulos de seu livro “Gestos e Vozes de Pernam buco”. Eram 
os formados pelas academias de direito que iam — m ostra ele — lidar 
com os problemas novos e urgentes da vida real do país, desde a 
independência, e orientar sua vida institucional da maneira mais 
equilibrada.
Se o Recife, por aqueles anos, era uma cidade com pretensões 
novas, isto não pode ser descrito como um processo evolutivo tran ­
quilo e pacífico. As novas atitudes, sobretudo as intelectuais e aca­
dêmicas, se topavam com resistências e reações, de um a maneira que 
talvez possa ser atingida pela expressão ambígua “conflito de gerações” . 
Os representantes do tomismo ou do catolicismo, guardando o hábito 
metodológico da escolástica e o critério doutrinário da metafísica, não 
podiam aceitar novidades inquietantes, e é natural que os pregoeiros 
destas novidades se sentissem como juventude e criatividade em face 
de idéias velhas e gente repetidora.
Antônio Paim , evocando a origem da Escola de Recife, menciona 
a Questão Coimbra, que por volta de 1865 tinha revelado o estupendo 
poderio especulativo de Antero, atirando-se sobre Castilho, ou antes, 
sobre o que Castilho representava como coisa arcaica. Fonte e mode­
lo para os Anteros locais, ou não, o movimento português serve como 
comparação. Também houve, na insurreição literária representada 
pelo movimento de Tobias Barreto, uma dimensão de lu ta de gerações. 
E com isto não se tira o mérito dos que a Escola combateu: sem 
dúvida que se tratava de professores idôneos. O que se tem a con­
siderar é o cará ter de novidade, como elemento decisivo, que Tobias 
e seus sequazes anunciavam no que defendiam. Argum ento insufi­
ciente, mas psicologicamente forte, e, para o tempo, compreensível: 
nossas idéias são boas porque são novas, as dos nossos detratores
— 18 —
0 ruins porque são velhas. Um socratismo estranho e tosco se 
icontrava no âmago das pretensiosidades erudicionais de Tobias e 
lvio Romero: pretendiam saber mais que os adversários, e se sabiam 
ais, estavam mais certos, pois que enquanto se sabe menos, se conhe- 
■ menos a verdade. Restava perguntar qual a medida para contar
1 saberes. Para eles, a medida estaria justam ente na novidade dos 
yros e dos autores que aduziam, como pour épater e como uma 
¡plica, também estranha e tosca, do clássico argum ento de autoridade, 
uanto mais nova uma idéia, melhor; e quanto mais autores a este- 
im adotando, melhor. Este critério, a té certo ponto, vigorou como 
¡ndência psicológica central no grupo de Tobias. Por isso se cita 
;mpre a frase de Sílvio Romero, que, aludindo às origens da cam- 
anha intelectual do fundador da Escola, dizia que “um bando de 
léias novas” tinha começado a esvoaçar no horizonte. A Escola de 
ecife (nome que começa a circular por conta de Sílvio Romero) 
retendia-se iniciadora, em verdade, do autêntico sopro de vida cul- 
jra l em Pernambuco. Exagero patente. E um pouco exagero de 
)vens.
. — A figura de Tobias Barreto e a constituição de uma “Escola” .
A figura de Tobias Barreto ficou sendo, em relação à Escola do 
tecife, não apenas centro e ponto de partida, como também modelo, 
xemplo de estilo intelectual, multiplicidade de conhecimentos, ten­
encia polêmica, pretensão literária.
Com respeito a ele é difícil descartar o biográfico, não só porque 
ua obra se acha toda marcada pelo circunstancial, como porque a 
magem que a historiografia habitualmente faz dele está sempre vin- 
ulada ao biográfico.
Nascido em 1839, em Sergipe (numa vilazinha chamada Campos), 
íerdou do pai as características físicas do mestiço e certas inclinações 
joêmias e estouvadas. Estudou por lá as chamadas primeiras letras, 
endo estado inclusive em Lagarto (terra de Sílvio Romero). Apren- 
leu latim, o que, como observou Hermes Lima, o nivelava de certo 
nodo aos filhos de ricos, ele que vinha de um paiescrivão de cartó­
rio, pobre e modesto. Jovem ainda, tocou flauta em charangas locais, 
asando cabeleira enorme e compondo versos. Jam ais deixou o gosto 
pelas diversões, pelo violão, pelas mulheres. Saiu de Sergipe para a 
Bahia à procura de um meio mais condizente com suas virtualidades. 
Em 1861 foi para a Bahia. Teve atropelos iniciais. Estudou filosofia, 
inclusive assistindo aulas do célebre Frei Itaparica, mas sobretudo 
mergulhando na Biblioteca Pública. Ali conheceu inclusive as obras
de Victor Hugo, que a ele, como a Castro Alves, influenciariam de 
form a profunda. Hermes Lima, no magnífico livro que dedica ao 
estudo de Tobias Barreto, assim se refere às suas leituras na Biblio­
teca Pública baiana:
“Ali passava o m elhor do seu tempo, lendo os românticos, 
deslumbrando-se com Victor Hugo, que é, verdadeiramen­
te, a sua grande, a sua máxima descoberta na Bahia. 
Pela voz do poeta, o rapaz humilde e sonhador do sertão 
de Sergipe entra a participar do drama do mundo, dos 
seus anseios, da sua inquietação” .
Voltou a Campos numa crise de vida, e dali resolveu dar o g ran ­
de passo, ir para o Recife. Sofreu outros contratempos iniciais, inclu­
sive alguns grotescos (como o coice de um burro que os autores sem ­
pre relembram, e que o pegou bru ta lm en te). Fez um concurso de 
latim para o Ginásio Pernambucano, perdendo-o; fez outro de F ilo ­
sofia, que venceu, mas viu nomeado outro candidato. Ainda desco­
nhecido e desamparado, essas adversidades, preparam -lhe o acervo de 
ressentimentos e queixas que nunca deixariam de m anifestar-se pelo 
resto de sua vida. Como aliás aconteceria com outros mestiços de 
nossa história literária, qual foi o caso, menos ostensivo, de Machado 
de Assis, ou o caso, mais ostensivo e mais amargo, de Lima B arreto .
Na Faculdade de Direito, como acadêmico, formou aos poucos, 
entretanto, um grupo de amigos e admiradores, conquistando um nome 
conceituado e um prestígio intelectual considerável. Prestígio in icial­
mente de poeta, obtido nas disputas com Castro Alves, nas declam a- 
ções típicas da época, na luta lírica em torno de atrizes de T eatro . 
Várias oportunidades de aparecimento social se apresentavam aos e-stu- 
dantes naquela sociedade que aos poucos adquiria hábitos novos, e 
em que as festas acompanhadas a piano incluíam recitativos rom ân­
ticos. Sua rivalidade com Castro Alves, talvez acentuada demais pelos 
zelos bairristas de Sílvio Romero em sua “H istória da L ite ra tu ra 
Brasileira”, não teria talvez passado de episódio momentâneo. N a 
verdade, Castro Alves sempre foi basicamente poeta, e muito m ais 
poeta que Tobias, inquestionavelmente. Tobias, porém, utilizando 
uma experiência maior em termos de existência e de estudos, conse­
guia enfrentar a parada. E para ele aquilo e ra um a grande opo rtu ­
nidade, no sentido de fazer-se aceitar pela sociedade — a ele m estiço 
e pobre —, de se fazer adm irar e impor. De seu s concursos, e o u tra s 
tentativas específicamente intelectuais, Tobias posterio rm ente faria u m 
juízo zombeteiro, chegando a dizer, em estudo contido depois no 
volume “Filosofia e Crítica”, que não sabia m esm o Filosofia quando
concorreu, como o seu oponente tam bém não sabia. Mas destas lutas 
lítero-sociais não fez juízo negativo: ele sabia que eram o seu cam i­
nho, p ara subir na província.
N em sempre, entretanto, teve êxito na escalada. Teve inclusive 
fracassos sentimentais, que lhe doíam como provenientes de sua infe­
rioridade social. Destes desastres, curava-se pelo tem peram ento comu­
nicativo e por uma certa leviandade, mesmo, que o impedia de se 
concentrar todo tempo numa pessoa, como num a teoria ou numa m a­
téria . T inha um jeitão transbordante e falastrão, que com o tempo 
se tornou desinibição total. Não era um tímido, como o são geral­
mente os ressentidos; aproveitava toda ocasião de aparecer, falar, ser 
ouvido, te r êxito. Tanto apreciava a conversa chã e as anedotas 
prosaicas, como a discussão erud ita . Conseguia passar da concentra­
ção paciente debruçada em cima dos clássicos e dos grossos tomos 
alemães e franceses, para o cavaco informal, o “papo” inconseqüente 
e a in triga política. Adorava fazer discursos: destemperado, exage­
rado, sem o aplomb de um Nabuco nem as correções de tantos outros, 
mas eficiente e persuasivo: homem do povo, alimentado de conheci­
mentos europeus, voltado de novo para o povo.
Tornou-se membro do partido liberal. Mas suas convicções polí­
ticas nunca foram muito claras. Conservou hábitos desorganizados 
por toda a vida: Luiz W ashington Vita, em sua notável síntese “Pano­
ram a da Filosofia no Brasil”, m ostra-o em bailes e serestas, com 
pouco apreço pelas coisas práticas e até mesmo pela higiene. Conser­
vava também o hábito da polêmica. Sempre se cita sua polêmica 
contra o conselheiro Autran, representativo da velha guarda dos pro­
fessores de direito, conservador, católico, jus-naturalista, bien-pensant. 
No volum e “Polêmicas”, das obras de Tobias Barreto, inclui-se a 
famosa “Crônica dos disparatos”, onde dirigiu a Autran os versos 
seguintes:
Mote:
Fradecos, tocai o sino 
Que o Católico m orreu.
Glosa:
Um velho feito menino 
por força de caduquice,
Quiz lutar — oh que sandice! 
Fradecos, tocai o sino 
Não julgueis que é desatino 
Taxá-lo assim de sandeu.
Se em discussões se meteu,
21 —
Para tornar uma sóva 
Carolas, abri-lhe a cóva, 
Que o católico morreu.
Tal é na terra o destino 
Das ciencias passageiras: 
morreu vomitando asneiras...
Fradecos, tocai o sino!
Não teve auxílio divino 
Nem a Suma lhe valeu.
Como é que assim se perdeu 
Tão sábio guia das almas?
Quem for ímpio, bata palmas,
Que o Católico m orreu.
O “Católico” era o jornal onde Pedro A utran escrevia (Tobias 
replicava no “Americano”) . As ciências passageiras mencionadas na 
segunda estrofe aludem evidentem ente à teologia e à metafísica, e 
mostram um Tobias ainda meio positivista, pois segundo a Lei dos 
Três Estados, de Comte, a teologia foi substituída pela metafísica, e 
esta pelas ciências positivas. Note-se ainda a referência à Suma — 
seguramente a “Suma Teológica” de Tomás de Aquino.
Concluído o curso de D ireito, Tobias Barreto, como todos sabem, 
vai ser promotor em Escada, in terior de Pernam buco. Ia-se em bre­
nhar, não apenas na distância geográfica, como na concentração da 
leitura. Conta-se que antes de v ia jar comprou por acaso, numa liv ra­
ria da rua do Imperador, um dicionário de alem ão. Diz Luiz W ashi­
ngton Vita que aquela visita à liv raria foi uma “visita histórica”, pois 
dali dataram suas “núpcias com o germanismo” . Realmente, núpcias 
férteis.
Este germanismo seria, daí por diante, a g ran d e constante, senão 
mesmo a grande alegação in telectual de sua v ida de pensador.
Em Escada redige um jo rn a l em alemão, o Deutscher Kampfei 
(“Lutador Alemão” ), que pouca gente te rá lido, incluindo-se os a le ­
mães da Alemanha para os q uais o rem etia, e incluindo-se o pròprie 
Haeckel, que, ao que consta, te r ia um d ia elogiado sua redação en 
língua tedesca.
— 22 —
De certa form a, o jornal alem ão marcava o início da formação 
ca Escola. In telectuais do sul, à frente* Carlos de Laet, chamariam 
depois o grupo de “escola tcu to-serg ipana”, sublinhando nom inalm en­
te a dcsi^roporção entre o elem ento alemão e o elemento sergipano. 
Tobias e seu grupo redarguiriam designando o grupo de Laet (que 
nem era um a escola, e não o p retend ia) como escola galo-fluminense. 
Nesta designação, ia o intento de apontar a limitação dos intelectuais 
da corte, apenas lidos nos franceses, e isto traduzia um duplo precon­
ceito de Tobias: o preconceito segundo o qual a verdadeira cultura 
citava na A lem anha (“não tendo deixado sucursal na F rança”), e o 
preconceito nortista contra os intelectuais do Sul, no caso tidos como 
folgados e avessosaos estudos pesados.
A famosa frase de A raripe Júnior, segundo o qual Tobias, lan­
çando pela prim eira vez en tre nós os nomes de Darwin e Haeckel, 
“lançava as prim eiras tarrafadas na pesca dos prosélitos”, ficou como 
uma imagem definitiva: era uma ascendência ímpar, a que Tobias 
Barreto conquistava aos poucos, e indubitavelmente mantinha, dentro 
do meio culto rccifense; senão mesmo, já que o Recife era o centro 
da região, dentro da cultura nordestina. Isto através da Faculdade 
de Direito. Na verdade, só depois de tornado professor da Faculdade 
é que :u a atuação, já fru tífera e exemplar, se projetou em chefia 
de escola e em proselitismo definido e caracterizado.
Para Antônio Paim, passou a Escola do Recife por quatro fases. 
Teria sido, a prim eira, um esforço genérico de renovar idéias, rejei­
tando a metafísica, o ecletismo e a escolástica. Tal fase iria mais 
ou menos de 1860 a 1875. A segunda fase, segundo Paim, teria tido 
início quando — já Tobias intelectual conceituado — Sílvio Romero, 
no conhecido incidente acadêmico da defesa de tese, gritou e debla- 
terou que a metafísica estava morta, afirmação que provocaria inda­
gações no próprio Tobias. Esta segunda fase tem outra marca da 
presença de Sílvio Romero: a publicação (1878) de seu livro “A Filo­
sofia no Brasil”, imaturo e desigual mas expressivo e válido. A ter­
ceira iria de meados da década de 80 aos primeiros anos do século 
XX: Tobias m orre aos 50 anos em 1889; refundem-se os fundamentos 
doutrinários; os arrancos polêmicos iniciais se mudam em desdobra­
mentos temáticos, incluindo-se cada vez mais o ângulo sociológico na 
consideração dos problemas. A chamada quarta fase seria a dos 
brilhos finais, onde as discussões filosóficas já pouco contavam. Deixa
de circular a revista Cultura Acadêmica, que se divulgara em 1905 e 
1906. O ano 1914, com a morte de Silvio Romero, balizaria o fim 
da trajetória da Escola.
Talvez seja esm iuçar demais a existência da Escola, dividir seu 
ciclo vital em quatro fases; de certa forma, o que ela teve mesmo, 
como de resto todo movimento intelectual aqui ou no velho mundo, 
foi um período de formação, um de apogeu e outro de declínio. 
Todavia podemos aceitar em parte o esquema proposto por Paim .
De qualquer sorte, um momento decisivo na caracterização inicial 
da Escola, no sentido de uma definição interior de sua doutrina foi 
o abandono, por Tobias Barreto, do positivismo (ou da parte do posi­
tivismo que viera aceitando) e sua adesão gradativa ao haeckelismo.
É verdade que antes tinha feito a crítica do espiritualismo francês de 
Royer-Collard, de Jouffroy, de Guizot e de Cousin, em diversos estu ; 
dos, e tinha também combatido o teologismo e o tomismo. Sejam 
lembrados os estudos “A propósito de uma teoria de São Tomás de 
Aquino” (1868, incluindo nos Estudos Alemães e depois posto no 
tomo III das Obras Completas editadas pelo governo de Sergipe em 
1926) e “Teologia e Teodicéia não são ciências” (1868), abrigado no 
tomo II das Obras Completas. Mas com o artigo sobre o “H aecke­
lismo em Zoologia” (1880), que comentava a obra homônima de C arl 
Semper, Tobias colocava Haeckel no cimo mais alto da in telectuali­
dade, como um sábio inconteste e incontestável, cujas idéias faziam 
parte do que de mais sólido e mais definitivo existe ou pode existir 
no patrimônio da filosofia e da ciência. O culto a Haeckel se con­
funde, nas páginas de Tobias e em suas entrelinhas, com o culto à 
própria superioridade cultural alemã. Com ambas as coisas se con­
funde, de certa forma, o culto ao monismo e a uma certa concepção 
cientificista da filosofia, que não deixava de ser também uma con­
cepção filosofante da ciência e do trabalho científico.
Antônio Paim considera que a rejeição do positivismo por Tobias 
resultou da procura de uma solução para um problema fundam ental 
com que ele se debatia desde o contacto inicial com as idéias de 
Comte: o problema dos limites em que se poderia aceitar a m etafí 
sica, retirando-se-lhe desde logo o fam igerado problema da “causs 
p rim eira” . Isto nos põe na pista das dúvidas e críticas feitas ao: 
autores franceses; e explica que diante do brado destambocado d< 
Silvio Romero sobre a morte da metafísica, Tobias se pusesse a pen 
sar m elhor no assunto. Tanto que, em 1875, escreveu o texto “Dev< 
a metafísica ser considerada morta?” , publicando-o no seu jo rn a
— 24 —
eutscher Kampfer. O texto é hesitante: arrasa a metafísica tradi- 
onal, atribuí a Hume e a Kant a sua destruição, mas também criti­
ca a ingenuidade dos que falam da metafísica sem conhecê-la.
Por sinal, que situar certos pontos do pensamento de Tobias sem- 
re é algo difícil. Se Sílvio Romero praticou a instabilidade quase 
amo uma profissão de fé, dizendo-se ora isto e ora aquilo, Tobias 
iarreto, de modo visível, tinha também certa heterogeneidade, ou 
ntes, certas hesitações no tocante às convicções. O que era, na rea- 
dade, uma forma de ser eclético, embora o ecletismo fosse expres­
amente repelido pela Escola, como hoje repelem a própria idéia de 
cletismo vários críticos que malgré tout fazem seus ecletismos também.
A propósito de política, por exemplo, Tobias Barreto sempre hesi- 
ou. Segundo Sílvio Romero, Tobias escreveu certa vez: “Não sou, 
íão posso ser conservador e isto por índole. Liberal, não sei se sou; 
10 menos entre nós os liberais me repelem, e eu de minha parte os 
icho sofrivelmente ridículos, desde os chefes que comprometem o p a r­
ido, até qualquer desses desfrutáveis quarentacoitistas que têm na 
>arede o retrato de Nunes Machado abaixo do registro de N . S . da 
Penha, sem falar no resto” .
E dizia mais, ainda segundo o testem unho de Silvio Romero: 
‘O que eu sou, pois? Talvez uma dessas naturezas problemáticas, a 
:juem nada contenta, senão desmontar todas as peças dos velhos p re­
conceitos e por tudo em questão; nunca e nunca, porém, um evangelist 
of waste, na frase de Buchanan” .
Dizia-se liberal (e filiou-se ao partido) e criticava os liberais. 
Suas instabilidades doutrinárias, que ele urna vez (em frase um tanto 
leviana) comparou às próprias sentimentais, sempre foram um a cons­
tante sua, embora, repita-se, não tão desconcertantemente como as 
de Sílvio Romero.
As vicissitudes de sua vida marcaram o evolver de seu pensa­
mento: escrevendo sobre coisas seríssimas em periódicos efêmeros, 
conciliando estudos profundos com hábitos boêmios, enfurnando-se em 
Escada para escrever em alemão, sempre deixou que o bias subjetivo 
de sua auto-imagem afetasse o crescimento interior de seu pensa­
m ento. E nisto, como modelo, iria influir sobre os outros da escola, 
discípulos e continuadores, particularm ente sobre Sílvio Romero, que,
— 25 —
se bem homem de hábitos pessoais muito diferentes, conservou sem- 
pre o eriçado polêmico em tudo o que escrevia, bem como a sempre 
disponível dimensão pessoal por dentro das idéias. Em ambos, a 
abertura às idéias e às teorias as mais diversas (que aliás se facili­
tava pelo convite ao enciclopedismo, próprio da época) foi algo fecun­
do: cada um dos dois praticou a seu modo a regra “je prends mon 
bien où je le trouve” .
CAPÍTULO II
COMPOSIÇÃO DA ESCOLA: INTEGRANTES E ASPECTOS
1. — Os componentes da Escola, desde o tempo de Tobias Barreto 
até a morte de Sílvio Romero.
8 1 — Vista geral
Uma das coisas que fazem falta ao leitor, nas exposições sobre a 
Escola do Recife, é um quadro mais ou menos claro da seriação de 
nomes que a integraram, bem como (o que foi mencionado atrás) 
das posições que cada um ocupou. Na verdade, uns têm colocação 
central, estão na linha principal dos temas e das inclinações da Esco­
la; outros, sem que isto signifique maior ou menor “importância” de 
sua parte em relação aos primeiros, estão na periferia da atuação 
do grupo.
A Escola do Recife, se a consideramos como tendo durado dos 
anos60 do século XIX até pelo menos a segunda década do nosso 
século, atravessou sessenta anos, o que significa duas gerações. Gera­
ções, porém, não são demarcações cronológicas fáceis de situar; sem­
pre há restos de gerações anteriores convivendo com gerações em 
ascensão, de modo que, efetivamente, a Escola correspondeu a umas 
três gerações: a de Tobias, nascido em 1839 e começando a publicar 
seus trabalhos no fim dos anos 60; a de Sílvio Romero, apenas doze 
anos mais moço, mas com vida mais longa e mais variada evolução; 
a que atua depois de 1890 e chega às primeiras décadas do século 
vinte.
Foi Sílvio Romero que deu o nome de “Escola do Recife” ao 
grupo, ele, que sempre se disse mais companheiro do que discípulo 
de Tobias, era no fundo um influenciado por Tobias. O fascínio de 
Tobias sobre a mocidade da Academia era realmente avassalador:
le representava a irreverencia dentro de uma sociedade estática, 
epresenta a novidade, o ruido polémico, a extroversão e a espon- 
aneidade.
H erm es Lima frisou o encanto que aquele hom em tão pouco esté- 
ico exerceu sobre os jovens.
“A mocidade — diz ele — adorava-o. Ela só lhe descobria vir- 
udes: o arrojado e o moderno das concepções, a irreverência do saber, 
i capacidade de demolir, a liberdade de dizer o q u e bem entendia e 
i flam a capaz de comunicar a outrem o próprio entusiasm o. Tinha 
im riso largo, sacudido, uma voz sonora e nuançada, uma simplici- 
lade ex trem a de m aneiras. Na livraria do Q uintas, à Rua Nova, 
lepois do meio-dia, era certo encontrá-lo na sua cadeira, o braço 
¡squerdo apoiado no balcão, cercado de ouvintes. Aquecido e esti­
pulado pela simpatia e admiração da roda, deslum brava com o seu 
aber, seu espírito não afeito às convenções, sua jovialidade” .
Realmente, esta jovialidade de Tobias Barreto foi em grande parte 
;eu condão para seduzir as classes na Faculdade, os leitores em geral 
; as pessoas no convívio. Naquele tempo, aliás, as obrigações de 
professor não eram absorventes: ser lente da Faculdade significava 
»anhar razoavelmente, te r um prestígio social enorme e um número 
le horas de ócio bastante para realmente estudar e produzir — tão 
liversam ente da situação de hoje, quando aos professores se impõem 
rada vez mais aulas, ficando o tempo restante para a leitura e a 
Desquisa simplesmente nulo.
Sílvio Romero, portanto, como dizíamos, representou em verdade 
ím seguidor, um continuador, embora o mais privilegiado, o mais 
•epresentativo, o mais especial de todos, pois era um contemporâneo 
le Tobias, um companheiro das primeiras lutas, e, se não foi o fun- 
iador da Escola, foi seu padrinho, pois lhe deu o nome.
O Recife, por aqueles tempos, crescia na pachorra desordenada e 
enta de cidade já cheia de problemas, com ruas estreitas, carroças 
le bois pelas ruas, dois ou três centros de atração (entre os quais 
d Teatro Santa Isabel). A diversão dos estudantes consistia nos saraus, 
ias farras, nos bailes, nas pequenas intrigas, nos grandes sonhos.
^ aparição das estradas de ferro no Brasil, dando a certas cidades 
üsionomia nova, correspondeu no Recife ao domínio da Great Western, 
nas nem tudo mudava — ou eram mudanças muito lentas para nossos
olhos hoje tão acostumados a alterações céleres —, nem tudo m udava 
no ambiente urbano pequeno e singelo.
§ 2 — Componentes iniciais: primeiro, Tobias Barreto.
Evolução Geral
Cremos que se pode dizer, a Escola inicialmente foi o mero con­
vívio de Tobias Barreto e Sílvio Romero, embora a caracterização 
efetiva só viesse quando a influência de Tobias “transbordasse” sobre 
outros, e quando as lealdades pessoais de Sílvio tingissem de cores 
ásperas as suas críticas e seus destemperos contra inimigos adqu iri­
dos em comum, numa espécie de definitivo condomínio polêmico que 
os uniu toda a vida, nos ganhos e nas perdas, e que prosseguiu depois 
mesmo da morte do m estre.
O rol de integrantes da Escola é longo, e deve ser entendido em 
termos, já que houve adesões de diferentes graus. Clóvis Beviláqua, 
no capítulo VII da segunda parte de sua História da Faculdade de 
Direito, menciona, como “discípulos imediatos”, os seguintes nomes: 
A rtur Orlando, Gumercindo Bessa, Martins Júnior, Adelino Filho, 
Fausto Cardoso, Urbano Santos, Benedito Leite, Francisco José de 
Viveiros Castro, Phaelante da Câmara, Oliveira Teiles, Graça Aranha, 
Anísio de Abreu, João Freitas, Hygino Cunha, César do Rego M on­
teiro, Prado Sampaio, Nobre de Lacerda, Virgílio de Sá Pereira, A be­
lardo Lobo. E acrescenta reticente: “e muitos outros” .
São, como se vé, nomes de projeções diferentes, alguns caídos 
hoje no esquecimento. Naqueles dias, porém, uniu-os a efervescência 
dos entusiasmos intelectuais, e todos, encascados em seus palitos escu­
ros e na gravidade bigoduda que o padrão social pedia aos bacharéis, 
viam nas idéias de Tobias Barreto o grande exem plo, a grande m oti­
vação do saber e do pensar.
Mas retornemos a Tobias.
Clóvis Beviláqua, historiando a evolução do pensamento na Facul­
dade, atribui a Tobias um período inicial, espiritualista, vinculado às 
idéias de Guizot e outros escritores franceses, e logo depois um perío­
do positivista.
Este teria começado com o famoso artigo “Teologia e Teodicéia 
não são ciências” (1868), onde havia algo de L ittré , bem como com 
o pequeno ensaio “Moisés e Laplace”, que aproveitava hábil e im agi-
osamente a lei dos trds estados no tocante ao advento do mono- 
ìismo hebraico. Vem desta época, por sinai, o apego de Tobias 
arre to a Vacherot, pensador filosòfico e político muito típico daquela 
ise do esplritualismo francês, com toques de positivismo e de ecle- 
ismo.
Tobias Barreto, detendo-se pouco no positivismo, passa ao haecke- 
ismo. Para o autor da História da Faculdade de Direito, a influén- 
ia de Comte teria sido, sobre Tobias, m enor do que a de um Cousin, 
m Vacherot, um Jouffroy, um Scherer. É aliás curioso notar que, 
auitas vezes, Tobias não se apegava tan to a um autor de maior 
aonta, deixando-se empolgar por divulgadores menores. Isto se pas- 
a, um pouco, com o fato a que alude a observação de Clóvis; passa-se, 
nais ainda e estranham ente até com o apego de Tobias às obras de 
..udwig Noirè, simples divulgador de Haeckel, a cujas obras, mais 
iue às deste, se atinha e se referia quando de suas andanças pelo 
nonismo.
Àquela altura, Tobias Barreto assimilara os conteúdos mais subs- 
anciosos da literatura filosófica francesa (Renan, Jules Simon, 
/achero t etc. e tc .) e se iniciava na alem ã. Sua conversão ao ger- 
nanism o não é apenas um fato explicável em termos sistemáticos ou 
lilosóficos. Explica-se em termos psicológicos. Adesão ao germanis- 
no e c-onversão ao monismo ou ao haeckelismo foram em sua traje- 
ória coisas conjuntas: para um homem como Tobias, aprender alemão 
:inha de parecer proeza pessoal definitiva; fam iliarizar-se com a lín­
gua alemã devia significar passar-se para as tendências alemãs. E 
ocorreu que o pensamento de Haeckel era pouco conhecido no Brasil; 
ser adepta do Haeckel era um modo de ser diferente, algo muito 
importante para um m ulato necessitado de afirmação e de imparidade. 
Renunciar ao positivismo era uma sacudidela de independência, era 
um gesto de recusa às disciplinas religiosas, gregarizantes e “ecle­
siásticas” do positivismo. O que, no sistema de Haeckel, havia de 
religioso, bastava para as tendências de eclético sui generis que ele 
sempre foi, um eclético muito barulhento e muito pouco conciliador 
nas atitudes externas. No sistema de Haeckel, não só havia muita 
clareza e m uita ordem expositiva (e até talvez uma certa superficia­
lidade fácil, segunco certos autores), como também muito ressumar 
de cientismo, o típico cientismo do século X IX . Acompanhando Haec­
kel, e com ele outros autores alemães, Tobias estava além disso acom­
panhando uma outra disciplina, que nãoa gregarizante e ritualizante 
do positivismo: a d.sciplina germânica do saber, consagrada como dis­
ciplina acadêmica e representada nas glórias universitárias alemãs.
— 29 —
Que justo prêmio — diga-se de passagem — não teria sido para Tobias 
te r podido ir à Alemanha (aonde só foi através da euforia gráfica 
de seu jornal de Escada), ter visitado as instituições e os sábios que 
venerava e aplaudia, daqui, vassalo orgulhoso e desconhecido.
Na trajetória literária de Tobias, é m arcante o ponto correspon­
dente à polêmica contra o professor Pedro Autran, que ficou cha­
mada de “Crônica dos Disparates”, título inventado pelo próprio 
Autran ao referir-se a um artigo de Tobias. Esta polêmica foi muito 
valorizada por Clóvis Beviláqua, como representativa de um instante 
decisivo na evolução da Faculdade de Direito. Significava a oposição 
contra o tomismo e a escolástica, por p arte de um estudioso novo 
e inquieto. De um estudioso, acrescentaríamos, em quem o incandes­
cente das pretensões ia às vezes além das conveniências, mas geral­
mente traduzia uma necessidade imperiosa de auto-afirmação e um 
auto-conhecimento sempre instintivamente seguro.
Caracteriscas intelectuais
Falastrão e enciclopédico, Tobias Barreto personificou e encerrou 
o líder intelectual de província destinado a impressionar fundam ente 
em tempos como aquele. Sabia várias línguas incluindo o distan­
ciador alemão; conhecia m atéria religiosa, filosofia, história, direito, 
literatura, música, e mais coisas.. O enciclopedismo de “O Progres­
so”, de Antônio Pedro Figueiredo, que tempos antes discutia, no Reci­
fe, política, economia, filosofia, história, repetia-se agora com mais 
estridência e mais eficácia, trazendo citações germânicas, nomes mais 
arrevezados e sobretudo um a agressividade insólita. O ideal do saber, 
Tobias já o expressara no final do seu artigo ainda estudantil “Teo­
logia e Teodicóia não são ciências”, encerrando-o com a frase, modes­
ta mas taxativa e desafiadora:
“Meu fito é saber, nada mais” .
Esse ide-al do saber fazia-o referir-se aos sábios europeus com 
ênfases sintomáticas; de Haeckel e de outros alemães dizia “sábios 
reconhecidos, consagrados pela crítica”, etc.
Per volta de 1881, regressando de Escada para o Recife, Tobias 
consuma a sua virada dou trinária . Já siderado pelos rovos au to ­
res alemães, mas ainda agarrado a K ant e a Schopenhauer, bem como 
a Eduard von Hartmann, au to r de um a interpretação especial de K ant,
- 3 0 -
vai o futuro chefe da Escola voltando-se para a solução monistica, 
através das obras do pròprio Haeckel, das do zoòlogo Sem per e das 
de Noiré.
O evolucionismo spenceriano com eçava também a ser conhecido. 
Consta que o artigo “Palestra científica” de Jerónimo Muniz, publi­
cado na Autoridade em 1875, foi um dos passos iniciais da divulgação 
da obra de Spencer no Recife.
Do mesmo modo começava-se a le r Taine, cuja fórm ula “raça, 
meio e momento” seria aliás, de certa forma, adotada por Sílvio 
Romero no em basamento de sua H istória da Literatura Brasileira. 
Também os livros dos materialistas alem ães começam a conhecer-se, 
sobretudo por via das traduções francesas: Büchner, Vogt, Molleschot.
Como estudiosos que começam a despontar no Recife, dentro desta 
área, citam-se — além dos que já foram mencionados — Barros 
Pimentel, Marcos de Souza, Aitino de A raújo, Aníbal Falcão, Meira 
e Sá, Muniz Freire, Afonso Cláudio, Leovigildo Filgueiras, Gii Amora, 
Amazonas de Almeida, Pedro de Queiroz, Clodoaldo de F reitas.
Em 1882 Tobias faz o seu concurso para professor da Faculdade. 
Esta existia ainda no antigo e antiquado prédio da rua do Hospício, 
imponente mas insuficiente para o m om ento. Apresentou um estudo 
sobre “A extensão da idéia de mandato, de que trata o artigo quatro 
do Código C rim inal” . A fonte geralm ente utilizada para conheci­
mento do concurso é, ainda hoje, a carta em que Gumercindo Bessa, 
futuro componente da Escola, o descreve pormenorizada e impressio- 
nadamente a um amigo (carta incluída no tomo VII das Obras de 
Tobias publicadas pelo Governo de Sergipe).
• V I . • *
' ■ Á * < ' v *—. «(>. »
Tobias jurista
Com a alusão ao concurso de Tobias para a Faculdade de Direito, 
cabe acentuar que somente após diversas incursões em estudos filo­
sóficos, e amplas contribuições à crítica de idéias em geral, é que 
Tobias Barreto efetivam ente se atirou aos estudos jurídicos. É certo 
que escreveu sobre direito antes do concurso, mas os estudos filosó­
ficos vieram antes, e disso beneficiou-se a solidez e a clarividência 
crítica com que viu a problemática jurídica, jamais se perdendo em 
questiúnculas m iúdas demais nem perdendo de vista a relação entre 
as questões positivas e as linhas de fundo da história e dos princípios
— 31 —
Para Machado Neto, são quatro, basicamente, os textos de Tobias 
Barreto sobre tem as de teoria do direito . São textos breves. Prim ei­
ro, o célebre ensaio “Sobre uma intuição do direito” (1881). Segundo, 
a prova escrita do concurso para a Faculdade, sobre a pergunta: 
Conforma-se com os princípios da ciência social a doutrina dos direi­
tos naturais e originários do homem?” . Terceiro, o discurso de para­
ninfo denominado “Idéia do Direito” . Quarto, o escrito intitulado 
“Introdução ao Estudo do Direito” (1887-1888).
Entretanto, acrescentaríamos tam bém o conteúdo do estudo “Juris­
prudência da vida diária”, que é um comentário à margem do livro 
homônimo de Ihering . Foi publicado inicialmente no Recife em 1878, 
e depois, com alterações, no Rio em 1879, sendo incluído nas Questões 
Vigentes. Tal artigo é representativo porque, desde logo, exemplifica 
o hábito de Tobias de bordar glosas a obras alemãs (sobretudo ale­
mãs, depois de certa fase), como atitude de divulgação e, ao mesmo 
tempo, de repensam ento. Também porque Ihering ficou como uma 
das fixações do Tobias jurista. Se — como A rtur Orlando enfatiza, 
ao prefaciar o volum e das Questões Vigentes — a “Nova Intuição do 
Direito” representou a concepção de Darwin e de Haeckel aplicada ao 
Direito, Tobias viu em Ihering e no específico finalismo de suas idéias 
uma versão jurídica do darwinismo, filtrada e burilada.
De qualquer sorte, Tobias jamais procurou adaptar-se aos padrões 
referentes ao “ju ris ta” como sabedor de leis e conhecedor de fontes. 
Antes procurou impor, à problemática jurídica, o enfoque das concep­
ções que adotava. Por sinal, toda a Escola do Recife foi de juristas. 
A tentação dos estudos jurídicos em relação aos seus integrantes se 
explica, não apenas pelo “Bacharelismo” que tivesse sido dominante 
no tempo, entre nós, mas também pelo fato de que na própria Europa 
do século XIX os grandes problemas das ciências hum anas estiveram 
marcadamente ligados aos estudos jurídicos: assim se deu com o 
pensamento histórico, com o etnográfico e com o sociológico. 
Naqueles anos, a problemática do D ireito Natural, que na Euro­
pa tinha sido recolocada pelas críticas dos historicistas rom ân­
ticos, parecia ainda carecente de diária e renovada discussão. O ata­
que de Tobias ao jusnaturalism o, com a idéia de que o D ireito “não 
é um filho do céu”, e sim um produto da história hum ana, agradou 
aos prosélitos como irreverência e convenceu como argumentação: 
era uma novidade viável considerar as coisas humanas como obra da 
seleção n a tu ra l.
Pra ele, sempre aguilhoado por sua equação pessoal e suas velhas 
mágoas, era um prazer sempre novo desm antelar idéias tradicionais».
— 32 —
'ílho, como dizia, da “fulgurante plebe”, e ra estim ulante atacar os 
elhos odres cervantescos que representavam o assentado, o reconhe- 
ido pela sociedade de então.
Tam bém do ano de 1881 (como a “Nova Intuição” ) é o estudo 
Fundam entos do Direito de Punir”, que m arca as inclinações pena- 
istas e crim inalistas de Tobias.
Tobiase a sociologia
Dos escritos de Tobias, convém ainda dar destaque ao seu estudo 
aparentem ente descolocado e equivocado sobre a sociologia. Seu títu ­
lo, m uito típico, “Glosas heterodoxas a um dos motes do dia ou 
variações anti-sociológicas”, sua frase inicial cortante e negativa (“eu 
não creio na existência de uma ciência social” ), realm ente mostram 
um Tobias azedo e im pertinente, chateado com algo e disposto a negar 
coisas. Entretanto, o estudo, em prim eiro lugar, se dirige antes à 
concepção comteana da sociologia, ou a um aspecto dela, do que à 
idéia mesma da ciência social. Em segundo lugar, o estudo contras­
ta com a “vocação” de sociólogo que Tobias Barreto sempre teve: 
seu realismo social, manifestado aliás em diversos estudos, inclusive 
nos que escreveu sobre problemas locais ou nacionais.
O estudo em causa diz, talhadamente: “A sociologia é apenas o
nome de uma aspiração tão elevada, quão pouco realizável” . A sociolo­
gia seria apenas um “postulado do coração”, querendo encontrar leis 
na sociedade hum ana como nos organismos. E o estudo dos fenôme­
nos sociais, considerados como totalidade e unificados num só sistema 
científico, resultaria numa “estupenda pantosofia” .
Na verdade, eram de certo modo os argumentos de Von den Stein 
(e os que Dilthey posteriormente retom aria em parte) contra a con­
cepção da vasta ciência social abarcadora de todos os conhecimentos 
referentes ao humano.
Havia um lado salutar naquela recusa de leis para os fenômenos 
sociais. Não se pense porém que Tobias se insurgia contra elas por 
causa de uma rejeição coerente do mecanismo que a idéia de leis 
sociais implica. Recusava-as por conta de um preconceito natura­
lista, provindo de seu monismo já enraizado: ele queria que os soció­
logos apresentassem “resultados” positivos e não meras “frases” . 
Discutindo, ainda no mesmo estudo, o “Problema da liberdade” ele 
diz que esta “não se deixa explicar mecanicamente”, mas é um fato 
da ordem natural. Neste ensaio entram considerações de índole
cultural, antecipadoras e pioneiras em nossa cultura (dai o professor 
Miguel Reale ter falado no “culturalismo da Escola do Recife”), quan­
do, por exemplo, diz ser “a sociedade o grande aparato da cultura 
humana”, feito de uma teia de normas. Distinguindo entre cultura 
(ou sociedade) e natureza, com uma nitidez impressionante, reafirma 
a inexistencia de um direito natural pelo fato de só na sociedade 
(e não na natureza) ixistirem normas. Estes trechos do estudo são 
de incontestável e imperecível mérito, embora a nosso ver contradi­
gam o propósito do próprio título do estudo, já que são, no fundo, 
sociologia.
Estas magníficas intuições, entretanto, conviviam, no pensamento 
de Tobias, e colidiam, com preconceitos pesados e opacos hauridos no 
naturalismo monista. Os homens são seres naturais, mas fazem uma 
organização que não é mais natural. Numa fórmula extremamente 
feliz, Tobias exprimiu esta situação ao dizer:
“A sociedade é uma série de combates contra o geral com­
bate pela existência, é um conjunto de seleções artísticas, 
que melhoram, modificam, alteram a grande lei da seleção 
natural” .
Fórmula feliz, porque exprime a ordem social como um diríamos, 
redimensionamento da ordem natural; a luta bruta que nesta rege se 
faz, na sociedade, luta “artística” (arte vai ali num sentido amplís­
simo) que coloca os problemas humanos numa rede normativa.
Embora misturando Noiré com Kant e Hartmann com Haeckel no 
tocante ao problema da liberdade, este estudo de Tobias tem enorme 
importância.
Pensamento político
Lucidez muito grande demonstrou Tobias como pensador político. 
Um de seus estudos mais representativos neste campo é o intitulado 
“Os homens e os princípios”, onde relaciona o liberalismo com a 
democracia e faz o elogio do povo como suporte das formas políticas. 
O hesitante, que jamais foi republicano propriamente nem se pro­
nunciou claramente sobre o abolicionismo, faz ali observações francas 
e firmes sobre o Brasil, cuja situação descreve em cores fortes:
“O Brasil, encarado pela face do seu governo, é um corpo 
que se move entre dois abismos, sempre mais inclinado 
para o lado do absolutismo. Encarado como povo, como
nação, como sociecade, o Brasil é um país am orfo, pela 
m istura variável de elem entos radicalm ente antagônicos, 
tolerados e aquecidos no seio da opinião pública” .
No mesmo ensaio, afirmava que, “onde o povo não é tudo, ele 
torna-se nada” . E criticava o messianismo da idéia liberal no Brasil, 
que só fazia prom eter reinos futuros nos momentos de crise, om itin ­
do-se e calando-se nos períodos serenos.
Muito sério é o ensaio “Política B rasile ira”, onde tam bém toma 
o problema do povo.
“im porta-nos mais saber o que pensa o homem do povo, 
sensato e magnânimo, sobre os negócios do país, do que 
saber o que dizem os em presários da política, interessei- 
ros e fatuos. Por isso, é sobre o povo que devemos con­
vergir o nosso estudo e atenção” .
Retomando o elogio do liberalismo, acentuava que a grandeza de 
um povo se media pelo grau de liberdade que possui.
Embora jam ais tivesse acerido ao credo republicano, não parava 
de zombar do Im perador. Recusava-se a aceitar a imagem de um 
Pedro II sábio, erudito, misto de Salomão e Platão, que certos áulicos 
pintavam . Sobre o problema servil om itiu-se de modo que tem sido 
estranhado por diversos críticos. E se elogiava o liberalismo como 
tese geral, não privava os liberais brasileiros de críticas pontudas. 
Como não poupava também, é claro, aos conservadores. A mesma 
indisposição que Sílvio Romero m anifestaria mais tarde contra as 
oligarquias da prim eira república, Tobias expressava contra os con­
servadores rígidos e empedernidos.
Por outro lado, nunca aderiu ao socialismo. Num Recife ainda 
embebido das ressonâncias da pregação de Borges da Fonseca e das 
doutrinas de A breu e Lima e Antônio Pedro de Figueiredo, Tobias 
Barreto, embora inimigo ferrenho dos professores mais conservadores 
e com um temperamento talhado para a insurreição e a rebeldia em 
geral, manteve sempre uma desconfiança fundamental em relação 
ao socialismo.
Desde logo, a democracia de que falava não era o igualitarismo 
total. Isto já estava no ensaio “Os homens e os princípios”, onde 
falava numa democracia sensata. Aliás, como Hermes Lima já obser-
vou, este desigualitarismo básico provinha de certa forma do darwi­
nismo e do haeckelismo, que contra toda intenção niveladora ante­
punham a imagem da seleção natural e do combate permanente como 
regra e como critério. No famoso “Discurso em mangas de camisa”, 
analisando os ideais da liberdade, da igualdade e da fraternidade, 
tanto denuncia as amarguras do povo brasileiro, afligido por castas 
e injustiças, como duvida de um perfeito arranjo da liberdade e da 
igualdade.
Um artigo de 1874, chamado “Socialismo em literatura”, Tobias 
propõe aplicar o socialismo na literatura, como um liquidação. Ali, 
dizia que lhe causava horror a idéia de uma “liquidação social”, e 
era isto o que lhe parecia ser o socialismo. E acrescentava:
“O instituto da Internacional é para mim a organização da
loucura” .
Entre equilíbrio e hesitação, passam estas linhas do pensamento 
de Tobias. Nem liberal radical, nem republicano, nem socialista, 
nem conservador: mas sempre radical no modo de negar o que nega­
va. Sincero diante dos problemas do povo, reticente porém no 
tocante a pontos que tangiam de perto certas mágoas suas ou idios­
sincrasias temáticas. Dominantemente, a irreverência como reação. 
Essa irreverência se mostra nas polêmicas. Seja agora mencio­
nada a polêmica contra os autores que haviam tratado do Poder 
Moderador. No estudo sobre o assunto, encontramos por sinal a 
observação de que o Brasil não era um país com governo parlamen­
tarista, pois que não se podiam entre nós repetir as estruturasingle­
sas, tese ainda discutida (mas a nosso ver correta) e que recente­
mente seria retomada por Afonso Arinos de Melo Franco.
A crítica de Tobias ao problema do poder moderador é dirigida 
desde logo à validade do tema, que a seu ver nem merece tanta aten­
ção científica: tudo o que se escrevera a respeito provinha, ou do 
equívoco ou do servilismo político. Para ele, o padrão ortodoxo em 1 
teoria política (e nisso antecipava notavelmente Carl Schmitt) é sem­
pre reflexo do padrão ortodoxo em religião: o ponto de vista católico 
fazia a fé na monarquia como entidade moral e dogma de crença. 
Denunciava (quase, dir-se-ia hoje, como uma “alienação”) o diletan­
tismo parlamentar que existia em verdade no Brasil. Este ensaio 
estava marcadamente voltado contra o professor Braz Florentine 
Henrique de Souza, que em 1864 publicara no Recife seu alentado
— 36 —
volume sobre o poder m oderador. Os outros autores estudados eram 
o Visconde de Uruguai e Zacarias de Gois e Vasconcelos.
§ 3 — Componentes iniciais: segundo, Silvio Romero 
Os dias e os trabalhos
Sílvio Romero (1851-1914) foi o grande “batalhador” da Escola; 
deu-lhe o nome, fez-lhe a propaganda, corrigiu-lhe algo, estendeu-a, 
perenizou-a. Sergipano, como Tobias B arreto, considerou-se sempre 
em relação a este antes um companheiro de estudos do que um discí­
pulo, se bem seja possível sentir que o padrão e a inclinação de 
seus estudos deveram a Tobias, ao menos na fase inicial, grande 
p arte do impulso e da motivação. Polígrafo como Tobias, pratica- 
m ente só não cultivou a ficção. Se não entrou bastante em certos 
campos como o autor das “Questões Vigentes”, em compensação cul­
tivou ertudos que o outro não havia tentado, como folclore, etnogra­
fia, economia e — ao menos mais expressam ente — sociologia.
Sílvio Romero foi realmente um homem dotado de extraordinária 
capacidade criadora, profusa e dispersa às vezes, ou equivocada e 
apressada, mas sempre honesta e sempre fecunda. Foi o que a re tó ­
rica das apresentações antológicas costuma cham ar um grande “trab a­
lhador intelectual” . Poesia, crítica, história literária, crônica, ensaio, 
filosofia, direito, tudo fez. Foi, como Tobias, parlam entar militante, 
e não deixou de reunir seus discursos, não vãos e aguados como os 
de tantos políticos que reúnem suas falas apenas para ter nome numa 
capa impressa, mas substanciosos e cheios, com efeito, de empenho 
“ilustrador” e sério.
Também teve seus concursos. Ao contrário de Tobias, não ficou 
no Recife: foi em 1876 para o Rio. Um dos seus biógrafos e estu­
diosos de sua evolução intelectual, Carlos Sussekind de Mendonça, 
considera que foi um passo que se im punha a Sílvio Romero essa 
ida para a Corte: faltava-lhe ambiente no Recife, onde atraiu an ti­
patías demais. Segundo este autor, no seu segundo concurso para 
a Faculdade de Direito (para a cadeira de filosofia do curso anexo, 
chamado Colégio das A rtes), Sílvio foi vítim a de uma injustiça cla­
morosa, e mais ainda, de uma covardia por parte dos julgadores.
Indo para a “Corte”, Sílvio Romero desenraizava-se, mas em 
compensação abria-se para contactos mais amplos.
Ficando como juiz municipal em Parati, no Estado do Rio, demo­
rou-se aí dois anos e meio, num am biente pequeno, limitado, inade-
— 37 —
quado para seu porte intelectual, e não produziu praticam ente nada: 
apenas leu — e sempre foi leitor voraz —, estudou e reestudou o 
quanto pôde. Consta que este período foi, também, o de intenso 
contacto com o povo, as coisas do povo, conversas e hábitos dos 
homens comuns. Nesta época projetou a sistematização de sua obra, 
embora não tivesse podido realizar seguramente a form a como a 
teria projetado, inclusive porque lhe faltaram materiais e papéis que 
na sua mudança se perderam.
Argeu Guimarães, filho de A rtur Guimarães (que foi amigo pes­
soal e biógrafo apologista de Sílvio), em seu livro “Presença de 
Sílvio Romero”, conta algo sobre Sílvio Romero professor. Em suas 
aulas, diz, havia um a larga dose de improvisação, e de tentativa de 
interpretação nova de cada tema; por mais árida que fosse a matéria, 
o professor a amenizava com a m aneira informal e bem-humorada 
de prelecionar. Mas impressionava sobretudo pela liberdade desas - 
sombrada, pela crítica implacável que ixibia e exercia diante de toda 
opinião vigente e assente. Adquiriu entre os estudantes um a simpa­
tia paralela à que Tobias conseguia no Recife: como Tobias, era jovial 
e franco, cordial, desempertigado e acessível. Não tinha o aprumo 
distanciador que, em muitos casos, denota no professor certa insegu­
rança e certo tem or do diálogo. Ao contrário: vivia para o diálogo, 
que se transform aria em entendimento ou em polêmica conforme o 
caso, mas isto é outro problema.
Sua independência crítica, que transparecia nas aulas como cora­
gem interpretativa, e que em suas inúmeras polêmicas se fazia exi­
gência e agressividade, também se manifestou no caso do panam eri­
canismo: Sílvio sempre foi, a respeito, desconfiado e insubmisso, 
embora não chegasse às posições, por exemplo, de um Eduardo Prado.
Indo para o Rio em 1879, fixa-se definitivamente na capital. Sua 
fama (ou pretensão) de sabedor e erudito levantou-lhe várias anti­
patías e adversidades pessoais, como se ele tivesse vindo para desa­
fios gerais.
Um de seus mais célebres opositores, Lafaiette Rodrigues Pereira, 
que usava o pseudônimo de Labieno, descreveu-o certa vez como “um 
bárbaro, que estudou em alguma escola de província”, cu ja lingua­
gem ainda estava “contaminada da ferrugem da aldeia” . Tudo isso 
reforçou a dificuldade de adaptação, já que, desde os tempos iniciais 
do Recife, Sílvio (como Tobias) guardava algumas reservas contra a 
corte e contra seus intelectuais acasquilhados e posudos. A figura
— 3 8 —
de Tobias, escrito r plantado em sua província e alim entado-se dire­
tam en te de cu ltu ra européia, sem a mediação da capital, era para ele 
m odelo e incentivo: tam bém ele poderia m a n te r sua liberdade crítica.
E ste era portan to o problem a de Sílvio em seu período de adap­
tação à corte: sabia ser necessário ficar, po rque no Recife tinha fecha­
do os horizontes e porque no Sul teria chances intelectuais mais 
am plas; sabia porém que despertaria rancores, despeitos, atritos, e 
não se d ispunha a adotar os figurinos cortesãos no tocante às re la ­
ções pessoais, às atitudes literárias, ao cu ltivo dos estilos.
A liás, no prefácio aos “Vários Escritos” de Tobias, ele bem o disse, 
reconhecendo que poderia te r tido cam inho m ais fácil, se quisesse:
“Ah, se também eu tivesse querido agradar! P o r cue não 
poderia ter concorrido com os outros? A receita foi sem ­
pre fácil aos escritores provincianos que têm vindo ao Rio 
te n ta r fo rtuna. N ada m ais do q u e procurarem a ccnfraria 
dos chefes da época, fazer-lhes zum baias, t r a ta r de lhes 
cair em graça” .
Considere-se a época, em que a separação geográfica e intelectual 
entre Norte e Sul funcionava como uma cerca de arame farpado e 
como um motivo de diferenciação total. Hoje as coisas são algo 
diferentes, a comunicação se faz melhor, embora não tenham cessado 
as diferenças nem os desníveis. Ao tempo de Sílvio, o hábito da 
polêmica como que fazia parte do tirocinio dos escritores, e o precon­
ceito recíproco entre Sul e Norte funcionava em toda a plenitude.
Daí os entreveros polêmicos de Sílvio Romero contra Lafaiette 
e contra José Veríssimo — este talvez o seu oponente principal, ou 
ao menos o que mais lhe fez gastar papel e tinta. Acusava a José 
Veríssimo, que era paraense, de ter tido êxito no Rio à custa de 
concessões, salamaleques e habilidades diplomáticas.
As polêmicas
Seria precisamente o caso de se indagar se, num autor como Sílvio, 
0 estilo polêmico não teria desvirtuado e descaracterizado o exercício 
da crítica.Sílvio Rabelo põe este problema em seu “Itinerário de 
Sílvio Romero” (capítulo V II). Para ele, o que Sílvio Romero foi, 
basicamente, foi crítico, embora sua obra apresente um leque temá­
tico tão amplo, um naipe de interesses tão variado. E sobretudo,
39 —
crítico de idéias é o que ele teria sido, erudito como poucos, ou como 
nenhum dos de seu tempo, dispondo dos conhecimentos com segu­
rança e facilidade.
Para Sílvio Rabelo, entretanto, o seu enorme aparato de conhe­
cimentos contrastava com sua falta de intuição artística. E isto teria 
defeituado sua obra m aior (aliás uma obra ainda de juventude, dos 
37 anos), a vasta História da Literatura Brasileira. Seus conhecimen­
tos tendiam mais a servir à polêmica do que à análise serena e ab er­
ta: parece que o esforço de Os te r adquirido precisava ser pago com 
o prazer de mostrar que a maioria não os tinha.
Também suas mudanças de posição doutrinária têm que ver com 
seu vezo polêmico. Passando do determinismo biológico ao socioló­
gico, como passaria do spencenismo ao leplayismo, Sílvio defendia 
polemicamente suas metamorfoses, com uma agressividade que era de 
índole e de formação, mas que servia ao propósito de não prestar 
muitas contas sobre as coerências que lhe cobrassem. No livro 
“Minhas Contradições”, respondendo a Laudelino Freire, alegava que 
suas mudanças de opinião vinham com o tempo, com os estudos, com 
a reflexão, não eram mudanças inconseqüentes nem gratuitas nem 
repentinas.
Sua mania polêmica, invadindo sua atividade crítica, transform ou- 
se por vezes em azedume e rudeza, dando lições, bancando o ensina- 
dor, lembrando conhecimentos. Era o que chamamos, atrás, de socra» 
tismo tosco: Sílvio, como Tobias, considerava o próprio saber um a 
garantia de “estar certo” ; estava certo quem sabia mais, e sabia m ais 
ele próprio. O adversário são chegara a saber tanto, e sua ignorân­
cia lhe vedava o acesso ao ponto de vista correto.
Como diz Sílvio Rabello, “Sílvio Romero às vezes procurava con­
vencer aos brados, e, não raro, com vaia e assovio” . E isso, ac res­
centa, o inferiorizou em certas ocasiões, peran te contendores mais 
serenos (inclusive Laet, Teófilo Braga, Veríssimo e Lafaiette), que 
insistiam exatamente sobre seus pontos vulneráveis.
Sua prevenção contra Machado de Assis, evidentem ente injusta 
e injustificável, veio desse vezo polêmico. E ra-lhe necessário atacai 
Machado (como atacar Castro Alves), para ressa lta r o valor do se i 
caro Tobias. E falava de Tobias a propósito de tudo. Aliás ele 
mesmo confessou a A rtur Guim arães, em carta , que defendia Tobias 
primeiro, pelo mérito intrínseco; segundo, para justificar suas própria:
— 4 0 —
posições; terceiro, como meio de guerra. E por isso Lafaiette, ironi­
camente, sugeriu que o título do livro “Machado de Assis”, de Sílvio, 
fosse substituído por “Tobias B arreto” .
Também atacou Nabuco (“Hermafrodita da inteligência” ), atacou 
Francisco Otaviano, sempre tendendo ao ataque pessoal. A velha e 
boa divisa, que um jornal pernambucano do século XIX exibia: “Prin­
cípios, não homens”, tinha utilização inversa nestas polêmicas: Sílvio 
derrapara na dimensão pessoal e investia contra as pessoas, deixando 
de visar obras ou idéias.
Fases da obra
Podemos, grosso modo, adotar a seqüência estabelecida por Anto­
nio Paim para dividir em etapas a produção bibliográfica de Sílvio.
Prim eiro, a fase pernambucana, consistente sobretudo em artigos 
de crítica. Artigos que depois se coligiram em livros (Etnologia sel­
vagem, 1875; Cantos do Fim do Século, 1878; A lite ra tu ra brasileira 
e a crítica moderna, 1880).
A esta fase pertenceriam igualmente, de algum modo, os seguin­
tes trabalhos:
— “A poesia contemporânea e sua intuição naturalística” (1896), 
publicado em jornal, no Recife.
— “Idealismo e Realismo” (1870), no jornal Movimento, no Reci­
fe. Reproduzido nos “Estudos de Literatura Contemporânea”, que 
surgiram no sul em 1885.
— “Se a economia política é uma ciência” (1873). Foi uma prova 
escrita produzida na Faculdade e incluiu-se nos mesmos “Estudos de 
L iteratura Contemporânea” .
— “O Espírito novo em filosofia”, “Os princípios fundamentais 
da evolução” e “A concepção monistica do Universo”, artigos de 
1874.
Fase posterior seria a iniciada em 1876, correspondendo de alguma 
forma à presença no Rio, e significando uma certa acomodação entre 
evolucionismo e positivismo. Aqui caberiam as produções seguintes:
— 41 —
— “A Filosofia no Brasil”, publicado em Porto Alegre em 1878, 
na tipografia da “Deutsche Zeitung” . Paim atribui a esta obra, hoje, 
caráter de rarissima, com certo exagero. No alto do frontispicio, o 
sobretítulo: “Apontamentos para a história da literatura brasileira no 
século XIX” .
— “A filosofia no Brasil e o Sr. Dr. Herculano Bandeira” (1879), 
artigo de jornal, no Rio.
— “Interpretação filosòfica dos fatos históricos” (1880), tese para 
o concurso de filosofia do Colégio Pedro II. Incluído nos “Estudos 
de Literatura Contemporânea”.
— “A História do Brasil e o Dr. Mèlo Morais” (1883).
— “A filosofia e o ensino secundário” (1885), incluído, como o 
anterior, nos “Novos Estudos de Literatura Contemporânea” .
Outra fase, seguindo o esquema de Paim, teria sido a de 1888 
ao fim do século. Começa com a publicação de seu “megatério tipo­
gráfico” (para usar a expressão que Ortega empregou para designar 
o Study of History de Toynbee): a monumentai “História da Litera­
tura Brasileira” . Esta obra, fundada num certo determinismo meso- 
etnográfico, embora mitigado por outras considerações, traduzia certa 
influência de Taine e manipulava um conceito bastante amplo de 
literatura. Por sinal que José Veríssimo chegou a dizer que de 
Varnhagen tirara Sílvio esta noção ampla de literatura, sendo por 
tanto pouco original. Quer-nos parecer, porém, que não precisaria 
Sílvio ter ido a Varnhagen para isso. Vários autores do tempo (inclu­
sive Taine e Domingos Magalhães, senão mesmo o próprio Tobias) 
usavam e justificavam o uso do termo literatura abrangendo toda a 
produção intelectual de um povo.
E foi, apesar de imatura, desigual, apaixonada e apressada, sua 
obra maior e a maior obra do gênero no Brasil de até bem pouco. 
Pois o volume de pesquisa que envolveu, o empenho interpretativo, 
a amplitude do estudo que representava, deram-lhe dimensões 
enormes.
Seria, ainda, desta terceira fase:
— “O problema brasileiro em 1891” (1891), série de artigos de 
jornal. Incluída nos “Outros Estudos” .
— “A m ulher e a sociogenia” (1893), estudo sobre o notável 
livro de Tito Livio de Castro.
— “D outrina contra doutrina — o evolucionismo e o positivismo 
no Brasil” (1894), um de seus livros m ais im portantes, inclusive como 
reposição de idéias.
— “Ensaios de filosofia do Direito” (1895), que aliás, ao reed itar­
se, ficaria no singular: Ensaio.
— “A festa do Trabalho” (1895), artigo cheio de consciência 
social.
— “Uma suposta lei sociológica” (1896).
— “O haeckelismo em sociologia” (1899).
— “A classificação dos fenômenos em sociologia” (1898).
— “O Direito brasileiro no século X V I” (1899).
Finalmente, uma fase final iria a té sua morte, em 1914. Aqui 
encontramos os escritos seguintes:
— “Concepção da filosofia” (1901), referente a um estudo de 
Samuel de Oliveira, nome aliás vinculado à Escola de Recife.
— “Origem, elementos, estrutura e evolução da sociedade” (1904), 
referente a um ensaio de Augusto Franco, outro nome vinculado à 
Escola.
— “A classificação das ciências” (1904), escrito como prefácio a 
um livro de Liberato Bitencourt.
— “Concurso de Lógica” (1909), espécie de memória dirigida ao 
Colégio Pedro II, e abrigado nas “Provocações e Debates” que sairiam 
em 1910.
— “Prefácio” ao livro “Questões e Problemas” de Tito Livio de 
Castro (1913).
São desta fase novecentista, também, alguns

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