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FILOSOFIA PARA ADMINISTRAÇÃO E CIÊNCIAS CONTÁBEIS. APOSTILA COMPLETA DO CURSO. PROFESSOR: ANTONIO SATURNINO BRAGA MARÇO DE 2012. 2 SUMÁRIO PRIMEIRA PARTE: FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS DA NATUREZA. * PRIMEIRO TÓPICO DA PRIMEIRA PARTE. BREVE HISTÓRIA DA CIÊNCIA DA NATUREZA. - Aula 1: O surgimento do pensamento filosófico-científico (passagem do Mito ao “Logos”). Página 3. - Aula 2: Ciência antiga: imagem do mundo e da ciência típica do período antigo e medieval. Página 6. - Aula 3: Ciência moderna. Imagem moderna do mundo e da ciência. Página 9. * SEGUNDO TÓPICO DA PRIMEIRA PARTE. O DEBATE ENTRE AS DUAS GRANDES TRADIÇÕES DA FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS DA NATUREZA: EMPIRISMO/POSITIVISMO E, POR OUTRO LADO, IDEALISMO(RACIONALISMO)/CONSTRUTIVISMO. - Aula 4: O debate entre empirismo e racionalismo no século XVII. Página 13. - Aula 5: O debate entre empirismo e idealismo no século XVIII. Página 18. - Aula 6: O debate entre o empirismo lógico e o racionalismo crítico de Popper. Página 22. - Aula 7: O debate entre o positivismo (empirismo lógico E racionalismo crítico) e, por outro lado, o construtivismo culturalista representado por T. Kuhn. Página 26. - Aula 8: Positivismo e Idealismo/Construtivismo na esfera da Teoria das Organizações. Página 29. SEGUNDA PARTE: ANÁLISE FILOSÓFICA DOS GRANDES TIPOS DE TEORIA DA SOCIEDADE. - Aula 9: Imagens fundamentais da realidade: nas ciências da natureza e nas ciências da sociedade. Página 33. - Aula 10: Teoria mecanicista (positivista) da sociedade, com origem na teoria da sociedade de Adam Smith. Página 36. - Aula 11: Teoria funcionalista (positivista) da sociedade, com origem na obra de Durkheim. Página 39. - Aula 12: Materialismo histórico do marxismo ortodoxo (concepção positivista). Página 43. - Aula 13: A abordagem interpretativa da sociedade (antipositivista, idealista ou construtivista). Página 48. - Aula 14: Alguns tópicos da sociologia de Max Weber, um dos principais expoentes da abordagem interpretativa. Página 51. - Aula 15: A Teoria Crítica da Escola de Frankfurt (teoria de caráter construtivista). Página 55. - Aula 16: As abordagens sociológicas no campo da teoria das organizações. Página 59. 3 Aula 1. O surgimento do pensamento filosófico-científico (passagem do mito ao “Logos”). Origens do pensamento filosófico-científico •Surge na Grécia, por volta do século VI a.C. (600-501 a.C.). Primeiro filósofo: Tales de Mileto (maturidade em 585 a.C.). Dá início à chamada “Escola de Mileto”. •Tradição de crítica e correção dos mestres. •Forma de pensar nitidamente nova (pensamento lógico, ou filosófico-científico), distinta do tipo de pensamento culturalmente dominante até então (pensamento mítico). Características do pensamento mítico 1) Distinção essencial entre as realidades naturais que encontramos no dia-a-dia e, por outro lado, entidades sobrenaturais personalizadas (Deuses, agentes sobre- humanos) cujas lutas, uniões e façanhas estão na origem das coisas e acontecimentos do dia-a-dia. 2) Mesmo as realidades naturais que encontramos no dia-a-dia contêm no seu âmago uma potência sobrenatural com a qual os homens precisam se relacionar devidamente, para preservar seu funcionamento regular e ordenado, segundo a ordem divina do mundo – o que caracteriza essas potências sobrenaturais é o fato de que elas podem atuar de forma absolutamente arbitrária, irregular, irracional, a seu bel-prazer; seu poder não está sujeito às expectativas humanas de “lógica”, “razão”, “regularidade”. 3) Explicações são histórias sobre a origem de algo, com ênfase na origem da ordem da natureza como um todo, que representa uma espécie de “pacificação” das potências sobrenaturais que habitam o âmago da realidade, levando-as a atuarem de forma regular e ordenada, não caprichosa. Estas explicações da ordem do mundo sempre remetem às lutas, uniões e façanhas de entidades sobrenaturais, que ocorrem em uma outra dimensão do tempo, distinta daquela em que os seres humanos cotidianamente vivem (tempo cotidiano). • No âmbito do pensamento mítico, há um vínculo essencial entre as narrativas míticas e rituais mágicos e/ou religiosos destinados a: A) Reproduzir simbolicamente a façanha originária de instauração da ordem do mundo (reprodução mágica do tempo da origem); soberano humano reproduz a façanha do soberano divino. B) Estabelecer uma ligação com a divindade responsável por determinada esfera da realidade, de modo a angariar proteção, favores, etc. •Narrativa mítica é sagrada (incontestável), porque vem de uma revelação sobrenatural. O narrador (vidente, “poeta”) goza de autoridade inquestionável, por ser um escolhido dos deuses, por ter o dom de ver acontecimentos sobrenaturais, 4 por ser inspirado por poderes sobrenaturais, ou, muitas vezes, por ter recebido a narrativa numa cadeia de transmissão originada em alguém que tinha esse tipo de inspiração. - As narrativas míticas admitem incoerências e contradições, elas não se prestam às exigências de inteligibilidade e justificação, próprias do pensamento lógico- científico. Características do pensamento filosófico-científico •A) Recorre apenas a princípios, elementos e causas essencialmente naturais: água, ar, fogo, terra; matéria indeterminada; átomo; quente e frio, úmido e seco. •B) Tais elementos e causas operam de maneira “lógica” (LOGOS: inteligibilidade do pensamento e fala dos homens, e também da própria realidade), ou seja, de modo coerente e inteligível, livre de contradições e arbitrariedades. Em oposição à arbitrariedade das potências míticas, admite-se agora a lógica e inteligibilidade da natureza. •C) Centrado no “LOGOS”. Como mencionado acima, este termo grego refere-se não apenas ao uso da linguagem humana caracterizado pelas exigências de inteligibilidade e racionalidade, mas também à suposição de que a racionalidade da linguagem humana é um reflexo de uma racionalidade objetiva, imanente à realidade natural e cotidiana. •D) Admite questionamento, crítica, ajuste, correção; conforma-se às exigências de inteligibilidade e justificação. Pensamento filosófico: busca da estrutura essencial da realidade •Naturalismo do pensamento filosófico-científico vincula-se à busca da estrutura essencial da realidade (distinção entre essência e aparência). •Conhecimento puramente teórico da realidade como um todo (valorização do conhecimento pelo conhecimento). Vincula-se ao desejo de conhecer e ao prazer de conhecer, vivenciados como elementos independentes de quaisquer fins práticos. - Propostas de explicação da estrutura essencial da realidade: •A) Elementos naturais mais concretos: água, ar, fogo, terra. •B) Elementos naturais mais abstratos: “indeterminado” (matéria indeterminada), átomo (indivisível), “homeomerias” (átomos com distinções qualitativas), número e relações numéricas (proporções). •C) Elementos de caráter mais lógico: C.1) mudança, movimento de diferenciação e de geração de contrários (Dialética, Heráclito: o permanente é só aparentemente permanente); 5 C.2) O “Ser” como unidade/identidade/permanência fundamental, sem a qual a mudança não é inteligível (Parmênides: “Ser é, não-ser não é”). Dos regimes do Direito dos “gene” para o regime das cidades-Estado (“Polis”) •Transição do mito ao “Logos” associa-se a uma mudança social correspondente: a transição dos regimes do Direito dos gene (“gene”: grandes linhagens e famílias aristocráticas) ao regime das cidades-Estado (“Polis”).(por volta de 750 a.C.). •1) Regimes do Direito dos gene: Direito arbitrário dos chefes de grandes famílias. • Sociedades caracterizadas pelo domínio da nobreza agrária, a classe dos “bem- nascidos” (linhagens superiores, descendentes de heróis extraordinários). Dentre os chefes das grandes linhagens avulta aquele que tem o título de Rei. •Decisão arbitrária do rei e do nobre tem caráter sagrado e força de lei; ela não se presta às exigências de justificação e convencimento. Não se reconhece uma Lei comum a todos, à qual todos devem igualmente se submeter. •Conflitos são decididos com base na força; e força aparece como manifestação de um poder extraordinário, sobrenatural. O Regime das cidades-Estado -POLIS •Regimes “políticos”: uma única Lei, que se aplica a todos. Igualdade dos cidadãos em relação à Lei comum a todos. - Fundam-se no pensamento “lógico” (racional-argumentativo). A Lei é inteligível para todos, e as decisões amparadas na Lei estão submetidas às exigências de explicação, discussão, justificação, convencimento. Regimes dominados por aqueles que sabem argumentar, debater, persuadir. - Decisões de conflitos pessoais precisam ser amparadas em razões – surgimento dos tribunais. - Decisões sobre os rumos da comunidade precisam ser debatidas, explicadas e justificadas – surgimento das assembléias políticas. - O homem como “Animal Político”: gregário, social, e, simultaneamente, capaz de organizar sua existência social com base na razão, ou seja, no uso da linguagem (comunicação) centrado em argumentação e justificação. 6 Aula 2. Ciência antiga: imagem do mundo e da ciência típica do período antigo e medieval. Ciência antiga: teleológica, qualitativa e contemplativa (ciência moderna é mecanicista, quantitativa e utilitária). • Expoente mais influente da ciência antiga: Aristóteles: século IV a.C. (384-322 a.C.). A) Ciência de caráter teleológico (“telos”: fim, finalidade). • Em Aristóteles, visão de mundo baseada na noção de finalidade – concepção teleológica da natureza. •Ciência da natureza: identificação de finalidades. Objetivo da ciência é entender o sentido da existência e mudança das coisas, ou seja, entender o “por que” (interpretado em termos de “para que”) as coisas existem e mudam. •Tese fundamental: cada coisa da natureza existe para alcançar um determinado lugar (“lugar natural”) ou meta (sua realização perfeita; realização perfeita da função que lhe é própria). •Finalidade: essência de cada coisa. O “verdadeiro ser” de cada coisa consiste na finalidade de sua existência. •Finalidade: causa da mudança direcionada, inteligível. Mudança inteligível: passagem do ser “em potência” ao ser “em ato” (realização do potencial próprio). •Potência: possibilidade que se enquadra no direcionamento da essência. Semente é árvore em potência; embrião é homem (ser racional) em potência; adotando um ponto de vista mais específico, o embrião é, por exemplo, escultor (ou médico, ou filósofo, etc.) em potência; pedra é escultura em potência (pode se associar à realização da essência do homem-escultor.) - O problema das mudanças aleatórias. Nos objetos do mundo “sublunar” (“região terrestre”), a essência (finalidade, que em Aristóteles equivale à “forma” da coisa) sempre está misturada a um outro elemento, a “matéria”, que representa a mera possibilidade (possibilidade que não se enquadra no direcionamento da essência). Dinamismo cego, sem direção ou sentido. Causa das mudanças aleatórias que às vezes perturbam a ordem teleológica da natureza. B) Ciência de caráter qualitativo. •Ciência que se apóia em noções qualitativas, ou seja, noções que se definem pela impressão que causam em nossos sentidos (frio e quente, seco e úmido, leve e pesado, alto e baixo.) 7 •Substâncias básicas (fogo, ar, terra, água) são concebidas em termos qualitativos (fogo: quente e seco; ar: quente é úmido; água: fria e úmida, terra: fria e seca). Suas propriedades essenciais também são concebidas em termos qualitativos. Por exemplo, a substância terra é “pesada”: seu lugar natural/destinação são os “lugares baixos”, próximos do centro do planeta em que vivemos. É por isso que os objetos nos quais predomina o componente “terra” caem: a terra neles predominante está buscando seu lugar natural. •Universo dividido em regiões qualitativamente distintas: - Região sublunar ou terrestre (“imperfeita”) e região supralunar ou celeste (“perfeita” – sem mistura com matéria; corpos celestes são constituídos de éter, a “quinta essência”, imaterial. Corpos perfeitos, que realizam movimentos perfeitos: circulares). - Região sublunar: dividida em: lugares altos (lugar natural do fogo), lugares baixos (terra), lugares não inteiramente altos (ar), lugares não inteiramente baixos (água). •Cosmo: ordem e harmonia (beleza) do mundo como um todo. - Modelo geocêntrico do universo: a Terra está no centro do universo e não se move. C) Ciência de caráter contemplativo. •Conhecimento científico é visto como fim supremo da existência humana e, portanto, como fim em si mesmo. •Conhecimento científico: apreensão, contemplação e fruição da ordem, harmonia e beleza do Cosmo. Apreensão do sentido do mundo como um todo. •Conhecimento científico: meio pelo qual a alma se liberta (ou purifica) de impulsos insaciáveis, que levam à inquietação, ansiedade, frustração e infelicidade. Prazer do conhecimento é o único tipo de prazer que não vem misturado com certa dose de frustração. •Dissociação entre ciência e interesse técnico na intervenção sobre a realidade. Conhecimento científico não está subordinado à necessidade de resolver problemas da vida cotidiana. A esfera da ciência é distinta da esfera da técnica (embora esta última também seja uma forma de realização do potencial próprio do homem, que é a racionalidade). Diferentes manifestações da teleologia da natureza •1) Coisas existem PARA realizar uma ordem harmoniosa e bela (Cosmo). •2) Homem (ser racional) existe PARA reconhecer e fruir a ordem, harmonia e beleza do cosmo, ou seja, PARA responder adequadamente à ordem, harmonia e beleza como querer-dizer (significado) das coisas e do mundo. 8 •3) Cosmo existe PARA alimentar a vitalidade própria do homem, dirigindo-se às suas capacidades cognitivas em sentido amplo (razão teórica, razão prática, razão técnica). Ordem cósmica existe para realizar o potencial próprio do homem, a racionalidade. - Razão humana: potencial (função) próprio do homem. Manifesta-se em: a) Conhecimento teórico da ordem e harmonia do Cosmo (Ciência, Teoria). b) Conhecimento prático indicativo do “agir bem” em cada situação – onde o “agir bem” é fim em si mesmo, é bom em si mesmo, é elemento constituinte do “viver bem”. (Conhecimento prático, ética). c) Conhecimento “técnico” utilizado na produção de artefatos e resultados úteis para o “viver bem”. (Medicina, arquitetura, escultura e todas as demais “técnicas”). - Dimensões da felicidade humana: • Libertação (purificação) dos impulsos insaciáveis e frustrantes (prazer puramente sensível, poder). • Realização do potencial próprio do homem, a racionalidade. Exercício da racionalidade como função ou atividade própria do homem. Conhecimento em sentido amplo: responder ao potencial de sentido com que a realidade se dirige ao homem, convidando-o à ação “responsiva”. Manifestações da ação “responsiva”: (a) Ciência; (b) “Agir bem” (agir virtuosamente); (c) Ação tecnicamente hábil e eficaz. Sendo que (b) também está envolvido em (a) e (c).Imagem teleológica de mundo e imagem teleológica da sociedade •Imagem teleológica do mundo: cada ser tem um potencial e função que lhe são próprios (que o definem essencialmente). •Imagem teleológica da sociedade: A) Cada ser humano e cada grupo da sociedade tem um potencial e função que lhes são próprios; B) Da complementaridade das funções e do respeito às normas reguladoras de cada função resultam a ordem e harmonia da sociedade; C) Tradição: transmissão de geração para geração das normas definidoras das diferentes funções; transmissão da ordem harmoniosa da sociedade. D) Interesse de cada homem: corresponder da maneira mais brilhante possível às expectativas de comportamento vinculadas à função social que define sua identidade. Deste ponto de vista, não faz muito sentido falar de uma oposição entre o que é bom para o indivíduo e o que é bom para a sociedade, ou entre interesse pessoal e interesse coletivo. Do ponto de vista da necessidade de coordenação das ações individuais para a preservação e reprodução da sociedade, as ações de cada indivíduo se coordenam naturalmente às dos demais, na medida em que são ditadas por um esquema de funções e expectativas complementares. A coordenação com os outros está por assim dizer contida no sentido que cada homem vê em suas próprias ações, ela é interna ao sentido que cada homem dá às suas próprias ações. 9 Aula 3. Ciência moderna. Imagem moderna do mundo e da ciência. Ciência moderna: mecanicista, quantitativa e utilitária (ciência antiga é teleológica, qualitativa e contemplativa). Alguns dados de história da ciência - 336-323 a.C.: Alexandre o Grande difunde a cultura grega por toda a Ásia menor, Mesopotâmia e Egito. Fundação de Alexandria em 331 a.C. Alexandria torna-se grande centro de produção científica, em língua grega (Euclides: 330-277aC; Arquimedes: 287-212aC, e outras figuras importantes na medicina e astronomia). Conquistada pelos romanos em 30aC, mas a língua da atividade científica permanece sendo primordialmente a grega. Ptolomeu (90-168dC) e Galeno (129- 200dC). - 470 d.C. Queda do Império Romano do ocidente. Abafamento da vida urbana e da cultura científica na Europa ocidental. - 622 dC: início do Islamismo com Maomé –morre em 632. 634-650: árabes conquistam Egito, Síria, Mesopotâmia, Irã e norte da África. 711: Invadem a península Ibérica. Bagdá e Córdoba (Espanha) tornam-se importantes centros de atividade filosófico-científica. Córdoba: centro de difusão da ciência aristotélica, já num período de retomada da prática científica na Europa ocidental cristã. - 1214: Fundação da Universidade de Paris. - 1224-1274: São Tomás de Aquino realiza uma síntese entre a ciência aristotélica e a visão de mundo do catolicismo, com seus dogmas cientificamente indiscutíveis. Paradigma de pensamento que depois ficou conhecido como “Escolástica”. Principais momentos da revolução científica moderna •1) “Sobre a Revolução dos Orbes Celestes” (1543), de Copérnico. Hipótese do sistema heliocêntrico, em oposição ao sistema geocêntrico formulado por Aristóteles, desenvolvido e modificado por Ptolomeu (90-168 d.C.), e ligado à visão de mundo do cristianismo. Apesar de propor a hipótese do sistema heliocêntrico, Copérnico ainda conserva a idéia de um universo fechado. •2) “Sobre o universo infinito” (1583), de G. Bruno (queimado na fogueira em 1600). •3) “A Nova Astronomia” (1609), de Kepler. Órbitas dos planetas em torno do sol são elípticas, contrariando o princípio escolástico de que corpos celestes realizam 10 movimentos perfeitos, e movimentos perfeitos são movimentos perfeitamente circulares. •4) “A Mensagem Celeste” (1610), de Galileu. Divulga evidências empíricas em favor do sistema heliocêntrico e do universo infinito (crateras e montanhas na superfície da Lua, contrariando o princípio da imaterialidade e “perfeição” dos corpos celestes; fases de Vênus, que não podiam ser explicadas no sistema de Ptolomeu; satélites em torno de Júpiter, contrariando o “privilégio” da Terra como centro em torno do qual giram todos os corpos celestes; número espantosamente grande de estrelas, incompatíveis com a concepção de um mundo fechado). - A publicação do livro de Galileu desencadeia reação mais violenta contra doutrina copernicana (“suspensão” do livro e da doutrina de Copérnico em 1616 e, num segundo momento, condenação de Galileu em 1633, depois da publicação, em 1632, de “Diálogos sobre os sistemas do mundo”, no qual é retomada a defesa da doutrina copernicana). •5) “Princípios matemáticos da filosofia natural” (1687), de Newton. Unifica a astronomia e a mecânica. Universo infinito, regido pelo princípio da inércia e pela força gravitacional. CARACTERÍSTICAS DA CIÊNCIA MODERNA. 1) Imagem mecanicista do mundo. •Causa dos movimentos reside em forças puramente mecânicas, destituídas de função, finalidade ou sentido. •Conhecer a natureza não é entender “por que” (com que finalidade ou sentido) ocorrem as mudanças, mas saber “como” ocorrem os movimentos, ou seja, conhecer as leis (regularidades) segundo as quais os movimentos são determinados (e podem ser previstos). •Todo movimento está submetido à necessidade das leis mecânicas da natureza e é em princípio previsível. (Natureza está submetida a leis precisas e invariáveis). Imagem determinista da realidade. 2) Imagem quantitativa da realidade (do espaço e da natureza). •Concebe os objetos e movimentos em termos essencialmente quantitativos, a partir de noções como espaço, tempo, velocidade, aceleração, massa, força. (noções que se definem pela possibilidade de medição e de articulação em fórmulas e modelos matemáticos). •Leis da natureza são entendidas como correlações entre variáveis quantitativas, expressas em fórmulas matemáticas –“a natureza é um livro escrito em 11 linguagem matemática” (Galileu, em obra de 1623). Matematização da natureza e da ciência da natureza. •Espaço homogêneo e infinito, definido em termos puramente geométricos. 3) Imagem utilitária da ciência. •Estreita associação entre ciência e técnica. •Interesse básico: ter poder sobre a natureza (tornar-se capaz de prever, controlar, usar ou manipular objetos, recursos e processos da natureza). •Preocupação com a utilidade do conhecimento para propósitos “mundanos”, como conforto, saúde, riqueza, diversão, etc. Interesse na possibilidade de aplicações práticas do conhecimento. Interesse na maximização (indefinidamente reposicionada no futuro) da satisfação das preferências dos sujeitos. - A época moderna caracteriza-se por um movimento de “subjetivização” das noções de bem e felicidade: cabe a cada indivíduo, e não ao filósofo ou religioso, dizer o que é bom para si próprio. O bem (felicidade) deixa de ser definido em termos de realização do potencial e função próprios do homem, interpretados como potencial e função objetivos, e passa a ser definido em termos de satisfação das preferências subjetivas de cada indivíduo. • Observação sobre a noção de utilidade. Ciência antiga e ciência moderna exibem duas aplicações distintas da noção de utilidade. Na ciência antiga, esta noção é aplicada no princípio de que tudo que existe tem uma utilidade para a ordem abrangente do Cosmo. (utilidade dos objetos da natureza para a ordem cósmica). Na ciência moderna, a noção de utilidade encontra aplicação no princípio de que o conhecimento científico deve ter utilidade para os propósitos do homem (utilidade da ciência para os propósitos dohomem). Duas tendências embutidas no movimento de rejeição da ciência aristotélico- escolástica efetuado na revolução científica moderna. •1) Defesa da matematização da natureza e da ciência da natureza. Esta tendência equivale a uma dimensão do trabalho científico na qual o sujeito é mais ativo, na medida em que o conhecimento matemático é visto como fruto de noções e operações da razão pura do sujeito (ele não depende de informações captadas ou recebidas pelos sentidos). Há nesta tendência uma ênfase na atividade cognitiva do sujeito. O princípio do conhecimento tende a ser identificado com a atividade da razão pura do sujeito. •2) Defesa de observações “puras”, coletadas através dos sentidos (com auxílio de instrumentos) e totalmente depuradas das distorções produzidas pelas suposições teleológicas típicas da ciência aristotélico-escolástica. 12 - Esta tendência equivale a uma dimensão do trabalho científico na qual o sujeito é mais passivo, na medida em que os sentidos constituem uma capacidade essencialmente receptiva: trata-se de receber os dados fornecidos pela natureza de forma absolutamente neutra, ou seja, sem nenhuma mistura com suposições prévias (que passam a ser vistas como “preconceitos”). Há nesta tendência uma ênfase na passividade e neutralidade do sujeito. O princípio do conhecimento tende a ser identificado aos dados “puros” (não- interpretados por suposições prévias) captados pelos sentidos (dados empíricos, ou seja, oriundos da experiência). “Construtivismo/Idealismo” e “Empirismo/Positivismo” •Tendência (1) sugere que o objeto do conhecimento é numa certa medida “construído” pela razão do sujeito, mediante projeção na realidade de noções, princípios e estruturas da razão pura, de caráter lógico-matemático. - Tendência (1) está na origem das teorias racionalistas e idealistas (que também podem ser chamadas de construtivistas e antipositivistas). Deste ponto de vista, o objeto do conhecimento (objeto considerado sob o aspecto da possibilidade de ser conhecido pelo sujeito) é dependente dos princípios e operações da razão pura do sujeito. •Tendência (2) sugere que o objeto do conhecimento é absolutamente independente dos princípios, conceitos e esquemas conceituais da razão do sujeito. O conhecimento científico deve simplesmente reproduzir de modo preciso e fiel este objeto independente. - Tendência (2) está na origem das teorias empiristas e positivistas. Deste ponto de vista, o objeto do conhecimento é independente das atividades da razão pura do sujeito. Cabe à razão do sujeito simplesmente conformar-se às informações deste objeto independente, recebidas em observações puras, não-interpretadas por suposições prévias. 13 Aula 4. O debate entre empirismo e racionalismo no século XVII (1601-1700). Empirismo no século XVII: vamos nos concentrar em F. Bacon e J. Locke. Racionalismo no século XVII: vamos nos concentrar em R. Descartes. O contexto histórico do debate •1) Crise da autoridade das instituições e crenças religiosas –Reforma protestante (início com Lutero em 1517) e guerras entre católicos e protestantes. •2) Crise e esgotamento do conhecimento científico tradicional (aristotélico- escolástico), ou seja, transmitido de forma não-crítica, com base apenas na autoridade dos “sábios”, ligada à autoridade da Igreja Católica. •3) Crenças e autoridades tradicionalmente aceitas eram questionadas e abandonadas –ambiente de dúvida e incerteza e, ao mesmo tempo, de valorização da capacidade cognitiva da consciência individual (de cada indivíduo). •4) Dúvida quanto ao saber tradicional (ou quanto ao modo habitual de ver a realidade) é tomada como etapa necessária (preparatória) para se chegar à verdade, mediante construção de um novo “edifício do conhecimento”. Dúvida é parte do método do conhecimento. •5) Desejo de evitar o erro, ou seja, não repetir os erros do (pseudo) saber escolástico, entranhado no modo habitual de ver a realidade. - Para evitar o erro, é preciso lançar uma dúvida metódica sobre as bases do conhecimento tradicional (modo habitual de perceber a realidade) e encontrar uma “base segura” para a reconstrução do edifício do conhecimento. A dúvida quanto à visão de mundo típica da ciência aristotélico-escolástica gerou duas concepções distintas da “base segura” da nova ciência: 1ª) Observações puras, dados brutos captados pelos sentidos. Observações depuradas das distorções produzidas pelas suposições teleológicas típicas da ciência aristotélico-escolástica. Liberados da influência das suposições teleológicas, os sentidos constituem um canal confiável de recepção do objeto do conhecimento (objeto do conhecimento é identificado aos dados da realidade que são recebidos pelos sentidos). Ênfase numa atitude de passividade e neutralidade do sujeito do conhecimento. EMPIRISMO. 2ª) Radicalização da dúvida metódica leva a uma dúvida quanto à confiabilidade dos sentidos. Não há certeza e evidência nas intuições sensíveis; só há certeza e evidência nas intuições intelectuais (intuições da razão pura). A base segura do conhecimento são intuições intelectuais claras e evidentes, ou seja, nas quais há certeza e evidência. RACIONALISMO. 14 Esclarecimentos terminológicos importantes para a compreensão desta disputa. 1º) Primeira diferença básica: diferença entre intuição e raciocínio. 1.1) Intuição: apreensão ou visão imediata de um determinado dado; quando você simplesmente “vê” algo (um objeto, um acontecimento, a característica de um objeto ou acontecimento, ou então, no caso da intuição intelectual, uma verdade básica, de caráter lógico ou lógico-matemático). A intuição fornece os pontos de partida do raciocínio. 1.2) Raciocínio: quando você chega a determinados dados por meio de um processo argumentativo que parte de outros dados. 2º) Segunda diferença básica. Diferença entre dois tipos de intuição. 2.1) Intuição sensível (operação dos sentidos). Quando você capta um dado ou informação por meio dos sentidos. Quando você vê um acontecimento, um objeto, uma característica de um acontecimento ou objeto. 2.2) Intuição intelectual (operação da razão pura). Quando você “vê” uma verdade básica ou fundamental, de caráter lógico ou lógico-matemático, e referida à estrutura básica da experiência no espaço e tempo. Os exemplos de intuição intelectual variam historicamente, alguns deles deixam de ser aceitos em momentos posteriores. Exemplos: “coisas que são iguais a uma mesma coisa são iguais entre si”; “ponto é aquilo que não tem partes”; “uma reta finita pode ser prolongada à vontade”; o postulado euclidiano das retas paralelas (“Dados em um plano uma reta s e um ponto P fora dela, existe no plano uma única reta que passa pelo ponto P e é paralela à reta dada”); “tudo que acontece tem uma causa”, “o efeito não pode ter mais realidade do que a causa”. - Na tradição racionalista, verdades fundamentais apreendidas pela intuição intelectual equivalem a idéias inatas. (É importante destacar que, do ponto de vista histórico, muitas “verdades” atribuídas à intuição intelectual deixaram de ser verdades absolutas, independentes do contexto de pesquisa e aplicação. Mas isso não invalida a idéia mais geral de que determinadas hipóteses logicamente independentes da intuição sensível desempenham um papel decisivo na investigação científica. Veremos isso mais à frente). 3º) Terceira diferença básica. Diferença entre dois tipos de raciocínio. 3.1) Indução: partindo de um determinado conjunto de dados, você chega a uma conclusão que NÃO está implicitamente contidanestes dados. Mesmo que os enunciados de que você partiu sejam verdadeiros, e mesmo que o raciocínio seja criterioso, a conclusão pode ser falsa (exemplos: generalização com boa base indutiva, analogia criteriosa). 3.2) Dedução: partindo de determinadas informações, você chega a uma conclusão que implicitamente já está contida nestas informações. Se os enunciados de que você partiu são verdadeiros, e se o raciocínio é formalmente válido, a conclusão necessariamente é verdadeira (exemplos: “sempre que o metal é aquecido, ele se dilata; o corpo x não se dilatou ao ser aquecido; conclusão: o corpo x não é metal”). 15 O empirismo. •Principais defensores do empirismo no século XVII: Francis Bacon (“O Novo Órganon”, 1620) e John Locke (“Ensaio sobre o Entendimento Humano”, 1690). •1) “Base Segura” para a construção do conhecimento: experiência sensível (empeiria= experiência sensível); dados e informações captados de forma absolutamente neutra pelos sentidos (mediante eliminação de todos os “pré- conceitos” envolvidos no modo habitual de ver a realidade); dados absolutamente fidedignos. Ênfase na intuição sensível, em comparação com a intuição intelectual. Defesa dos sentidos como canais confiáveis de recepção do objeto do conhecimento, identificado aos dados da realidade independente. •1.1) Mente humana como folha em branco (“Tábula rasa”), paulatinamente preenchida pelos dados captados pelos sentidos. Não há idéias inatas. •2) “Método seguro” para a construção do conhecimento: Indução (como generalização, raciocínio que vai das observações particulares à regra geral): partindo-se de observações (experiências) de casos particulares da ocorrência de determinados fenômenos [casos em que os fenômenos (p.ex., calor e dilatação de metais) se apresentam, não se apresentam e variam], formulam-se definições, conceitos e leis de caráter geral, válidos para todos os casos dos fenômenos investigados. Leis da natureza são concebidas como correlações regulares e universais de fenômenos da natureza. E a Indução é concebida como método de descoberta das leis da natureza. - Ênfase no raciocínio indutivo, em comparação com o raciocínio dedutivo. •2.1) Para realizar a indução: eliminação das “antecipações da natureza” (idéias pré-concebidas sobre a estrutura e funcionamento da natureza); limpar a mente das falsas noções que a invadiram; “tornar-se uma criança diante da natureza”. Passividade e neutralidade do sujeito. O Racionalismo •Principal defensor do racionalismo no século XVII: René Descartes (“Discurso do Método”, 1637; “Meditações Metafísicas”, 1641). •1) “Base segura” para a construção do conhecimento: intuição intelectual fundamental: “Eu penso, e enquanto penso existo como substância pensante”. Submetendo as idéias presentes em minha mente a um rigoroso questionamento crítico (dúvida metódica), descubro que há princípios e noções que minha razão apreende como claros e evidentes, intelectualmente certos, necessariamente verdadeiros. Trata-se de princípios e idéias inatas, independentes da experiência sensível. (Se fossem oriundos dos sentidos, não se apresentariam como claros, certos, seguros.) Dentre os princípios e idéias inatas, destacam-se os princípios e idéias lógico- matemáticos, utilizados na construção do conhecimento matemático. 16 •2) “Método seguro” para a construção do conhecimento: dúvida metódica, intuição intelectual e raciocínio dedutivo (extração de conseqüências logicamente necessárias de idéias e princípios apreendidos por intuição intelectual, ou seja, apreendidos como claros, evidentes, certos). Em Descartes, o próprio resultado do raciocínio dedutivo aparece como uma espécie de intuição intelectual, na medida em que se apresenta com as características da clareza, evidência e certeza. Ideal de um conhecimento certo e seguro elaborado “dentro” da mente. •3) Prova da existência de Deus (prova puramente lógica, que recorre apenas ao conceito ou idéia de Deus, e ao princípio de causalidade aplicado a essa idéia) garante a correspondência do conhecimento elaborado “dentro” da mente à realidade existente “fora” da mente. Objeto do conhecimento: construído ou independente? •1) Empirismo: realidade e objeto do conhecimento são termos absolutamente idênticos. Trata-se de um pólo absolutamente independente do sujeito e das capacidades cognitivas do sujeito. Conhecimento se produz na medida em que a realidade (o objeto) “flui” PARA a mente do sujeito, por meio dos sentidos. •Objeto do conhecimento é a realidade tal como aparece aos sentidos do sujeito (purificados de noções pré-concebidas). Realidade = Objeto do conhecimento = coisas que aparecem aos sentidos, classificadas, correlacionadas e organizadas segundo o método da indução. - Para o empirismo, o objeto (aquilo com que o sujeito se defronta) é ontologicamente independente do sujeito, ou seja, ele existe independentemente das atividades da consciência do sujeito. - Para o empirismo, além disso, o objeto que pode ser conhecido e é realmente conhecido é uma entidade epistemologicamente independente do sujeito, ou seja, o conhecimento do objeto pelo sujeito consiste numa cópia precisa e fiel do objeto ontologicamente independente – uma cópia possibilitada pelo fato de os sentidos do sujeito constituírem um acesso direto e confiável a este objeto ontologicamente independente. •2) Racionalismo: “realidade” e “objeto do conhecimento” são pólos em princípio distintos. Realidade é aquilo que existe fora da mente, e independentemente da mente (ou consciência) do sujeito. O racionalismo reconhece que o “objeto” (não o objeto do conhecimento) é ontologicamente independente do sujeito, ou seja, ele existe independentemente das atividades da consciência do sujeito. - Para o racionalismo, porém, a realidade só se torna objeto do conhecimento na medida em que o sujeito (mente, consciência), garantido pela prova da existência de Deus, projeta sobre ela uma estrutura lógico-conceitual elaborada “dentro” da mente (estrutura puramente racional; fundamentalmente, estrutura de relações lógico-matemáticas, aplicadas ao espaço e os corpos no espaço). •Objeto do conhecimento não é a realidade tal como aparece aos sentidos, mas a realidade tal como organizada mediante projeção sobre ela de uma estrutura puramente racional (inata). 17 •Objeto do conhecimento é construído pela atividade cognitiva desenvolvida pela razão (pura). O objeto que pode ser conhecido e é realmente conhecido é uma entidade construída pelo sujeito, por meio da projeção sobre a realidade de uma estrutural lógico-conceitual elaborada dentro da mente (cuja correspondência com a realidade é garantida pela existência e perfeição de Deus). - Para o racionalismo, portanto, embora o objeto seja ontologicamente independente, ele é epistemologicamente dependente da consciência do sujeito, na medida em que o conhecimento do objeto depende da projeção sobre a realidade de uma estrutura lógico-matemática elaborada pela mente do sujeito, ou pela razão pura do sujeito. 18 Aula 5. O debate entre empirismo e idealismo no século XVIII (1701-1800). Empirismo no século XVIII: D. Hume. Idealismo no século XVIII: I. Kant O contexto histórico do debate •Século XVIII: Liberalismo e Iluminismo. a) Liberalismo como doutrina: a.1) Liberdade do indivíduo como princípio e valor (fim) da ordem social. a.2) Direitos humanos (individuais) como garantias do exercício da liberdade individual. Tais direitos são apresentados como direitos naturais do homem, ou seja, sua validadenão depende de leis formalmente promulgadas e vigentes nos Estados. Direitos às liberdades individuais clássicas: liberdade pessoal (proteção em relação a atos arbitrários ou abusivos por parte dos agentes do Estado ou do governo; Habeas Corpus na Inglaterra, 1679); liberdade de pensamento e opinião; liberdade de religião e culto (implicando separação entre Estado e Igreja); liberdade de expressão. - O respeito a tais direitos individuais configura o chamado “Estado de direito”, fundado ainda na igualdade dos cidadãos perante o Estado e a Lei (contra os tradicionais privilégios da nobreza e clero, típicos da ordem absolutista). a.3) Legitimidade e justificação do Estado são derivadas da idéia de um acordo racional de agentes livres (“Contrato Social”). b) Liberalismo como movimento político: •Movimento de supressão das monarquias absolutas e dos privilégios tradicionais da nobreza e clero, e de instauração dos Estados constitucionais, baseados em declarações dos direitos e liberdades dos cidadãos. Revolução Gloriosa na Inglaterra (1688, no finalzinho do século XVII); Independência dos EUA, contra a política “absolutista” da monarquia inglesa nas colônias norte-americanas (1776), Revolução Francesa (1789). c) Iluminismo: movimento de idéias bastante próximo ao liberalismo. •Crença na capacidade da razão humana de progressivamente desvendar, conhecer e manipular a natureza, tendo em vista a realização da felicidade humana. Rejeição de autoridades externas à razão individual, como a Igreja (anti- clericalismo). Confiança no progresso contínuo do conhecimento científico, como instrumento de promoção da felicidade terrena. - Na França, publicação da primeira “Enciclopédia” (início em 1751): sintetizar em uma obra todo o saber da época, tornando-o disponível a todos os homens- cidadãos. 19 O Empirismo no século XVIII •Principal defensor do empirismo no século XVIII: David Hume (“Tratado sobre a natureza humana”, 1739, e “Investigação sobre o Entendimento Humano”, 1748). •Questão colocada por Hume: sentidos não captam as características da necessidade e universalidade, que são características fundamentais do conceito de causalidade e das Leis da natureza que a ciência pretende apresentar. •Hume problematiza o método da indução, tal como compreendida pelos empiristas do séc. XVII. Não há base objetiva para “pularmos” de observações particulares para enunciados necessários e universais (tal “pulo” não se baseia em intuição sensível, pois os sentidos não vêem ou captam a necessidade e universalidade; nem em raciocínio lógico, pois necessidade e universalidade não são conseqüências logicamente necessárias das observações particulares). • Hume estabelece uma diferença entre conhecimento puramente lógico ou lógico-matemático, caracterizado pela necessidade lógica das relações entre idéias, e, por outro lado, conhecimento da natureza – e pergunta com base em que podemos afirmar que as leis da natureza são necessárias e universais. Em outras palavras, Hume estabelece uma diferença entre a necessidade lógica das relações entre idéias da mente e, por outro lado, a necessidade empírica das relações entre eventos da natureza, que nosso conhecimento da natureza pretende exprimir; e pergunta se essa pretensão é justificada. Podemos de fato “saber” que as relações entre eventos da natureza são rigorosamente necessárias? (Esta pergunta é feita contra o pano de fundo da concepção da ciência como um saber certo e infalível, imune a erros). • Resposta de Hume aos problemas que ele mesmo coloca: Indução se baseia num fundamento “subjetivo”: hábito/costume da nossa mente de associar necessidade e universalidade às regularidades que observamos. Necessidade e universalidade refletem um hábito da nossa mente. Em um sentido rigoroso e estrito, nós não sabemos que a natureza segue leis necessárias e universais, mas, por outro lado, nossa “natureza” (a natureza de nossa mente, que se exprime em seu modo habitual de comportar-se) nos compele a pensar assim. •Hume mantém a tese de que a indução representa o método correto para a descoberta ou obtenção das (presumidas) leis da natureza. Embora baseada num “hábito” da mente, a indução é o melhor método para tentarmos conhecer a realidade objetiva. •Visão falibilista e probabilística do conhecimento científico: não podemos ter certeza de que as Leis que atribuímos à natureza (e que descobrimos com base na indução) são absolutamente necessárias; não podemos ter certeza de que o conhecimento científico de que dispomos é infalível. 20 O Idealismo no século XVIII •Desenvolvimento do racionalismo do século XVII. •Principal defensor: I. Kant (Crítica da Razão Pura, 1781). •Aceita os problemas apontados por Hume, mas não aceita sua solução. •Seguindo Hume, Kant afirma que necessidade e universalidade não são características captadas pelos sentidos. •Contra Hume, afirma que elas não se enraízam num mero “hábito” da mente humana, mas numa atividade legisladora (de impor leis) que é simultaneamente construtora da objetividade da realidade. Necessidade e universalidade são expostas como características da estrutura lógico-conceitual que o sujeito impõe a todos os dados que lhe aparecem. - Para Kant, há regras inatas (sediadas na razão pura) de organização das sensações e de construção da forma geral da realidade objetiva. Trata-se de regras de constituição do espaço-tempo e de organização da nossa experiência no espaço-tempo, que incluem a regra da causalidade. •Conhecimento matemático não é um conhecimento meramente mental (cuja aplicabilidade à natureza depende de verificação empírica, como em Hume). Embora seja um conhecimento logicamente independente da experiência sensível (conhecimento a priori, ou seja, logicamente anterior à experiência sensível), é um conhecimento rigorosamente necessário da ordem da natureza PARA NÓS (natureza tal como aparece para nós). •Distinção entre a natureza “em si mesma” (“coisa-em-si”) e a natureza “para nós” (que Kant muitas vezes chama de “realidade objetiva”). A “realidade para nós” é construída por uma atividade de imposição de regras ou leis: imposição sobre as “aparições (“fenômenos”) de regras de estruturação e organização congênitas à mente, ou seja, inatas . Em outras palavras, a realidade para nós são os fenômenos, organizados por regras inatas. • Todo conhecimento científico ou teórico precisa de uma contribuição da intuição sensível (não há conhecimento teórico de Deus): - No caso do conhecimento matemático, intuição sensível pura, ou seja, intuição dos dados puros do espaço e tempo, que são dados puramente formais (O conhecimento matemático é produzido na medida em que o sujeito preenche a estrutura conceitual que ele impõe a tudo que lhe aparece com os dados formais da intuição pura do espaço-tempo). Em Kant, o conhecimento matemático é um conhecimento “sintético a priori”, ou seja, não é um conhecimento meramente mental, e sim um conhecimento sobre a realidade (realidade para nós), ou seja, aplicável e aplicado à realidade, e por isso sintético, mas, por outro lado, um conhecimento cuja validade ou verdade é independente (logicamente independente ou anterior) dos dados recebidos pela intuição sensível dos conteúdos substantivos da realidade – e por isso é um conhecimento a priori. 21 - No caso das demais ciências da natureza, intuição sensível fornece os conteúdos para o preenchimento da forma (estrutura formal) puramente racional elaborada e imposta pela razão pura. •Só há conhecimento teóricona medida em que conteúdos são dados à intuição sensível e, simultaneamente, organizados segundo a estrutura lógico-conceitual que o sujeito impõe a tudo que lhe aparece (que inclui a relação de causalidade). •Não há conhecimento teórico de Deus. Deus se torna tema de suposições necessárias no campo da prática (campo das escolhas e ações humanas). •Validade objetiva (ou seja, aplicabilidade à natureza existente fora da mente do sujeito) da estrutura lógico-matemática baseia-se, não mais na perfeição, bondade e veracidade de Deus, mas na atividade “legisladora-impositiva” do sujeito (“sujeito transcendental”, ou seja, o próprio homem, enfocado como condição de possibilidade da própria realidade objetiva). Objeto do conhecimento: construído ou independente? •1) Empirismo de Hume: (a) Objeto do conhecimento (identificado à realidade objetiva) é independente da consciência do sujeito (igual ao empirismo de Bacon e Locke); (b) Conhecimento teórico (científico) é constituído por observações “puras” dessa realidade independente, com uso do método da indução, ou seja, de generalizações com base nas quais chegamos aos conceitos e Leis dos objetos/eventos da natureza (igual ao empirismo de Bacon e Locke); (c) Conhecimento científico é falível, pois nosso acesso à realidade independente não é absolutamente seguro e abrangente (diferente do empirismo de Bacon e Locke). •2) Idealismo de Kant: (a) Objeto do conhecimento é a realidade “para nós”, distinta da realidade “em si mesma”. •(b) Objeto do conhecimento (realidade para nós) é construído pela atividade cognitiva do sujeito: atividade na qual o sujeito impõe às aparições (da realidade em si mesma) uma estrutura lógico-conceitual única e abrangente. Conhecimento teórico é constituído por observações encaixadas numa estrutura conceitual (causal e determinista) única e abrangente. •(c) Conhecimento científico é rigorosamente necessário (mais precisamente, a estrutura formal é infalível, embora possamos eventualmente nos enganar em relação aos conteúdos que preenchem esta estrutura formal. A lei “tudo que acontece tem uma causa” é infalível, embora possamos às vezes nos equivocar quanto aos conteúdos que preenchem a posição de “causa”. Mas este é um aspecto que não é enfatizado). 22 Aula 6. O debate entre o empirismo lógico e o racionalismo crítico de Popper (de 1920 a 1950, aproximadamente). Os antecedentes históricos do debate •1) Desenvolvimento de geometrias não-euclidianas (1826-1850, aproximadamente). •Conseqüência: abandono da tese (adotada pelo racionalismo do século XVII e idealismo do século XVIII) de que a matemática representa um conhecimento rigorosamente necessário (infalível) da estrutura essencial da realidade objetiva. Reconhecimento de que a verdade matemática (necessidade/coerência lógica de um sistema construído a partir de princípios convencionais) distingue-se essencialmente de verdade empírica (aplicabilidade e validade para a natureza, ou para a realidade objetiva). • 2) Abandono do paradigma determinista da mecânica newtoniana: a partir de 1860, aproximadamente. Abandono da concepção determinista do mundo físico, segundo a qual os processos da natureza seguem leis rigorosamente determinísticas (que não deixam nenhuma margem de indeterminação). •Conseqüências: (a) abre espaço para uma concepção probabilística do mundo físico. (Leis da natureza têm caráter probabilístico ou estatístico, em vez de caráter rigorosamente determinístico). •(b) Abre espaço para uma concepção falibilista do nosso conhecimento do mundo físico. (Ciência da natureza abandona a pretensão de constituir-se em conhecimento necessário/infalível; trata-se sempre de conhecimento falível, sujeito a correção, revisão ou completo abandono.) O contexto histórico do debate •O debate entre empirismo lógico e racionalismo crítico se desenvolve, basicamente, entre os anos 1920 e 1950. O empirismo lógico é defendido por um conjunto de filósofos reunidos no chamado “Círculo de Viena”. O racionalismo crítico é defendido pelo filósofo Karl Popper. •Nesse contexto, a partir do desenvolvimento e aplicação científica de geometrias não euclidianas, havia sido abandonada a concepção de ciência que dera sentido à posição racionalista/idealista nos séculos XVII e XVIII: a idéia de que a ciência matemática e físico-matemática representa um conhecimento necessário (infalível) da realidade objetiva, mas ao mesmo tempo logicamente independente da experiência sensível. PONTO DESTACADO PELO EMPIRISMO LÓGICO, MAS ADMITIDO PELO RACIONALISMO CRÍTICO. Em outras palavras, ao contrário das teorias racionalista e idealista dos séculos XVII e XVIII, o racionalismo crítico de Popper não vai se preocupar em explicar como é possível um conhecimento logicamente independente da experiência sensível da realidade ser ao mesmo tempo um conhecimento sobre esta realidade, e necessariamente válido em relação a ela. 23 •Por outro lado, caíra em descrédito uma tese que fora adotada pelo empirismo nos séculos XVII e XVIII: a tese de que observações não-interpretadas constituem o ponto de partida da descoberta e elaboração das leis científicas. PONTO DESTACADO PELO RACIONALISMO CRÍTICO, MAS ADMITIDO PELO EMPIRISMO LÓGICO. Em outras palavras, ao contrário das teorias empiristas dos séculos XVII e XVIII, o empirismo lógico do círculo de Viena admite que as leis científicas não são elaboradas a partir de observações da realidade, mas são livremente formuladas por mentes argutas e até mesmo geniais. - Ocorrem assim alterações importantes em relação à discussão anterior. Vejamos as principais alterações. Alterações em relação ao debate anterior. 1) Não se discute mais o ponto de partida da atividade de produção científica. - No debate anterior, havia discussão quanto a esse ponto de partida: - Empirismo defendia que era folha em branco a ser paulatinamente preenchida por observações “puras”. - Racionalismo/idealismo defendia que eram idéias inatas geradoras de uma estrutura lógico-conceitual (e matemática) necessariamente verdadeira. •No novo debate: nem uma coisa nem outra; e sim: hipóteses (falíveis) livremente formuladas pela razão dos cientistas. Os dois lados concordam quanto a isso. 2) Alteração no enfoque que é dado aos métodos respectivamente defendidos por empiristas e racionalistas. - No debate anterior, os empiristas defendiam o método da indução como um método de elaboração das leis da natureza a partir da experiência sensível (observações puras e não-interpretadas da natureza), do mesmo modo que os racionalistas/idealistas defendiam o método da dedução como um método de elaboração das leis da natureza a partir de idéias e princípios inatos. - No novo debate, os empiristas vão defender o método da indução como um método de justificação das hipóteses científicas livremente formuladas pelos cientistas, do mesmo modo que os racionalistas vão defender o método da dedução (método hipotético-dedutivo) como um método de justificação das hipóteses científicas. 3) Assim, ocorre uma alteração do cerne da discussão. - No debate anterior, o cerne da discussão era a questão do ponto de partida e do método da elaboração das leis da natureza. - No novo debate, o cerne da discussão é a questão do método da justificação das hipóteses científicas livremente formuladas pela razão dos cientistas. O núcleo do novo debate •A questão da justificação das hipóteses científicas. •Os dois lados (empirismo lógico e racionalismo crítico) concordam que não é possível o estabelecimento completo edefinitivo da verdade de uma hipótese. 24 •Empirismo lógico defende o ideal de uma confirmação gradativa e crescente das hipóteses (sem chegar ao estabelecimento completo e definitivo da verdade das mesmas), baseada no aumento do número de observações favoráveis ou confirmadoras, equivalendo ao aumento do grau de probabilidade de que desfruta a hipótese. - A indução é o método utilizado no cálculo da probabilidade de que desfruta a hipótese. Indução como cálculo da probabilidade de uma hipótese ser válida, a partir do conjunto das observações disponíveis. (Justificação probabilística, usando um tipo de lógica indutiva). INDUÇÃO COMO JUSTIFICAÇÃO PROBABILÍSTICA DAS HIPÓTESES. •Racionalismo crítico (Karl Popper) defende o ideal de uma justificação por “fracasso na tentativa de refutação”. A justificação é constituída pelo fato de a hipótese passar por um teste em que, à luz dos conhecimentos e expectativas disponíveis, considera-se alto o risco de ela ser refutada por uma observação contrária. - Para Popper, a dedução é o método utilizado na construção dos testes através dos quais se efetua a justificação das hipóteses científicas. - Para Popper, a justificação das hipóteses científicas não se dá por meio de raciocínio indutivo-probabilístico, mas por meio de raciocínio estritamente dedutivo: “se a hipótese x é verdadeira, tem de ocorrer fenômeno y; (com base nesta dedução, montamos um teste para averiguar se o fenômeno y de fato ocorre); se o fenômeno y não ocorre, a hipótese x é falsa” (mas se o fenômeno ocorre, a hipótese passou no teste e ganhou maior grau de corroboração, que para Popper não se confunde com grau de confirmação ou verificação, como destacaremos mais à frente). - Para Popper, uma boa hipótese científica apresenta a seguinte característica: à luz dos conhecimentos e expectativas disponíveis, considera-se baixa a probabilidade de o fenômeno y (mencionado acima) ocorrer. Levando-se em conta esta característica, o teste de uma boa hipótese tem o caráter de uma “tentativa de refutação”; em outras palavras, o teste caracteriza-se pelo fato de que se considera alto o risco de a hipótese ser refutada por uma observação contrária. Se isto não ocorre, há um “fracasso na tentativa de refutação”, e para Popper este fracasso equivale a uma boa justificação (ainda que essencialmente temporária) da hipótese em questão. •O método da ciência é o método hipotético-dedutivo. A dedução é importante como método de explicitação de conseqüências logicamente necessárias da hipótese, que possam ser confrontadas com observações registradas em testes montados a partir da hipótese e da dedução das conseqüências que esta necessariamente implica. •Para Popper, corroboração não equivale a uma confirmação da hipótese, no sentido de um aumento da probabilidade de ela ser verdadeira. Corroboração indica apenas o desempenho da hipótese nos testes realizados até o presente; não pretende indicar probabilidade de êxito futuro. “O termo corroboração é preferível à confirmação, para não dar a idéia de que as hipóteses ou leis são verdadeiras, ou se tornam cada vez mais prováveis à medida que passam pelos testes. A corroboração é uma medida que avalia apenas o sucesso passado de 25 uma teoria e não diz nada acerca de seu desempenho futuro” (Gewandsznajder, p.15). •Para Popper, o objetivo do cientista não deve ser formular hipóteses com alto grau de probabilidade, mas formular hipóteses com alto grau de “refutabilidade” (probabilidade de ser refutada, medida à luz dos conhecimentos e expectativas disponíveis). Hipóteses com alto grau de probabilidade são teoricamente desinteressantes, ao contrário de hipóteses com alto grau de refutabilidade. Quanto maior a refutabilidade de uma hipótese, maior a corroboração que ela ganha ao passar nos testes em que corre alto risco de ser refutada. - Além disso, há uma assimetria entre a verificação (indutiva e probabilística) defendida pelos empiristas e a refutação por ele visada. A verificação exige que se colete o maior número possível de observações confirmadoras, ao passo que a refutação se realiza por meio de uma única observação refutadora. •Para Popper, a diferença entre o ideal da verificação (ligado ao raciocínio indutivo) e o ideal da refutabilidade/corroboração (ligado ao raciocínio dedutivo) exprime uma diferença na atitude do cientista diante da natureza. O método indutivo exprime o desejo de conformar-se fielmente ao que a natureza se presta a dizer, ao passo que o método hipotético-dedutivo exprime uma atitude de “forçar” a natureza a responder às perguntas que o cientista soberanamente lhe faz. 26 Aula 7. O debate entre o positivismo (empirismo lógico E racionalismo crítico) e, por outro lado, o construtivismo culturalista representado por Thomas Kuhn (estendendo-se de 1950, aproximadamente, até hoje). Positivismo: empirismo lógico E racionalismo crítico de Popper. Construtivismo culturalista: Thomas Kuhn (“A estrutura das revoluções científicas”, livro publicado em 1962). - O construtivismo culturalista é um movimento muito mais abrangente do que a obra de Kuhn. Ele abrange a tradição fenomenológico-hermenêutica ligada às obras de Husserl e Heidegger, e também as interpretações que, na esteira do esgotamento do empirismo lógico defendido no Círculo de Viena, elaboram a filosofia analítica da linguagem do ponto de vista da cultura, da história e das relações pragmáticas entre os usuários da linguagem. Entretanto, para os propósitos da primeira parte do nosso curso, Kuhn é o nome mais importante e influente. - De acordo com Kuhn, apesar das inegáveis diferenças entre o empirismo lógico e o racionalismo crítico de Popper, há entre eles uma semelhança mais fundamental, que permite juntá-los numa perspectiva única, o positivismo. - Do ponto de vista das análises de Kuhn, o positivismo representa uma continuação da tradição empirista de conceituação da relação entre o sujeito e o objeto do conhecimento, com sua ênfase na primazia do objeto. Da mesma forma, o construtivismo culturalista representa uma retomada e atualização das características básicas da tradição racionalista/idealista, com sua ênfase na primazia do sujeito; o que muda é o modo de conceituar essa primazia. - Para Kuhn, o que une o racionalismo crítico (Popper) ao empirismo lógico é a crença em observações não-interpretadas da realidade, ou a crença de que este tipo de observação constitui a base ou fundamento do procedimento de avaliação e justificação das hipóteses científicas. - Para Kuhn, a diferença entre eles diz respeito apenas ao modo como posicionam as observações não-interpretadas (nas quais crêem) no quadro dos respectivos procedimentos de justificação. Em Popper, as observações não-interpretadas comparecem no quadro de um procedimento em que o cientista “obriga” a realidade a responder às perguntas que ele ousadamente lhe faz; trata-se de um procedimento em que o cientista submete sua hipótese ou teoria a um teste altamente arriscado (justificação pelo método hipotético-dedutivo). No empirismo lógico, em contrapartida, as observações não-interpretadas comparecem no quadro de um procedimento em que o cientista acumula observações confirmadoras de sua hipótese ou teoria, num esforço de verificação (confirmação) gradativa e crescente da mesma (justificação pelo método indutivo do cálculo de probabilidade). - Para Kuhn, ao adotarem a crença de que observações não-interpretadas da realidade constituem a base do procedimento de justificação das hipóteses, 27 empirismo lógico e racionalismo críticoconcedem primazia ao pólo “objeto” da relação sujeito-objeto. Nessa perspectiva “objetivista” ou “positivista”, a boa hipótese científica é aquela que corresponde à realidade “em si mesma” (totalmente independente do sujeito e dos esquemas conceituais ou interpretativos do sujeito), e as observações não-interpretadas desempenham a função de critério para se avaliar tal correspondência. Observações não- interpretadas favoráveis são tomadas como indícios da correspondência da hipótese à realidade em si mesma, quer sejam conceituadas em termos de observações “corroborantes” (ou não refutadoras), como em Popper, quer em termos de observações “verificadoras ou confirmadoras”, como no empirismo lógico. - Tese fundamental do holismo de Thomas Kuhn: não há observações não- interpretadas da realidade; toda observação é interpretada com base no “paradigma” em que trabalha (e vive) o sujeito do conhecimento. - Paradigma: “visão de mundo” adotada em uma determinada comunidade de usuários da linguagem, ou seja, adotada numa determinada “cultura”. Paradigma: totalidade linguisticamente estruturada de termos, conceitos, princípios básicos de explicação do mundo, princípios de avaliação dos dados observados (exprimindo interesses e valores). Visão de mundo adotada na prática lingüística de uma determinada comunidade de sujeitos que produzem conhecimento em geral e conhecimento científico em particular. - Para Kuhn, não há observações não-interpretadas da realidade: o que percebemos não é a realidade “em si mesma”, mas a realidade visualizada, nomeada, classificada, organizada e reconhecida segundo a totalidade lingüístico- conceitual na qual estamos imersos (ou dentro da qual vivemos). - A totalidade (ou “rede”) dos conceitos e princípios tem prioridade lógica sobre os enunciados e conceitos mais específicos ou particulares: só compreendemos o real significado de conceitos ou enunciados específicos à luz da totalidade explicativa de que eles fazem parte. É na rede explicativa como um todo que nos situamos para aplicar os conceitos e princípios que fazem parte da mesma. - No contexto da prática científica, o peso (ou relevância) de uma observação sempre é definido a partir do paradigma no qual trabalha o cientista. Para Kuhn, atribuir um determinado peso ou relevância a uma observação é uma forma de interpretá-la. - Para Kuhn, uma observação desfavorável a uma teoria nunca funciona como refutação cabal da mesma, ao contrário do que pensa Popper. No contexto do paradigma em que a teoria se encaixa, a observação desfavorável é tomada como (comparativamente) irrelevante, ou seja, de menos peso do que outras observações, favoráveis à teoria. Ou, no máximo, é tomada como indício de que os cientistas ainda não exploraram todo o potencial explicativo da teoria em questão, de que é preciso trabalhar mais em cima da teoria. Na perspectiva desta interpretação acomodadora, a observação desfavorável aparece como mera “anomalia” (termo ou conceito empregado por Kuhn). 28 - A realidade sempre nos aparece pelas lentes de nosso paradigma; não podemos ver a realidade “em si mesma”, ou seja, a realidade sempre é a realidade “para nós”. - O objeto do conhecimento sempre é construído pelos sujeitos do conhecimento, à medida que estes aplicam os recursos lingüísticos, conceituais e interpretativos próprios do paradigma no qual vivem e trabalham. - É por isso que a abordagem de Thomas Kuhn representa uma retomada da tradição “construtivista” do racionalismo/idealismo clássicos, com sua ênfase na primazia do pólo “sujeito” na relação sujeito-objeto. - Há uma diferença importante, porém: no holismo de Thomas Kuhn, a estrutura organizadora que o sujeito projeta sobre a realidade a ser conhecida não é uma estrutura essencialmente mental (individual), inata e a-histórica (invariável no tempo), como ocorria no idealismo kantiano, mas, sim, uma estrutura essencialmente lingüística (intersubjetiva), cultural e histórica (variando no decorrer da história). Substituição de uma concepção “correspondentista” da verdade por uma concepção “epistêmica”, “coerentista” e “consensual”. - Para os partidários do movimento do construtivismo culturalista, a abordagem positivista trabalha com uma concepção equivocada da verdade, a concepção “correspondentista”, segundo a qual a verdade deve ser pensada em termos de correspondência da teoria à realidade em si mesma. - Para muitos filósofos do movimento do construtivismo culturalista, deve-se substituir esta concepção “correspondentista” da verdade por uma concepção “epistêmica”, “coerentista” e “consensual” da mesma. A idéia básica é, resumidamente, a seguinte: como não somos capazes de “sair” da esfera das nossas interpretações para comparar nossas afirmações com a realidade “em si mesma” (todas as observações que fazemos são impregnadas pelas interpretações próprias do paradigma em que vivemos), a verdade deve ser pensada em termos de um ideal puramente epistêmico, o ideal da justificabilidade racional das afirmações e teorias no quadro de um paradigma que incorpore e integre o maior número possível de informações e de critérios de ponderação das informações. A verdade de uma teoria equivale à sua justificabilidade racional no quadro desse paradigma ideal. - Em outras palavras, a verdade deve ser pensada em termos de acordo (“consenso”) entre os sujeitos da prática científica, obtido nas condições idealizadas de uma comunidade de cientistas que disponha do maior número possível de informações e de critérios de ponderação das informações. - Além de ser referido a tais condições idealizadas, o consenso gerador de verdade é orientado pelos critérios que idealmente definem a melhor teoria: capacidade de incluir num quadro explicativo único e coerente (“coerentismo”) o maior número possível de dados ou observações disponíveis. 29 Aula 8. Positivismo e Idealismo/Construtivismo na esfera da Teoria das Organizações. - Na segunda parte do curso, trataremos da filosofia das ciências humanas e sociais. Tentaremos encaixar as grandes teorias de sociedade no quadro das duas tradições de teoria do conhecimento e filosofia da ciência analisadas até aqui. Por um lado a tradição empirista/positivista; por outro, a tradição idealista e construtivista. - É interessante antecipar as seguintes reflexões. No caso da tradição empirista e positivista, não há grandes alterações envolvidas no transplante das idéias fundamentais, da esfera da realidade “natureza” para a esfera da realidade “homens”, “grupos humanos”, “sociedades”. No caso da tradição idealista e construtivista, entretanto, esse transplante envolve uma radicalização das teses antipositivistas típicas dessa tradição. - Na esfera da realidade “natureza”, a tradição idealista e construtivista admite a existência de uma realidade independente, independente, a saber, da consciência humana, da razão humana, da linguagem humana, dos esquemas lingüístico- conceituais adotados pelos sujeitos. O que a tradição construtivista faz é distinguir a realidade “em si mesma” do objeto do conhecimento: o objeto do conhecimento só se constitui à medida que os homens projetam “sobre” a realidade em si mesma um esquema conceitual ou lingüístico expressivo das atividades de sua consciência, razão e cultura. Uma outra maneira de apresentar esta tese é a seguinte: para a tradição idealista e construtivista, o sujeito que produz conhecimento não tem um acesso imediato à realidade a ser conhecida; seu acesso a tal realidade sempre é mediado por um esquema lingüístico-conceitual, ele não tem como sair da esfera da linguagempara ver a realidade em si mesma. - Na esfera da realidade “natureza”, em outras palavras, o sujeito que produz o conhecimento científico trabalha em cima de uma relação entre, por um lado, o esquema lingüístico-conceitual por ele adotado, e, por outro lado, os dados a serem encaixados neste esquema, e cujo encaixe nem sempre é isento de tensões e atritos. Há um limite no esforço de acomodação do dado ao esquema do sujeito; o resíduo dificilmente acomodável permanece como fonte de tensão e negatividade interna ao esquema teórico do sujeito que produz conhecimento. Mas, justamente, a tradição idealista e construtivista enfatiza e valoriza a reflexividade do sujeito, ou seja, a capacidade de voltar-se sobre e observar não só a estrutura lingüístico-conceitual que está adotando, mas também os problemas e tensões surgidos na aplicação desta estrutura aos dados da realidade. A reflexividade é valorizada como fonte de mudanças e ajustes racionais historicamente produzidos no conhecimento científico do sujeito. - Entretanto, na esfera da realidade “natureza”, a relação acima analisada é constitutiva do conhecimento e do objeto do conhecimento, mas não da realidade a ser conhecida. Supõe-se aqui que a realidade a ser conhecida (a natureza em sentido estrito) é independente desta relação – ainda que o sujeito não tenha 30 acesso a ela, apenas a aparições ou manifestações dela, que ainda não permitem falar de um objeto conhecido ou passível de conhecimento. - Na esfera da realidade “homens” e “grupos humanos”, por outro lado, a relação acima analisada é constitutiva da própria realidade a ser conhecida, à medida que essa realidade é constituída, justamente, por homens, ou seja, seres dotados de consciência e linguagem. Isto não significa que consciência e linguagem sejam realidades “sobrenaturais”; significa apenas que, embora sejam realidades perfeitamente naturais, possuem uma característica que as distingue do restante da natureza (a natureza em sentido estrito). Diferentemente do que ocorre no caso da realidade estritamente natural, a essência das realidades consciência e linguagem é a relação (mediação) entre o simplesmente dado e, de outro lado, o nome/conceito com que se reconhece o dado. - Instaura-se aqui uma dupla mediação. Em primeiro lugar, a mediação constitutiva da realidade a ser conhecida, que são os homens (sujeitos) como seres dotados de consciência e linguagem. Tomado como ser dotado de consciência e linguage, o homem é a relação (mediação) entre itens naturais simplesmente dados e, por outro lado, os conceitos com que se reconhecem tais itens. Em segundo lugar, há a mediação constitutiva do conhecimento teórico ou científico desta realidade “humana” por parte de um sujeito que procura conhecer outros sujeitos. - Vamos nos concentrar na primeira mediação. É por isso que, na segunda parte do curso, nosso interesse não vai estar tanto na análise filosófica da metodologia das ciências humanas e sociais, mas, antes, na análise filosófica das grandes teorias de sociedade. - Cabe antecipar algumas características importantes da tradição idealista ou construtivista de teorização da sociedade. - Para esta tradição, na esfera da realidade “homens” e “grupos humanos”, a mediação lingüístico-conceitual vai além do reconhecimento puramente teórico do dado natural; o reconhecimento inclui aqui uma avaliação de implicações normativas. Por exemplo, os dados emanados do “corpo” como realidade natural, ao serem reconhecidos, são simultaneamente envolvidos por avaliações de implicações normativas, do tipo “é bom / é mau”, “deve-se responder desta maneira /daquela maneira”, “a maneira certa de lidar com este dado é esta / é aquela”, etc. Neste caso, as tensões e atritos entre o dado e o conceito são ainda mais disseminados e intensos do que no caso da relação envolvida nas ciências da natureza em sentido estrito. As ações humanas são casos particularmente intensos de tensões entre os dados naturais e os conceitos, casos nos quais o dado freqüentemente escapa e desmente o conceito de implicações normativas. Mas isso não significa que as ações humanas sejam puramente instintivas, ou seja, ditadas por elementos que existem e atuam independentemente da relação com os conceitos e avaliações dos homens (conceitos e avaliações por meio dos quais os homens procuram atribuir-lhes um lugar e sentido). Para a tradição 31 idealista e construtivista, ao contrário, as ações humanas sempre se dão no ambiente da relação entre o dado e o conceito, mesmo no caso em que o dado se rebela ao conceito. O homem não pode escapar a este ambiente, ele não pode escapar à necessidade de situar sua conduta no quadro desta relação, que equivale à necessidade de explicar ou justificar sua conduta. - Do mesmo modo que ocorre no caso das ciências da natureza em sentido estrito, a reflexividade da consciência é enfatizada e valorizada como fonte de mudanças e ajustes racionais; só que agora se trata de mudanças, não no conhecimento da realidade, mas na própria realidade, os homens, relações humanas, grupos humanos, sociedades. Trata-se de uma ênfase e aposta na possibilidade de os homens e grupos humanos se modificarem racionalmente por efeito da reflexividade inerente ao exercício da consciência e linguagem humanas. - Com base nas considerações e análises precedentes, pode-se antecipar o seguinte esquema geral das diferenças entre abordagens positivistas e construtivistas no campo da teoria das organizações. Este esquema será retomado e elaborado com base nas análises efetuadas na segunda parte do curso. Positivismo Idealismo ou construtivismo. Realidade social e organizacional é vista como sistema de caráter “objetivo”, cujos componentes fundamentais são essencialmente independentes da consciência dos sujeitos, ou das capacidades e atividades próprias da consciência. Realidade social e organizacional é vista como cultura, ou seja, rede de interações constituída por padrões de pensamento (avaliação, interpretação, resposta) dependentes ou pelo menos vinculados à consciência dos sujeitos. (Consciência define-se por certas capacidades e atividades: reflexão, conscientização, questionamento, adesão motivada por razões conscientes ou passíveis de conscientização). Ênfase na inserção objetiva dos indivíduos num sistema que funciona independentemente das capacidades e atividades próprias da consciência. Ênfase na participação dos sujeitos (dotados de consciência e linguagem) na construção, reprodução e/ou alteração da realidade social e organizacional (ou seja, dos padrões de pensamento constitutivos da cultura organizacional). Ênfase na tese de que o ambiente externo é uma realidade objetiva (independente) à qual a organização deve inteligentemente adaptar-se. Ênfase na tese de que o ambiente externo é em boa medida uma projeção do modo de pensar dominante na organização (nesse sentido, ênfase na participação dos membros da organização na “construção” do ambiente). 32 Analisa a política dentro da organização em termos de disputas de poder que se alimentam e reproduzem de modo objetivo, ou seja, independentemente das capacidades e atividades próprias da consciência dos sujeitos. Impulsos de poder, relações de poder e estruturas de poder são apresentadas em termos de estruturas e códigos de sentido aos quais os homens se subordinam de modo irrefletido e inconsciente, e que eles reproduzem do mesmo modo. Enfatiza-se a tese de que tais estruturas e códigos de sentido são elementos
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