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Prova Seminario de ETICA

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1 
 
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO AMAZONAS 
ESCOLA DA MAGISTRATURA 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
AVANÇOS DA CIÊNCIA: 
O DIREITO E A ÉTICA MÉDICA 
 
Prof. Dr. HC João Bosco Botelho 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Manaus, 23 de maio de 2015 
2 
 
APRESENTAÇÃO 
 
As relações históricas entre a Medicina e o Direito são antigas, pelo 
menos desde o Código de Hammurabi, e continuam caminhando atadas ao 
pilar estruturante da luta pela sobrevivência humana: manter a vida. 
Nesse complexo sistema de condutas permitidas e proibidas, as duas 
essenciais especialidades sociais — Medicina e Direito — também possuem 
outra forte interligação: a busca pela materialidade, sendo na primeira, a 
doença; na segunda, o delito. 
Esse caminhar está amalgamado aos avanços da ciência e da tecnologia, 
impulsionando os teóricos de ambas às reconstruções e novas construções 
capazes de se ajustarem às necessidades e demandas das sociedades, 
sempre mantendo princípios éticos em torno do belo, do bem e do justo. 
Por meio do encanto acadêmico dos saberes acumulados da Medicina e 
do Direito, sempre perseguindo o belo, o justo, o bom, tomo a liberdade de 
publicar por meio da Escola da Magistratura, do Egrégio Tribunal de Justiça do 
Amazonas, algumas considerações teóricas sobre o tema "Avanços da 
ciência: o Direito e a Ética Médica". 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
3 
 
I 
 
MEDICINA COMO PAIDÉIA 
 
CONSTRUÇOES DOS SABERES MÉDICO JUNTO AO DIREITO 
E À ÉTICA BUSCANDO O BOM, O BELO, O JUSTO 
 
 
Desde tempos ágrafos, os homens e as mulheres ora aliaram-se aos 
panteões, lutando para entender, sem aceitar, a finitude da vida frente à 
natureza circundante; ora, organizaram-se para viver mais e melhor desafiando 
a tirânica competência dos deuses e das deusas para curar. 
A Medicina como paidéia é um dos marcos nessa parte da história da 
humanidade, onde está transparente o conflito de competência entre as três 
medicinas — oficial, empírica e divina — com o objetivo de ampliar os limites 
da vida. Esse processo complexo, oriundo desde os tempos imemoriais, 
alcançou o esplendor na Grécia do século 4 a.C. 
Desse lá, permanece um ponto diferencial entre as três medicinas: só a 
medicina-oficial organizou estruturas teóricas para sustentar as práticas de 
curas, só registradas a partir das primeiras cidades, assim, de natureza 
muitíssimo mais recente do que as outras. 
Do outro lado, também a partir dos primeiros registros escritos, os 
poderes organizadores dos núcleos urbanos mais antigos ampararam, ora 
mais, ora menos, as três medicinas, pendendo mais para uma ou para outra, 
na mesma proporção em que resolviam os conflitos sociais provocados pelo 
medo coletivo da dor e da morte prematuras das epidemias que poderiam 
enfraquecer a ordem social. 
Desde os tempos ágrafos, a medicina-divina e a medicina-empírica 
evidenciam-se plenamente ancoradas nas práticas divinatórias e nos milagres 
e, menos, nos saberes empíricos historicamente acumulados. Por essas 
4 
 
razões, o diagnóstico, o tratamento e o prognóstico trabalhados de maneira 
ametódica e casual, sem compromisso da compreensão das etiologias. 
Por outro lado, a maior parte das experiências empíricas acumuladas 
permaneceu guardada pelos especialistas da coisa sagrada. Estes fatores 
representaram ásperos obstáculos para reproduzir os saberes fora dos restritos 
grupos dos representantes das divindades, enclaustrados nos silêncios que 
impedem as críticas e as respostas. 
Essa evidência fica muito clara nas civilizações que se desenvolveram 
na Mesopotâmia e nas margens dos rios Indo e Nilo. Apesar do notável senso 
empírico, as práticas de cura permaneceram contidas nas amarras do sagrado, 
como assinala a tradição judaica em pelo menos três argumentos: 
1. O incrível poder do curador divino sobre a vida e a morte de tudo e de 
todos. 
Dt 32: 39 — E agora, vede bem: eu, sou eu, e fora de mim não há outro 
Deus! Sou eu que mato e faço viver. Sou eu que firo e torno a curar (e da 
minha mão ninguém se livra). 
2. Os saberes empíricos como dádivas divinas. 
Sb 17: 20 — Ele me deu um conhecimento infalível dos seres para 
entender a estrutura do mundo, a atividade dos elementos, o começo, o meio e 
o fim dos tempos, a alteração dos solstícios, as mudanças de estações, os 
ciclos do ano, a posição dos astros, a natureza dos animais, a fúria das feras, o 
poder dos espíritos, os pensamentos dos homens, a variedade das plantas, as 
virtudes das raízes. 
3. O médico como representante reconhecido e festejado da divindade. 
Eclo 38: 1-2 — Rende ao médico as honras que lhe são devidas, por 
causa de seus serviços, porque o Senhor o criou. Pois é do Altíssimo que vem 
a cura, como um presente que se recebe do rei. A ciência do médico o faz 
trazer a fronte erguida, ele é admirado pelos grandes. 
 A cultura grega, no século 4 a.C., absorveu as origens mais antigas da 
medicina-divina e da medicina-empírica mantendo a figura social do médico, 
em princípio, como dono do saber notável. 
Sem abandonar a influência do divino sobre a vida e a morte, os cantos 
homéricos mostraram o claro destaque do médico como representante da 
5 
 
medicina-oficial e agente social na luta contra os agravos à saúde (Ilíada XI, 
510: Máxima glória dos povos arquivos, Nestor de Gerena, toma o teu carro 
depressa; ao teu lado coloca Macáon, e para as naves escuras dirige os 
velozes cavalos, pois é sabido que um médico vale por muitos guerreiros, que 
sabe dardos extrair e calmantes deitar nas feridas). 
O mesmo médico homérico também marcadamente estava inserido no 
espaço sagrado das relações sociais. Os médicos Macáon e Podalírio, que se 
destacaram na guerra de Tróia, mencionado por Homero, são os dois filhos de 
Asclépio, o deus protetor das medicinas gregas. 
Essa aparente dualidade homérica, onde as três medicinas mostram-se 
sobrepostas, reproduz uma herança sócio-cultural muitíssimo mais anterior à 
cultura grega, perdida no tempo da ontogenia, e que a genialidade de Homero 
tratou de expor. 
O deus Asclépio, filho de Apolo com a mortal Corônis conquistou uma 
fama inimaginável. Mais cirurgião do que médico, ele criou as tiras, as 
ligaduras e as tentas para drenar as feridas. Junto com as suas filhas Hígia e 
Panacéia, era celebrado em grandes festas populares, próximas do dia 18 de 
outubro, data em que, até hoje, se comemora o dia do médico no Ocidente. 
 No século 4 a.C., na Grécia, a medicina-oficial expondo abertamente o 
processo de conflito com outras medicinas, mas compreendida como arte, 
apresentava-se com clareza na estrutura dos saberes que procuravam 
desvendar a natureza visível e invisível. 
A profissão médica estava tão bem sedimentada em sistemas de 
aprendizado que influenciou, profundamente, nos vinte séculos seguintes, os 
caminhos tomados pela medicina-oficial no Ocidente. 
A medicina-oficial grega do século 4 a.C., concebida como ciência e, 
nessa condição, deveria valorizar a etiologia (Leucipo de Mileto In: Os Pré-
Socráticos: fragmentos, doxografia e comentários. 2. ed. São Paulo. Abril 
Cultural. 1978. p. 297: Nenhuma coisa se engendra ao acaso, mas todas a 
partir da razão e por necessidade). A busca pela etiologia da doença entendida 
como pressuposto do diagnóstico e da terapêutica estava escancara ao futuro: 
a fisiologia do corpo que amparava a prática dessa medicina-oficial estava 
6 
 
ligada aos pré-socráticos, especificamente, aos filósofos jônicos, intérpretes da 
natureza circundante visível ou não por meio da tékhne. 
Um dos fatos que torna essa reflexão fascinanteé que, como hoje, longe 
de haver separação entre as práticas das três medicinas, a crença no poder de 
cura dos deuses e deusas e o empirismo continuaram fortes e coerentes com o 
universo cultural grego. 
O herói grego continuou associado à cura de doenças e malefícios. O 
senso comum compreendia grande número de deuses e deusas possuindo, 
entre os principais atributos, o dom de sarar as doenças e as feridas de guerra 
(Platon. Oeuvres Complètes. Paris. Ed. Gallimard. Bibliothèque de la Pléiade. 
1950. v.1, v.2. Rep. 407d: — Por conseguinte afirmaremos que também 
Asclépio sabia isto, e que, para os que gozam de saúde física, graças a sua 
natureza e à sua dieta, mas têm qualquer doença localizada, para os que têm 
essa constituição, ensinou a Medicina, que expulsa as suas enfermidades por 
meio de remédios e incisões, prescrevendo-lhes a dieta a que estão 
habituados, a fim de não prejudicarem os negócios políticos. 
Contudo, o médico atuava muito além do espaço sagrado, continuava 
exercendo a arte de adivinhar, porém sobre um sistema teórico coerente que 
observava e interpretava os sinais da natureza visível e invisível. 
Esse avanço de dimensões gigantescas — a Medicina como paidéia — 
possibilitou estabelecer a ponte que ligaria, para sempre, a busca da etiologia 
das doenças ao diagnóstico, tratamento e prognóstico. 
Desse modo, a Medicina como paidéia feriu profunda e mortalmente o 
predomínio da medicina- divina e da medicina-empírica sobre a medicina-
oficial. 
A associação entre as idéias da Escola Médica de Cós, sob a liderança 
de Hipócrates, com a filosofia jônica, sem dúvida, possibilitou um avanço de 
dimensões gigantescas — a Medicina como paidéia — estabelecendo a ponte 
que ligaria, para sempre, a busca da etiologia das doenças ao diagnóstico, 
tratamento e prognóstico. 
Desse modo, a Medicina como paidéia abriu o caminho para a 
dominação da medicina-oficial sobre a medicina-divina e medicina-empírica. É 
possível que com esse objetivo central, os conceitos jônicos da natureza 
7 
 
tornaram-se as principais medidas da medicina-oficial. As normas alcançaram 
os significantes das enfermidades entendendo-as como desvios da natureza e 
em maior amplitude, mudança na physis do homem. 
É possível compor cinco alicerces fundamentais da physis embutidos na 
Medicina como paidéia: 
- Como universalidade e individualidade: todas as coisas têm a sua physis 
própria, os astros, os ventos, as águas, os medicamentos, o homem com as 
suas partes e as doenças (Das Epidemias, distingue: ”...a physis comum de 
todas as coisas, da physis própria de cada coisa”; 
- Como princípio: a physis é o princípio (arkhé) de tudo que existe (Sobre 
os Lugares e o Homem, lê-se: “A physis do corpo é o princípio da razão da 
Medicina”). 
- Como harmonia: na sua aparência e na sua dinâmica a physis é 
harmoniosa; é a ordem que se realiza com beleza. A natureza é harmoniosa e 
produz harmonia; 
- Como racionalidade: a natureza é racional em si mesma. Por esta razão 
existe uma fisiologia; a ciência na qual o logos do homem se harmoniza 
diretamente com os logos da natureza; 
- Como divindade: a physis é em si mesma divina. 
É possível que esse caráter divino da physis estivesse transparecendo a 
necessidade de o senso comum manter a medicina-oficial ligada à medicina-
divina e à medicina-empírica ou, sob outra perspectiva, não ser possível a 
completa separação entre as três medicinas. 
Esse é um dos aspectos mais interessantes na Medicina, na Grécia, do 
século 4e a.C.: mesmo sem ataques aos deuses protetores da saúde, em 
especial, o deus Asclépio, os médicos de Cós e os filósofos estabeleceram elos 
duradouros entre o binômio saúde-doença com a natureza circundante, como 
está presente na introdução do manuscrito Dos Ventos, Águas e Regiões, de 
autor desconhecido, escrito no século 4 (Daremberg. Oeuvres Choisies 
d’Hippocrate. Paris. Labe Éditeur. 1855. p. 1050): 
“Quem quiser aprender bem a arte de médico deve proceder assim: em 
primeiro lugar deve ter presentes as estações do ano e os seus efeitos, pois 
nem todas são iguais mas diferem radicalmente quanto a sua essência 
8 
 
especificada e quanto as suas mudanças. Deve ainda observar os ventos 
quentes e frios, começando pelos que são comuns a todos os homens e 
continuando pelas características de cada região. Deve ter presente também 
os efeitos dos diversos gêneros de Águas. Estas distinguem-se não só pela 
densidade e pelo saber, mas ainda por suas virtudes. Quando um médico 
chegar a uma cidade desconhecida para ele, deve determinar, antes de mais 
nada, a posição que ela ocupa em relação as várias correntes de ar ao curso 
de sol (...) assim como anotar o que se refere as águas (...) e a qualidade do 
solo (...) Se conhecer o que diz respeito a mudança das estações e do clima, o 
nascimento e o ocaso dos astros, conhecerá antecipadamente a qualidade do 
ano. Pode ser que alguém considere isto demasiadamente orientado para a 
ciência, mas quem pensar assim pode convencer-se, se alguma coisa for 
capaz de aprender, que a astronomia pode contribuir essencialmente para a 
Medicina, pois a mudança nas doenças do homem, está relacionada com a 
mudança do clima”. 
As doenças deixaram de ser compreendidas sem método e passaram a 
compor parte da busca da etiologia. Esse é um dos pontos fundamentais da 
medicina-oficial grega, do século 4, marcando a união entre a filosofia jônica e 
os conceitos de saúde e de doença. Entre as muitas conseqüências é possível 
identificar: 
- Cada doente ficou compreendido como um doente, diferente de todos 
os outros; 
- Desaparecimento gradual da receita médica que valia para todos, 
como uma receita de bolo. 
O centro de confluência dessa nova estrutura aproximou-se da teoria 
dos Quatro Elementos, do filósofo e médico Empédocles (495-435 a.C.). 
Segundo o magistral filósofo de Agrigento, os corpos são formados por quatro 
elementos eternos que permanecem em constante movimento: fogo, terra, 
água e ar. 
Estava em curso, pela primeira vez, uma proposta teórica para explicar a 
origem das doenças divorciada dos deuses e deusas. Toda e qualquer 
enfermidade seria conseqüência do desequilíbrio entre um ou mais elementos. 
9 
 
Como toda mudança profunda nos saberes, a passagem da medicina-
divina e da medicina-empírica, ambas ametódicas, mais ou menos mágicas, 
para a medicina-oficial metódica, unindo o diagnóstico, prognóstico e o 
tratamento valorizando a busca da etiologia, encontrou resistência em muitos 
setores da sociedade grega. Para contornar esses estorvos, os médicos 
expunham, como os sofistas, perante o público, os problemas determinados 
pelas doenças que poderiam causar a morte e a dor fora de controles. 
Não é demais repetir que Platão, sistematizou o pensamento corrente da 
época ao descrever a nova postura do médico e do político. Ambos, baseados 
nos respectivos saberes, deveriam sempre que necessário, intervir na 
sociedade para promover melhoras. O diálogo platônico estabelece alguns 
parâmetros da nova posição social do médico atuando como agente da 
Medicina como paidéia no magistral Político (296a-b-c) (Planton. Oeuvres 
Complètes. Paris. Gallimard. Bibliothèque de la Pléiade. 1950. v.1, v.2.): 
“Estrangeiro: — É interessante. Dizem, com efeito, que se alguém 
conhece leis melhores que as existentes não tem o direito de dá-las à sua 
própria cidade senão que for necessário para promover melhoras na 
sociedade. 
Sócrates, o Jovem: — Muito bem! Não estarão eles certos? 
Estrangeiro: — Talvez. Em todo o caso, se alguém dispensa esse 
consentimento e impõe a reforma pela força, que nome se dará a esse golpe? 
Mas,espera. Voltemos primeiro aos exemplos precedentes. 
Sócrates, o Jovem: — Que queres dizer? 
Estrangeiro: — Suponhamos um médico que não procura persuadir seu 
doente, senhor de sua arte, impõe a uma criança, a um homem ou uma mulher 
o que julga melhor, não importando os preceitos escritos. Que nome se dará a 
essa violência? seria por acaso o de violação da arte e erro pernicioso? E a 
vítima dessa coerção não teria o direito de dizer tudo, menos que foi objeto de 
manobras perniciosas e ineptas por parte de médicos que as impuseram. 
Sócrates, o Jovem: — Dizes a pura verdade. 
Estrangeiro: — Ora, como chamaríamos aquele que peca contra a arte 
política? Não o qualificaríamos de odioso, mau e injusto?” 
10 
 
A autoridade de Platão não foi suficiente para estancar as resistências 
dos curadores da medicina-divina e da medicina-empírica, que muito mais 
numerosos do que os médicos de Cós, promoveram manifestações públicas 
contra a nova força da Medicina como Paidéia junto ao poder político. 
 
O corte separando o antes e o depois, nos saberes da Medicina como 
paidéia, encontra-se no livro Das Doenças Sagradas, de autor desconhecido, 
do século 4 a.C.: 
“Quanto à doença que nós chamamos de sagrada (epilepsia), eis o que 
ela significa: ela não me parece nem mais divina, nem mais sagrada que as 
outras; ela tem a mesma natureza que as demais doenças e se origina das 
mesmas causas que cada uma delas. Os homens atribuíram-lhe uma natureza 
e uma origem divinas por causa da ignorância e do assombro que ela lhes 
inspira, pois em nada se assemelha às outras”. 
Pela primeira vez, uma enfermidade foi explicitamente assentada no 
domínio da tékhne, após ser retirada do domínio dos deuses e deusas 
curadoras. Não é demais repetir que também nessa época, na ilha de Cós, 
ocorreu o ápice da medicina-oficial grega. O genial Hipócrates, o principal 
representante da Escola de Medicina de Cós, foi reconhecido como o marco 
nos saberes médicos por Platão (Protágoras 313b-c e Fedro 270c) e, 
posteriormente, por Aristóteles (La Politique. Paris. J. Vrin. 1989. p. 484). 
Os integrantes da Escola de Cós construíram o maior legado da 
Medicina como paidéia: a teoria dos Quatro Humores, aqui considerada 
como primeiro corte epistemológico da Medicina. Na realidade, a proposta 
teórica uniu elementos reconhecidos da Filosofia e da Medicina. Para cada 
elemento de Empédocles foi associada uma categoria teórica, capaz de unir 
com coerência as qualidades da natureza com as do corpo. 
A teoria dos Quatro Humores, atribuída a Políbio, está descrita no 
manuscrito Da Natureza do Homem (Daremberg. Oeuvres Choisies 
d’Hippocrate. Paris. Labe Éditeur. 1855: 
“O corpo humano contem sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra, 
que estes elementos constituem a natureza do corpo e são responsáveis pelas 
dores que se sentem e pela saúde que se goza. A saúde atinge o seu máximo 
11 
 
quando estas coisas estão na devida proporção em relação umas às outras, no 
que toca a sua composição, força e volume além de estarem devidamente 
misturadas. A dor surge quando há excesso ou falta de uma destas coisas, ou 
quando uma delas se isola no corpo em vez de estar misturadas com as 
outras”. 
 A Medicina como paidéia saltou do domínio casual e ametódico para o 
método construído em torno da busca da etiologia nos desequilíbrios dos 
humores. O diagnóstico acompanhava o prognóstico e a terapêutica para 
identificar o excesso ou da falta do humor desequilibrado. Como conseqüência, 
os tratamentos se voltaram para excretar as sobras por meio de vomitórios, 
sudoreses, diureses, diarréias e sangrias. O prognóstico se materializava na 
boa ou na ausência de resposta à terapêutica. 
A aceitação da teoria dos Quatro Humores por alguns médicos da 
Escola de Cós, não atenuaram os embates com alguns filósofos, em certa 
medida, defensores da medicina-empírica e da medicina-divina, ambas livres 
das medidas de mensurações impostas pelo entendimento jônico da natureza. 
Esses conflitos aparecem em dois textos: 
- O filósofo Heráclito de Éfeso (540-470), de genialidade exclusiva, é 
contundente na antipatia aos médicos (Os Pré-Socráticos: fragmentos, 
doxografia e comentários. 2. ed. São Paulo. Abril Cultural. 1978. p. 297: “Os 
médicos, quando cortam, queimam, e de todo o modo torturam os pacientes, 
ainda reclamam um salário que não merecem, por efetuarem o mesmo que as 
doenças”; 
- O autor desconhecido de Sobre a Medicina Antiga, do século 4 a.C., 
testemunha certo conflituoso entre alguns médicos e filósofos, no qual 
repudiaram de maneira enfática, a generalização de todas as doenças estarem 
estritamente ligadas somente aos quatro elementos de Empédocles: 
(DAREMBERG, 1855. Oeuvres Choisies d’Hippocrate. Paris. Labe Éditeur. 
1855: “1. Que no caso de um doente afetado por uma alimentação crua e 
curado por uma alimentação cozida, não é possível dizer o que foi eliminado da 
direita, se o calor, se o frio, se a umidade ou a secura; 2. Que não existe um 
quente absoluto que possa ser misturado para curar o frio, uma pessoa tem de 
12 
 
tomar água quente ou vinho quente ou lente quente e a água o vinho e o leite 
tem propriedades diferentes que serão mais eficazes do que o calor”. 
 Em alguns trechos da mesma obra, Hipócrates também sustenta que o 
corpo humano é composto por grande número de coisas de naturezas 
diversas: salinas, amargas, doces, ácidas, adstringentes, insípidas, etc. e não 
só de quatro componentes. Essa posição hipocrática é intrigante porque, em 
última análise, pode ser entendida como resistência à teoria dos Quatro 
Humores do genro Políbio. 
De certo modo, a contestação hipocrática traduz o conflito que alcançou 
outros filósofos para reduzir a saúde e a doença somente aos quatro 
determinantes da teoria doa Quatro Humores (sangue, fleuma, bílis amarela e 
bílis negra). É possível que os médicos da Escola Médica de Cós tenham 
sofrido influência de Alcméon, filósofo e médico de Crotona, no Sul da Itália, 
que admitia um grande número de forças atuando nos corpos (Thivel, Antoine. 
Cnide et Cós? Paris. Les Belles Lettres. 1981. p. 289-383). No livro Da 
Natureza do Homem, atribuído a Políbio, na mesma época, ressalta as idéias 
de Alcméon (Jouanna, J. Hippocrate et l’École de Cnide. Paris. Les Belles 
Lettres. 1974 p. 137- 174), o defensor da idéia de a saúde ser dependente do 
equilíbrio de múltiplas forças dinâmicas e a doença seria o predomínio de uma 
sobre as outras. 
Platão (República 407b-c-d-e) adotou o modelo médico dos tempos 
homéricos. É possível que essa leitura platônica tenha contribuído para ativar o 
conflito de competência entre a Medicina, voltada à interpretação da natureza 
por meio da tékhne, e a religião. Em aparente contraditório, Platão retoma a 
Medicina como téhkne ao distinguir as diferenças entre as práticas Medicinais 
entre pobres e ricos. O filósofo critica o modo como os médicos dos escravos 
correm de um paciente para outro e dão instruções rápidas sem falar com os 
doentes e os compara com os médicos dos homens livres (Leis 720a-b-c-d-e): 
“Se um deles ouvisse falar um médico livre a pacientes livres, em termos 
muito aproximados das conferências científicas, explicando como concebe a 
origem da doença e elevando-se a natureza de todos os corpos, morreria de rir 
e diria no que a maioria das pessoas chamadas médicos replica prontamente 
em tais casos: — O que fazes, néscio, não é curar o teu paciente, mas ensiná-
13 
 
lo como se a tua missão não fosse devolver-lhe a saúde, mas fazer dele 
médico”. 
Em certos aspectos, médicos e filósofos estavam de acordo. Tanto 
Platão (Platon. Oeuvres Complètes. Paris: Ed.Gallimard. Bibliothèque de la 
Pléiade. 1950. v.1, v.2. Banquete, 186-187) quanto Hipócrates (Darembrg. 
Oeuvres Choisies d’Hippocrate. Paris: Labe Éditeur. 1855), reconheceram 
como insofismável a obrigação do médico em esclarecer o doente de todos os 
aspectos da enfermidade. Aristóteles (Aristote. La Politique. Paris: J.Vrin. 1989. 
I, 11, 1282) vai mais longe e distingue o médico do homem culto em Medicina, 
estabelecendo o espaço que cada um pode ocupar nas suas funções 
específicas. 
A relação da medicina-oficial com a natureza que os gregos tão bem 
assimilaram ao atingir o social, em sistemas de valores e respostas claramente 
configurados, reforçava-se como paidéia. Nesta perspectiva, foi evocada por 
Sólon ao descrever os elos entre as doenças pessoais e coletivas com a 
desorganização social. Baseado nesta relação, esse legislador fundamentou 
parte do seu pensamento político afirmando que as crises políticas interferiam 
na qualidade da saúde de uma população. 
 
Platão (Górgias 464b, 465a, 501) utilizou parte da estrutura teórica da 
medicina-oficial grega como instrumento para compor algumas linhas mestras 
da sua concepção ético-filosófica. Nesse genial processo, estabeleceu valor 
significante à verdadeira tékhne, como forma de conhecimento na natureza do 
objeto destinado a servir ao homem. 
Os conceitos platônicos confirmaram o médico como a pessoa que, 
baseada no que sabe sobre a natureza do homem sadio, conhece também o 
contrário, o homem doente, e competente para encontrar os meios para 
restituí-lo à saúde. 
Com base neste modelo, Platão traçou a imagem do filósofo tendo a 
mesma função no trato da alma. Existiu, neste ponto do pensamento platônico, 
uma semelhança viva entre o médico e o filósofo, ao se completarem na busca 
da harmonia plena do homem com a natureza. 
14 
 
Os médicos gregos interpretaram um dos mais complexos problemas do 
diagnóstico: as múltiplas formas como uma mesma doença pode se manifestar. 
Para superar o estorvo, os teóricos das escolas de Knido e Cós viabilizaram 
classificações descrevendo essas manifestações, mas reconhecendo-as como 
uma doença (Thivel, Antoine. Cnide et Cós? Paris. Les belles Lettres. 1981). O 
genial dessa nova interpretação, nunca antes usada, é o fato de ter evitado o 
erro cometido nas medicinas-oficiais anteriores, praticadas nas primeiras 
Cidades, onde as muitas manifestações clínicas da mesma moléstia eram 
consideradas doenças diferentes. Esse método foi identificado por Platão como 
dissecação ou divisão dos conceitos universais nas suas diferentes classes 
(Cornford, F. M. Principium Sapientiae: as origens do pensamento filosófico 
grego. 2. ed. Lisboa. Fundação Calouste Gulbenkian, 1981). 
A Medicina como paidéia também contribuiu para que Platão 
reconhecesse as três virtudes do corpo  saúde, beleza e força  que 
harmonizariam com as quatro virtudes da alma  piedade, valentia, 
moderação e justiça. 
As atitudes educadoras da Medicina como paidéia ultrapassaram os 
limites da terapêutica e incluíram a massagem, a prática dos esportes, a 
música , a dança, o teatro e os banhos coletivos no cotidiano da busca da 
saúde. No texto Das Epidemias (Darember. Oeuvres Choisies d’Hippocrate. 
Paris. Labe Éditeur. 1855), da Escola de Cós, esta idéia está clara: 
“A arte do médico consiste em eliminar o que causa dor e em sarar o 
homem, afastando o que o faz sofrer. A natureza pode por si própria conseguir 
isto. Se sofro for estar sentado, não é preciso mais que levantar-se; se sofre 
por se mover, basta descansar. E tal como neste caso, muitas coisas da arte 
do médico a natureza as possui em si própria”. 
Também é possível sentir, ao longo do século 3 a.C., o vigor da ação 
médica ligada à noção global da natureza jônica. O livro Das Epidemias 
confirma os conceitos de harmonia e medida (Daremberg. Oeuvres Choisies 
d’Hippocrate. Paris. Labe Éditeur. 1855): “ ... o esforço físico é o alimento para 
os membros e para os músculos, o sono é para as entranhas. Pensar é para o 
homem o passeio da alma”. 
15 
 
 Nesse sentido, o médico era chamado para recompor a saúde, por meio 
de técnicas desconhecidas dos não médicos. Para esse fim, utilizava os 
saberes como instrumento de leitura da natureza, como a justa medida da 
saúde. Hipócrates e os médicos da Escola de Cós, na obra Da Medicina 
Antiga, seguiram esse pressuposto ao afirmarem que o médico não pode saber 
de Medicina nem tratar os seus doentes sem conhecer a natureza do homem 
(Daremberg. Oeuvres Choisies d’Hippocrate. Paris. Labe Éditeur. 1855: “... os 
argumentos deles apontam para a Filosofia tal como a de Empédocles e de 
outros que escreveram sobre a natureza e descreveram o que o homem é 
desde a origem, como primeiro surgiu e de que elementos é constituído”. 
A concepção teórica de saúde dos gregos também envolveu a harmonia. 
Sendo de natureza harmônica em si mesma, isto é, preenchendo na medida e 
simetria exatas as vicissitudes individuais, a saúde deveria ser procurada neste 
contexto da compreensão do normal. Sob essa mesma perspectiva, Platão 
(Fédon, 93e; Leis 773a; Górgias 504c) entendeu a saúde como a ordem do 
corpo e Aristóteles (Aristote. Ética a Nicômaco. X 1180b) associou o 
multiplicidade do comportamento moral às múltiplas dietas prescritas pelos 
médicos para as febres, mas não para todas as febres. 
A tendência classificatória do pensamento grego, especialmente o 
aristocrático, estimulou as tentativas de ordenar as doenças em grupos que 
apresentassem alguma semelhança no diagnóstico, no tratamento e no 
prognóstico. 
Com a literatura médica contendo as recomendações específicas das 
normas que deveriam ser obedecidas para evitar a doença, a medicina-oficial 
grega inicia outra importante contribuição para consolidar-se como paidéia  a 
saúde não dependeria só dos médicos. A dieta, a higiene, o laser, a cultura, 
o esporte são partes do corpo são. 
Os hospitais construídos nesse período eram grandes e possuíam 
divisões destinadas aos médicos e enfermos. O hospital da Escola Médica, na 
ilha de Cós, possuía salas de salas de exames, alojamentos individuais para os 
doentes, salas de banhos coletivos, praça de esportes e anfiteatro para dez mil 
pessoas. É um dos muitos exemplos de como a arquitetura grega amparava o 
discurso teórico da harmonia com a natureza na busca da saúde. 
16 
 
O novo espaço da Medicina como Paidéia junto aos conceitos jônicos 
com objetivos educadores, contribuíram para o surgimento das mais 
importantes obras médicas destinadas ao público não médico. Essas obras, Da 
Dieta, De um Regime de Vida Saudável e Da Natureza do Homem contêm 
fantásticas sugestões de como deve ser a vida das pessoas para evitar as 
doenças. Entre muitos aspectos, descrevem detalhes da caminhada após cada 
refeição dependendo da idade e das condições físicas de cada pessoa nas 
diferentes estações do ano. 
A palavra higiene se impõe no sentido regulador não só da alimentação, 
mas também como caráter educativo na rotina do trabalho. A ginástica passou 
a fazer parte da manutenção da saúde. Por esta razão, os ginastas 
permaneceram independentes frente ao crescente poder médico nas relações 
sociais e também conquistaram papel importante no aconselhamento do corpo 
sadio. 
O texto De um Regime de Vida Saudável se propõe servir de guia ao 
público. O autor desconhecido estabeleceu os parâmetros da cultura médica 
mínima que todos deveriam ter para permanecerem saudáveis. O objetivo 
central seria estabelecer, pela lei, o caminho que as pessoas deveriam seguir 
para evitar a doença. 
O propósito parece ser o mesmo do autor do livro Da Dieta que aborda, 
em quatro capítulos,a teoria dos Quatro Humores. Se as patologias eram 
causados pelo desequilíbrio dos humores  o sanguíneo, o linfático, o bilioso 
amarelo e o bilioso negro  e estavam relacionadas com ao cotidiano das 
pessoas, nada mais lógico do que estabelecer normas alimentares com o 
intuito de evitar os males da alimentação. 
A estrutura teórica da Medicina como paidéia, na Grécia, no século 3 
a.C., estava tão bem elaborada que perpassou o mundo romano. No século 2 
d.C., o médico Galeno (138-201), o mais conhecido representante da medicina-
oficial romano-cristã, acoplou aos humores da Escola de Cós as novas 
categorias denominadas temperamentos. Os escritos galênicos, valorizados 
durante mais de quinze séculos, no Ocidente cristão, valorizava a sangria 
sobre todas as alternativas de tratamentos. Para cada humor haveria um 
17 
 
temperamento que ditaria as condições de saúde, de doença, e da capacidade 
intelectual de cada indivíduo: 
 
Humor Temperamento 
 
Sanguíneo Sanguíneo 
Fleuma Linfático 
Bilioso preto Melancólico 
Bilioso amarelo Colérico 
 
A imensa flexibilidade da Medicina como paidéia acabou ferida, na Idade 
Média, pela intolerância restritiva exaltando a medicina-divina, onde Jesus 
Cristo e os Santos ao substituírem os deuses e deusas greco-romanos, 
tornaram-se a única terapêutica requerida pelos incontáveis doentes sem 
esperanças, nos incontáveis santuários, especialmente em Jerusalém e 
Compostela. 
A influência hipocrático-galênica trazida pelo elemento colonizador 
esteve claramente presente no Brasil, quando a princesa Paula Mariana, filha 
do primeiro imperador do Brasil, sob os cuidados dos mais importantes 
médicos da corte, faleceu após ser submetida às muitas sangrias e clisteres 
para expurgar os “maus humores”. No século 19, quando o viajante Von 
Martius descreveu o temperamento dos índios como “fleumático, por terem 
pouco sangue nas veias”. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
18 
 
II 
 
 
MEDICINA COMO ESPECIALIDADE SOCIAL 
 
 
AÇÕES INTENCIONAIS E REPETIDAS NOS CORPOS PARA 
EMPURRAR OS LIMITES DA VIDA: ADESÕES E CONFLITOS 
 
 
Entre os anos 1950 e 1970, de modo geral, nos países industrializados, 
os cursos de Medicina, desvincularam-se ainda mais das relações históricas do 
doente e das doenças. Esse fato pode ter contribuído para acentuar a 
desinformação sobre quanto representa o papel da Medicina, desde a pré-
história, no processo de busca, para manter a solidariedade na relação médico-
paciente, aumentar a materialidade e diminuir a abstração na abordagem da 
saúde e da doença. 
O processo que culminou com a Medicina como especialidade social, 
com avanço e recuos, tem proporcionado: 
- Entender, dominar e modificar a multiplicidade dinâmica das formas e 
funções do corpo; 
- Estabelecer os parâmetros do normal e da doença; 
- Vencer as limitações impostas pelo determinismo da dor e da morte. 
É mais difícil ao médico da atualidade compreender a Medicina sem 
olhar para trás e apreender a dinâmica social co-relacionada às práticas de 
curas. 
Esses saberes históricos, negligenciados pelos que optaram 
exclusivamente pela tecnologia médico-hospitalar, facilitam o entendimento da 
função do médico, como um dos especialistas sociais que trabalha para evitar 
a dor e empurrar os limites da morte. 
 Sob esse enfoque – as práticas de curas – não comportam a 
dissociação entre o presente e o passado distante. As práticas de curas 
constituem história de longa duração, iniciado na pré-história, antes de a nossa 
19 
 
espécie ter promovido o sedentarismo. Os registros arqueológicos daquela 
época se mostram suficientes para que as análises paleopatológicas possam 
caracterizar algumas ações intencionais e repetidas do ancestral sobre o corpo 
do outro com o fito de adiar os limites da vida. 
É possível que as comunidades ágrafas de caçadores e coletores 
tivessem na busca da sobrevivência cotidiana e na observação das mudanças, 
em torno da natureza circundante e do corpo, grande parte da atenção. As 
relações entre a vida-morte e saúde-doença deveriam estar entre as mais 
significativas, já que interferiam na segurança pessoal e coletiva. Esse conjunto 
pode ter provocado a especialização de alguns membros que se interessaram 
em controlar as situações de risco à vida. 
Nessa fase, quando o nosso ancestral começou a tentar modificar os 
determinismos dos binômios vida-morte e saúde-doença, iniciou o 
extraordinário processo com o objetivo de diminuir a abstração e aumentar a 
materialidade das ações que pudessem evitar a dor e empurrar os limites da 
vida. 
Essas pessoas diferenciadas fizeram-se curadores! 
Naquele contexto, os nossos ancestrais distantes, os curadores, 
marcados pela generosidade e cooperação como instrumentos mentais que os 
distinguiam dos outros animais, alguém que cuidava do outro, fragilizado ou 
ferido, impossibilitado de se movimentar ou cuidar da própria segurança, iniciou 
a construção dos elos de confiança entre o curador e o doente, bases 
sustentadoras da Medicina como especialidade social. 
Os registros paleopatológicos indicam a existência de práticas de curas, 
na pré-histórica, alguns milhares de anos antes dos documentos escritos na 
Mesopotâmia. Um desses conjuntos bem documentado data de 
aproximadamente 45.000 anos, no Pleistoceno Superior. Trata-se do esqueleto 
de um Neandertal, descoberto no monte Zagros, no Iraque, com traços de 
amputação intencional, no braço direito, com a marca indiscutível de o osso ter 
sido seccionado com a ajuda de objeto cortante e, no coto amputado, sinal de 
crescimento ósseo, comprovando que o hominídeo viveu muito tempo após a 
amputação, suficiente para proporcionar o crescimento ósseo do úmero. Sem 
que jamais saibamos a razão pela qual o hominídeo teve o braço amputado, 
20 
 
comprova que um ou mais membros praticaram a ação dirigida no corpo de 
outro, para adiar os limites da vida. 
Existem outras ações curadoras bem documentadas, como a encontrada 
no osso rádio de ancestral que viveu em torno de 25.000 anos, com sinal de 
fratura traumática consolidada após ter sido reduzida de modo correto e 
imobilizada, demonstrando que recebeu ajuda por outro membro do grupo 
social. 
 Sem dúvida, fora das lesões determinadas pelos traumas, acidentes e 
embates dos nossos ancestrais entre eles e com outros animais, doenças 
causadas por vírus, fungos e bactérias deixaram marcas nos ossos dos pré-
históricos que existiram antes da nossa espécie. 
A questão maior é tentar desvendar como esses grupos de caçadores e 
coletores se relacionavam com as doenças na luta pela sobrevivência. 
A análise do registro paleopatológico pode estabelecer algum 
paralelismo da ação curadora exercida pelo homem pré-histórico com certos 
grupos étnicos ágrafos, de caçadores-coletores, como os bosquímanos, na 
África, e indígenas no noroeste do Amazonas. 
A paleopatologia mostra que homens e mulheres pré-históricos estavam 
sujeitos a diversas doenças semelhantes as do homem moderno. A fratura 
traumática constituiu uma das mais freqüentes nos fósseis estudados. Em 
alguns, foram confirmados sinais evidentes de graves formas de osteomielite, 
lembrando as encontradas nos hospitais de hoje. 
Do mesmo modo, se comprovou a existência de doenças sistêmicas, 
não traumáticas, como a denominada gota das cavernas, uma espécie de 
reumatismo do homem pré-histórico que certamente dificultava a locomoção. 
Nesse caso, alguém fornecia o alimento e a guarda desse ancestral fragilizado, 
sugerindo ação plena de generosidade e cooperação. 
Com exceção do corpo congelado de um caçador, queviveu em torno 
de 6.000 anos, encontrado nos Alpes, na Suíça, as pesquisas arqueológicas 
jamais encontraram outros corpos ou órgãos anteriores a essa época. Por 
outro lado, foram identificadas várias bactérias pré-históricas fossilizadas. O 
pólen de Nenúfar, designação de diversas plantas da família das ninfeáceas, 
capazes de determinar reação alérgica no homem atual, existe desde o 
21 
 
Pleistoceno Médio, isto é, há mais de 100.000 anos. A tuberculose óssea na 
coluna vertebral, problema médico freqüente nos países subdesenvolvidos, foi 
documentada por achado de esqueleto de homem do período Neolítico, 
constituindo, sem dúvida, o primeiro exemplar médico dessa doença. 
A ocorrência de moléstias na pré-história é indiscutível. Porém, interessa 
conhecer como os homens primitivos iniciaram a luta para controlar a dor, 
conservar a saúde e empurrar os limites da vida. Sob essa perspectiva, é 
possível articular respostas comparativas com o comportamento de certos 
animais, quando estão feridos ou doentes: lambem os ferimentos, fazem 
limpeza mútua e comem plantas eméticas. Parece lógico pressupor que o 
homem primitivo tivesse se comportado da mesma maneira: lambendo a área 
ferida, pressionando o local para parar a hemorragia dos ferimentos 
traumáticos e utilizando recursos da natureza circundante para interromper a 
dor, como a amputação intencional realizada no hominídeo encontrado na 
sepultura pré-histórica do monte Zagros. 
Perdura a questão de quando iniciou, na hominização, uma das mais 
importantes mudanças no sistema nervoso central, o aparecimento do 
neocórtex e das ligações com diferentes níveis encefálicos, capaz de construir 
as concepções abstratas, que poderiam ter culminado em mudanças do 
pensamento-comportamento capazes de construir idéias abstratas na busca de 
cura das doenças. 
Na gruta de Trois Frères, nos Pirineus franceses, continua desafiando a 
imaginação coletiva a pintura do personagem, em movimento de dança, datada 
de 10.000 anos, travestido de cervo, em atitude que sugere uma espécie de 
ritual, semelhante aos movimentos do chamam, na dança dos bisões, dos 
índios, no norte dos Estados Unidos, e do pajé, no norte do Amazonas, ambos 
em cerimônias simbolizando o poder animal na cura das doenças. 
O conjunto das informações paleopatológicas, no Neolítico, em torno de 
10.000 anos, sugere fortemente a efetiva incorporação de métodos empíricos 
estruturando a ação intencional do homem sobre outro homem. Essas atitudes, 
algumas vezes foram muito agressivas, como a trepanação do crânio com 
instrumentos suficientemente fortes para cortar regularmente os ossos do 
crânio em formas geométricas bem definidas. Essa extraordinária prática é 
22 
 
facilmente comprovada por meio do estudo dos fósseis. E mais, alguns desses 
homens pré-históricos que sofreram a craniotomia sobreviveram muito tempo 
após a realização, o suficiente para favorecer o crescimento do osso cortado. 
É interessante assinalar que craniotonias semelhantes as do Neolítico 
europeu, também foram executadas, até o século 16, em outras sociedades 
que não tiveram contato interétnico, como as da Polinésia francesa e as do 
altiplano peruano nos tempos pré-coloniais. 
Restará sempre a dúvida do por que as craniotomias terem sido 
realizadas. De qualquer modo, não há como negar que representou conjunto 
de ações absolutamente extraordinárias, na medida em que uma parte do 
corpo, o conteúdo do crânio, foi exposta intencionalmente, desvendando o 
escondido atrás da pele e do osso. 
É possível que o curador pré-histórico tenha exercido, simultaneamente, 
funções de liderança. Essa demonstração explícita de poder – um homem 
mortal igual aos outros, intervindo no corpo do outro – resultaria em grande 
destaque no grupo social. 
Respeitando as devidas proporções, essa relação de dominação do 
curador sobre o objeto da sua prática – o doente –, sob alguns aspectos, 
perdura até os dias atuais. Esse poder do curador, na pré-história como nos 
dias atuais, poderia aumentar o nível de persuasão sobre o doente, tendo 
como base dois dos pontos de maior sensibilidade humana: o pressuposto de a 
ação intencional do curador poder interromper a dor fora de controle ou 
aumentar os limites da vida. 
Esse processo complexo, da fuga da dor e da morte, pode ter sido um 
dos pilares sustentadores que edificaram os ancestrais distantes para 
aperfeiçoar a linguagem e transmitir os saberes., também na construção do 
curador. 
Com o sedentarismo avançando, no Neolítico, importantes modificações 
foram se processando nos grupos sociais que habitavam as terras férteis da 
Mesopotâmia e do Egito. Essas sociedades arcaicas iriam absorver parte da 
experiência acumulada. Nessa fase, ocorreu o início da modificação da 
economia produtora, passando do nível de subsistência coletiva à concreta 
divisão do trabalho, com o aparecimento do excedente de produção e das 
23 
 
trocas comerciais. As sociedades mostravam-se francamente hierarquizadas. 
Também surgiram as propriedades privadas, que possibilitaram os 
assentamentos duradouros dos antigos grupos de caçadores e coletores, que 
evoluíram para a organização das primeiras aldeias. 
As cidades foram sendo formadas e fortalecidas, nas margens de lagos 
e rios piscosos e nas rotas de migração dos grupos caçadores e coletores. 
Entre as mais festejadas, destacaram-se as que obtiveram avanços na guarda 
territorial e poder de guerra de conquista de novos territórios: a babilônia e a 
egípcia. Esses povos, aqui compreendidos como civilizações regionais, 
decididamente, influenciaram as culturas posteriores por terem assimilado, ao 
longo de vários milênios, diferentes formas de governos, predominando o 
teocrático de regadio e mercantil-escravista. 
As transformações urbanas também provocaram reconstruções das 
idéias e crenças religiosas com o aparecimento dos templos, para abrigar os 
deuses e deusas, e uma nova hierarquia social formada e homens e mulheres 
identificados como intermediários das divindades: sacerdotes e sacerdotisas. 
É possível que o atávico medo da morte e da dor fora de controle tenha 
desempenhado papel importante para que essas pessoas, aceitas como 
representantes das divindades, também fossem entendidas capazes de realizar 
curas, por meio da ação dos deuses bons e evitar a intervenção dos deuses 
maus. Dessa forma, é possível que os primeiros médicos, assim entendidos 
pelo poder político dominante, tenham se formado nos templos, como núcleos 
de ensino do conhecimento historicamente acumulado. 
Nessas sociedades rigidamente hierarquizadas, como na egípcia e 
mesopotâmica, as mudanças sociais induzidas pela urbanização, moldaram a 
ação dos curadores em torno de três vertentes, sem que existissem limites 
precisos, formadas por homens e mulheres especialistas, compreendidos como 
capazes de controlar a dor e empurrar os limites da morte. 
- Medicina-divina: 
Com indissolúvel aliança com deusas e deuses protetores e 
taumaturgos. Os agentes representados pelos representantes das divindades: 
sacerdotes e sacerdotisas, que construíam ladainhas e cânticos para facilitar a 
intervenção dos deuses bons e evitar os demônios causadores de doenças; 
24 
 
- Medicina-empírica: 
Utilizando o conhecimento historicamente acumulado a partir dos 
recursos terapêuticos da natureza circundante. Os agentes estavam entre 
parteiras, herveiros, os que sabiam reduzir e imobilizar as fraturas, incisar 
abscessos, massagistas e outros que dominavam o conhecimento 
historicamente acumulado dos remédios retirados das plantas. 
- Medicina-oficial: 
Muito mais recente do que as anteriores, tendo oúnico agente, o 
médico, presente e nominado nas primeiras cidades, da Mesopotâmia e do 
Egito, mantendo claro vinculo com o poder político dominante e por ele 
remunerado. Por essas razões sujeito às sanções disciplinares moldadas pelo 
mesmo poder dominantes, como o claramente exposto no Código de 
Hammurabi. 
As enormes mudanças sociais que alcançaram os descendentes, já 
sedentários, dos antigos caçadores-coletores, também impuseram 
reconstruções nas práticas de curas, naquele momento, já envolvendo os 
agentes da Medicina-divina, Medicina-empírica e Medicina-oficial, 
continuamente interligados, sem que se possa determinar o início da ação de 
um e o fim da do outro: 
- Apreensão do conjunto de conhecimento historicamente acumulado, 
oriundo da pré-história, voltado às ações que poderiam interromper ou 
amenizar a dor fora de controle: agentes da Medicina-empirica; 
- Utilização de ritos das idéias e crenças religiosas, para buscar a cura: 
agentes da Medicina-divina; 
- Processo formador, nos templos das divindades dominantes, sob a 
guarda do poder político, capaz de transmitir e registrar nas respectivas 
linguagens escritas, os saberes envolvendo os dois anteriores acrescidos de 
outras observações das doenças e dos doentes: agentes da Medicina-oficial. 
As guerras que ofereceram os saques, novos escravos e territórios, 
fortaleceram a troca de conhecimentos entre os agentes de curas. Também é 
provável que os mais destacados tenham sido absorvidos nas sociedades 
vencedoras. Por outro lado, os traumas provocados pelo combate corpo a 
corpo, acrescentaram outros saberes, principalmente, no manuseio das 
25 
 
grandes feridas, incisão de abscessos, imobilização das fraturados e nas 
amputações dos membros dilacerados. 
Os metais foram fundidos e o cobre utilizado em várias atividades 
produtivas. A agricultura tomou corpo com os arados primitivos. Apareceu o 
barco com vela e o uso do ferro. Esses fatos da nova vida social contribuíram 
para aumentar as trocas do excedente da produção, fortalecendo a maior 
especialização e a propriedade privada dos mais poderosos. 
Outro extraordinário desdobramento da construção do pensamento 
subjetivo, já claramente presente no neolítico, a crença no renascimento após a 
morte, conduziu ao sepultamento ritual das pessoas prezadas, acompanhado 
de grandes quantidades de carne e artefatos de pesca e caça junto aos 
esqueletos, que, de acordo com o professor Leroi Gurhan presente desde 
20.000. Esse cuidado importou manuseios específicos do corpo morto, junto 
aos rituais religiosos, para a conservação após a morte. Essa conduta alcançou 
níveis de grande sofisticação entre os egípcios. 
Nas sociedades que floresceram, em torno de 4.000 anos, nas margens 
dos rios Tigre, Eufrates, Nilo e Indo, além dos agentes da Medicina-empírica e 
Medicina-divina, os registros identificam os médicos, como agentes da 
Medicina-oficial, nominados de acordo com as funções e especialidades e 
remunerados pelo poder político dominante, 
A atividade médica deveria ser intensa e diferenciada nos vários 
segmentos sociais, suficiente para originar conflitos muito freqüentes, gerando 
mal-estar social e obrigando o legislador intervir. O rei Hammurabi (1728-1688 
a.C.), da Babilônia, dedicou vários parágrafos do seu famoso código para 
disciplinar o exercício da Medicina, impondo prêmios e castigos. Nos 
parágrafos 218 a 223, está claro que: o médico era reconhecido e ocupava 
espaço importante nas relações sociais numa sociedade claramente 
hierarquizada. 
Somente é possível entender as severidades das penas como espelho 
do problema social gerado pelo grande número de conflitos oriundos da má 
prática, todas de procedimentos cirúrgicos: 
218 – Se um médico fez em um awilum (homem livre em posse de todos os 
direitos de cidadão) uma incisão difícil com uma faca de bronze e o causou a 
26 
 
morte do awilum ou abriu o nakkaptum (sobre a sobrancelha) de um awilum 
com uma faca de bronze e destruiu o olho do awilum: eles cortarão a sua mão; 
219 – Se um médico fez uma incisão difícil com uma faca de bronze no escravo 
de muskenum (intermediário entre o awilum e o escravo) e causou a sua morte: 
ele deverá restituir um escravo como o escravo morto; 
220 – Se ele abriu a nakkaptum de um escravo com uma faca de bronze e 
destruiu o seu olho: ele pagará a metade do seu preço; 
221 – Se um médico restabeleceu o osso quebrado de um awilum ou curou um 
músculo doente: o paciente dará ao médico 5 ciclos (cerca de 40 gramas) de 
prata; 
222 – Se foi filho de um muskenum: dará 3 ciclos (cerca de 24 gramas) de 
prata; 
223 – Se foi um escravo de um awilum: o dono de escravo dará 2 ciclos (cerca 
de 16 gramas) de prata. 
Com isso o Código de Hammurabi, como a primeira manifestação de 
poder dominante de práticas médicas laicizadas, firmou conceito e 
jurisprudência de dois pontos cruciais da ordem médica: 
- Sanções que os médicos devem receber pela má prática; 
- Honorários diferenciados pela prática de bons resultados em pessoas 
dos diversos grupos sociais. 
Tanto as sanções quanto as punições eram diretamente proporcionais 
ao enquadramento social e financeiro do doente, quando mais próximo do 
poder dominador estivesse o doente, maior o honorário pela prática de bom 
resultado e mais severa a penalidade pela prática que resultasse em sequela 
incapacitante ou morte, incluindo a amputação das mãos. Ao contrário, se o 
doente fosse um escravo, a remuneração era menor e o castigo mais brando. 
Os registros apontam não terem ocorrido grandes diferenças entre as 
ações médicas nas sociedades que se desenvolveram nas margens dos rios 
Tigre, Eufrates e Nilo, no segundo milênio a.C. Nessas civilizações regionais, 
apesar dos avanços, não existia nenhum esboço teórico desvinculado das 
idéias e crenças religiosas para compreender a saúde e as doenças. Cada 
moléstia era compreendida como unidade única com indissolúvel componente 
dependente da vontade de um ou mais deuses ou deusas. Como conseqüência 
27 
 
da divinização da saúde e da doença, só outra ação divina ou humana ajudada 
pelo deus ou deuses protetores poderia desfazer o nó causador de sofrimento. 
Um dos antigos documentos escritos que registra a participação do 
médico, no antigo Egito, data de início do segundo milênio a.C., na estela 
funerária de Was-ptah, onde está descrita uma morte por colapso cardíaco. 
Ainda no Egito, nesse período, já existia diferenças entre as práticas médicas, 
traduzindo certa especialização. Um médico da corte Khaui, na IV Dinastia, faz 
clara distinção entre cirurgiões e médicos, que se dividiam em três 
especialidades: os que tratavam das doenças dos olhos, dos dentes e do 
corpo. 
As traduções dos papiros médicos trouxeram esclarecimentos de como 
ocorriam as práticas médicas, pelo menos nas camadas sociais mais 
abastadas, com registros de muitas doenças e os respectivos tratamentos, com 
extraordinário bom senso. 
- Papiro de Ebers: 
O nome é do primeiro comprador George Ebers, que adquiriu, em 1872, 
de um comerciante egípcio. Hoje, está na Universidade de Leipzig, na 
Alemanha. O autor ou autores do Papiro de Ebers escreveram o texto em torno 
do ano 1550 a.C., no reinado de Amenophis I. Alguns especialistas acreditam 
ser cópia de outro papiro mais antigo. O Papiro de Ebers tem 20 metros de 
comprimento e contem um conjunto de informações de natureza médica, 
incluindo 875 receitas. Entre outros registros de impressionante acuidade e 
bom senso, se destaca a descrição do infarto do miocárdio: “Se examinares um 
homem que sofre do estômago, se queixa de dores no braço e no peito, mais 
precisamente na partelateral... Diz-se então que se trata de doença wid... 
Deves dizer: é a morte que se aproxima dele...”. 
- Papiro de Smith: 
Encontrado numa tumba, em Tebas, datado de 1570 a.C., comprado por 
Edwin Smith, em 1862, um jovem egiptólogo americano. Como o Papiro de 
Ebers, é sugestivo ser compilação de outros registros anteriores. O texto trata 
de bem ordenado conjunto de informações de anatomia e procedimentos 
cirúrgicos. A instrução 35 descreve com precisão o tratamento da fratura 
bilateral da clavícula: “Se você estiver examinando um homem com fraturas 
28 
 
nas clavículas, encontrando uma mais curta e em posição diferente da outra, 
então você tem de dizer: trata-se de fratura de ambas as clavículas, uma 
enfermidade que eu trato. Você deve então deitá-lo de costas dobrando algum 
objeto para colocá-lo entre as omoplatas. Depois deverá afastar as omoplatas 
para que as duas clavículas retornem ao lugar certo. Faça então dois 
chumaços de tecido, um deles deve ser colocado no lado de dentro da parte 
superior do braço; o outro, na parte inferior do úmero. Depois, imobilizar a 
fratura com atadura com mineral... 
- Pequeno Papiro de Berlim: 
Escrito em 1540 a.C., na 17ª. Dinastia, contém prescrições em forma de 
encantamentos para proteger as mães e os filhos. 
- Grande papiro de Berlim ou Brugsch: 
Escrito em 1540 a.C., também na 17ª. Dinastia, é o mais específico: 
medicação para tratar parasitas intestinais. É possível analisar a importância 
desse receituário na medida em que a civilização egípcia se desenvolveu nas 
margens do rio Nilo, aproveitando as margens ricas de humos das várzeas, 
onde também estavam os animais domesticados, determinando facilidade à 
infestação intestinal. 
 
- Papiro de Londres: 
Descreve ritos de natureza religiosa para tratar doenças dos olhos e das 
mulheres. 
- Papiro de Kahoun: 
 O mais antigo dos papiros médicos, escrito em torno de 2.000 a.C., trata 
do diagnóstico e tratamento das doenças ginecológicas, da gestação e do 
parto. 
- Papiro de Cheaster Beatty: 
Escrito em torno de 1330 a.C. descreve as doenças do ânus e os 
respectivos tratamentos. 
Apesar da extraordinária qualidade das informações contidas nos 
papiros médicos, se torna evidente a ausência do processo teórico para 
entender a saúde e a doença fora dos poderes dos deuses e deusas dos 
29 
 
panteões egípcios. O conjunto informativo sugere que os tratamentos eram 
empregados como receitas de bolos. 
De modo geral, o conhecimento historicamente acumulado moldando os 
saberes empíricos da natureza circundante, sob a guarda dos médicos, estava 
presente nas terapêuticas contidas nesses papiros. Mesmo à luz dos 
conhecimentos atuais, não há como duvidar da extraordinária eficácia. Entre 
outros exemplos: 
- Recomendação do chá de sementes da papoula aos recém-nascidos 
insones; 
- Digital aos idosos com taquicardia e edema nas pernas; 
- Identificação dos diferentes tipos e sequelas dos traumas crânio-
encefálicos; 
- Imobilização dos membros fraturados. 
Não é demais repetir que nessas culturas regionais também está clara a 
inter-relação da Medicina-divina, Medicina-empírica e Medicina-oficial, sempre 
atadas entre si, sem que seja possível estabelecer os limites onde uma 
começava e a outra terminava: 
- Medicina-divina: com indissolúvel aliança com deusas e deuses 
protetores e taumaturgos; 
- Medicina-empírica: utilizando o conhecimento historicamente 
acumulado a partir dos recursos terapêuticos da natureza circundante; 
- Medicina-oficial: representada pelas práticas de curas realizadas 
médicos, desfrutando de reconhecidos e remuneração pelo poder dominante, 
mas com forte vínculos com as anteriores. 
Apesar da utilidade prática dos monumentais conteúdos dos papiros de 
Ebers e de Edwin-Smith, a prática da Medicina-oficial egípcia estava longe de 
constituir um sistema organizado. Não é demais repetir a ausência de estrutura 
teórica para explicar a saúde e a doença fora do domínio das crenças e idéias 
religiosas. A resultante dessa condição estava atrelada no fato de cada doença 
ser considerada uma entidade mórbida em si mesma. 
Além de a Medicina praticada no Egito, a que era feita na Babilônia, 
também apresentava característica semelhante: ausência da estrutura teórica 
para entender a saúde e a doença fora dos domínios do sagrado. Entre muitos 
30 
 
exemplos, a Medicina-divina babilônica considerada as doenças como castigo 
do deus Shamash, que presidia a justiça. 
As práticas médicas que se desenvolveram nessas cidades-estados, 
mesmo com a estrita vinculação religiosa, todas apresentam notáveis registros 
da eficácia dos saberes historicamente acumulados articulando o uso empírico 
dos recursos da natureza circundante. Confirmando que, paralelamente, 
existiam a Medicina-empírica e a Medicina-oficial que utilizavam remédios 
oriundos de plantas medicinais: beladona, anis, óleo de rícino, gengibre, 
hortelã, romã e a papoula, que continuam sendo utilizados até hoje, por 
milhões de pessoas em vários continentes. 
Nessa fase, em torno da primeira metade do segundo milênio, as 
pesquisas arqueológicas nas principais cidades, mostraram importantes 
mudanças introduzidas para melhorar as condições sanitárias, pelo menos nas 
partes mais ricas, próximas aos palácios da administração: redes de esgotos, 
abastecimento de água potável, de fazer inveja as periferias urbanas de muitos 
países. 
Não há porque duvidar que essa melhoria arquitetônica, mesmo 
somente voltada aos ricos e influentes, também fora relacionada às 
informações patrocinas pelas primeiras experiências do sedentarismo, nas 
margens dos grandes rios e lagos, e com a efetiva participação dos médicos, 
agentes da Medicina-oficial, interessados que as doenças observáveis nos 
grupos mais pobres, onde não existiam cuidados com os excrementos e sem 
água potável, não alcançassem os mais ricos. 
É importante salientar que o progresso na melhoria da condição de vida 
das pessoas que podiam desfrutar da água potável e do esgoto sanitário, nas 
próprias casas, certamente, não acessível aos mais pobres e escravos, não 
estava estritamente ligado às idéias e crença religiosas; se tratavam de 
objetivos concretos ligados à saúde e à doença. 
Existe, no Museu de Louvre, em Paris, um vaso achado na região de 
Lagash, apresentando o símbolo do deus da cura – Ningishzida – com dois 
dragões coroados e duas serpentes entrelaçadas num bastão. É possível que a 
solidez desse símbolo mítico – a serpente – ligado à cura de doenças de 
alguma forma já estivesse fortemente presente nas gerações anteriores. Só 
31 
 
assim é possível explicar por que tenha sobrevivido durante tanto tempo, 
metamórfica, na Medicina greco-romana, na serpente entrelaçada no bastão, 
representando Asclépio, o deus grego da Medicina, e adotada pelos médicos 
até hoje. 
Essa solidez simbólica pode estar acoplada ao fato de a serpente ter 
relação com a requerida transcendência humana, podendo renascer após a 
morte: a cobra pode viver acima e abaixo da terra, atuando como mediador 
entre os dois mundos, e, especialmente, como nenhum outro animal, de 
tempos em tempos, substitui a pele, marcando a capacidade de renascer em 
vida. 
A grande mudança das práticas médicas, ocorreu na Grécia, na primeira 
metade do século 5, durante a administração de Péricles, na consolidação da 
cultura grega ligada à cidade-estado (do grego = pólis) com estrutura político-
jurídica defendendo a liberdade de escolha do cidadão livre, portanto pequena 
parcela da sociedade. 
Nesse conjunto, sobressaindo Hipócrates e seus seguidores, na ilha de 
Cós, entre outros extraordináriosfilósofos, constituiu o esplendor da nova visão 
das relações do homem com a saúde e a doença. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
32 
 
 
III 
 
BUSCA DA DOENÇA NA MICROLOGIA 
 
PENSAMENTO MICROLÓGICO: SEGUNDO CORTE 
EPISTEMOLÓGICO DA MEDICINA 
 
De modo genial, Marcelo Malpighi (1628-1694), em 1666, com o livro 
“De viscerum structura”iniciou o processo de retirada da doença dos humores 
de Hipócrates para recolocá-la na microestrutura, estabelecendo o segundo 
corte epistemológico da Medicina como especialidade social: o pensamento 
micrológico, que mudaria quase tudo nos anos seguintes ate a atualidade. 
O resultado instituiu o pensamento micrológico, inaugurando o 
desvendar da multiplicidade das formas e das funções escondidas dos sentidos 
natos, numa dimensão invisível aos olhos desarmados. 
Pouco a pouco, o estudo da célula dominou os meios acadêmicos. Hoje, 
é o sustentáculo do atual ensino da Medicina-oficial. Mesmo nos hospitais mais 
bem equipados, na atualidade, nos tratamentos dependem do diagnóstico 
microscópico quantitativo e qualitativo das células corporais. Isso significa que 
a estrutura teórica dos saberes médicos, em pleno século 21, se alicerçada 
sobre os princípios teóricos da micrologia do século 17. 
O pensamento micrológico enfraqueceu as teorias greco-romanas de 
Hipócrates e Galeno, entendidas como dogmas das universidades, no medievo 
europeu. Não muito depois, os processos teóricos que amparavam a 
micrologia, a busca da materialidade da doença na microscopia, substituíram 
as idéias da Escola de Cós. 
 Os sistemas teóricos interligados e dependentes de Hipócrates e 
Galeno, capazes de explicar a saúde, a doença e a expressão do ser no social, 
mostraram-se tão adequados ao observável que dominaram as regras do 
diagnóstico, da terapêutica e as bases do ensino da Medicina-oficial no 
33 
 
Ocidente durante quase vinte séculos. 
Ao lado dessa forte relação em torno das teorias hipocrático-galênicas 
que atravessou a Idade Média, alguns religiosos, como Miguel Servet, 
estudante da Universidade de Tolousse, em 1530, imbuído da leitura 
dogmática bíblica, ao procurar explicação para o sopro de ar que deu vida ao 
primeiro homem, no livro “Christianismi restituio”, descreveu a pequena 
circulação coração-pulmão. 
Contudo foram os estudos de Hipócrates e Galeno que suplantaram 
todas as outras correntes cientificas. Alcançaram o Brasil Colônia e os médicos 
da corte portuguesa. Durante vinte e três dias de febre e convulsão que 
antecederam a morte da Princesa Paula Mariana, filha do primeiro Imperador 
do Brasil, foi submetida às chupadas de quarenta sanguessugas, onze 
vesicatórios, oito cataplasmas e sete clisteres, prescritos pela equipe de dez 
médicos que se revezaram à cabeceira real. 
As teorias greco-romanas continuaram influenciando a Medicina-oficial 
até o século 19. É interessante assinalar que as idéias alcançaram não só os 
médicos da Coroa portuguesa, mas também os viajantes, do século 19, que 
estiveram no Brasil. O médico e viajante Carlos Von Martius, em 1844, 
descreveu os índios brasileiros “com temperamento linfático”, sob a perspectiva 
greco-romana, associando a teoria dos Quatro Humores de Hipócrates à teoria 
dos Temperamentos de Galeno. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
34 
 
 
 
 IV 
 
BUSCA DA DOENÇA NO PENSAMENTO MOLECULAR 
 
TERCEIRO CORTE EPISTEMOLÓGICO DA MEDICINA NO 
GENÔMA 
 
Os estudos do frade agostiniano Gregor Mendel (1822-1884), mesmo 
não sabendo a grandeza da sua descoberta, abriu as portas da dimensão 
molecular, provocando nova reconstrução da Medicina como especialidade 
social, voltada ao desvendar da saúde e da doença na dimensão mlecular. 
Os hospitais dos países industrializados utilizam, na rotina diária, os 
resultados trazidos pelo pensamento molecular, acrescentado ao pensamento 
celular. Com o propósito de diagnosticar ou tratar certa doença, colocando a 
materialidade da saúde e da doença na dimensão molecular, são analisadas as 
quantidades e as qualidades de uma ou mais moléculas, entre as centenas de 
milhares que compõem a célula. 
O pouco tempo para a adequada disseminação dos saberes da 
Medicina-oficial na dimensão molecular, o alto custo e as dificuldades da 
tecnologia hospitalar de sair da célula para a molécula restringem esse avanço 
em poucos hospitais e instituições de ensino nos países em desenvolvimento. 
Como uma das conseqüências do pensamento molecular, da Medicina-
oficial, a clonagem estreitou, geneticamente, a multiplicidade das formas e das 
funções, criando em laboratório seres idênticos a partir de células retiradas de 
um indivíduo adulto. 
Apesar de assustador, o produto do clone não humano, do mesmo modo 
como todos os animais nascidos da reprodução sexuada, ao longo do processo 
de amadurecimento, sofrerá a incisiva influência do social. Desta forma, no 
35 
 
momento, não existe perspectiva de eliminar a multiplicidade geradora das 
respostas do ser vivente frente aos desafios da sobrevivência. 
Mesmo sendo teoricamente possível, a clonagem de seres humanos é 
inconcebível. Não existem na linguagem oral e escrita argumentos para 
preencher a repulsa contra o alucinado ensaio de eliminar a principal 
característica do planeta: a multiplicidade. 
Com mais liberdade para teorizar, se pode pensar que a busca da 
materialidade não será interrompida na molécula. Nada nos impede de pensar 
na possibilidade de avançar na direção do átomo. 
Se assim ocorrer, a Medicina-oficial na dimensão atômica, no futuro, 
acrescentará novas construções complementando dados identificados no 
pensamento celular e pensamento molecular. 
A Medicina como especialidade social, especialmente, a Medicina-oficial 
por ser a única que sustenta processos teóricos para desvendar a saúde e a 
doença, em permanente reconstrução por meio dos acréscimos da ciência e 
tecnologia: os três cortes epistemológicos.: 
- Teoria dos Quatro Humores, século 4 a.C., dimensão corporal, primeiro 
corte epistemológico; 
- Micrologia, dimensão celular, século 17, segundo corte epistemológico; 
- Ultra-micrologia, dimensão molecular, século 19, terceiro corte 
epistemológico. 
Esse conjunto continua mudando muitos aspectos do antigo determinismo 
da doença e da morte inevitável. Do mesmo modo, abrindo outros caminhos 
para desvendar as menores composições da matéria viva contida na muito 
complexa relação entre moléculas, átomos e partículas subatômicas, 
certamente, envolvidos nos ainda desconhecidos processos determinantes do 
aparecimento das doenças. 
Parece lógico pressupor, nessa linha teórica, que no futuro, impossível de 
prever, a Medicina-oficial possa responder, entre outras dúvidas cruéis: 
- Como aparece a primeira célula cancerosa? 
- Haveria possibilidade de prever o infarto do miocárdio? 
- Qual a etiologia das doenças imunomoduladas? 
36 
 
- Onde estão as mudanças na forma, do sistema nervoso central, nas 
psicoses? 
- Porque doenças com o mesmo agente etiológico se manifestam 
distintamente? 
Por essas razões, é certo assegurar que a Medicina como especialidade 
social é uma realidade, que se mostra em contínua reconstrução, voltada ao 
controle da dor e empurrar os limites da vida. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
37 
 
 
 
V 
 
NOVOS AVANÇOS DA MEDICINA E OUTRAS 
RECONSTRUÇÕES DA ÉTICA MÉDICA, ATADAS À 
BUSCA DA VIDA, DO BOM, DO BELO, DO JUSTO NOS 
SÉCULOS 19 E 20 
 
Século 19 
 
Graças aos avanços a partirdo Renascimento europeu que atingiram a 
anatomia, fisiologia, histologia e anatomia patológica, o século 19 foi marcado 
por novos progressos na Medicina. 
Homens extraordinários como Mendel, lançando as bases do terceiro 
corte epistemológico da Medicina, inaugurando o pensamento molecular e 
Darwin, divulgando a nova concepção da evolução humana, tornaram esse 
período o expoente da Medicina voltada para entender o homem além do 
visível aos olhos desarmados.. 
Com o aumento da oferta nas universidades, cresceu o número de 
médicos. Ao combaterem ardorosamente a Medicina-empírica, muitos deles 
introduziram significativas mudanças nas práticas médicas, as quais 
perseguiam sistematicamente: 
- Identificar o agente etiológico da doença por meio da bacteriologia; 
- Aumentar o nível de investigação de cada doença, no exame clínico, 
com o objetivo de diferenciá-las rigorosamente e agrupá-las em grupos 
nosológicos; 
- Melhorar o conjunto de métodos da investigação clínica por meio de 
aparelhos que poderiam desvendar a estrutura anatômica em áreas invisíveis 
aos olhos; 
38 
 
- Retirada de material para exame microscópico e/ou físico-químico; 
- Reproduzir no laboratório as reações físico-químicas humanas; 
- Aprofundar os estudos das doenças mais comuns e que, 
historicamente, causaram o medo coletivo da dor e da morte prematuras; 
- Entender o desenvolvimento fetal. 
Esse conjunto de ações, entre os séculos 19, voltadas ao melhor 
compreensão do corpo humano e das doenças conviveu com o livro de Charles 
Darwin que continuava causando êxtase na intelectualidade, sem dúvida, 
contribuíndo para diminuir cada vez mais a interferência da Igreja na produção 
intelectual. 
 
Exame clínico e exames auxiliares 
 
O gradativo amento no rigor no exame para compreender as 
manifestações clínicas das doenças, motivou a procura de novos métodos: 
- Jean Nicolas Corvisat (1755-1821), descreveu a importância da 
percussão torácica nas doenças pulmonares; 
- René Laënnec (1781-1826), sistematizou as regras da ausculta 
pulmonar e cardíaca por meio de um cilindro oco de madeira, em 1819, no seu 
livro Traité de l’auscutation médiate; 
- Pierre Bretonneau (1778-1862), descreveu com precisão os sinais e 
sintomas da febre tifóide a a angina diftérica; 
- Gaspard Laurent Bayle (1774-1816), chamou atenção para as 
diferentes formas de apresentação da tuberculose e as evoluções clínicas; 
- Jean Baptiste Bouillaud (1796-1881), especificou com detalhes o 
reumatismo articular agudo; 
- Matthieu Orfila (1787-1853), considerado o pioneiro da toxicologia e da 
Medicina legal; 
- Joseph Récamier (1787-1852), inventor do espéculo vaginal. 
De igual modo, outros métodos buscaram métodos na fisiologia 
experimental: 
- François Magendie (1783-1855): 
-Precursor da fisiologia experimental; 
39 
 
- Primeiro cateterismo cardíaco; 
- Estudo dos gazes pulmonares; 
-Primeiro cateterismo cardíaco. 
- Claude Bernard (1813-1878), foi aluno de Megendie, publicou em 1865, 
o célebre livro L’Introduction à l’étude de la médecine expérimentale, no qual 
estabeleceu a função da gliconeogênese na glicemia. Em outros trabalhos 
avanço na compreensão: 
- Pâncreas; 
-Nervos vasomotores; 
- Glândulas endócrinas; 
- Glândula exócrinas; 
- Relação do cerebelo no equilíbrio. 
-Pierre Flourens (1794-1867), aprofundou os estudos entre o cerebelo e 
o equilíbrio; 
- Charles Bell (1774-1842), descreveu as localizações e as funções 
motoras dos nervos raquidianos, em 1830, no livro The Nervous System of the 
Human Body; 
- Emil Du Bois-Reymond (1818-1896), fundador da eletrofisiologia que 
demonstrou a natureza elétrica dos impulsos nervosos; 
- Auguste Chauveau (1827-1917), demonstrou a atividade elétrica do 
coração; 
- Johannes Müller (1801-1858), esclareceu alguns aspectos da fisiologia 
da visão e da audição; 
- Carl Ludwig (1816-1895), assinalou a fisiologia da mecânica cardíaca; 
- Étienne Jules Marey (1830-1904), formou as bases do registro gráfico 
do coração; 
- Charles Brown-Sequard (1817-1894), estudou a função das glândulas 
endócrinas; 
- Ivan Pavlov (1849-1936), autor do trabalhos pioneiros, em 1897, sobre 
os reflexos condicionados em cães; 
- Oskar Hertwig (1849-1922), em estudos experimentais em ursos, 
demonstrou que a fecundação é o resultado da fusão entre um gameta 
feminino e um masculino; 
40 
 
- Karl Ernst von Baer (1792-1876), descreveu com precisão o 
desenvolvimento do ovo humano; 
- Ernst Haeckel (1834-1919), ardoroso defensor do darwinismo, é o autor 
da famosa frase a ontogênese reproduz a filogênese, assegurando que o 
desenvolvimento do indivíduo está intimamente atado à espécie. 
Ainda outros médicos aperfeiçoaram os acessos às cavidades, firmando 
a base da endoscopia: 
- Filippo Bozzini (1773-1809), inventor do espéculo iluminado por meio 
do uso de espelhos; 
- Max Nitze (1848-1906), melhorou o instrumento de Bozzinni e montou 
o primeiro uretroscópio e citoscópio. O maior problema enfrentado foi o calor 
provocado pela lâmpada incandescente que limitava a duração do exame; 
- Punção lombar: realizada pela primeira vez pelo médico Heinrich 
Quincke (1842-1922) possibilitando a análise da composição química, celular e 
bacteriana do líquido cérebro-raquidiano; 
- Espirometria: idealizada por John Hutchinson (1811-1861), em 1846, 
para medir a capacidade pulmonar; 
- Oftalmoscópio: inventado e colocado em uso pela primeira vez, em 
1851, pelo médico Hermann Helmholtz (1821-1894) para examinar o fundo do 
olho. 
 
Pensamento micrológico 
 
O indiscutível avanço no diagnóstico das doenças infecciosas 
patrocinado pelas conquistas da micrologia identificando as bactérias, não 
encontrou paralelo nos tratamentos. Ainda sem opção, os pacientes portadores 
das doenças infecciosas que sempre causaram medo na humanidade 
continuaram matando, só que, a partir do século 19, os pacientes morriam com 
o diagnóstico realizado. 
Ocorreu enorme esforço para controlar as doenças causadoras das 
epidemias que encheram e terror a humanidade: 
O maior representante do pensamento micrológico, precursor da citologia 
foi o médico Rudolf Virchow (1821-1902). Na sua obra fundamental Omnis 
41 
 
cellula a cellula resumiu o princípio fundamental da citologia: Toda célula se 
origina de outra célula. 
Sob essa perspectiva, os avanços podem ser agrupados em quatro 
segmentos: 
A. Bacteriologia: 
a. Louis Pasteur (1822-1895) 
O monumental trabalho de Pasteur tomou corpo, em 1877, em torno dos 
estudos sobre a fermentação. Logo em seguida, divulgou a método da 
pasteurizacão, para conservar o vinho e o leite. De modo definitivo, acabou 
com a teoria da geração espontânea, defendida durante a Idade Média, que 
preconizava ser possível surgir vida do ar, ao demonstrar que a cólera das 
galinhas era contagiosa e provocada por bactéria. 
Mesmo com a clareza das publicações, enfrentou ferozes inimigos que 
insistiam em negar a relação entre as bactérias e as doenças infecciosas. Entre 
os relevantes trabalhos de Pasteur, é possível destacar: 
- Identificação do estafilococo no furúnculo e na osteomielite; 
- Identificação do estreptococo na febre puerperal; 
- Introduziu a assepsia e anti-sepsia com famosa frase: Se eu tivesse a 
honra de ser cirurgião, sempre lavaria as mãos com muito rigor e as exporia, 
rapidamente, ao calor, e só usaria instrumentos limpos previamente 
submetidos à temperatura entre 130 e 150 graus e água tratada até 110 graus; 
- Introduziu o termo vacinação; 
- Realizou a primeira vacinação anti-rábica, em 6 de julho de 1885, numa 
criança de 9 anos de idade que

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