Buscar

Transcendente_uma_revista_sobre_teoria_queer.pdf

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você viu 3, do total de 64 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você viu 6, do total de 64 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você viu 9, do total de 64 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Prévia do material em texto

Transcendente
Editorial
Os artigos que compõem a publicação transcorrem sobre a 
Teoria Queer e suas influências sociais, culturais e artísti-
cas na construção histórica do pensamento contemporâneo. 
A Teoria Queer é caracterizada como uma corrente de es-
tudos centralizada na representação dos conceitos de di-
versidade sexual. Oriundo da década de 80 do século XX, 
os estudos queer são provenientes do encontro entre pes-
quisas culturais e o pós estruturalismo francês, munidos 
conceitualmente dos movimentos de libertação feministas 
e gays, e da chamada Revolução Sexual. 
Com o intuito de problematizar e ativar uma minoria ex-
cluída da sociedade heteronormativa, a Teoria Queer de-
safia os códigos tradicionais de comportamentos relativos 
à sexualidade humana. Fazendo uso de uma concepção 
ideologicamente inovadora, a Teoria busca cada vez mais 
englobar física e conceitualmente todos os grupos sexuais 
e suas respectivas peculiaridades ao convívio social. 
Respeitando diferenças históricas, etárias, socioeconômi-
cas e culturais, o pensamento queer contemporâneo propõe 
a quebra de diversos paradigmas de gênero. Além disso, 
procura fundamentar a diferenciação entre orientação sex-
ual, que engloba todo o espectro entre homossexualidade, 
bissexualidade, heterossexualidade, e identidade de gêne-
ro, que engloba as identidades cis e transexuais.
Com o maior debate sobre inclusão social e o amadure-
cimento dos estudos Queer, a evolução do pensamento 
inclusivo cresceu significativamente ao longo dos anos, 
especialmente no campo das artes. A influência e o apoio 
de áreas como o cinema, a literatura, a música, a moda, a 
televisão e as produções gráficas na tentativa de construir 
debates sobre o tema, são de suma importância para a que-
bra de tabus sociais e para construção de um pensamento 
pós-indenitário. 
Pensando na construção de uma publicação linear e inclu-
siva, os artigosencontrados ao longo da revista são uma 
junção de teorias sociais, peças gráficas e entrevistas pes-
quisadas e colhidas em prol de fomentar e enriquecer os 
estudos da Teoria Queer.
Transcendente, página 03
Transcendente
#00
Capa: Arthur Cardoso
facebook.com/arthurcardpagina
Contra-capa: Carol Rossetti
facebook.com/carolrossettidesign
Redação: Ana Luiza Borelli; 
Carolina Andrade; Gabriella Ber-
nardes; Nathália Pereira; Patrícia 
da Cruz; Rafael Polcaro; Rafaella 
Rodinistzky
Diagramação: Patrícia da Cruz; 
Rafaella Rodinistzky
Agradecimentos: Aline Lemos; 
Ana Júlia Gomes; Arthur Car-
doso; Carol Rossetti; Juliana 
Calambau; Laerte Coutinho; Linn 
Alves 
Transcendente
Encontre-se
14
Nós sempre teremos 
Paris, ou não
Rafael Polcaro
20
(Des)enquadradx
Rafaella Rodinistzky
06
Normas quebrantadas
Nathália Pereira
44
Born This Way
Patrícia da Cruz
50
Além do arco-íris
Ana Luiza Borelli
38
Descosturando paradigmas
Carolina Andrade
convergência de ideias
Gabriella Bernardes
56
O feminismo e a
Nathália Pereira
Transcendente, página 08
A Teoria Queer é considerada 
como um campo da teoria críti-
ca pós-estruturalista, e sua de-
nominação formal é atribuída 
à feminista e crítica de cinema 
italiana Teresa de Lauretis, que 
usou o termo “Teoria Queer” 
uma palestra na Universidade 
da California em 1990. Porém, 
ao assumirmos uma postura 
analítica também pós-estrutur-
alista, é possível ver a Teoria 
Queer como um amalgama, 
ou uma consequencia ainda 
mais transgressora dos estudos 
LGBT e dos estudos de gênero 
que a antecederam. 
Os estudos queer trazem para 
análise os espaços indefini-
dos da sexualidade, da identi-
dade de gênero, de tudo que 
faça parte do espectro não 
dominante, que se desencaixe 
da heteronorma. Subjetiva a 
identidade ao máximo e trata 
a construção do feminino e do 
masculino como mecanismo de 
controle, de poder.
A partir disso, traça seu primei-
ro grande elo com a literatura 
antecessora à gênese do seu 
nome. Entender a Teoria Queer 
demanda, portanto, uma quebra 
temporal. Antes mesmo de ser 
oficialmente instaurada como 
campo científico, sua bibliogra-
fia fundamental já estava sendo 
escrita, entre ensaios e obras de 
ficção.
Desconstrução
 
Aliada aos seus ideais de que-
bra em relação ao poder vigente 
e às normatizações, é natural 
que os teóricos queer tenham 
criado uma rede teórica tão di-
versa que descenda dos estu-
dos de gênero, da psicanálise, 
da filosofia existencialista, da 
ficção modernista, e outros in-
úmeros sub-gêneros literários.
 
Um dos autores mais comen-
tados nos trabalhos da teoria é 
Michel Foucault. Sua obra foi 
resgatada para oferecer uma 
lente teórica que seja capaz de 
analisar a natureza do poder ao 
qual a Teoria Queer se refere.
 
Assim como descrito no 
primeiro volume de “A História 
da Sexualidade”, o poder não 
é o que está concentrado nas 
mãos de um único homem, nem 
mesmo de um único Estado ou 
aparelho Legislativo. Ele é, na 
verdade, toda a rede cuja “cris-
talização institucional toma 
corpo nos aparelhos estatais, na 
formulação da lei, nas hegemo-
nias sociais” (História da Sexu-
alidade, 1976).
 
Assim, entende-se a opressão 
das sexualidades periféricas 
como resultado de um processo 
histórico de sufocamento e as-
sepsia – que culminou no perío-
do vitoriano, segundo Foucault 
– e de um costume social dis-
seminado em diversos níveis, 
do núcleo familiar à escola in-
fantil.
Além de Foucault, os estudos 
de gênero formam outro pilar 
da Teoria Queer. Grandes rup-
turas, como a diferenciação 
entre sexo e gênero no livro 
Orlando (1929), de Virginia 
Woolf, trouxeram à ficção con-
sumida pelas massas, assuntos 
que até então estavam circun-
scritos ao ambiente acadêmico 
e aos estudos da psicanálise.
Enquanto a vida de Orlando 
atravessa mais de 400 sécu-
los, mudando repentinamente 
de sexo diversas vezes, sem 
que sejam dadas maiores ex-
plicações aos leitores, Virginia 
Um dos autores 
mais comentados 
nos trabalhos da 
teoria ,Michel 
Foucault
A
ce
rv
o 
Ex
et
er
 C
en
tre
Normas Quebrantadas
Transcendente, página 09
Tilda Swinton como 
Orlando, na adapta-
cao cinematografica 
do livro de Virginia 
Woolf, lancada am 1992
Woolf desconstrói o gênero, e 
o expõe como nada mais que 
uma alegoria social. Orlando, 
em essência e caráter, está pre-
sente durante toda a narrativa, 
quer seja como homem ou mul-
her, quer seja servindo à Rainha 
Elizabeth I ou espantando-se 
com os horrores da 1a Guerra 
Mundial.
Consequentemente, a busca 
pela igualdade de gêneros, os 
questionamentos feministas 
sobre a despolitização dos cor-
pos, e a plenitude de decisão 
das mulheres sobre os mesmos, 
trazem Simone de Beauvoir em 
sua vanguarda. No clássico da 
literatura feminista “O Seg-
undo Sexo” (1949), Beauvoir 
explora a formação do gênero, 
valendo-se também de tendên-
cias existencialistas.
Beauvoir cunhou a célebre 
frase “não se nasce mul-
her, torna-se mulher”, nova-
mente demonstrando o gênero 
como uma criação, e não uma 
definição congênita. Em outra 
de suas citações, diz: “Os ter-
mos masculino e feminino são 
usados simetricamente apenas 
como uma questão de formali-
dade. Na realidade, a relação 
dos dois sexos não é bem como 
a de dois pólos elétricos, pois o 
homem representa tanto o posi-
tivo e o neutro, como é indica-
do pelo uso comum de homem 
para designar seres humanos 
em geral; enquanto que a mul-
her aparece somente como o 
negativo, definido por critérios 
de limitação, sem reciproci-
dade.”
Com esses questionamentos, 
foi possível que a Teoria Queer 
expusesse as identidades inter-
mediárias, como a androginia, 
e os intercâmbios de expressão 
que podem haver entre os dois 
sexos. Fala-se aqui da liber-
tação das limitaçõesimpostas 
pelo gênero.
 
A filósofa e teórica de gênero 
Judith Butler fez contribuições 
definitivas à Teoria Queer. At-
ualmente, Butler é docente e 
co-diretora do Programa de Te-
G
eo
rg
e 
C
. B
er
es
fo
rd
S
on
y 
P
ic
tu
re
s 
C
la
ss
ic
s
oria Crítica da Universidade da 
Califórnia, e em “Bodies That 
Matter: On the Discursive Lim-
its of “sex”” (1993), desafiou 
não apenas noções de gênero, 
como também do próprio sexo.
 
Em sua discussão sobre a socie-
dade, no livro “Problemas de 
gênero: feminismo e subversão 
da identidade” (1990), descreve 
uma “ordem compulsória” que 
demanda uma linearidade het-
erossexual entre sexo, gênero, 
desejo e prática.
Finalmente, introduz a questão 
da performatividade. Segundo 
esse conceito, o gênero não 
é um conjunto de regras, ex-
pectativas ou taxações sobre 
um determinado “eu” ou de-
terminado sexo, é apenas uma 
reprodução de normas que se 
impõem como naturais. Assim, 
o gênero não tem sujeito pre-
existente, não tem um “eu” por 
trás de sua manifestação.
Com esse embasamento lit-
erário, os teóricos queer bus-
cam quebrar a dicotomia entre 
o feminino e o masculino, ad-
mitindo tratar-se de uma con-
strução social. Propuseram 
também o reconhecimento de 
sexualidades periféricas ao het-
eronormativo, propuseram dar 
espaço de enunciação àqueles 
que se identificam em outros 
pontos do espectro de sexu-
alidade e do espectro de identi-
dade de gênero.
 
Propuseram seguir os ideais de 
Foucault, que identifica uma 
polimorfia sobre o discurso da 
sexualidade. Ou seja, várias 
vozes discursam sobre um mes-
mo tema, e ainda assim podem 
servir tanto para perpetuar uma 
normatização vigente, ou para 
quebrá-la.
Enunciação 
 
Na ficção do século XX, no-
vas vozes foram acrescidas ao 
cenário literário, com tramas 
especificamente desenvolvidas 
sobre personagens queer. Essas 
vozes que até então haviam sido 
caladas pela criminalização da 
homossexualidade e pelos pre-
Patricia Highsmith 
(ao lado) produ-
ziu classicos da 
literatura queer, 
como “The Price of 
Salt”
Simone de Beauvoir 
(acima) cunhou a 
celebre frase “nao 
se nasce mulher, 
torna-se mulher”
Filosofa e teorica de 
genero, Judith Butler 
fez contribuicoes de-
finitivas para a Teoria 
Queer
Transcendente, página 10
D
iv
ul
ga
çã
o
U
ni
ve
rs
id
ad
e 
de
 B
er
ke
le
y
D
iv
ul
ga
çã
o
Normas Quebrantadas
conceitos sociais passaram a 
ser enunciadores proeminentes 
na literatura.
 
Esse nicho não ficou restrito a 
um público de pequeno núme-
ro. Bem sucedidas autoras 
como Patricia Highsmith pro-
duziram clássicos da literatura 
queer, como “The Price of Salt” 
(1952), além de alcançar suces-
so comercial com “O Talentoso 
Ripley” (1955). 
“The Price of Salt” - ou “Carol” 
na versão traduzida ao portu-
guês - gerou intensos debates 
nos Estados Unidos. Publicado 
por Highsmith sob o pseudôni-
mo de Claire Morgan, a história 
de uma mãe de família que 
abandona seu marido para viver 
um romance com uma mulher 
mais jovem gerou reprimenda 
de conservadores. As perso-
nagens principais, Therese 
Belivet e Carol Aird também 
desafiam estereótipos de homo-
ssexualidade.
 
Ainda assim, um dos maiores 
pioneirismos de Highsmith foi 
a inclusão do primeiro final po-
tencialmente feliz para protago-
nistas lésbicas, o que até então 
nunca havia sido registrado na 
literatura queer.
Historicamente, o primeiro ro-
mance a ser categorizado como 
“ficção lésbica” foi “The Well 
of Loneliness” (1928), da au-
tora britânica Radclyffe Hall. 
Banido da Grã-Bretanha por 
retratar “práticas não naturais”, 
o livro foi um marco no in-
cipiente ativismo pelos direitos 
A adaptacao de “The Price of Salt”, ba-
seada no romance de Patricia Highsmith, 
chegara aos cinemas em 2015, com Cate 
Blanchett e Rooney Mara
dos “sexualmente invertidos” 
- denominação de homossexu-
alidade comum à época -. O 
romance entre uma inglesa de 
classe elevada e uma motor-
ista de ambulância, durante a 
Primeira Guerra Mundial, não 
expõe nenhuma cena explícita, 
e trata a “inversão” como es-
tado congênito e natural, dado 
por Deus, pedindo ainda: “Dê-
nos também o direito à nossa 
existência”. 
 
Já a Algustus, Duque de Saxe-
Gotha-Altenburg, é atribuída a 
primeira obra de ficção moder-
na a descrever um casal de ho-
mens. No livro de poesias “Kyl-
lenion Ein Jahr in Arkdien”, ou 
“Cyllenion A year in Arcadia”, 
publicado anonimamente em 
1805, diversos casais se apaix-
onam e têm finais felizes. Um 
casal de dois homens é repre-
sentado, e tratado igualmente 
aos outros casais.
A representatividade trans, 
no entanto, ainda é ínfima no 
conjunto da produção literária. 
Um dos primeiros registros 
da inserção de uma person-
agem trans está no livro juve-
nil “Luna” (2004), da autora 
Julie Anne Peters, sobre a vida 
da transexual Luna/Liam sob a 
perspectiva de sua irmã, Regan. 
A obra venceu prêmios literári-
os como o Lambda, na catego-
ria infanto-juvenil.
Transcendente, página 11
W
ei
ns
te
in
 C
om
pa
ny
Transcendente, página 12
1805
“Cyllenion A year in 
Arcadia” - Algustus, 
Duque de Saxe-Gotha-
Altenburg.
1928
“The Well of Loneliness” - 
Radclyffe Hall
1929
“Orlando” - Virginia Woolf
1805 - 2004
Linha do tempo, bibliografia
queer
Lu
dw
ig
 D
oe
ll 
H
er
zo
gs
A
ut
or
 D
es
co
nh
ec
id
o
N
ational Portrait G
allery
D
ivulgação
D
iv
ul
ga
çã
o
Transcendente, página 13
"Luna" - Julie Anne Peters
1949
“O Segundo Sexo” - 
Simone de Beauvoir 
1952
“The Price of Salt” - 
Patricia Highsmith
1976
“A História da Sexualidade” - 
Michel Foucault
1993
“Bodies That Matter: On 
the Discursive Limits of 
“sex”- Judith Butler
2004
A
cervo pessoal
D
iv
ul
ga
çã
o
D
iv
ul
ga
çã
o
D
iv
ul
ga
çã
o
D
iv
ul
ga
çã
o
D
iv
ul
ga
çã
o
 nos sempre 
teremos paris, 
ou nao
 nos sempre 
teremos paris, 
ou nao
Rafael Polcaro
w
Como importante mediador da 
cultura, o cinema é capaz de 
discutir todas as questões so-
ciais possíveis. Utilizando de 
signos que usados por ele per-
mitem sentidos e compartilha-
mento de significados. Dessa 
maneira, ele possui uma repre-
sentatividade imensa para o es-
tudo da teoria queer. 
Se hoje não há mais tabus 
na indústria cinematográfica 
quanto a filmes centrados em 
questões de gênero, em seu 
início e consolidação, até mes-
mo as histórias de amor entre 
casais formados por homens e 
mulheres tinham barreiras que 
demoraram um certo tempo a 
serem quebradas. Se compara-
rmos produções como “Casa-
blanca” (1942) e “Azul é a Cor 
Mais Quente” (2013), obras 
com 71 anos de diferença e ap-
enas uma coisa em comum, a 
retratação de uma paixão arre-
batadora. A mais antiga tinha o 
lendárioHumphrey Bogart e In-
grid Bergman apenas trocando 
abraços e beijos que definiam 
seu amor. Sete décadas depois 
uma história de um relaciona-
mento entre duas mulheres é 
retratada, com cenas de sexo 
explícito, sem nenhum medo de 
chocar o grande público. Dessa 
maneira, podemos perceber 
que não apenas a retratação da 
sexualidade evoluiu, mas o en-
tendimento do amor, que é algo 
livre e individual.
O primeiro beijo gay entre pes-
soas do mesmo sexo foi no 
primeiro filme mudo a ganhar 
um Oscar de melhor filme. Em 
“Asas” (1927), Buddy Rog-
ers e Richard Arlen são os as-
tros, interpretando dois pilotos 
de combate que disputam a 
afeição de uma mesma mulher. 
Mas apesar do enredo colocá-
los em posições antagônicas, 
eles constroem uma bela ami-
zade e quando um está à beira 
da morte, a afeição é demon-
stradacom um tímido beijo, 
sem nenhuma carga erótica, 
porém suficientemente ousado 
para causar espanto nos espec-
tadores da época.
Na década seguinte, a liber-
dade artística foi prejudicada 
no cinema americano, quando 
o chamado “código de Hayes” 
foi implantado. Criado pela As-
sociação Americana de Produ-
tores Cinematográficos dos 
Estados Unidos (MPAA), o có-
digo consistia em uma série de 
regras morais a serem seguidas 
nos filmes. A associação de-
cidiu que beijos de língua, ce-
nas de sexo, sedução, estupro, 
aborto, prostituição, nudez, 
obscenidade e profanação não 
eram práticas moralmente acei-
táveis para serem retratadas no 
cinema.
A partir da implantação dessa 
censura a figura do homossex-
ual foi muito afetada, já que fi-
nais trágicos e o papel do vilão 
eram destinados muitas vezes a 
personagens com “tendências 
homossexuais”. Billy Wilder 
por exemplo, escreveu “Farra-
po Humano” (1945), com a id-
eia de que o personagem princi-
pal seria um escritor alcoólatra 
e sexualmente confuso, mas 
devido à censura,essa questão 
Transcendente, página 16
 nos sempre teremos paris, ou nao
Buddy Roggers e Richard Arlen 
em Wings (Asas) de 1972
sexual foi trocada e o person-
agem passou a sofrer de um 
“bloqueio criativo”. Algo bem 
interessante, pois essa mudança 
escolhida para seguir as regras 
do código funcionou como uma 
resposta irônica. Porque a cen-
sura nada mais é, que literal-
mente, um bloqueio criativo.
Ray Milland em Farrapo Hu-
mano de Billy Wilder (1945)
D
iv
ul
ga
çã
o
D
iv
ul
ga
çã
o
Transcendente, página 17
Apesar dessa imposição mui-
tos filmes foram produzidos 
fora do circuito comercial. O 
mais notável deles foi “Glen 
ou Glenda” (1953), do diretor 
Ed Wood, amplamente conhe-
cido como o pior diretor de to-
dos os tempos. O filme inicial-
mente deveria contar a história 
real da primeira mulher a fazer 
uma cirurgia de troca de sexo, 
porém o diretor acabou utili-
zando o filme para representar 
um dilema que ele mesmo pos-
suía, o de se vestir como uma 
mulher. Apesar de propor uma 
discussão importante, o filme, 
assim como Wood, é considera-
do por muitos o pior de todos os 
tempos. Pois, como era comum 
em todas as produções do dire-
tor, o filme apresenta narrativas 
orais que tentavam amarrar di-
versas imagens e fragmentos 
sem conexão entre eles.
Mas em 1959, Billy Wilder con-
seguiu abordar a sexualidade no 
circuito mainstream,driblando 
a censura em uma comédia 
aparentemente inocente. Em 
“Quanto Mais Quente Mel-
hor”, toda a sensualidade de 
Marylin Monroe é colocada em 
destaque, e ao colocar as cur-
vas, o andar e o olhar da atriz 
em evidência, colocando o cor-
po de uma mulher como figura 
central no filme, Wilder pôde 
discutir livremente em tom 
cômico a homossexualidade e 
até o travestismo, ao colocar 
Tony Curtis e Jack Lemmon em 
situações que precisavam se ve-
stir e agir como mulheres.
Tony Curtis e Jack Lemmon
“Glen ou Glenda” 
(1953), do diretor 
Ed Wood, ampla-
mente conhecido 
como o pior di-
retor de todos os 
tempos
D
ivulgação
D
iv
ul
ga
çã
o
Transcendente, página 18
 nos sempre teremos paris, ou nao
O código foi abandonado ap-
enas em 1968, quando foi esta-
belecida a censura de idade para 
as produções artísticas. Porém 
o gay apenas ganhou força 
nas produções cinematográfi-
cas quando Hollywood viu um 
possível mercado para filmes 
com temáticas LGBT, depois 
de que uma série de protes-
tos contra a violência poli-
cial com homossexuais tomou 
grandes proporções em Nova 
York. Conhecido como Stone-
wall Riot, o movimento surgiu 
quando uma mulher foi retirada 
com brutalidade por policiais 
de um bar gay. Cansados de 
ações violentas como essa, o 
movimento LGBT organizou 
uma série de protestos por três 
noites, que ajudaram na briga 
por discussões de igualdade, 
alavancando uma revolução 
sexual.
O filme “Os Rapazes da Ban-
da” (1970), foi a primeira ten-
tativa hollywoodiana de pro-
duzir um filme para o público 
homossexual. Adaptada de 
uma peça de circuito Off –
Broadway, narrava os dilemas 
de oito amigos que se reúnem 
numa noite chuvosa para uma 
comemoração de aniversário, 
que se transforma num retrato 
das angustias do mundo gay, 
que marcaram um período pré-
liberal dos anos 80. O filme foi 
dirigido pelo renomado Wil-
liam Friedkin, mais conhecido 
por “O Exorcista” e “Operação 
França”, que curiosamente em 
1980 realizou mais um filme 
com temática gay, dessa vez o 
policial “Parceiros da Noite”, 
em que Al Pacino se infiltra 
na comunidade gay de Nova 
York para tentar encontrar um 
assassino em série que ata-
ca somente homossexuais. A 
produção sofreu protestos da 
comunidade LGBT na época, 
por ser considerada anti-gay e 
teve dificuldade nas gravações 
de cenas ao ar livre, em que 
os manifestantes tentavam de 
várias formas atrapalhar o an-
damento das filmagens.
Com o crescimento na 
produção de filmes que colo-
cavam a sexualidade como 
discussão, uma nova barreira 
surgiu contra a produção deles. 
Movimentos“políticos cris-
tãos” ganharam força como 
opositores dos grupos que de-
fendiam os direitos LGBT’s. 
Esses movimentos políticos 
conservadores organizavam 
uma série de protestos e boic-
otes a produções musicais, 
televisivas, literárias e cine-
matográficas que ofendiam os 
valores do cristianismo. Como 
resultado disso produções 
com temáticas homossexuais 
começaram a perder força e 
só ressurgiram com o auge da 
AIDS, mas tratando a doença 
de uma maneira homofóbica, 
colocando assim como na 
época do “código Hayes”, o 
D
iv
ul
ga
çã
o
D
ivulgação
Transcendente, página 19
gay como uma espécie de vilão.
No começo dos anos 90, o 
movimento conservador cultur-
al e político entrou em declínio, 
influenciando na maneira como 
o cinema americano tratava a 
questão sexual. O movimen-
to LGBT ganhou mais força 
quando celebridades conheci-
das assumiram sua homossexu-
alidade e se infectaram com o 
vírus da AIDS, fazendo com 
que a comunidade americana 
passasse a discutir mais aberta-
mente essa temática.
Com esse maior apoio cultural, 
membros da comunidade gay 
viram a necessidade de se ex-
pressarem no mundo artístico, 
criando o que viria a ser cham-
ado de “New Queer Cinema”, 
que representou uma nova era 
nos filmes independentes. Ger-
almente retratando persona-
gens que falavam abertamente 
sobre suas orientações sexuais 
e questões de identidade, eles 
começaram a ser retratados de 
uma maneira positiva, o que 
não acontecia na maioria das 
produções de circuito comer-
cial.
Com a força desse movimento 
independente, o cinema hol-
lywoodiano começou a tratar 
os personagens gays com mais 
respeito e igualdade. Apesar 
disso, na maioria das vezes 
eles eram tratados como perso-
nagens cômicos, em filmes de 
comédia e nem sempre como 
personagens principais. A mu-
dança mais significativa fora 
do circuito independente acon-
teceuapenas em 2005 quando 
Ang Lee dirigiu,“O Segredo de 
Brokeback Mountain”, ganha-
dor de três oscars, que se tornou 
um marco no cinema gay. Pois 
foi uma das primeiras grandes 
produções que tratavam de uma 
história de amor homossexual, 
tendo dois personagens gays 
nos papéis principais.
O sucesso da produção pro-
moveu uma nova perspectiva 
sobre o homossexualismo para 
circuito cinematográfico main-
stream e para o público geral. 
Tendo em vista que nos anos 
seguintes outros filmes como 
“Milk” (2008) e “Cisne Negro” 
(2010) tiveram em seus papéis 
principais astros conhecidos 
que interpretaram personagens 
homossexuais, algo bem raro 
nas décadas anteriores. Por 
isso, o movimento ganhou 
mais força ainda quando ce-
lebridades conhecidas o apoi-
aram de alguma forma, como 
é o casodos antes conhecidos 
como “Wachowski Brothers”, 
que dirigiram a franquia “Ma-
trix” se tornaram “The Wa-
chowski Starship”, pelo fato de 
que um dos irmãos, Larry, se 
transformou em Lana.
Portanto o cinema evolui muito 
na maneira como trata a sexual-
idade, não há mais barreiras cri-
ativas para se expressar e nem 
questões morais que atrapalhem 
a produção de uma história. A 
maior preocupação ainda con-
tinua em relação à aceitação do 
público geral com histórias que 
tratem dessa temática. Apesar 
de avanços nunca antes pen-
sados como a integraçãode um 
personagem abertamente gay 
em um grande filme infantil de 
animação, que aconteceu em 
“Paranorman” (2012), ainda há 
muito a ser feito para que pos-
samos ver histórias de amor em 
sua forma mais pura sendo re-
tratadas e aceitadas pelo grande 
público sem preconceitos. Por 
isso, esperamos pelo dia em 
que possamos assistir a uma 
produção que seja uma espécie 
de Casablanca que tenha como 
personagens centrais um casal 
gay, que consiga ficar marcado 
na história do cinema, mas não 
por ser uma obra sobre homo-
ssexuais, mas por ser um filme 
que trate do amor em sua mais 
perfeita e pura forma.
(Des)enquadradx
Identidade de gênero e orientacão 
sexual nos quadrinhos
Rafaella Rodinistzky
(Des)enquadradx
Identidade de gênero e orientacão 
sexual nos quadrinhos
“O gênero passará não só a construir e simulta-
neamente a desconstruir as categorias de homem 
e de mulher, mas também a estudar aqueles que 
estão fora do sistema sexo/gênero.” 
Donna Haraway
(Des)enquadradx
As tensões entre sexo e gênero 
são igualmente úteis para se 
pensar sobre o modo como a 
própria constituição do campo 
queer corresponde à opção por 
um modelo não-identitário tan-
to no plano de gênero quanto no 
plano da sexualidade, marcada 
principalmente pela recusa do 
binarismo sexual. 
O sexo é apresentado como 
uma realidade imutável e não 
sujeita a alterações históricas 
e culturais. O gênero opera em 
um sistema de normas, e suas 
performances partaem dessas 
regras para se cristalizarem 
em concordância ou para as 
atribuírem um novo signifi-
cado, como nas performances 
de gênero, drag queen/king, ou 
nas afirmações queer.
A nona arte quer desenquadrar 
o gênero.
O quadrinho mainstream e 
as questões LGBT*
Os quadrinhos mainstream 
têm presença de gays e lésbi-
cas desde Watchmen (1986) e 
Sandman (1988-1996), duas 
das maiores referências da 
nona arte. Porém, a partir dos 
anos 2000 que o cenário ganha 
uma guinada com a revelação 
da orientação sexual de heróis e 
heroínas estimados pelo públi-
co como Lanterna Verde (DC 
Comics) e Batwoman (Marvel).
Em diversos âmbitos da mídia e 
da cultura, nota-se uma abertu-
ra lenta e gradual às questões 
LGBT* e no mainstream dos 
quadrinhos de super-heróis 
não é diferente. A ideia de uma 
abertura aos LGBT* gera am-
bição nas grandes editoras, 
além de levá-las ao topo dos 
veículos de comunicação em 
instantes, porém deve-se ob-
servar se a mensagem dessas 
grandes companhias é a mesma 
e de interesse dos LGBT*. O 
número de mulheres aberta-
mente homossexuais nas HQ’s 
é consideravelmente superior 
ao de homens, isso se dá pelo 
fato da fetichização criada pe-
los leitores masculinos de duas 
mulheres de collant se beijando 
aliada ao estereótipo de que os 
heróis nas histórias em quad-
rinhos devem ser masculini-
zados ao extremo para defen-
derem o mundo, opondo-se ao 
estereótipo de que os gays são 
frágeis e delicados.
Transcendente, página 22
Im
ag
em
 d
e 
gu
ia
do
sq
ua
dr
in
ho
s.c
om
Transcendente, página 23
Homossexuais, os novos 
mutantes?
Os quadrinhos mainstream 
ainda têm presença de um 
grande número de leitores ho-
mofóbicos que gostariam que 
seus gibis nem mencionassem 
a existência de homossexuais, 
quanto mais que aparecessem 
neles personagens em relações 
homoafetivas.
Criados em 1963 por Stan Lee 
e Jack Kirby, os X-Men for-
mam uma equipe de heróis sob 
o mote “destinados a salvar um 
mundo que os teme e os odeia”. 
Durante quase duas décadas a 
criação da Marvel Comics foi 
uma febre nos Estados Unidos, 
seres considerados diferentes 
dos humanos que não eram res-
peitados pelo seu modo de vida 
e que lutavam para ganhar o 
reconhecimento de que são tão 
humanos quanto aqueles que os 
julgam de maneira errônea. 
Parece apenas ficção, mas na 
“vida real” as pessoas vistas 
como diferentes, aber-
rações, disfuncionais, er-
radas apenas por apresen-
tarem orientação sexual 
fora do padrão normativo 
da sociedade e que buscam 
uma identidade de gênero 
que se sintam confortáveis 
são tão criticadas quanto 
os mutantes das HQ’s, que 
também eram submetidos à 
“cura” de uma doença que 
na verdade nunca existiu. 
A mente doentia é daquele 
que não sabe conviver com 
a diversidade.
Radical? Substitua a pala-
vra “mutantes” por “gays” 
no quadrinho acima.
Homossexuais nas HQ’s
Casamento de Apollo e Midnighter na 
revista Authority em 2002. Os perso-
nagens são referências, respectiva-
mente, a Superman e Batman.
Renee Montoya, detetive da série 
Gotham City, assume sua homossex-
ualidade após ser chantageada pelo 
vilão Duas-Caras.
Kathy Kane, socialite de Gotham, luta 
contra o crime como a Batwoman. Em 
2006 aparece como ex-namorada de 
Renee Montoya.
Na revista X-Factor número 45 os per-
sonagens masculinos Rictor e Shatter-
star protagonizaram um beijo gay.
Casamento entre o herói Estrela-Polar 
e seu namorado Kyle Jinadu em As-
tonishing X-Men #51.
O Lanterna Verde original, Allan Scott, 
foi escolhido pela DC em 2012 como 
novo herói gay para a série Earth 2. 
Im
ag
em
 d
e 
gu
ia
do
sq
ua
dr
in
ho
s.c
om
Im
agem
 de gayleague.com
Transcendente, página 24
Fanzine, o lado marginal 
dos quadrinhos
“Marginal” pode soar de ma-
neira pejorativa no primeiro 
momento. Luiz Beltrão, um 
dos pioneiros no estudo cientí-
fico da Comunicação no Bra-
sil, classifica marginal em três 
categorias: rurais marginaliza-
dos, urbanos marginalizados e 
culturalmente marginalizados. 
O conceito de marginal no con-
texto dos fanzines se encaixa na 
última categoria, culturalmente 
marginalizados, que “contesta 
a cultura e a organização social 
estabelecida, adotando uma 
política ou filosofia contraposta 
à que está em vigência”, segun-
do Fábio Corniani no artigo Afi-
nal, o que é folkcomunicação?
Por ser um meio de comuni-
cação alternativo, há divergên-
cias quanto ao seu surgimento. 
Acredita-se que o termo fanzine 
foi utilizado pela primeira vez 
em 1941 por Louis Russ Chau-
venet, fã de ficção científica e 
editor de fanzines, para nomear 
as publicações alternativas que 
surgiam nos Estados Unidos, 
com textos de ficção científica e 
curiosidades. A outra versão da 
história conta que o fanzine, no 
formato como se conhece hoje, 
surgiu no final da década 70, 
junto com o movimento punk 
na Inglaterra. 
Define-se fanzine como abre-
viação de fanatic magazine, 
em tradução livre, revista feita 
por fã. O fanzine é fruto de 
uma mídia artesanal e pode ser 
elaborado sem conhecimentos 
profissionais de arte. Pode-se 
considerá-lo como uma im-
prensa alternativa feita para 
divulgar todo tipo de tema, 
geralmente com uma postura 
política ou crítica em relação 
ao assunto escolhido que varia 
de música, cinema, feminismo, 
sentimentos, questões sociais, 
poesia, games, estilo de vida, 
vegetarianismo ao preconceito.
A perspectiva “do it yourself”, 
em tradução livre “faça você 
mesmo”, quebra os paradigmas 
da grande mídia nos espaços 
urbanos e possibilita aos indi-
víduos o deslocamento de sua 
condição de espectador/lei-
tor para a de produtor/autor de 
conteúdo da cultura que adveio 
dessamudança. Empoderado de 
tais conhecimentos, o próximo 
passo é colocar a ideia no papel 
e para isso não é necessário ser 
um desenhista profissional.
Na década de 1990 surgia nos 
EUA o movimento Riot Grrrl 
que deu origem às “garotas reb-
eladas” que lutavam contra o 
machismo na cena punk através 
da produção de fanzines, monta-
gem de bandas e apresentações 
de músicas com instrumentos 
pesados. O primeiro fanzine 
feminista de que se tem notícia 
é o “Riot Grrrl”, produzido por 
Molly Neuman, da banda punk 
Bratmobile, responsável por 
nomear o movimento.
No Brasil, o Riot Grrrl surtiu 
efeito a partir da metade dos 
anos 1990, sob a influência da 
banda Dominatrix, principal 
representante da cena punk-
feminista no país desde 1996, 
responsável pela produção do 
zine KAÓSTICA.
(Des)enquadradx
Im
ag
em
 d
e 
ac
er
vo
fa
nz
in
es
.tu
m
bl
r.c
om
Transcendente, página 25
A (des)construcão das 
publicacões femininas
O maniqueísmo entre o cenário 
feminista brasileiro e internac-
ional é evidente. Enquanto o 
mundo vivia, durante os anos 
60, a segunda onda do movi-
mento com Simone de Beau-
voir lutando pela descriminali-
zação do aborto e pela abolição 
da dupla jornada de trabalho, 
no Brasil as principais publi-
cações voltadas para o público 
feminino retratavam temas 
relacionados às obrigações do-
mésticas, família, moda e dicas 
de beleza. Até a década de 70, 
o movimento feminista quase 
não tinha representação na mí-
dia tupiniquim. 
O jornal “Brasil Mulher” foi a 
primeira publicação brasileira 
de cunho feminista. Criado por 
Joana Lopes, o “Brasil Mulher” 
tinha a marca de ser esquerdista 
e abordava temas como prosti-
tuição infantil e aborto, princi-
palmente denunciando mortes 
causadas por abortos clandes-
tinos no país. Outro jornal im-
portante foi o “Mulherio” lan-
çado em 1981 e que sobreviveu 
à Ditadura Militar até 1990.
Essas primeiras publicações 
pretendiam organizar as trabal-
hadoras e subsidiar suas lutas. 
Com a criação das associações 
de mulheres, o foco muda para 
o associativismo e para a busca 
por mudanças nos hábitos de 
vida, como a divisão do tra-
balho familiar. Entretanto, os 
impressos ficaram restritos ao 
ambiente acadêmico.
P u b l i c a c õ e s 
femininas atuais
Revista Inverna, ficcão gráfica 
brasileira de autoria feminina.
facebook.com /revistainverna
Zine XXX, minas iradas fa-
zendo desenhos irados. Ap-
enas para meninas cis/trans.
facebook.com/zine-xxx
Grupo do Zine XXX, espaço 
voltado para divulgação de 
eventos sobre quadrinhos no 
Brasil, além da difusão de 
trabalhos das minas (cis ou 
trans).
Lady’s Comics, HQ não é só 
pro seu namorado.
facebook.com/ladyscomics
Transcendente, página 26
(Des)enquadradx
Quem faz fanzine hoje
Desalineada
Aline Lemos nasceu em Belo 
Horizonte no ano de 1989 e mo-
rou na cidade boa parte da vida. 
Ela define sua adolescência 
como “nerd, tomboy e meio-re-
voltada-meio-recatada”. Aline 
cursou licenciatura em História 
“pelo amor às ciências humanas 
e pelo ódio à instituição esco-
lar, mas queria mesmo era fazer 
quadrinhos”. Durante dois anos 
e meio (2012-2014) conciliou 
o mestrado em História, pes-
quisando literatura de ficção 
científica e representações de 
gênero, e o curso de Design 
Gráfico. Agora, está abando-
nando o curso para fazer Artes 
Plásticas. 
Seu primeiro quadrinho, como 
aspirante a quadrinista, foi sele-
cionado em 2013 para participar 
da “Revista Inverna – Ficção 
Gráfica de Autoria Feminina”, 
a ser publicada. Após isso, 
criou a página “Desalineada”, 
participou do “Zine XXX” e 
publicou dois zines recente-
mente, “Vênus” e “Liturgia das 
Bruxas”. “Parece confuso, mas 
nesse período já perdi o medo 
de dançar, de ser bissexual e de 
me dedicar à arte, então sinto 
que estou em um bom camin-
ho”, completa.
Como começou seu interesse 
por ilustração?
Desenhar sempre foi para mim 
uma forma muito prazerosa de 
me expressar. Eu tinha uma id-
eia vaga de que gostaria de ser 
quadrinista ou ilustradora, mas 
isso nunca esteve muito claro 
para mim como uma possibili-
dade real, por falta de conheci-
mento da área e de confiança 
em mim mesma. Os estereóti-
pos de que a arte era uma coisa 
distante da minha realidade e 
que não era uma profissão viáv-
el pesaram muito. Eu tentei ser 
outras coisas (um pouco) mais 
seguras, mas não estava feliz. 
Cheguei à conclusão de que se 
não estava feliz, não eram op-
ções realistas para mim. Só há 
pouco tempo consegui romper 
essas barreiras e decidi me ded-
icar à área.
Quais são suas influências?
Os e as quadrinistas e ilustra-
dores jovens que estão crescen-
do atualmente são os que mais 
me influenciam diretamente, 
seja na arte, no tema, na cria-
tividade, na linguagem: Carol 
Rossetti, Ryot, Lovelove6, Die-
go Sanchez, Manzanna, Tailor, 
Cynthia Bonacossa, Pedro Co-
biaco. Outros quadrinistas que 
me influenciaram foram Laerte, 
Neil Gaiman, Cyril Pedrosa, 
CLAMP, Marjane Satrapi, Gipi 
e Katie Skelly. Saindo dos quad-
Ilustração A
line Lem
os
Transcendente, página 27
rinhos, também gosto muito de 
pesquisar artistas e ilustradores 
de outras épocas, como o J. 
Carlos. E, é claro, o feminismo 
é uma influência forte.
Como surgiu o nome “Desa-
lineada”?
Queria um trocadilho tosco 
com o meu nome, Aline. “De-
salineada” em catalão e espan-
hol significa desalinhada. Achei 
perfeito, porque pode ser desar-
rumada, torta, desorientada. 
Quando eu faço quadrinhos, 
estou também me des-fazendo 
nessa coisa meio caótica e des-
viada.
O que você pretende com o 
seu trabalho?
Eu trabalho muito como uma 
forma de extravasar e refletir 
sobre o que sinto e penso, en-
tão nesse sentido tem uma fun-
ção bem pessoal. Mas também 
desejo comunicar às pessoas, 
fazê-las sentir e pensar tam-
bém. E eu ficaria muito feliz se 
meu trabalho contribuísse para 
a existência de representações 
mais diversas e críticas.
Atualmente você possui quase 
7.500 curtidas em sua página 
“Desalineada”, a Internet 
proporciona maior acesso 
ao seu trabalho do que em 
relação aos zines impressos. 
O que você considera positivo 
e negativo na publicação de 
zines; ilustrações; quadrin-
hos na rede?
Se não fosse a rede, eu sequer 
teria começado a fazer quadrin-
hos. Foi lá que eu tive acesso ao 
trabalho de pessoas iniciantes 
como eu e foi por lá que comprei 
meu primeiro fanzine, do Ryot, 
que mora na minha cidade. En-
tão acredito que essa explosão 
do acesso é muito interessante. 
Como dificuldade, talvez pos-
samos pensar a efemeridade 
desse acesso – likes nem sem-
pre medem o impacto que seu 
trabalho teve sobre as pessoas. 
Mas muitas pessoas continuam 
gostando do impresso, e posso 
vender ou trocar zines com 
muito mais delas por causa da 
internet. Acho que não se trata 
mais de comparar as formas de 
circulação, mas de nos adaptar-
mos à nossa situação.
O feminismo te levou aos 
quadrinhos ou foi o con-
trário? Como aconteceu?
Os quadrinhos vieram antes de 
tudo, porque vieram muito cedo 
na minha vida. Quando fui cre-
scendo um pouco, passei a en-
frentar de forma bem dolorosa 
certas convenções de gênero. A 
partir daí a minha vivência fem-
inista, em um sentido de conte-
star tais convenções, e a minha 
relação com os quadrinhos se 
misturavam. Quando era ado-
lescente, eu lia principalmente 
mangás shonen, de ação volta-
dos para meninos. Não entendia 
porque aquele tipo de histórias 
tinha que pertencer ao público 
masculino. Eu me identificava 
também com os protagonistas 
masculinos, por que não? Me 
sentia tão Kenshin quanto 
qualquer um. Com o tempo, 
porém, fui percebendo duas 
coisas: primeiro, que aquele 
heroísmo e protagonismo que 
eu admirava e queria para mim 
estava presente naesmagadora 
maioria das vezes nos persona-
gens homens, não nas mulheres. 
Gostava muito das personagens 
guerreiras e fortes de um jeito 
supostamente masculino, mas 
ficava muito chateada quando 
elas eram colocadas em seg-
undo plano ou nem existiam. 
Eu tinha certeza de que as mul-
heres podiam fazer tudo que os 
homens podiam, e que eu podia 
também. A segunda coisa que 
percebi foi mais difícil e veio 
só depois de conhecer o femi-
nismo como um movimento. 
Foi que as personagens mul-
heres que não sabiam usar uma 
espada e que eram sensíveis ou 
meigas só eram tratadas nesses 
quadrinhos como subalternas, 
fracas e até mesmo patéticas 
porque a sociedade despreza 
essas características consid-
eradas femininas. Eu já sabia 
que não precisava ser sensível 
e meiga, mas foi importante e 
difícil perceber que eu podia se 
quisesse, e não tinha nada de 
errado nisso. “Sailor Moon” e 
“Sakura Card Captors” também 
A
cervo pessoal de A
line Lem
os
Transcendente, página 28
(Des)enquadradx
estiveram lá pra me mostrar 
que a feminilidade podia ser 
heroica também.
Como você nota a retratação 
das minorias no quadrinho 
mainstream?
Ainda é muito problemática, 
mas vejo mudanças positivas. 
O esforço em alguns comics 
norte-americanos, por exemp-
lo, para colocar em protagonis-
mo mulheres, personagens não 
brancos e LGBT*, é um dado 
importante. Por mais que haja 
limites para a representativi-
dade em empresas como essas, 
esse esforço não deixa de ser 
uma resposta aos movimentos 
de reivindicação por essa repre-
sentação – e é preciso valorizar 
esses movimentos. É um assun-
to que está sendo discutido, in-
comodando e gerando reações, 
e acredito que podemos nos 
aproveitar positivamente dele. 
Eu gostaria muito que crescesse 
a produção de quadrinhos por 
essas pessoas, também.
E no quadrinho independ-
ente?
O quadrinho independente tem 
mais espaço para contestação, 
mas só por ser independente 
não quer dizer que vá fugir das 
representações estereotipadas 
de minorias, que tem esse inter-
esse. Muitos quadrinhos inde-
pendentes nem sequer contam 
com minorias representadas. 
Acredito que para fugir disso é 
preciso um esforço ativo, prin-
cipalmente se não se faz parte 
dessa minoria. Afinal, estamos 
em uma sociedade desigual, 
racista, machista, fóbica e mui-
tas vezes essas coisas passam 
despercebidas. Uma coisa que 
me incomoda, por exemplo, é 
quando pensam que, simples-
mente porque sexo é um tabu 
na nossa sociedade, basta falar 
de sexo para ser revolucionário. 
Não adianta falar de escato-
logia, drogas, palavrão e sexo 
casual se só se representam ho-
mens brancos cissexuais reali-
zando suas fantasias com mul-
heres que são colocadas apenas 
como objeto de seus desejos.
O fato de você ser mulher in-
terfere de alguma forma no 
seu trabalho? Há algumas 
artistas que marcam o gênero 
em suas ilustrações, e outras 
que não gostam de serem de-
terminadas por ele. Como é 
para você?
Isso vai da experiência de cada 
uma, mas tem momentos em 
que eu acho importante demar-
car o gênero, quando é preciso 
afirmar um lugar de fala. Seja 
para dizer de uma experiência, 
conquistar um espaço ou visibi-
lidade. Quando falo como mul-
her, isso não deveria me limitar. 
O fato de ser mulher interfere 
em meu trabalho, pois eu vivo 
minhas experiências como mul-
her. Mas também interferem ser 
branca, cissexual, mineira, can-
hota.
Quais são seus ideais em 
relação à questão de gênero?
Acredito que as identidades de 
gênero e as orientações sexuais, 
que entendo como coisas difer-
entes, devem ser autodetermi-
Ilustração A
line Lem
os
Transcendente, página 29
nadas e vividas com liberdade. 
Em subverter as relações de 
poder que conferem privilégio 
a homens, cissexuais, heteros-
sexuais, brancos e ricos. E que 
falando assim parece jargão, 
mas que essas relações estão to-
das interligadas e permeiam os 
nossos cotidianos, e que somos 
capazes de transformá-las.
Você pensa que o Brasil está 
pronto para respeitar e dis-
cutir a identidade de gênero?
Certamente a identidade de 
gênero não é respeitada e dis-
cutida suficientemente no Bra-
sil, mas não acho que se trate 
exatamente de “estar pronto”. 
As pessoas LGBT* que têm a 
sua existência negada, que são 
discriminadas, rejeitadas, agre-
didas e até mesmo assassinadas 
não podem esperar a bancada 
evangélica “estar pronta” para 
discutir seus direitos. É justa-
mente por causa da dissemi-
nação do preconceito e funda-
mentalismo, do alcance que 
obtiveram no poder, que temos 
que respeitar e discutir agora. 
E fazer isso internamente tam-
bém, porque a opressão inter-
nalizada é muito sofrida.
Ilu
st
ra
çã
o A
lin
e L
em
os
Transcendente, página 30
bastava enviar o material até 
cinco de novembro por e-mail 
para ser avaliado por Beatriz e 
outros quadrinistas, homens e 
mulheres. Nomes como Mor-
gana Mastrianni; Sirlanney; 
Mazô, Aline Lemos; Lovelove6 
e a própria Beatriz Lopes fizer-
am parte do projeto ao lado de 
aproximadamente 70 mulheres 
que tiveram espaço para divul-
gar sua arte.
O Zine XXX não ficou ap-
enas no papel. Hoje existe um 
grupo no Facebook com mais 
de 2.500 membros, mulheres, 
responsável pela divulgação de 
eventos relacionados aos quad-
rinhos; oportunidades de tra-
balho na área das artes visuais; 
dicas e tutoriais de desenho e 
claro, ilustrações de “minas ira-
das, fazendo desenhos irados”.
Aline Lemos, a Desalineada, 
participou do projeto e afirma 
que a partir do grupo no Fa-
cebook ganhou confiança para 
publicar seus quadrinhos e 
vive em aprendizado constante. 
“Fico muito feliz porque a 
relação entre mulheres e o mun-
do dos quadrinhos é um assunto 
que está ganhando bastante re-
percussão. Iniciativas como 
o Zine XXX e outros projetos 
como a Revista Inverna e o 
Lady’s Comics são importantes 
não só porque, digamos, su-
prem uma lacuna no mercado. 
Não se trata simplesmente de 
criar ou seguir um nicho mer-
cadológico, mas de possibilitar 
espaços para incentivar e forta-
lecer autoras mulheres”, afirma.
Zine XXX
Em outubro de 2013, Beatriz 
Lopes, única integrante mulher 
do Coletivo Libre de quadrinhos, 
teve a ideia de produzir cinco 
fanzines com 24 páginas cada a 
partir da plataforma de financia-
mento colaborativo Catarse. O 
diferencial desse projeto é sua 
equipe, constituída apenas por 
mulheres cis ou trans com o ob-
jetivo de dar maior visibilidade 
às quadrinistas e às novas artis-
tas que ainda não tinham espaço 
para divulgar seus trabalhos.
A campanha se iniciou em 15 de 
outubro e terminou em 14 de no-
vembro acima da meta de arrec-
adação de 11 mil reais. Em um 
mês o Zine XXX arrecadou R$ 
20.649,00 com o apoio de 489 
pessoas sob o mote “zines com 
qualidade e diversidade”.
O fato de haver um baixo núme-
ro de publicações assinadas por 
mulheres foi uma das motivações 
de Beatriz para desenvolver o 
Zine XXX. O “x” repetido três 
vezes é uma alusão a uma mu-
tação genética que ocorre em 
mulheres também conhecidas 
como “superfêmeas” e também 
uma apropriação do termo usado 
nas produções pornográficas que 
objetificam a mulher. Para que 
as mulheres, cis e trans, tenham 
visibilidade é necessário estimu-
lar a produção e dar espaço para 
que seus quadrinhos cheguem às 
pessoas, juntamente com o au-
mento da produção vem novxs 
leitores e artistas.
Para participar do Zine XXX 
(Des)enquadradx
Ilustração B
etatriz Lopes
Transcendente, página 31
Sapatoons Queerdrinhos
Com Nathália Pereira
“Sapatoons Queerdrinhos” é 
um projeto colaborativo e au-
tônomo, ou seja, não possui 
donos. Linn e Caro o iniciaram 
e agora recebem contribuições 
de outrxs amigxs, de pessoas 
que conheceram em encontros 
feministas e que participaram 
das oficinasde quadrinhos para 
lésbicas que ambos oferecem. 
A segunda edição do fanzine, 
de circulação restrita, foi mais 
colaborativa e contou com 
contribuições dxs amigxs dos 
criadores do Sapatoons, Sab-
rina Lopes, Michel (Coletivo 
Mujeres al borde), Joyce (Les-
bianarte) e de outras pessoas 
que compõem o ciclo afetivo 
-político de Linn e Caro.
Como surgiu o nome “Sapa-
toons Queerdrinhos”?
Inventamos o nome Sapatoons 
Queerdrinhos simplesmente 
porque adoramos trocadilhos.
Sapatão + cartoons = sapa-
toons e queer + quadrinhos = 
queerdrinhos.
Há certo empoderamento na 
apropriação de termos como 
sapatão e queer, comumente 
usados pejorativamente?
Acho que esse tipo de apropri-
ação sempre foi uma estraté-
gia das comunidades margin-
ais para resignificar os termos 
originalmente utilizados para 
deslegitimá-las. Hoje em mui-
tos fanzines tenho observado 
uma identificação das dissidên-
cias com termos pejorativos e 
também com estéticas abjetas 
e marginais (como exemplo 
poderia citar o fanzine MON-
STRANS: experimentando 
horrormônios). Ao mesmo tem-
po hoje acho que cada vez mais 
pessoas se identificam como 
“sapatão”, inclusive muitas 
pessoas que não são lésbicas: 
acredito que o termo “lésbica 
política” foi o que introduziu 
essa espécie de transposição 
fetichizada da experiência lés-
bica a corpos que não possuem 
trajetórias e subjetivações que 
passam pela lesbiandade (no 
Sapatoons #2 fiz um quadrinho 
sobre esse tema). Esse tem sido 
um veículo para mulheres het-
erossexuais ocuparem lugares 
de fala privilegiados e terem 
autorizadas as suas palavras em 
meios predominantemente lés-
bicos, privando-se, entretanto, 
de analises criticas acerca das 
posições privilegiadas que ocu-
pam nos sistemas imperantes 
da instituição heterossexual. 
Na minha época a gente costu-
mava assumir os nossos priv-
ilégios e aprender através desse 
processo. É interessante que 
“lésbica política” é um canal 
de transposição de experiên-
cia que só foi instaurado para 
a sexualidade: não ouvimos 
falar, por exemplo, de “negras 
políticas” porque as premissas 
racistas dessa colocação são 
rapidamente identificadas. En-
tão atualmente quando vou em 
algum show lesbofeminista e 
vejo muitas mulheres heteros-
sexuais se identificando como 
sapatões (e gritando “eu sou 
sapatão”) me sinto desidenti-
ficada de uma categoria que 
eu ajudei a construir e que me 
acolheu e amparou por muitos 
anos. Até hoje temos políticas 
ativistas que apagam as difer-
enças com os slogans “todas 
somos trans” ou “todas somos 
guarani kaiowá” sem se dar 
conta dos efeitos perversos 
detrás desse conceito: meta-
foricamente falando é como se 
a identidade “sapatão” fosse 
um trem que transportasse os 
sujeitos que precisam dela para 
transitar pelo mundo, entretan-
to, em determinado momento 
muitas outras subjetividades 
entram no trem e empurram 
para fora todxs xs passageirxs 
que o construíram para poder 
sobreviver, eu ilustraria assim 
o processo contemporâneo de 
desidentificação com o termo 
“sapatão” à raiz das ações de 
lésbicas políticas.
O que você pretende com o 
seu trabalho?
O Sapatoons para mim não 
é um trabalho. Como lésbica 
separatista anarquista entendo 
o trabalho como algo exaurido 
de prazer e criatividade, então 
é difícil situar um projeto afe-
tivo como o Sapatoons nessa 
área capitalista. Na verdade 
é um projeto totalmente de-
spretensioso que surgiu quando 
eu e Caro nos encontramos em 
Curitiba para passar um tempo 
juntxs e formar uma banda, mas 
em vez disso acabamos fazendo 
piadas e brincadeiras e even-
tualmente começamos a ilustrar 
as piadas. Organizamos tudo, 
fizemos fotocopias e lançamos 
o fanzine para trocar dentro do 
nosso grupo micropolitico de 
afinidades. Na verdade com-
Transcendente, página 32
(Des)enquadradx
ecei esse projeto quando senti 
a necessidade de me afastar de 
coletivos políticos feministas e 
comecei a dar mais importân-
cia para as amizades e as trocas 
afetivas dentro da comunidade 
dissidente – faço essa difer-
enciação baseada nas minhas 
vivências com coletivas femi-
nistas de São Paulo.
Você vê a proposta pós-identi-
tária e não normativa da Teo-
ria Queer como um academi-
cismo, ou seria uma forma 
possível de burlar as fobias 
atuais?
No meio que eu freqüentava a 
teoria queer chegou em 2010 
como um recurso dos anarco-
machos e das mulheres anar-
quistas heterossexuais para 
aplanarem as questões de gêne-
ro e de sexualidade. Um quad-
rinho que comunica sobre esse 
assunto é o “falcatruas de gêne-
ro” presente na primeira edição. 
Acredito que desde então a teo-
ria queer tomou várias formas 
e adentrou muitos campos de 
produção de conhecimento no 
Brasil, e é difícil designar um 
único uso ou significado ao que 
chamamos de “teoria queer”. 
Então só posso falar das min-
has escolhas terminológicas 
em relação à forma como elas 
se constituíram fora dos livros 
(onde elas são muito interes-
santes) e dentro de coletivos 
e manadas afetivas, onde elas 
se complexificam bastante. 
Acho que a estratégia identi-
tária é muito eficiente, senão o 
único recurso em alguns casos 
(para o sistema judiciário, para 
a criação de leis por exemplo 
criminalizando a homofobia, 
etc) mas que tem como efeito 
truculento a reificação da cat-
egoria que evoca. No caso do 
projeto sapatoons tentamos cor-
romper o olhar e as estruturas 
heterocêntricas propondo rep-
resentações não estereotípicas 
de lésbicas, trans e outras sub-
jetividades dissidentes, ao mes-
mo tempo trabalhamos com os 
limites que a figuração humana 
traz.
Os “Sapatoons Queerdrin-
hos #1” se apresentam como 
quadrinhos feministas. Há 
uma convergência entre femi-
nismo e teoria queer a partir 
da relativização do gênero?
Eu acho que a maioria das 
políticas feministas brasilei-
ras são bastante identitárias e 
tendem a preservar a categoria 
“mulher”, ao passo que a teoria 
queer promove a substituição 
das políticas identitárias pela 
estratégia da coalisão. Não sei 
muito bem como aplicar isso 
aos quadrinhos, temos repre-
sentações que são identitárias 
(especialmente nas historias de 
minha autoria trabalho com au-
torrepresentação) e outras que 
são mais mosntruosas, abjetas 
ou dissidentes.
Como foi a recepção dos “Sa-
patoons Queerdrinhos”? O 
compartilhamento livre de 
copyright ajudou efetiva-
mente na sua difusão?
A recepção do projeto foi muito 
satisfatória, fizemos lançamen-
tos em São Paulo, Belo Hori-
zonte, Sorocaba, São José dos 
Campos, Curitiba, Florianópo-
lis, Brasília, Rio de Janeiro e 
até Valparaíso no Chile. Sem-
pre que fazemos um lançamen-
to propomos uma roda de con-
versa em primeira pessoa sobre 
lesbiandade e masculinidades 
anti-normativas. De forma geral 
esse projeto ajudou a expandir 
a minha manada afetivo políti-
ca e tem o efeito de formação 
de comunidade, principalmente 
porque dividimos histórias pes-
soais, o que requer muita confi-
“ S a p a t o o n s 
Queerdrinhos 
#1”
Sa
pa
to
on
s Q
ue
er
dr
in
ho
s
Transcendente, página 33
ança e sensação de segurança. 
O copyleft do primeiro fanzine 
deve ter facilitado a difusão 
do projeto, mas todo o feed-
back que recebo está de alguma 
forma conectado com a rede de 
amigxs que possuo. De todas as 
maneiras difundir amplamente 
o projeto ou populariza-lo não 
é a nossa prioridade, caso con-
trario buscaríamos outros mei-
os e suportes (como a internet 
ou editoras): como todo o fan-
zine, a estratégia da circulação 
é condicionada pelo entorno 
político-afetivo e escolhemos 
dialogar dentro de uma comu-
nidade limitada para ajudar a 
construí-la seguindo uma lógi-
ca separatista.
Como você nota a retratação 
das minorias no quadrinho 
mainstream? E no quadrinho 
independente?
Não sei dizerassim de uma for-
ma ampla até porque conheço 
tão poucos quadrinhos. Achei 
por exemplo aquele quadrinho 
que originou o filme “Azul é a 
cor mais quente” meio chato, 
achei as personagens desinter-
essantes e tristes, nada repre-
sentativas dos lugares que con-
stituem a minha lesbiandade. 
Acho que esse e os do Laerte 
são os mais mainstream que eu 
consigo pensar, mas de maneira 
geral não me interessa muito 
pela cultura mainstream justa-
mente porque tem um potencial 
reiterador e assimilacionista. 
Eu gosto de projetos autorias 
que são autorrepresentativos ou 
autobiográficos, pois acredito 
que essas vias desestruturam 
as engrenagens do estereotipo 
e do simulacro e ampliam as 
categorias. Além disso na min-
ha opinião é importante que 
as subjetividades dissidentes 
sejam representadas de forma 
excêntrica (fora do centro e à 
margem, conforme referen-
ciado por Teresa de Lauretis e 
Monique Wittig), para além das 
estruturas e sistemas heterocap-
italistas:
“a ‘lésbica’ formulada por Wit-
tig não é simplesmente um in-
divíduo com uma ‘preferência 
sexual’ pessoal ou um sujeito 
social com uma prioridade 
‘política’, mas um sujeito ex-
cêntrico constituído num pro-
cesso de luta e interpenetração, 
uma reescrita do ser […] em 
relação a uma nova compreen-
são de comunidade, de história, 
de cultura.”
Acredito que as representações 
que vislumbram o mainstream 
(ou que estão nele inscritas) são 
aquelas que mais bem se adé-
quam aos sistemas vigorantes 
e mais se afastam das brechas 
e deslizamentos desestabili-
zantes daquilo que é marginal e 
dissidente, ou seja, são muitas 
vezes meras inclusões de lésbi-
cas, gays e trans em narrativas, 
desejos e motivações heteros-
sexuais. Lesbiandade aden-
tra a representação manistrem 
contemporânea reduzindo-se a 
uma preferência sexual e, dessa 
forma, é totalmente despoten-
cializada. 
Sa
pa
to
on
s Q
ue
er
dr
in
ho
s
Transcendente, página 34
Expoentes
Laerte Coutinho
Laerte Coutinho nasceu em São 
Paulo no ano de 1951 e é uma 
das principais quadrinistas do 
Brasil. Entrou na Universidade 
de São Paulo (USP) para cursar 
a Escola de Comunicação e Ar-
tes, por lá iniciou-se em Música 
e Jornalismo. Porém, não con-
cluiu nenhuma das graduações. 
Seu primeiro trabalho profis-
sional foi a participação na re-
vista SIBLA com a personagem 
Leão em 1970.
Entre as principais publicações 
que participou, destacam-se “O 
Pasquim” e a “Balão”. Laerte 
foi colaboradora de veículos 
conhecidos, como os jornais “O 
Estado de São Paulo” e “Folha 
de São Paulo”. Algumas de 
suas personagens mais popu-
lares são: Overman, Piratas do 
Tietê e Muriel.
Em 2010, Laerte se auto-perce-
beu transgênera e passou a se 
vestir publicamente com roupas 
e acessórios que, tradicional-
mente, só são utilizados no 
Brasil pelas mulheres. Em 2012 
fundou a ABRAT, Associação 
Brasileira de Transgêneros, or-
ganização que busca auxiliar 
pessoas transgêneras, seus fa-
miliares e amigos. A ABRAT 
também fornece ações profis-
sionais como a TransEmpre-
gos. Em 2013 a artista foi 
homenageada no Festival Inter-
nacional de Quadrinhos (FIQ) 
sediado em Belo Horizonte.
Você chegou a cursar jor-
nalismo, mas largou o curso. 
Durante o período em que es-
tudou na faculdade de comu-
nicação, como você notava as 
discussões de gênero, direitos 
das mulheres, representativi-
dade das minorias? Chegou 
a participar de algum movi-
mento estudantil?
Entrei em 69, fiz música, saí, 
entrei de novo em 70 e tantos, 
fiz mais 3 anos de jornalismo e 
desisti. Naquela época minha 
preocupação e percepção se 
dava sobre a orientação sexual. 
Havia começado minha vida 
sexual um pouco antes - com 
homens, o que me enchia de 
pânico, porque me fazia vis-
lumbrar um destino de estigma 
e vergonha. Convivi por algum 
tempo com uma comunidade 
de estudantes bastante diversa - 
gente gay, lésbica, hippie, anar-
quistas de vários contornos. 
Acabei indo para uma turma 
mais - vamos dizer - conserva-
dora, do ponto de vista de “cos-
tumes”, embora com uma visão 
transformadora da sociedade. 
Por algum motivo, essa forma 
me pareceu acolhedora. Dentro 
dela - o PCB, Partido Comu-
nista Brasileiro - participei da 
vida estudantil, em muitas ativ-
idades. Quanto às discussões 
que você menciona, acho que o 
feminismo era bastante claro - 
já as demandas LGBT* e a dis-
cussão sobre drogas eram con-
siderados tópicos secundários, 
face às urgências da luta por 
democracia política. É o que 
me parece, visto com os olhos 
que tenho hoje.
A partir de 2010, você 
começou a se vestir publica-
mente com roupas e acessóri-
os que, tradicionalmente, só 
são utilizados no Brasil pelas 
mulheres, e um dos casos de 
repercussão da mídia foi por 
você ter usado o banheiro 
feminino e uma cliente de um 
restaurante se sentir incomo-
dada por isso. O brasileiro 
está pronto para discutir a 
identidade de gênero, já que 
cria uma muralha em situ-
ações tão pequenas?
Essas muralhas existem pra 
serem derrubadas, mesmo. Pra 
R
et
ir
ad
o 
de
 M
an
ua
l d
o 
M
in
ot
au
ro
Transcendente, página 35
não sair da história do banheiro, 
veja a quantidade de movimen-
tos e ações no país todo, bus-
cando o direito de pessoas trans 
de usarem o espaço que lhes 
pareça mais adequado. Mesmo 
sob bombardeio incessante de 
colunistas de direita, esse di-
reito vem sendo reconhecido 
em toda parte. Não me sinto 
bem em análises genéricas, 
mas vejo o Brasil como uma 
cultura cheia de contradições e 
“bi-polaridades”, se posso usar 
esse termo. Grandes contraven-
ções e transgressões conviven-
do com estruturas repressivas 
e cruéis. No Brasil pratica-se 
alguma forma de transgeneri-
dade desde a colônia, pelo que 
sei. Claro - “discutir” o tema 
são outros quinhentos! Mas não 
acho que as discussões devam 
ser encetadas só depois que as 
pessoas estiveram prontas. Ou 
elas já estão prontas ou nunca 
estarão.
Após se transformar publi-
camente você mudou algo na 
sua expressão artística, na 
forma de pensar os desenhos, 
no processo de criação? Você 
se sentiu mais livre?
Eu me sinto mais livre, sim 
- mais perto daquilo que pro-
vavelmente sou (como saber?). 
Mais preocupada também. Mu-
danças não só abrem portas, 
elas também descortinam novos 
cenários, às vezes inquietantes.
Você compara a luta das 
travestis de hoje com a luta 
histórica dos negros america-
nos por direitos civis. Como 
você vê o desfecho da luta 
atual e a situação dos negros?
A luta das travestis, transex-
uais, de todas as pessoas trans-
gênero tem relação com a luta 
dos negros por direitos civis, 
assim como tem a ver com as 
lutas do feminismo através da 
história. Na defesa do projeto 
de lei que criminaliza a homo-
transfobia, inclusive, evoca-se 
a luta contra o racismo e a ne-
cessidade que houve de elabo-
rar leis específicas para este 
tipo de agressão. Isso não tem 
desfecho, tem rearranjos. Con-
flitos exigem acertos, mas não 
“terminam”, vão mudando. A 
população negra alcançou o 
gozo de direitos que antes lhe 
eram negados, mas isso não 
quer dizer que tudo virou har-
monia e paz. Veja o que rolou 
em Ferguson, no Missouri.
Os quadrinhos de “Muriel” 
refletem suas experiências 
diárias de alguma forma? 
Como foi seu processo de cri-
ação de Hugo/Muriel?
Refletem e não refletem. Mu-
riel tem vida própria, também. 
Tento não fazer dela apenas um 
boneco para uso de mensagens 
ativistas. Não é muito fácil pra 
mim.
Você pensa que a sua 
transgeneridade atrai maior 
curiosidade do que seu tra-
balho à primeira vista? Como 
você costuma lidar com a sit-
uação?
Às vezes atrai, sim (a transgen-
eridade mais do que meu trabal-
ho) - e isso não me incomoda. 
Sinto que há uma inquietação 
sobre o temae partilho dela. 
Também me inquieta, alvoroça, 
R
etirado de M
anual do M
inotauro
A
ce
rv
o p
es
so
al
 de
 L
ae
rte
 C
ou
tin
ho
traz perguntas. Por outro lado, 
entendo que esse meu movi-
mento vem sendo visto à luz da 
profissional por que sou conhe-
cida há décadas. São coisas que 
não estão divididas.
Quais quadrinhos você desta-
ca como defensores da liber-
tação de gênero?
Gosto muito do trabalho da Ali-
son Bechdel, particularmente 
a série terminada “Dykes to 
Watch Out For” - que se de-
bruça mais sobre a população 
lésbica, mas também contemp-
la todo o universo queer ameri-
cano. Tem o excelente MALU, 
de Cordeiro de Sá, história ba-
seada na experiência pessoal de 
Agatha Lima.
Há algum admirador de seu 
trabalho que se tornou adep-
to do crossdressing por causa 
de você?
Não gosto muito da expressão 
“adepto do crossdressing” 
porque fecha o entendimen-
to. Faz supor um esporte, um 
hobby ou coisa assim. Pelo 
que algumas pessoas me re-
latam, acho que posso, sim, ter 
ajudado na auto-percepção da 
transgeneridade ou na possibili-
dade de sua vivência pública. Já 
Transcendente, página 36
que perceber, mesmo, a maioria 
percebe desde criança. Eu tam-
bém fui muitíssimo ajudada no 
meu processo por outras pes-
soas e experiências.
Como você vê a problemati-
zação sobre gênero no cenário 
político?
É a primeira vez em que vejo 
serem colocadas as questões de 
gênero no debate político, seja 
como necessidade de uma leg-
islação anti-homotransfobia, 
seja na discussão sobre o pro-
jeto de lei João W. Nery, do 
deputado Jean Wyllys, seja nos 
direitos da população trans no 
que se refere a saúde, trabalho, 
moradia etc. Isso é muito sau-
dável e promissor.
O termo queer não tem 
tradução para a língua portu-
guesa. Você gostaria de suger-
ir alguma ou prefere que ele 
permaneça em inglês? 
Eu prefiro que as elaborações 
que fazemos no Brasil sejam 
fecundas e que a discussão dê 
bons frutos, em termos de con-
sciência grupal e de conquista 
de direitos de cidadania plena. 
Acho que o fato de ser um ter-
mo em inglês não tem muita 
importância. “Greve” tampou-
co era um termo em português. 
O que não tem tradução, tra-
duzido está.
A série de tiras “Pequeno 
Travesti” terá continuação? 
Foi inspirada em algum acon-
tecimento? 
Essa série já aproveitava uma 
personagem anterior, que eu 
tinha trabalhado de forma “sol-
ta”. Não tenho planos de con-
tinuar, aquele é um bom final. É 
inspirada em inúmeros relatos 
que me fizeram sobre a percep-
ção do sentimento transgênero 
durante a infância.
Como fundadora da As-
sociação Brasileira de 
Transgêneros (ABRAT), 
quais são os projetos para a 
causa? Pensa na publicação 
de materiais didáticos in-
formativos sobre a questão 
da transgeneridade? E em 
formato de quadrinhos?
Sim, pensamos em ações desse 
tipo - bem como integrar e agi-
tar o debate sobre a transgener-
idade e ações como o TransEm-
prego (www.transempregos.
com.br). Em termos de luta 
por legislação, nosso principal 
interesse é na aprovação da lei 
João W. Nery.
(Des)enquadradx
Transcendente, página 37
R
etirado de M
anual do M
inotauro
Carolina Andrade
Transcendente, página 40
Desde os primeiros registros 
humanos, os mais diversos re-
latos e expressões artísticas 
demarcam a importância da 
indumentária na história so-
cial e cultural da humanidade. 
A moda transita entre tempos 
históricos, revelando parâmet-
ros que discursam sobre a con-
strução moral e ética de seu 
tempo.
A palavra moda,remete em suas 
raízes aos costumes predomi-
nantes de determinados gru-
pos sociais. Apesar de não es-
tar necessariamente vinculado 
ao universo fashion, o termo 
moda, quando usado no século 
XXI, é amplamente associa-
do ao vestuário e aos hábitos 
de consumo contemporâneo. 
Em contrapartida, feita uma 
analise abrangente, quando 
englobamos à sociedade con-
temporânea o termo e os sujei-
tosQueer, podemos encontrar 
em sua recusa de classificar 
indivíduos em categorias uni-
versais, uma forte tentativa de 
quebrar paradigmas.
A evolução no pensamento hu-
mano e a tentativa de quebra 
de tabus sociais implicaram em 
subdivisões e aprimoramento 
de diversas áreas.Movimentos 
de libertação feministas, movi-
mentos em prol da diversidade 
de gêneros e opções sexuais, e 
momentos históricos no qual as 
minorias conseguiram ampliar 
seu espaço, são alguns dos re-
sponsáveis pela estética encon-
trada atualmente,tanto nas pas-
sarelas quanto nas ruas.
A teoria queer e sua natureza 
abrangente reverberam em 
diversos campos da arte, in-
fluenciando e questionando 
principalmente a cultura das 
aparências. Segundo a escritora 
eteórica social Diana Crane, a 
moda se caracteriza como um 
elemento fundamental na con-
strução de identidades, pois or-
ganiza, “posições nas estruturas 
sociais e negociam fronteiras 
de status (Crane, 2006, p.21)”.
O guarda-roupa tem sido por 
séculos, um divisor de gêneros 
e classes. Contudo, este cenário 
tem mudado em alguns seg-
mentos específicos, e a indús-
tria do design de moda atual 
tem explorado cada vez mais a 
diversidade e as especificidades 
sexuais.
A abertura do mercado para 
novos públicos, como por ex-
emplo, os transexuais, os traves-
tis e as Drag Queens,propiciou 
ao mercado da moda um novo 
nicho. Porém, o crescimento 
da difusão da cultura andrógina 
nas passarelas é o segmento 
que mais chama atenção atual-
mente. Diversas grifes encont-
raram na androginia um mod-
elo de indumentária unissex e 
padrão, que agrada diferentes 
tipos de públicos através de sua 
estética minimalista e clean.
A estudante de Design de Moda 
Juliana Calambau, acredita que 
no mercado atual, a moda in-
clusiva é uma necessidade cres-
cente. Em sua visão, “os clientes 
estão mais exigentes, e desejam 
que a moda acompanhe suas 
demandas específicas (de cor-
po, tamanho, cor, modelagem 
e estampa)”.Juliana acrescenta 
ainda, que com vários tabus de 
gêneros já quebrados, o merca-
dounissex ganha destaque nas 
escolas de moda. Pois, segundo 
ela,“consegue englobar distin-
ções de gênero, sem massificar, 
já que cada um imprime seu 
estilo próprio na maneira com 
que veste, combina e customiza 
uma mesma peça”.
A roupa em si, é considera-
da apenas a parte tangível da 
moda, pois apenas por trás de 
sua construção é quese con-
segue imprimir o intangível. 
São as tendências impalpáveis, 
e as ideias que antecipam a cri-
ação em si, os verdadeiros ter-
mômetros sociais que regulam 
a moda e ditam tendências.
A ressignificação da maneira 
com que vestimos e interpreta-
mos o corpo humano, aos pou-
cos começa a encontrar simi-
laridades com as bases da teoria 
queer. Com a ampliação das 
discussões sobre os conceitos 
de gênero e a maior aceitação 
do mercado de moda, o sujeito 
queer que anteriormente era 
colocado sem questionamento 
Descosturando paradigmas
prévio à margem da sociedade, 
consegue cada vez mais espaço 
para questionar sua posição 
como sujeito social. Rompendo 
por assim, espaços da identi-
dade, como a teoria se propõe 
a priori.
O movimento de inclusão das 
diferenças sexuais é um pro-
cesso que vem acontecendo 
gradualmente, e possui apoio 
teórico e prático especialmente 
no campo das artes. A moda se 
faz essencial para a construção 
de um pensamento pós-indeni-
tário, em que o sujeito possa se 
expressar livremente através da 
maneira em que se veste.
D
ivulgação
 
A moda inspira e se inspira no múltiplo mundo dos gêneros, 
prova maior de tal afirmação, foi à apropriação de atributos 
oriundos da androginia no vestuário contemporâneo. 
Historicamente, o termo andrógino refere-se à mistura de 
características físicas e comportamentais femininas e mas-
culinasem um mesmo ser. Dificultando a definição do 
gênero por sua aparência, o individuo andrógino adquiriu 
ao longo do tempo especificidades que atraem visualmente 
atenção para seu vestuário.
A primeira manifestação do estilo andrógino na moda apare-
ceu na década de 20 fomentada pela estilista francesa Coco 
Chanel.Ela propôs as peças uma silhueta enxuta e sem cur-
vas, incorporou socialmente a calça ao vestuário feminino 
e lançou na alta sociedade o famoso corte de cabelo curto 
“à la garçonne”, que mais tarde ficou mundialmente con-
hecido apenas como Chanel. A proposta que claramente 
sugeria igualdade entre os sexos fez história e foi seguida 
por grandes grifes tais quais Yves Saint Laurent, Givenchy, 
Marc Jacobs, Jean Paul Gaultier, Versace e tantas outras 
que ainda hoje se apropriam de características comuns ao 
androginismo como o minimalismo, os cortes simples e as 
cores sóbrias para compor suas coleções. 
Com o passar do tempo às tendências andróginas das pas-
sarelas foram adaptadas para o vestuário cotidiano, e a as-
cendência de modelos andróginos desfilando para grifes 
tanto de roupas femininas quanto masculinas demonstra o 
quão presente e marcante é esta quebra de tabus de gêneros 
para a sociedade do século XXI.
Andreja Pejic, foto ao lado, modelo transexual e andrógi-
no mundialmente conhecido por desfilar em passarelas de 
grifes femininas e masculinas.
A androginia na moda
Transcendente, página 42
A participação da comunidade 
LGBT na construção estética 
da moda como conhecemos 
hoje, é milenar e importantís-
sima para entendermos concre-
tamente a história do vestuário. 
Prova maior de tal afirmação, 
foi à inauguração em setembro 
de 2013 da primeira grande ex-
posição voltada para a evolução 
do universo LGBT na moda. 
Nomeada como Queer History-
of Fashion: From The Closet to-
theCatwalk, em tradução livre, 
A História Queer na Moda: Dos 
armários para as passarelas, a 
exposição entrou em cartaz no 
museu FIT (Fashion Instituteof 
Technology), um dos mais im-
portantes centros de curadoria 
e pesquisas no ramo da moda 
mundial. 
Com um acervo de mais de 
cem peças, e focando nas con-
tribuições da diversidade de 
gêneros ao longo dos três últi-
mos séculos, a exposição reu-
niu cronologicamente temas da 
cultura homossexual e estilos 
transgressores que ajudaram a 
repaginar o vestuário.
Os curadores Fred Dennis e 
ValerieSteele, responsáveis 
pela mostra, passaram dois 
anos reunindo pesquisas de es-
tudiosos da teoria queer, assim 
como peças de famosos estilis-
tas que ajudaram a fortalecer as 
bases da diversidade de gêneros 
no universo fashion, como: 
Jean Paul Gautier, Yves Saint 
Laurent, Gianni Versace, Alex-
ander McQueen, Balenciaga e 
Christian Dior. 
Com a expectativa de mudar 
o entendimento da história do 
vestuário, e a percepção da 
centralidade da cultura gay na 
elaboração da moda contem-
porânea, a exposição usou de 
artifícios de cunho politico, 
como camisetas ativistas rela-
cionadas aos direitos homo-
ssexuais, referencias a temas 
como a AIDS, e fortificou a 
importância da contribuição 
de estilistas gays para o mundo 
da moda. Apesar de seu curto 
período de exibição, a mostra 
ficou em exposição em Nova 
York de setembro de 2013 à 
janeiro de 2014, o evento fo-
mentou e deu espaço a diversos 
debates nos veículos de comu-
nicação sobre a importância da 
valorização da contribuição dos 
sujeitos queer para o comporta-
mento e as tendências atuais. 
Exposição Queer History of Fashion marca a primeira mostra lgbt no mundo 
Transcendente, página 43
Importantes contribuições de grifes para a história queer na moda mundial
 
Uma das primeiras mani-
festações do estilo andróg-
ino na moda apareceu na 
década de 20 fomentada 
pela estilista vanguardista 
francesa Coco Channel, que 
propôs as peças uma sil-
hueta enxuta e sem curvas, 
incorporou socialmente a 
calça ao vestuário feminino 
e lançou na alta sociedade o 
famoso corte de cabelo “à 
lagarçonne”.
Chanel
 
Um dos mais polêmicos 
estilistas da história da 
moda, Jean Paul Gaultier 
foi o primeiro a trazer ab-
ertamente para a passarela 
modelos transgêneros. Com 
forte discurso de cunho 
social, o estilista sempre 
produziu peças pensando 
em valorizar movimentos, 
como a independência da 
mulher e a valorização da 
diversidade de gêneros.
Jean Paul
Gaultier Um dos mais fortes nomes 
da moda brasileira e mun-
dial, Alexandre Herchco-
vitch sempre se preocupou 
com a inclusão dos gêneros 
em suas coleções. Desde 
seu primeiro desfile, o es-
tilista diferenciou seu cast-
ing, colocando travestis, 
transexuais e andróginos 
nas passarelas, além de já 
ter feito diversas coleções 
e colaborações em prol da 
igualdade de gêneros.
Alexandre
Herchcovitch
A teoria queer enquadrada na música
A teoria queer enquadrada na música
Born 
this way
Patrícia da Cruz
Transcendente, página 46
“A música é a arma do futuro”. 
Essa frase, sentenciada pelo 
multi-instrumentalista nigeri-
ano e pai do afrobeat Fela Kuti, 
apresenta a música como uma 
forma de resistência e combate, 
comunicando transversalmente 
com os ideais da teoria queer. 
Se, de uma forma geral, seus 
militantes querem ser ouvidos, 
as expressões artísticas se abrem 
como uma possibilidade total-
mente tangível para alcançar tal 
objetivo. A música, de maneira 
específica, muitas vezes apre-
senta essa característica delato-
ra, de expressão e crítica social.
Desde os primórdios da re-
pressão ditatorial no Brasil, 
na década de 60, a música foi 
amplamente utilizada como fer-
ramenta de repúdio à opressão 
e ao cerceamento da liberdade 
de expressão implantados na 
época. Compositores como 
Chico Buarque, Geraldo Van-
dré e Sérgio Sampaio se posi-
cionaram contra a ditadura 
através de canções de sucesso, 
que subliminarmente critica-
vam o regime em que viviam.
O movimento de contra-
cultura estadounidense tam-
bém teve seu auge na década 
de 60, e encontrou na música 
um forte instrumento de con-
testação social, que abrangia 
temas como Direitos Civis, 
beligerâncias orientais e re-
pressões governamentais. O 
folk, o rock’n’roll e o blues 
na maioria das vezes estavam 
diretamente ligados às críticas 
sociais, firmadas em músicos 
como Bob Dylan, Joan Baez, 
John Lennon e Jimi Hendrix.
Na década de 70, tivemos o in-
Pussy Riot
O grupo de punk rock femi-
nista Pussy Riot ganhou a 
atenção da mídia em 2012, 
quando três integrantes da 
banda foram presas acusadas 
de vandalismo motivado por 
intolerância religiosa. As rus-
sas realizavam um concerto 
improvisado e não-autorizado 
na Catedral de Cristo Salva-
dor de Moscovo, entoando 
uma oração punk contra o 
presidente Vladimir Putin, e 
foram condenadas a dois anos 
de prisão, tendo sido liberadas 
antes de cumprir a pena em 
virtude da anistia geral que 
entrou em vigor na Rússia. 
As integrantes já chegaram 
a declarar que “O que temos 
em comum [com o movimen-
to riotgrrrl] é a imprudência, 
letras politicamente carrega-
das, a importância do discur-
so feminista e uma imagem 
feminina fora do padrão”.
teresse político do punk rock, 
que procurava chocar e prega-
va ideais anarquistas e revolu-
cionários através de suas letras. 
É nessa vertente que surge, no 
ínicio dos anos 90, o movimen-
to contestador feminista riotgr-
rrl, que prega a defesa e reivin-
dicação dos direitos feministas.
O feminismo na música
Segundo Camargo (2011, p. 
155), “a cena do rock de mina 
surge enquanto oposição ao 
sexismo presente no rock e no 
punk (...) a partir de práticas 
como a elaboração de fanzines 
e letras de músicas feministas”. 
Para as adeptas do movimento, 
a música foi uma importante 
forma de protesto, já que ela 
era utilizada para contestar a 
afirmação

Outros materiais