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1 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO AMAZONAS ESCOLA DA MAGISTRATURA AVANÇOS DA CIÊNCIA: O DIREITO E A ÉTICA MÉDICA Prof. Dr. HC João Bosco Botelho Manaus, 23 de maio de 2015 2 APRESENTAÇÃO As relações históricas entre a Medicina e o Direito são antigas, pelo menos desde o Código de Hammurabi, e continuam caminhando atadas ao pilar estruturante da luta pela sobrevivência humana: manter a vida. Nesse complexo sistema de condutas permitidas e proibidas, as duas essenciais especialidades sociais — Medicina e Direito — também possuem outra forte interligação: a busca pela materialidade, sendo na primeira, a doença; na segunda, o delito. Esse caminhar está amalgamado aos avanços da ciência e da tecnologia, impulsionando os teóricos de ambas às reconstruções e novas construções capazes de se ajustarem às necessidades e demandas das sociedades, sempre mantendo princípios éticos em torno do belo, do bem e do justo. Por meio do encanto acadêmico dos saberes acumulados da Medicina e do Direito, sempre perseguindo o belo, o justo, o bom, tomo a liberdade de publicar por meio da Escola da Magistratura, do Egrégio Tribunal de Justiça do Amazonas, algumas considerações teóricas sobre o tema "Avanços da ciência: o Direito e a Ética Médica". 3 I MEDICINA COMO PAIDÉIA CONSTRUÇOES DOS SABERES MÉDICO JUNTO AO DIREITO E À ÉTICA BUSCANDO O BOM, O BELO, O JUSTO Desde tempos ágrafos, os homens e as mulheres ora aliaram-se aos panteões, lutando para entender, sem aceitar, a finitude da vida frente à natureza circundante; ora, organizaram-se para viver mais e melhor desafiando a tirânica competência dos deuses e das deusas para curar. A Medicina como paidéia é um dos marcos nessa parte da história da humanidade, onde está transparente o conflito de competência entre as três medicinas — oficial, empírica e divina — com o objetivo de ampliar os limites da vida. Esse processo complexo, oriundo desde os tempos imemoriais, alcançou o esplendor na Grécia do século 4 a.C. Desse lá, permanece um ponto diferencial entre as três medicinas: só a medicina-oficial organizou estruturas teóricas para sustentar as práticas de curas, só registradas a partir das primeiras cidades, assim, de natureza muitíssimo mais recente do que as outras. Do outro lado, também a partir dos primeiros registros escritos, os poderes organizadores dos núcleos urbanos mais antigos ampararam, ora mais, ora menos, as três medicinas, pendendo mais para uma ou para outra, na mesma proporção em que resolviam os conflitos sociais provocados pelo medo coletivo da dor e da morte prematuras das epidemias que poderiam enfraquecer a ordem social. Desde os tempos ágrafos, a medicina-divina e a medicina-empírica evidenciam-se plenamente ancoradas nas práticas divinatórias e nos milagres e, menos, nos saberes empíricos historicamente acumulados. Por essas 4 razões, o diagnóstico, o tratamento e o prognóstico trabalhados de maneira ametódica e casual, sem compromisso da compreensão das etiologias. Por outro lado, a maior parte das experiências empíricas acumuladas permaneceu guardada pelos especialistas da coisa sagrada. Estes fatores representaram ásperos obstáculos para reproduzir os saberes fora dos restritos grupos dos representantes das divindades, enclaustrados nos silêncios que impedem as críticas e as respostas. Essa evidência fica muito clara nas civilizações que se desenvolveram na Mesopotâmia e nas margens dos rios Indo e Nilo. Apesar do notável senso empírico, as práticas de cura permaneceram contidas nas amarras do sagrado, como assinala a tradição judaica em pelo menos três argumentos: 1. O incrível poder do curador divino sobre a vida e a morte de tudo e de todos. Dt 32: 39 — E agora, vede bem: eu, sou eu, e fora de mim não há outro Deus! Sou eu que mato e faço viver. Sou eu que firo e torno a curar (e da minha mão ninguém se livra). 2. Os saberes empíricos como dádivas divinas. Sb 17: 20 — Ele me deu um conhecimento infalível dos seres para entender a estrutura do mundo, a atividade dos elementos, o começo, o meio e o fim dos tempos, a alteração dos solstícios, as mudanças de estações, os ciclos do ano, a posição dos astros, a natureza dos animais, a fúria das feras, o poder dos espíritos, os pensamentos dos homens, a variedade das plantas, as virtudes das raízes. 3. O médico como representante reconhecido e festejado da divindade. Eclo 38: 1-2 — Rende ao médico as honras que lhe são devidas, por causa de seus serviços, porque o Senhor o criou. Pois é do Altíssimo que vem a cura, como um presente que se recebe do rei. A ciência do médico o faz trazer a fronte erguida, ele é admirado pelos grandes. A cultura grega, no século 4 a.C., absorveu as origens mais antigas da medicina-divina e da medicina-empírica mantendo a figura social do médico, em princípio, como dono do saber notável. Sem abandonar a influência do divino sobre a vida e a morte, os cantos homéricos mostraram o claro destaque do médico como representante da 5 medicina-oficial e agente social na luta contra os agravos à saúde (Ilíada XI, 510: Máxima glória dos povos arquivos, Nestor de Gerena, toma o teu carro depressa; ao teu lado coloca Macáon, e para as naves escuras dirige os velozes cavalos, pois é sabido que um médico vale por muitos guerreiros, que sabe dardos extrair e calmantes deitar nas feridas). O mesmo médico homérico também marcadamente estava inserido no espaço sagrado das relações sociais. Os médicos Macáon e Podalírio, que se destacaram na guerra de Tróia, mencionado por Homero, são os dois filhos de Asclépio, o deus protetor das medicinas gregas. Essa aparente dualidade homérica, onde as três medicinas mostram-se sobrepostas, reproduz uma herança sócio-cultural muitíssimo mais anterior à cultura grega, perdida no tempo da ontogenia, e que a genialidade de Homero tratou de expor. O deus Asclépio, filho de Apolo com a mortal Corônis conquistou uma fama inimaginável. Mais cirurgião do que médico, ele criou as tiras, as ligaduras e as tentas para drenar as feridas. Junto com as suas filhas Hígia e Panacéia, era celebrado em grandes festas populares, próximas do dia 18 de outubro, data em que, até hoje, se comemora o dia do médico no Ocidente. No século 4 a.C., na Grécia, a medicina-oficial expondo abertamente o processo de conflito com outras medicinas, mas compreendida como arte, apresentava-se com clareza na estrutura dos saberes que procuravam desvendar a natureza visível e invisível. A profissão médica estava tão bem sedimentada em sistemas de aprendizado que influenciou, profundamente, nos vinte séculos seguintes, os caminhos tomados pela medicina-oficial no Ocidente. A medicina-oficial grega do século 4 a.C., concebida como ciência e, nessa condição, deveria valorizar a etiologia (Leucipo de Mileto In: Os Pré- Socráticos: fragmentos, doxografia e comentários. 2. ed. São Paulo. Abril Cultural. 1978. p. 297: Nenhuma coisa se engendra ao acaso, mas todas a partir da razão e por necessidade). A busca pela etiologia da doença entendida como pressuposto do diagnóstico e da terapêutica estava escancara ao futuro: a fisiologia do corpo que amparava a prática dessa medicina-oficial estava 6 ligada aos pré-socráticos, especificamente, aos filósofos jônicos, intérpretes da natureza circundante visível ou não por meio da tékhne. Um dos fatos que torna essa reflexão fascinanteé que, como hoje, longe de haver separação entre as práticas das três medicinas, a crença no poder de cura dos deuses e deusas e o empirismo continuaram fortes e coerentes com o universo cultural grego. O herói grego continuou associado à cura de doenças e malefícios. O senso comum compreendia grande número de deuses e deusas possuindo, entre os principais atributos, o dom de sarar as doenças e as feridas de guerra (Platon. Oeuvres Complètes. Paris. Ed. Gallimard. Bibliothèque de la Pléiade. 1950. v.1, v.2. Rep. 407d: — Por conseguinte afirmaremos que também Asclépio sabia isto, e que, para os que gozam de saúde física, graças a sua natureza e à sua dieta, mas têm qualquer doença localizada, para os que têm essa constituição, ensinou a Medicina, que expulsa as suas enfermidades por meio de remédios e incisões, prescrevendo-lhes a dieta a que estão habituados, a fim de não prejudicarem os negócios políticos. Contudo, o médico atuava muito além do espaço sagrado, continuava exercendo a arte de adivinhar, porém sobre um sistema teórico coerente que observava e interpretava os sinais da natureza visível e invisível. Esse avanço de dimensões gigantescas — a Medicina como paidéia — possibilitou estabelecer a ponte que ligaria, para sempre, a busca da etiologia das doenças ao diagnóstico, tratamento e prognóstico. Desse modo, a Medicina como paidéia feriu profunda e mortalmente o predomínio da medicina- divina e da medicina-empírica sobre a medicina- oficial. A associação entre as idéias da Escola Médica de Cós, sob a liderança de Hipócrates, com a filosofia jônica, sem dúvida, possibilitou um avanço de dimensões gigantescas — a Medicina como paidéia — estabelecendo a ponte que ligaria, para sempre, a busca da etiologia das doenças ao diagnóstico, tratamento e prognóstico. Desse modo, a Medicina como paidéia abriu o caminho para a dominação da medicina-oficial sobre a medicina-divina e medicina-empírica. É possível que com esse objetivo central, os conceitos jônicos da natureza 7 tornaram-se as principais medidas da medicina-oficial. As normas alcançaram os significantes das enfermidades entendendo-as como desvios da natureza e em maior amplitude, mudança na physis do homem. É possível compor cinco alicerces fundamentais da physis embutidos na Medicina como paidéia: - Como universalidade e individualidade: todas as coisas têm a sua physis própria, os astros, os ventos, as águas, os medicamentos, o homem com as suas partes e as doenças (Das Epidemias, distingue: ”...a physis comum de todas as coisas, da physis própria de cada coisa”; - Como princípio: a physis é o princípio (arkhé) de tudo que existe (Sobre os Lugares e o Homem, lê-se: “A physis do corpo é o princípio da razão da Medicina”). - Como harmonia: na sua aparência e na sua dinâmica a physis é harmoniosa; é a ordem que se realiza com beleza. A natureza é harmoniosa e produz harmonia; - Como racionalidade: a natureza é racional em si mesma. Por esta razão existe uma fisiologia; a ciência na qual o logos do homem se harmoniza diretamente com os logos da natureza; - Como divindade: a physis é em si mesma divina. É possível que esse caráter divino da physis estivesse transparecendo a necessidade de o senso comum manter a medicina-oficial ligada à medicina- divina e à medicina-empírica ou, sob outra perspectiva, não ser possível a completa separação entre as três medicinas. Esse é um dos aspectos mais interessantes na Medicina, na Grécia, do século 4e a.C.: mesmo sem ataques aos deuses protetores da saúde, em especial, o deus Asclépio, os médicos de Cós e os filósofos estabeleceram elos duradouros entre o binômio saúde-doença com a natureza circundante, como está presente na introdução do manuscrito Dos Ventos, Águas e Regiões, de autor desconhecido, escrito no século 4 (Daremberg. Oeuvres Choisies d’Hippocrate. Paris. Labe Éditeur. 1855. p. 1050): “Quem quiser aprender bem a arte de médico deve proceder assim: em primeiro lugar deve ter presentes as estações do ano e os seus efeitos, pois nem todas são iguais mas diferem radicalmente quanto a sua essência 8 especificada e quanto as suas mudanças. Deve ainda observar os ventos quentes e frios, começando pelos que são comuns a todos os homens e continuando pelas características de cada região. Deve ter presente também os efeitos dos diversos gêneros de Águas. Estas distinguem-se não só pela densidade e pelo saber, mas ainda por suas virtudes. Quando um médico chegar a uma cidade desconhecida para ele, deve determinar, antes de mais nada, a posição que ela ocupa em relação as várias correntes de ar ao curso de sol (...) assim como anotar o que se refere as águas (...) e a qualidade do solo (...) Se conhecer o que diz respeito a mudança das estações e do clima, o nascimento e o ocaso dos astros, conhecerá antecipadamente a qualidade do ano. Pode ser que alguém considere isto demasiadamente orientado para a ciência, mas quem pensar assim pode convencer-se, se alguma coisa for capaz de aprender, que a astronomia pode contribuir essencialmente para a Medicina, pois a mudança nas doenças do homem, está relacionada com a mudança do clima”. As doenças deixaram de ser compreendidas sem método e passaram a compor parte da busca da etiologia. Esse é um dos pontos fundamentais da medicina-oficial grega, do século 4, marcando a união entre a filosofia jônica e os conceitos de saúde e de doença. Entre as muitas conseqüências é possível identificar: - Cada doente ficou compreendido como um doente, diferente de todos os outros; - Desaparecimento gradual da receita médica que valia para todos, como uma receita de bolo. O centro de confluência dessa nova estrutura aproximou-se da teoria dos Quatro Elementos, do filósofo e médico Empédocles (495-435 a.C.). Segundo o magistral filósofo de Agrigento, os corpos são formados por quatro elementos eternos que permanecem em constante movimento: fogo, terra, água e ar. Estava em curso, pela primeira vez, uma proposta teórica para explicar a origem das doenças divorciada dos deuses e deusas. Toda e qualquer enfermidade seria conseqüência do desequilíbrio entre um ou mais elementos. 9 Como toda mudança profunda nos saberes, a passagem da medicina- divina e da medicina-empírica, ambas ametódicas, mais ou menos mágicas, para a medicina-oficial metódica, unindo o diagnóstico, prognóstico e o tratamento valorizando a busca da etiologia, encontrou resistência em muitos setores da sociedade grega. Para contornar esses estorvos, os médicos expunham, como os sofistas, perante o público, os problemas determinados pelas doenças que poderiam causar a morte e a dor fora de controles. Não é demais repetir que Platão, sistematizou o pensamento corrente da época ao descrever a nova postura do médico e do político. Ambos, baseados nos respectivos saberes, deveriam sempre que necessário, intervir na sociedade para promover melhoras. O diálogo platônico estabelece alguns parâmetros da nova posição social do médico atuando como agente da Medicina como paidéia no magistral Político (296a-b-c) (Planton. Oeuvres Complètes. Paris. Gallimard. Bibliothèque de la Pléiade. 1950. v.1, v.2.): “Estrangeiro: — É interessante. Dizem, com efeito, que se alguém conhece leis melhores que as existentes não tem o direito de dá-las à sua própria cidade senão que for necessário para promover melhoras na sociedade. Sócrates, o Jovem: — Muito bem! Não estarão eles certos? Estrangeiro: — Talvez. Em todo o caso, se alguém dispensa esse consentimento e impõe a reforma pela força, que nome se dará a esse golpe? Mas,espera. Voltemos primeiro aos exemplos precedentes. Sócrates, o Jovem: — Que queres dizer? Estrangeiro: — Suponhamos um médico que não procura persuadir seu doente, senhor de sua arte, impõe a uma criança, a um homem ou uma mulher o que julga melhor, não importando os preceitos escritos. Que nome se dará a essa violência? seria por acaso o de violação da arte e erro pernicioso? E a vítima dessa coerção não teria o direito de dizer tudo, menos que foi objeto de manobras perniciosas e ineptas por parte de médicos que as impuseram. Sócrates, o Jovem: — Dizes a pura verdade. Estrangeiro: — Ora, como chamaríamos aquele que peca contra a arte política? Não o qualificaríamos de odioso, mau e injusto?” 10 A autoridade de Platão não foi suficiente para estancar as resistências dos curadores da medicina-divina e da medicina-empírica, que muito mais numerosos do que os médicos de Cós, promoveram manifestações públicas contra a nova força da Medicina como Paidéia junto ao poder político. O corte separando o antes e o depois, nos saberes da Medicina como paidéia, encontra-se no livro Das Doenças Sagradas, de autor desconhecido, do século 4 a.C.: “Quanto à doença que nós chamamos de sagrada (epilepsia), eis o que ela significa: ela não me parece nem mais divina, nem mais sagrada que as outras; ela tem a mesma natureza que as demais doenças e se origina das mesmas causas que cada uma delas. Os homens atribuíram-lhe uma natureza e uma origem divinas por causa da ignorância e do assombro que ela lhes inspira, pois em nada se assemelha às outras”. Pela primeira vez, uma enfermidade foi explicitamente assentada no domínio da tékhne, após ser retirada do domínio dos deuses e deusas curadoras. Não é demais repetir que também nessa época, na ilha de Cós, ocorreu o ápice da medicina-oficial grega. O genial Hipócrates, o principal representante da Escola de Medicina de Cós, foi reconhecido como o marco nos saberes médicos por Platão (Protágoras 313b-c e Fedro 270c) e, posteriormente, por Aristóteles (La Politique. Paris. J. Vrin. 1989. p. 484). Os integrantes da Escola de Cós construíram o maior legado da Medicina como paidéia: a teoria dos Quatro Humores, aqui considerada como primeiro corte epistemológico da Medicina. Na realidade, a proposta teórica uniu elementos reconhecidos da Filosofia e da Medicina. Para cada elemento de Empédocles foi associada uma categoria teórica, capaz de unir com coerência as qualidades da natureza com as do corpo. A teoria dos Quatro Humores, atribuída a Políbio, está descrita no manuscrito Da Natureza do Homem (Daremberg. Oeuvres Choisies d’Hippocrate. Paris. Labe Éditeur. 1855: “O corpo humano contem sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra, que estes elementos constituem a natureza do corpo e são responsáveis pelas dores que se sentem e pela saúde que se goza. A saúde atinge o seu máximo 11 quando estas coisas estão na devida proporção em relação umas às outras, no que toca a sua composição, força e volume além de estarem devidamente misturadas. A dor surge quando há excesso ou falta de uma destas coisas, ou quando uma delas se isola no corpo em vez de estar misturadas com as outras”. A Medicina como paidéia saltou do domínio casual e ametódico para o método construído em torno da busca da etiologia nos desequilíbrios dos humores. O diagnóstico acompanhava o prognóstico e a terapêutica para identificar o excesso ou da falta do humor desequilibrado. Como conseqüência, os tratamentos se voltaram para excretar as sobras por meio de vomitórios, sudoreses, diureses, diarréias e sangrias. O prognóstico se materializava na boa ou na ausência de resposta à terapêutica. A aceitação da teoria dos Quatro Humores por alguns médicos da Escola de Cós, não atenuaram os embates com alguns filósofos, em certa medida, defensores da medicina-empírica e da medicina-divina, ambas livres das medidas de mensurações impostas pelo entendimento jônico da natureza. Esses conflitos aparecem em dois textos: - O filósofo Heráclito de Éfeso (540-470), de genialidade exclusiva, é contundente na antipatia aos médicos (Os Pré-Socráticos: fragmentos, doxografia e comentários. 2. ed. São Paulo. Abril Cultural. 1978. p. 297: “Os médicos, quando cortam, queimam, e de todo o modo torturam os pacientes, ainda reclamam um salário que não merecem, por efetuarem o mesmo que as doenças”; - O autor desconhecido de Sobre a Medicina Antiga, do século 4 a.C., testemunha certo conflituoso entre alguns médicos e filósofos, no qual repudiaram de maneira enfática, a generalização de todas as doenças estarem estritamente ligadas somente aos quatro elementos de Empédocles: (DAREMBERG, 1855. Oeuvres Choisies d’Hippocrate. Paris. Labe Éditeur. 1855: “1. Que no caso de um doente afetado por uma alimentação crua e curado por uma alimentação cozida, não é possível dizer o que foi eliminado da direita, se o calor, se o frio, se a umidade ou a secura; 2. Que não existe um quente absoluto que possa ser misturado para curar o frio, uma pessoa tem de 12 tomar água quente ou vinho quente ou lente quente e a água o vinho e o leite tem propriedades diferentes que serão mais eficazes do que o calor”. Em alguns trechos da mesma obra, Hipócrates também sustenta que o corpo humano é composto por grande número de coisas de naturezas diversas: salinas, amargas, doces, ácidas, adstringentes, insípidas, etc. e não só de quatro componentes. Essa posição hipocrática é intrigante porque, em última análise, pode ser entendida como resistência à teoria dos Quatro Humores do genro Políbio. De certo modo, a contestação hipocrática traduz o conflito que alcançou outros filósofos para reduzir a saúde e a doença somente aos quatro determinantes da teoria doa Quatro Humores (sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra). É possível que os médicos da Escola Médica de Cós tenham sofrido influência de Alcméon, filósofo e médico de Crotona, no Sul da Itália, que admitia um grande número de forças atuando nos corpos (Thivel, Antoine. Cnide et Cós? Paris. Les Belles Lettres. 1981. p. 289-383). No livro Da Natureza do Homem, atribuído a Políbio, na mesma época, ressalta as idéias de Alcméon (Jouanna, J. Hippocrate et l’École de Cnide. Paris. Les Belles Lettres. 1974 p. 137- 174), o defensor da idéia de a saúde ser dependente do equilíbrio de múltiplas forças dinâmicas e a doença seria o predomínio de uma sobre as outras. Platão (República 407b-c-d-e) adotou o modelo médico dos tempos homéricos. É possível que essa leitura platônica tenha contribuído para ativar o conflito de competência entre a Medicina, voltada à interpretação da natureza por meio da tékhne, e a religião. Em aparente contraditório, Platão retoma a Medicina como téhkne ao distinguir as diferenças entre as práticas Medicinais entre pobres e ricos. O filósofo critica o modo como os médicos dos escravos correm de um paciente para outro e dão instruções rápidas sem falar com os doentes e os compara com os médicos dos homens livres (Leis 720a-b-c-d-e): “Se um deles ouvisse falar um médico livre a pacientes livres, em termos muito aproximados das conferências científicas, explicando como concebe a origem da doença e elevando-se a natureza de todos os corpos, morreria de rir e diria no que a maioria das pessoas chamadas médicos replica prontamente em tais casos: — O que fazes, néscio, não é curar o teu paciente, mas ensiná- 13 lo como se a tua missão não fosse devolver-lhe a saúde, mas fazer dele médico”. Em certos aspectos, médicos e filósofos estavam de acordo. Tanto Platão (Platon. Oeuvres Complètes. Paris: Ed.Gallimard. Bibliothèque de la Pléiade. 1950. v.1, v.2. Banquete, 186-187) quanto Hipócrates (Darembrg. Oeuvres Choisies d’Hippocrate. Paris: Labe Éditeur. 1855), reconheceram como insofismável a obrigação do médico em esclarecer o doente de todos os aspectos da enfermidade. Aristóteles (Aristote. La Politique. Paris: J.Vrin. 1989. I, 11, 1282) vai mais longe e distingue o médico do homem culto em Medicina, estabelecendo o espaço que cada um pode ocupar nas suas funções específicas. A relação da medicina-oficial com a natureza que os gregos tão bem assimilaram ao atingir o social, em sistemas de valores e respostas claramente configurados, reforçava-se como paidéia. Nesta perspectiva, foi evocada por Sólon ao descrever os elos entre as doenças pessoais e coletivas com a desorganização social. Baseado nesta relação, esse legislador fundamentou parte do seu pensamento político afirmando que as crises políticas interferiam na qualidade da saúde de uma população. Platão (Górgias 464b, 465a, 501) utilizou parte da estrutura teórica da medicina-oficial grega como instrumento para compor algumas linhas mestras da sua concepção ético-filosófica. Nesse genial processo, estabeleceu valor significante à verdadeira tékhne, como forma de conhecimento na natureza do objeto destinado a servir ao homem. Os conceitos platônicos confirmaram o médico como a pessoa que, baseada no que sabe sobre a natureza do homem sadio, conhece também o contrário, o homem doente, e competente para encontrar os meios para restituí-lo à saúde. Com base neste modelo, Platão traçou a imagem do filósofo tendo a mesma função no trato da alma. Existiu, neste ponto do pensamento platônico, uma semelhança viva entre o médico e o filósofo, ao se completarem na busca da harmonia plena do homem com a natureza. 14 Os médicos gregos interpretaram um dos mais complexos problemas do diagnóstico: as múltiplas formas como uma mesma doença pode se manifestar. Para superar o estorvo, os teóricos das escolas de Knido e Cós viabilizaram classificações descrevendo essas manifestações, mas reconhecendo-as como uma doença (Thivel, Antoine. Cnide et Cós? Paris. Les belles Lettres. 1981). O genial dessa nova interpretação, nunca antes usada, é o fato de ter evitado o erro cometido nas medicinas-oficiais anteriores, praticadas nas primeiras Cidades, onde as muitas manifestações clínicas da mesma moléstia eram consideradas doenças diferentes. Esse método foi identificado por Platão como dissecação ou divisão dos conceitos universais nas suas diferentes classes (Cornford, F. M. Principium Sapientiae: as origens do pensamento filosófico grego. 2. ed. Lisboa. Fundação Calouste Gulbenkian, 1981). A Medicina como paidéia também contribuiu para que Platão reconhecesse as três virtudes do corpo saúde, beleza e força que harmonizariam com as quatro virtudes da alma piedade, valentia, moderação e justiça. As atitudes educadoras da Medicina como paidéia ultrapassaram os limites da terapêutica e incluíram a massagem, a prática dos esportes, a música , a dança, o teatro e os banhos coletivos no cotidiano da busca da saúde. No texto Das Epidemias (Darember. Oeuvres Choisies d’Hippocrate. Paris. Labe Éditeur. 1855), da Escola de Cós, esta idéia está clara: “A arte do médico consiste em eliminar o que causa dor e em sarar o homem, afastando o que o faz sofrer. A natureza pode por si própria conseguir isto. Se sofro for estar sentado, não é preciso mais que levantar-se; se sofre por se mover, basta descansar. E tal como neste caso, muitas coisas da arte do médico a natureza as possui em si própria”. Também é possível sentir, ao longo do século 3 a.C., o vigor da ação médica ligada à noção global da natureza jônica. O livro Das Epidemias confirma os conceitos de harmonia e medida (Daremberg. Oeuvres Choisies d’Hippocrate. Paris. Labe Éditeur. 1855): “ ... o esforço físico é o alimento para os membros e para os músculos, o sono é para as entranhas. Pensar é para o homem o passeio da alma”. 15 Nesse sentido, o médico era chamado para recompor a saúde, por meio de técnicas desconhecidas dos não médicos. Para esse fim, utilizava os saberes como instrumento de leitura da natureza, como a justa medida da saúde. Hipócrates e os médicos da Escola de Cós, na obra Da Medicina Antiga, seguiram esse pressuposto ao afirmarem que o médico não pode saber de Medicina nem tratar os seus doentes sem conhecer a natureza do homem (Daremberg. Oeuvres Choisies d’Hippocrate. Paris. Labe Éditeur. 1855: “... os argumentos deles apontam para a Filosofia tal como a de Empédocles e de outros que escreveram sobre a natureza e descreveram o que o homem é desde a origem, como primeiro surgiu e de que elementos é constituído”. A concepção teórica de saúde dos gregos também envolveu a harmonia. Sendo de natureza harmônica em si mesma, isto é, preenchendo na medida e simetria exatas as vicissitudes individuais, a saúde deveria ser procurada neste contexto da compreensão do normal. Sob essa mesma perspectiva, Platão (Fédon, 93e; Leis 773a; Górgias 504c) entendeu a saúde como a ordem do corpo e Aristóteles (Aristote. Ética a Nicômaco. X 1180b) associou o multiplicidade do comportamento moral às múltiplas dietas prescritas pelos médicos para as febres, mas não para todas as febres. A tendência classificatória do pensamento grego, especialmente o aristocrático, estimulou as tentativas de ordenar as doenças em grupos que apresentassem alguma semelhança no diagnóstico, no tratamento e no prognóstico. Com a literatura médica contendo as recomendações específicas das normas que deveriam ser obedecidas para evitar a doença, a medicina-oficial grega inicia outra importante contribuição para consolidar-se como paidéia a saúde não dependeria só dos médicos. A dieta, a higiene, o laser, a cultura, o esporte são partes do corpo são. Os hospitais construídos nesse período eram grandes e possuíam divisões destinadas aos médicos e enfermos. O hospital da Escola Médica, na ilha de Cós, possuía salas de salas de exames, alojamentos individuais para os doentes, salas de banhos coletivos, praça de esportes e anfiteatro para dez mil pessoas. É um dos muitos exemplos de como a arquitetura grega amparava o discurso teórico da harmonia com a natureza na busca da saúde. 16 O novo espaço da Medicina como Paidéia junto aos conceitos jônicos com objetivos educadores, contribuíram para o surgimento das mais importantes obras médicas destinadas ao público não médico. Essas obras, Da Dieta, De um Regime de Vida Saudável e Da Natureza do Homem contêm fantásticas sugestões de como deve ser a vida das pessoas para evitar as doenças. Entre muitos aspectos, descrevem detalhes da caminhada após cada refeição dependendo da idade e das condições físicas de cada pessoa nas diferentes estações do ano. A palavra higiene se impõe no sentido regulador não só da alimentação, mas também como caráter educativo na rotina do trabalho. A ginástica passou a fazer parte da manutenção da saúde. Por esta razão, os ginastas permaneceram independentes frente ao crescente poder médico nas relações sociais e também conquistaram papel importante no aconselhamento do corpo sadio. O texto De um Regime de Vida Saudável se propõe servir de guia ao público. O autor desconhecido estabeleceu os parâmetros da cultura médica mínima que todos deveriam ter para permanecerem saudáveis. O objetivo central seria estabelecer, pela lei, o caminho que as pessoas deveriam seguir para evitar a doença. O propósito parece ser o mesmo do autor do livro Da Dieta que aborda, em quatro capítulos,a teoria dos Quatro Humores. Se as patologias eram causados pelo desequilíbrio dos humores o sanguíneo, o linfático, o bilioso amarelo e o bilioso negro e estavam relacionadas com ao cotidiano das pessoas, nada mais lógico do que estabelecer normas alimentares com o intuito de evitar os males da alimentação. A estrutura teórica da Medicina como paidéia, na Grécia, no século 3 a.C., estava tão bem elaborada que perpassou o mundo romano. No século 2 d.C., o médico Galeno (138-201), o mais conhecido representante da medicina- oficial romano-cristã, acoplou aos humores da Escola de Cós as novas categorias denominadas temperamentos. Os escritos galênicos, valorizados durante mais de quinze séculos, no Ocidente cristão, valorizava a sangria sobre todas as alternativas de tratamentos. Para cada humor haveria um 17 temperamento que ditaria as condições de saúde, de doença, e da capacidade intelectual de cada indivíduo: Humor Temperamento Sanguíneo Sanguíneo Fleuma Linfático Bilioso preto Melancólico Bilioso amarelo Colérico A imensa flexibilidade da Medicina como paidéia acabou ferida, na Idade Média, pela intolerância restritiva exaltando a medicina-divina, onde Jesus Cristo e os Santos ao substituírem os deuses e deusas greco-romanos, tornaram-se a única terapêutica requerida pelos incontáveis doentes sem esperanças, nos incontáveis santuários, especialmente em Jerusalém e Compostela. A influência hipocrático-galênica trazida pelo elemento colonizador esteve claramente presente no Brasil, quando a princesa Paula Mariana, filha do primeiro imperador do Brasil, sob os cuidados dos mais importantes médicos da corte, faleceu após ser submetida às muitas sangrias e clisteres para expurgar os “maus humores”. No século 19, quando o viajante Von Martius descreveu o temperamento dos índios como “fleumático, por terem pouco sangue nas veias”. 18 II MEDICINA COMO ESPECIALIDADE SOCIAL AÇÕES INTENCIONAIS E REPETIDAS NOS CORPOS PARA EMPURRAR OS LIMITES DA VIDA: ADESÕES E CONFLITOS Entre os anos 1950 e 1970, de modo geral, nos países industrializados, os cursos de Medicina, desvincularam-se ainda mais das relações históricas do doente e das doenças. Esse fato pode ter contribuído para acentuar a desinformação sobre quanto representa o papel da Medicina, desde a pré- história, no processo de busca, para manter a solidariedade na relação médico- paciente, aumentar a materialidade e diminuir a abstração na abordagem da saúde e da doença. O processo que culminou com a Medicina como especialidade social, com avanço e recuos, tem proporcionado: - Entender, dominar e modificar a multiplicidade dinâmica das formas e funções do corpo; - Estabelecer os parâmetros do normal e da doença; - Vencer as limitações impostas pelo determinismo da dor e da morte. É mais difícil ao médico da atualidade compreender a Medicina sem olhar para trás e apreender a dinâmica social co-relacionada às práticas de curas. Esses saberes históricos, negligenciados pelos que optaram exclusivamente pela tecnologia médico-hospitalar, facilitam o entendimento da função do médico, como um dos especialistas sociais que trabalha para evitar a dor e empurrar os limites da morte. Sob esse enfoque – as práticas de curas – não comportam a dissociação entre o presente e o passado distante. As práticas de curas constituem história de longa duração, iniciado na pré-história, antes de a nossa 19 espécie ter promovido o sedentarismo. Os registros arqueológicos daquela época se mostram suficientes para que as análises paleopatológicas possam caracterizar algumas ações intencionais e repetidas do ancestral sobre o corpo do outro com o fito de adiar os limites da vida. É possível que as comunidades ágrafas de caçadores e coletores tivessem na busca da sobrevivência cotidiana e na observação das mudanças, em torno da natureza circundante e do corpo, grande parte da atenção. As relações entre a vida-morte e saúde-doença deveriam estar entre as mais significativas, já que interferiam na segurança pessoal e coletiva. Esse conjunto pode ter provocado a especialização de alguns membros que se interessaram em controlar as situações de risco à vida. Nessa fase, quando o nosso ancestral começou a tentar modificar os determinismos dos binômios vida-morte e saúde-doença, iniciou o extraordinário processo com o objetivo de diminuir a abstração e aumentar a materialidade das ações que pudessem evitar a dor e empurrar os limites da vida. Essas pessoas diferenciadas fizeram-se curadores! Naquele contexto, os nossos ancestrais distantes, os curadores, marcados pela generosidade e cooperação como instrumentos mentais que os distinguiam dos outros animais, alguém que cuidava do outro, fragilizado ou ferido, impossibilitado de se movimentar ou cuidar da própria segurança, iniciou a construção dos elos de confiança entre o curador e o doente, bases sustentadoras da Medicina como especialidade social. Os registros paleopatológicos indicam a existência de práticas de curas, na pré-histórica, alguns milhares de anos antes dos documentos escritos na Mesopotâmia. Um desses conjuntos bem documentado data de aproximadamente 45.000 anos, no Pleistoceno Superior. Trata-se do esqueleto de um Neandertal, descoberto no monte Zagros, no Iraque, com traços de amputação intencional, no braço direito, com a marca indiscutível de o osso ter sido seccionado com a ajuda de objeto cortante e, no coto amputado, sinal de crescimento ósseo, comprovando que o hominídeo viveu muito tempo após a amputação, suficiente para proporcionar o crescimento ósseo do úmero. Sem que jamais saibamos a razão pela qual o hominídeo teve o braço amputado, 20 comprova que um ou mais membros praticaram a ação dirigida no corpo de outro, para adiar os limites da vida. Existem outras ações curadoras bem documentadas, como a encontrada no osso rádio de ancestral que viveu em torno de 25.000 anos, com sinal de fratura traumática consolidada após ter sido reduzida de modo correto e imobilizada, demonstrando que recebeu ajuda por outro membro do grupo social. Sem dúvida, fora das lesões determinadas pelos traumas, acidentes e embates dos nossos ancestrais entre eles e com outros animais, doenças causadas por vírus, fungos e bactérias deixaram marcas nos ossos dos pré- históricos que existiram antes da nossa espécie. A questão maior é tentar desvendar como esses grupos de caçadores e coletores se relacionavam com as doenças na luta pela sobrevivência. A análise do registro paleopatológico pode estabelecer algum paralelismo da ação curadora exercida pelo homem pré-histórico com certos grupos étnicos ágrafos, de caçadores-coletores, como os bosquímanos, na África, e indígenas no noroeste do Amazonas. A paleopatologia mostra que homens e mulheres pré-históricos estavam sujeitos a diversas doenças semelhantes as do homem moderno. A fratura traumática constituiu uma das mais freqüentes nos fósseis estudados. Em alguns, foram confirmados sinais evidentes de graves formas de osteomielite, lembrando as encontradas nos hospitais de hoje. Do mesmo modo, se comprovou a existência de doenças sistêmicas, não traumáticas, como a denominada gota das cavernas, uma espécie de reumatismo do homem pré-histórico que certamente dificultava a locomoção. Nesse caso, alguém fornecia o alimento e a guarda desse ancestral fragilizado, sugerindo ação plena de generosidade e cooperação. Com exceção do corpo congelado de um caçador, queviveu em torno de 6.000 anos, encontrado nos Alpes, na Suíça, as pesquisas arqueológicas jamais encontraram outros corpos ou órgãos anteriores a essa época. Por outro lado, foram identificadas várias bactérias pré-históricas fossilizadas. O pólen de Nenúfar, designação de diversas plantas da família das ninfeáceas, capazes de determinar reação alérgica no homem atual, existe desde o 21 Pleistoceno Médio, isto é, há mais de 100.000 anos. A tuberculose óssea na coluna vertebral, problema médico freqüente nos países subdesenvolvidos, foi documentada por achado de esqueleto de homem do período Neolítico, constituindo, sem dúvida, o primeiro exemplar médico dessa doença. A ocorrência de moléstias na pré-história é indiscutível. Porém, interessa conhecer como os homens primitivos iniciaram a luta para controlar a dor, conservar a saúde e empurrar os limites da vida. Sob essa perspectiva, é possível articular respostas comparativas com o comportamento de certos animais, quando estão feridos ou doentes: lambem os ferimentos, fazem limpeza mútua e comem plantas eméticas. Parece lógico pressupor que o homem primitivo tivesse se comportado da mesma maneira: lambendo a área ferida, pressionando o local para parar a hemorragia dos ferimentos traumáticos e utilizando recursos da natureza circundante para interromper a dor, como a amputação intencional realizada no hominídeo encontrado na sepultura pré-histórica do monte Zagros. Perdura a questão de quando iniciou, na hominização, uma das mais importantes mudanças no sistema nervoso central, o aparecimento do neocórtex e das ligações com diferentes níveis encefálicos, capaz de construir as concepções abstratas, que poderiam ter culminado em mudanças do pensamento-comportamento capazes de construir idéias abstratas na busca de cura das doenças. Na gruta de Trois Frères, nos Pirineus franceses, continua desafiando a imaginação coletiva a pintura do personagem, em movimento de dança, datada de 10.000 anos, travestido de cervo, em atitude que sugere uma espécie de ritual, semelhante aos movimentos do chamam, na dança dos bisões, dos índios, no norte dos Estados Unidos, e do pajé, no norte do Amazonas, ambos em cerimônias simbolizando o poder animal na cura das doenças. O conjunto das informações paleopatológicas, no Neolítico, em torno de 10.000 anos, sugere fortemente a efetiva incorporação de métodos empíricos estruturando a ação intencional do homem sobre outro homem. Essas atitudes, algumas vezes foram muito agressivas, como a trepanação do crânio com instrumentos suficientemente fortes para cortar regularmente os ossos do crânio em formas geométricas bem definidas. Essa extraordinária prática é 22 facilmente comprovada por meio do estudo dos fósseis. E mais, alguns desses homens pré-históricos que sofreram a craniotomia sobreviveram muito tempo após a realização, o suficiente para favorecer o crescimento do osso cortado. É interessante assinalar que craniotonias semelhantes as do Neolítico europeu, também foram executadas, até o século 16, em outras sociedades que não tiveram contato interétnico, como as da Polinésia francesa e as do altiplano peruano nos tempos pré-coloniais. Restará sempre a dúvida do por que as craniotomias terem sido realizadas. De qualquer modo, não há como negar que representou conjunto de ações absolutamente extraordinárias, na medida em que uma parte do corpo, o conteúdo do crânio, foi exposta intencionalmente, desvendando o escondido atrás da pele e do osso. É possível que o curador pré-histórico tenha exercido, simultaneamente, funções de liderança. Essa demonstração explícita de poder – um homem mortal igual aos outros, intervindo no corpo do outro – resultaria em grande destaque no grupo social. Respeitando as devidas proporções, essa relação de dominação do curador sobre o objeto da sua prática – o doente –, sob alguns aspectos, perdura até os dias atuais. Esse poder do curador, na pré-história como nos dias atuais, poderia aumentar o nível de persuasão sobre o doente, tendo como base dois dos pontos de maior sensibilidade humana: o pressuposto de a ação intencional do curador poder interromper a dor fora de controle ou aumentar os limites da vida. Esse processo complexo, da fuga da dor e da morte, pode ter sido um dos pilares sustentadores que edificaram os ancestrais distantes para aperfeiçoar a linguagem e transmitir os saberes., também na construção do curador. Com o sedentarismo avançando, no Neolítico, importantes modificações foram se processando nos grupos sociais que habitavam as terras férteis da Mesopotâmia e do Egito. Essas sociedades arcaicas iriam absorver parte da experiência acumulada. Nessa fase, ocorreu o início da modificação da economia produtora, passando do nível de subsistência coletiva à concreta divisão do trabalho, com o aparecimento do excedente de produção e das 23 trocas comerciais. As sociedades mostravam-se francamente hierarquizadas. Também surgiram as propriedades privadas, que possibilitaram os assentamentos duradouros dos antigos grupos de caçadores e coletores, que evoluíram para a organização das primeiras aldeias. As cidades foram sendo formadas e fortalecidas, nas margens de lagos e rios piscosos e nas rotas de migração dos grupos caçadores e coletores. Entre as mais festejadas, destacaram-se as que obtiveram avanços na guarda territorial e poder de guerra de conquista de novos territórios: a babilônia e a egípcia. Esses povos, aqui compreendidos como civilizações regionais, decididamente, influenciaram as culturas posteriores por terem assimilado, ao longo de vários milênios, diferentes formas de governos, predominando o teocrático de regadio e mercantil-escravista. As transformações urbanas também provocaram reconstruções das idéias e crenças religiosas com o aparecimento dos templos, para abrigar os deuses e deusas, e uma nova hierarquia social formada e homens e mulheres identificados como intermediários das divindades: sacerdotes e sacerdotisas. É possível que o atávico medo da morte e da dor fora de controle tenha desempenhado papel importante para que essas pessoas, aceitas como representantes das divindades, também fossem entendidas capazes de realizar curas, por meio da ação dos deuses bons e evitar a intervenção dos deuses maus. Dessa forma, é possível que os primeiros médicos, assim entendidos pelo poder político dominante, tenham se formado nos templos, como núcleos de ensino do conhecimento historicamente acumulado. Nessas sociedades rigidamente hierarquizadas, como na egípcia e mesopotâmica, as mudanças sociais induzidas pela urbanização, moldaram a ação dos curadores em torno de três vertentes, sem que existissem limites precisos, formadas por homens e mulheres especialistas, compreendidos como capazes de controlar a dor e empurrar os limites da morte. - Medicina-divina: Com indissolúvel aliança com deusas e deuses protetores e taumaturgos. Os agentes representados pelos representantes das divindades: sacerdotes e sacerdotisas, que construíam ladainhas e cânticos para facilitar a intervenção dos deuses bons e evitar os demônios causadores de doenças; 24 - Medicina-empírica: Utilizando o conhecimento historicamente acumulado a partir dos recursos terapêuticos da natureza circundante. Os agentes estavam entre parteiras, herveiros, os que sabiam reduzir e imobilizar as fraturas, incisar abscessos, massagistas e outros que dominavam o conhecimento historicamente acumulado dos remédios retirados das plantas. - Medicina-oficial: Muito mais recente do que as anteriores, tendo oúnico agente, o médico, presente e nominado nas primeiras cidades, da Mesopotâmia e do Egito, mantendo claro vinculo com o poder político dominante e por ele remunerado. Por essas razões sujeito às sanções disciplinares moldadas pelo mesmo poder dominantes, como o claramente exposto no Código de Hammurabi. As enormes mudanças sociais que alcançaram os descendentes, já sedentários, dos antigos caçadores-coletores, também impuseram reconstruções nas práticas de curas, naquele momento, já envolvendo os agentes da Medicina-divina, Medicina-empírica e Medicina-oficial, continuamente interligados, sem que se possa determinar o início da ação de um e o fim da do outro: - Apreensão do conjunto de conhecimento historicamente acumulado, oriundo da pré-história, voltado às ações que poderiam interromper ou amenizar a dor fora de controle: agentes da Medicina-empirica; - Utilização de ritos das idéias e crenças religiosas, para buscar a cura: agentes da Medicina-divina; - Processo formador, nos templos das divindades dominantes, sob a guarda do poder político, capaz de transmitir e registrar nas respectivas linguagens escritas, os saberes envolvendo os dois anteriores acrescidos de outras observações das doenças e dos doentes: agentes da Medicina-oficial. As guerras que ofereceram os saques, novos escravos e territórios, fortaleceram a troca de conhecimentos entre os agentes de curas. Também é provável que os mais destacados tenham sido absorvidos nas sociedades vencedoras. Por outro lado, os traumas provocados pelo combate corpo a corpo, acrescentaram outros saberes, principalmente, no manuseio das 25 grandes feridas, incisão de abscessos, imobilização das fraturados e nas amputações dos membros dilacerados. Os metais foram fundidos e o cobre utilizado em várias atividades produtivas. A agricultura tomou corpo com os arados primitivos. Apareceu o barco com vela e o uso do ferro. Esses fatos da nova vida social contribuíram para aumentar as trocas do excedente da produção, fortalecendo a maior especialização e a propriedade privada dos mais poderosos. Outro extraordinário desdobramento da construção do pensamento subjetivo, já claramente presente no neolítico, a crença no renascimento após a morte, conduziu ao sepultamento ritual das pessoas prezadas, acompanhado de grandes quantidades de carne e artefatos de pesca e caça junto aos esqueletos, que, de acordo com o professor Leroi Gurhan presente desde 20.000. Esse cuidado importou manuseios específicos do corpo morto, junto aos rituais religiosos, para a conservação após a morte. Essa conduta alcançou níveis de grande sofisticação entre os egípcios. Nas sociedades que floresceram, em torno de 4.000 anos, nas margens dos rios Tigre, Eufrates, Nilo e Indo, além dos agentes da Medicina-empírica e Medicina-divina, os registros identificam os médicos, como agentes da Medicina-oficial, nominados de acordo com as funções e especialidades e remunerados pelo poder político dominante, A atividade médica deveria ser intensa e diferenciada nos vários segmentos sociais, suficiente para originar conflitos muito freqüentes, gerando mal-estar social e obrigando o legislador intervir. O rei Hammurabi (1728-1688 a.C.), da Babilônia, dedicou vários parágrafos do seu famoso código para disciplinar o exercício da Medicina, impondo prêmios e castigos. Nos parágrafos 218 a 223, está claro que: o médico era reconhecido e ocupava espaço importante nas relações sociais numa sociedade claramente hierarquizada. Somente é possível entender as severidades das penas como espelho do problema social gerado pelo grande número de conflitos oriundos da má prática, todas de procedimentos cirúrgicos: 218 – Se um médico fez em um awilum (homem livre em posse de todos os direitos de cidadão) uma incisão difícil com uma faca de bronze e o causou a 26 morte do awilum ou abriu o nakkaptum (sobre a sobrancelha) de um awilum com uma faca de bronze e destruiu o olho do awilum: eles cortarão a sua mão; 219 – Se um médico fez uma incisão difícil com uma faca de bronze no escravo de muskenum (intermediário entre o awilum e o escravo) e causou a sua morte: ele deverá restituir um escravo como o escravo morto; 220 – Se ele abriu a nakkaptum de um escravo com uma faca de bronze e destruiu o seu olho: ele pagará a metade do seu preço; 221 – Se um médico restabeleceu o osso quebrado de um awilum ou curou um músculo doente: o paciente dará ao médico 5 ciclos (cerca de 40 gramas) de prata; 222 – Se foi filho de um muskenum: dará 3 ciclos (cerca de 24 gramas) de prata; 223 – Se foi um escravo de um awilum: o dono de escravo dará 2 ciclos (cerca de 16 gramas) de prata. Com isso o Código de Hammurabi, como a primeira manifestação de poder dominante de práticas médicas laicizadas, firmou conceito e jurisprudência de dois pontos cruciais da ordem médica: - Sanções que os médicos devem receber pela má prática; - Honorários diferenciados pela prática de bons resultados em pessoas dos diversos grupos sociais. Tanto as sanções quanto as punições eram diretamente proporcionais ao enquadramento social e financeiro do doente, quando mais próximo do poder dominador estivesse o doente, maior o honorário pela prática de bom resultado e mais severa a penalidade pela prática que resultasse em sequela incapacitante ou morte, incluindo a amputação das mãos. Ao contrário, se o doente fosse um escravo, a remuneração era menor e o castigo mais brando. Os registros apontam não terem ocorrido grandes diferenças entre as ações médicas nas sociedades que se desenvolveram nas margens dos rios Tigre, Eufrates e Nilo, no segundo milênio a.C. Nessas civilizações regionais, apesar dos avanços, não existia nenhum esboço teórico desvinculado das idéias e crenças religiosas para compreender a saúde e as doenças. Cada moléstia era compreendida como unidade única com indissolúvel componente dependente da vontade de um ou mais deuses ou deusas. Como conseqüência 27 da divinização da saúde e da doença, só outra ação divina ou humana ajudada pelo deus ou deuses protetores poderia desfazer o nó causador de sofrimento. Um dos antigos documentos escritos que registra a participação do médico, no antigo Egito, data de início do segundo milênio a.C., na estela funerária de Was-ptah, onde está descrita uma morte por colapso cardíaco. Ainda no Egito, nesse período, já existia diferenças entre as práticas médicas, traduzindo certa especialização. Um médico da corte Khaui, na IV Dinastia, faz clara distinção entre cirurgiões e médicos, que se dividiam em três especialidades: os que tratavam das doenças dos olhos, dos dentes e do corpo. As traduções dos papiros médicos trouxeram esclarecimentos de como ocorriam as práticas médicas, pelo menos nas camadas sociais mais abastadas, com registros de muitas doenças e os respectivos tratamentos, com extraordinário bom senso. - Papiro de Ebers: O nome é do primeiro comprador George Ebers, que adquiriu, em 1872, de um comerciante egípcio. Hoje, está na Universidade de Leipzig, na Alemanha. O autor ou autores do Papiro de Ebers escreveram o texto em torno do ano 1550 a.C., no reinado de Amenophis I. Alguns especialistas acreditam ser cópia de outro papiro mais antigo. O Papiro de Ebers tem 20 metros de comprimento e contem um conjunto de informações de natureza médica, incluindo 875 receitas. Entre outros registros de impressionante acuidade e bom senso, se destaca a descrição do infarto do miocárdio: “Se examinares um homem que sofre do estômago, se queixa de dores no braço e no peito, mais precisamente na partelateral... Diz-se então que se trata de doença wid... Deves dizer: é a morte que se aproxima dele...”. - Papiro de Smith: Encontrado numa tumba, em Tebas, datado de 1570 a.C., comprado por Edwin Smith, em 1862, um jovem egiptólogo americano. Como o Papiro de Ebers, é sugestivo ser compilação de outros registros anteriores. O texto trata de bem ordenado conjunto de informações de anatomia e procedimentos cirúrgicos. A instrução 35 descreve com precisão o tratamento da fratura bilateral da clavícula: “Se você estiver examinando um homem com fraturas 28 nas clavículas, encontrando uma mais curta e em posição diferente da outra, então você tem de dizer: trata-se de fratura de ambas as clavículas, uma enfermidade que eu trato. Você deve então deitá-lo de costas dobrando algum objeto para colocá-lo entre as omoplatas. Depois deverá afastar as omoplatas para que as duas clavículas retornem ao lugar certo. Faça então dois chumaços de tecido, um deles deve ser colocado no lado de dentro da parte superior do braço; o outro, na parte inferior do úmero. Depois, imobilizar a fratura com atadura com mineral... - Pequeno Papiro de Berlim: Escrito em 1540 a.C., na 17ª. Dinastia, contém prescrições em forma de encantamentos para proteger as mães e os filhos. - Grande papiro de Berlim ou Brugsch: Escrito em 1540 a.C., também na 17ª. Dinastia, é o mais específico: medicação para tratar parasitas intestinais. É possível analisar a importância desse receituário na medida em que a civilização egípcia se desenvolveu nas margens do rio Nilo, aproveitando as margens ricas de humos das várzeas, onde também estavam os animais domesticados, determinando facilidade à infestação intestinal. - Papiro de Londres: Descreve ritos de natureza religiosa para tratar doenças dos olhos e das mulheres. - Papiro de Kahoun: O mais antigo dos papiros médicos, escrito em torno de 2.000 a.C., trata do diagnóstico e tratamento das doenças ginecológicas, da gestação e do parto. - Papiro de Cheaster Beatty: Escrito em torno de 1330 a.C. descreve as doenças do ânus e os respectivos tratamentos. Apesar da extraordinária qualidade das informações contidas nos papiros médicos, se torna evidente a ausência do processo teórico para entender a saúde e a doença fora dos poderes dos deuses e deusas dos 29 panteões egípcios. O conjunto informativo sugere que os tratamentos eram empregados como receitas de bolos. De modo geral, o conhecimento historicamente acumulado moldando os saberes empíricos da natureza circundante, sob a guarda dos médicos, estava presente nas terapêuticas contidas nesses papiros. Mesmo à luz dos conhecimentos atuais, não há como duvidar da extraordinária eficácia. Entre outros exemplos: - Recomendação do chá de sementes da papoula aos recém-nascidos insones; - Digital aos idosos com taquicardia e edema nas pernas; - Identificação dos diferentes tipos e sequelas dos traumas crânio- encefálicos; - Imobilização dos membros fraturados. Não é demais repetir que nessas culturas regionais também está clara a inter-relação da Medicina-divina, Medicina-empírica e Medicina-oficial, sempre atadas entre si, sem que seja possível estabelecer os limites onde uma começava e a outra terminava: - Medicina-divina: com indissolúvel aliança com deusas e deuses protetores e taumaturgos; - Medicina-empírica: utilizando o conhecimento historicamente acumulado a partir dos recursos terapêuticos da natureza circundante; - Medicina-oficial: representada pelas práticas de curas realizadas médicos, desfrutando de reconhecidos e remuneração pelo poder dominante, mas com forte vínculos com as anteriores. Apesar da utilidade prática dos monumentais conteúdos dos papiros de Ebers e de Edwin-Smith, a prática da Medicina-oficial egípcia estava longe de constituir um sistema organizado. Não é demais repetir a ausência de estrutura teórica para explicar a saúde e a doença fora do domínio das crenças e idéias religiosas. A resultante dessa condição estava atrelada no fato de cada doença ser considerada uma entidade mórbida em si mesma. Além de a Medicina praticada no Egito, a que era feita na Babilônia, também apresentava característica semelhante: ausência da estrutura teórica para entender a saúde e a doença fora dos domínios do sagrado. Entre muitos 30 exemplos, a Medicina-divina babilônica considerada as doenças como castigo do deus Shamash, que presidia a justiça. As práticas médicas que se desenvolveram nessas cidades-estados, mesmo com a estrita vinculação religiosa, todas apresentam notáveis registros da eficácia dos saberes historicamente acumulados articulando o uso empírico dos recursos da natureza circundante. Confirmando que, paralelamente, existiam a Medicina-empírica e a Medicina-oficial que utilizavam remédios oriundos de plantas medicinais: beladona, anis, óleo de rícino, gengibre, hortelã, romã e a papoula, que continuam sendo utilizados até hoje, por milhões de pessoas em vários continentes. Nessa fase, em torno da primeira metade do segundo milênio, as pesquisas arqueológicas nas principais cidades, mostraram importantes mudanças introduzidas para melhorar as condições sanitárias, pelo menos nas partes mais ricas, próximas aos palácios da administração: redes de esgotos, abastecimento de água potável, de fazer inveja as periferias urbanas de muitos países. Não há porque duvidar que essa melhoria arquitetônica, mesmo somente voltada aos ricos e influentes, também fora relacionada às informações patrocinas pelas primeiras experiências do sedentarismo, nas margens dos grandes rios e lagos, e com a efetiva participação dos médicos, agentes da Medicina-oficial, interessados que as doenças observáveis nos grupos mais pobres, onde não existiam cuidados com os excrementos e sem água potável, não alcançassem os mais ricos. É importante salientar que o progresso na melhoria da condição de vida das pessoas que podiam desfrutar da água potável e do esgoto sanitário, nas próprias casas, certamente, não acessível aos mais pobres e escravos, não estava estritamente ligado às idéias e crença religiosas; se tratavam de objetivos concretos ligados à saúde e à doença. Existe, no Museu de Louvre, em Paris, um vaso achado na região de Lagash, apresentando o símbolo do deus da cura – Ningishzida – com dois dragões coroados e duas serpentes entrelaçadas num bastão. É possível que a solidez desse símbolo mítico – a serpente – ligado à cura de doenças de alguma forma já estivesse fortemente presente nas gerações anteriores. Só 31 assim é possível explicar por que tenha sobrevivido durante tanto tempo, metamórfica, na Medicina greco-romana, na serpente entrelaçada no bastão, representando Asclépio, o deus grego da Medicina, e adotada pelos médicos até hoje. Essa solidez simbólica pode estar acoplada ao fato de a serpente ter relação com a requerida transcendência humana, podendo renascer após a morte: a cobra pode viver acima e abaixo da terra, atuando como mediador entre os dois mundos, e, especialmente, como nenhum outro animal, de tempos em tempos, substitui a pele, marcando a capacidade de renascer em vida. A grande mudança das práticas médicas, ocorreu na Grécia, na primeira metade do século 5, durante a administração de Péricles, na consolidação da cultura grega ligada à cidade-estado (do grego = pólis) com estrutura político- jurídica defendendo a liberdade de escolha do cidadão livre, portanto pequena parcela da sociedade. Nesse conjunto, sobressaindo Hipócrates e seus seguidores, na ilha de Cós, entre outros extraordináriosfilósofos, constituiu o esplendor da nova visão das relações do homem com a saúde e a doença. 32 III BUSCA DA DOENÇA NA MICROLOGIA PENSAMENTO MICROLÓGICO: SEGUNDO CORTE EPISTEMOLÓGICO DA MEDICINA De modo genial, Marcelo Malpighi (1628-1694), em 1666, com o livro “De viscerum structura”iniciou o processo de retirada da doença dos humores de Hipócrates para recolocá-la na microestrutura, estabelecendo o segundo corte epistemológico da Medicina como especialidade social: o pensamento micrológico, que mudaria quase tudo nos anos seguintes ate a atualidade. O resultado instituiu o pensamento micrológico, inaugurando o desvendar da multiplicidade das formas e das funções escondidas dos sentidos natos, numa dimensão invisível aos olhos desarmados. Pouco a pouco, o estudo da célula dominou os meios acadêmicos. Hoje, é o sustentáculo do atual ensino da Medicina-oficial. Mesmo nos hospitais mais bem equipados, na atualidade, nos tratamentos dependem do diagnóstico microscópico quantitativo e qualitativo das células corporais. Isso significa que a estrutura teórica dos saberes médicos, em pleno século 21, se alicerçada sobre os princípios teóricos da micrologia do século 17. O pensamento micrológico enfraqueceu as teorias greco-romanas de Hipócrates e Galeno, entendidas como dogmas das universidades, no medievo europeu. Não muito depois, os processos teóricos que amparavam a micrologia, a busca da materialidade da doença na microscopia, substituíram as idéias da Escola de Cós. Os sistemas teóricos interligados e dependentes de Hipócrates e Galeno, capazes de explicar a saúde, a doença e a expressão do ser no social, mostraram-se tão adequados ao observável que dominaram as regras do diagnóstico, da terapêutica e as bases do ensino da Medicina-oficial no 33 Ocidente durante quase vinte séculos. Ao lado dessa forte relação em torno das teorias hipocrático-galênicas que atravessou a Idade Média, alguns religiosos, como Miguel Servet, estudante da Universidade de Tolousse, em 1530, imbuído da leitura dogmática bíblica, ao procurar explicação para o sopro de ar que deu vida ao primeiro homem, no livro “Christianismi restituio”, descreveu a pequena circulação coração-pulmão. Contudo foram os estudos de Hipócrates e Galeno que suplantaram todas as outras correntes cientificas. Alcançaram o Brasil Colônia e os médicos da corte portuguesa. Durante vinte e três dias de febre e convulsão que antecederam a morte da Princesa Paula Mariana, filha do primeiro Imperador do Brasil, foi submetida às chupadas de quarenta sanguessugas, onze vesicatórios, oito cataplasmas e sete clisteres, prescritos pela equipe de dez médicos que se revezaram à cabeceira real. As teorias greco-romanas continuaram influenciando a Medicina-oficial até o século 19. É interessante assinalar que as idéias alcançaram não só os médicos da Coroa portuguesa, mas também os viajantes, do século 19, que estiveram no Brasil. O médico e viajante Carlos Von Martius, em 1844, descreveu os índios brasileiros “com temperamento linfático”, sob a perspectiva greco-romana, associando a teoria dos Quatro Humores de Hipócrates à teoria dos Temperamentos de Galeno. 34 IV BUSCA DA DOENÇA NO PENSAMENTO MOLECULAR TERCEIRO CORTE EPISTEMOLÓGICO DA MEDICINA NO GENÔMA Os estudos do frade agostiniano Gregor Mendel (1822-1884), mesmo não sabendo a grandeza da sua descoberta, abriu as portas da dimensão molecular, provocando nova reconstrução da Medicina como especialidade social, voltada ao desvendar da saúde e da doença na dimensão mlecular. Os hospitais dos países industrializados utilizam, na rotina diária, os resultados trazidos pelo pensamento molecular, acrescentado ao pensamento celular. Com o propósito de diagnosticar ou tratar certa doença, colocando a materialidade da saúde e da doença na dimensão molecular, são analisadas as quantidades e as qualidades de uma ou mais moléculas, entre as centenas de milhares que compõem a célula. O pouco tempo para a adequada disseminação dos saberes da Medicina-oficial na dimensão molecular, o alto custo e as dificuldades da tecnologia hospitalar de sair da célula para a molécula restringem esse avanço em poucos hospitais e instituições de ensino nos países em desenvolvimento. Como uma das conseqüências do pensamento molecular, da Medicina- oficial, a clonagem estreitou, geneticamente, a multiplicidade das formas e das funções, criando em laboratório seres idênticos a partir de células retiradas de um indivíduo adulto. Apesar de assustador, o produto do clone não humano, do mesmo modo como todos os animais nascidos da reprodução sexuada, ao longo do processo de amadurecimento, sofrerá a incisiva influência do social. Desta forma, no 35 momento, não existe perspectiva de eliminar a multiplicidade geradora das respostas do ser vivente frente aos desafios da sobrevivência. Mesmo sendo teoricamente possível, a clonagem de seres humanos é inconcebível. Não existem na linguagem oral e escrita argumentos para preencher a repulsa contra o alucinado ensaio de eliminar a principal característica do planeta: a multiplicidade. Com mais liberdade para teorizar, se pode pensar que a busca da materialidade não será interrompida na molécula. Nada nos impede de pensar na possibilidade de avançar na direção do átomo. Se assim ocorrer, a Medicina-oficial na dimensão atômica, no futuro, acrescentará novas construções complementando dados identificados no pensamento celular e pensamento molecular. A Medicina como especialidade social, especialmente, a Medicina-oficial por ser a única que sustenta processos teóricos para desvendar a saúde e a doença, em permanente reconstrução por meio dos acréscimos da ciência e tecnologia: os três cortes epistemológicos.: - Teoria dos Quatro Humores, século 4 a.C., dimensão corporal, primeiro corte epistemológico; - Micrologia, dimensão celular, século 17, segundo corte epistemológico; - Ultra-micrologia, dimensão molecular, século 19, terceiro corte epistemológico. Esse conjunto continua mudando muitos aspectos do antigo determinismo da doença e da morte inevitável. Do mesmo modo, abrindo outros caminhos para desvendar as menores composições da matéria viva contida na muito complexa relação entre moléculas, átomos e partículas subatômicas, certamente, envolvidos nos ainda desconhecidos processos determinantes do aparecimento das doenças. Parece lógico pressupor, nessa linha teórica, que no futuro, impossível de prever, a Medicina-oficial possa responder, entre outras dúvidas cruéis: - Como aparece a primeira célula cancerosa? - Haveria possibilidade de prever o infarto do miocárdio? - Qual a etiologia das doenças imunomoduladas? 36 - Onde estão as mudanças na forma, do sistema nervoso central, nas psicoses? - Porque doenças com o mesmo agente etiológico se manifestam distintamente? Por essas razões, é certo assegurar que a Medicina como especialidade social é uma realidade, que se mostra em contínua reconstrução, voltada ao controle da dor e empurrar os limites da vida. 37 V NOVOS AVANÇOS DA MEDICINA E OUTRAS RECONSTRUÇÕES DA ÉTICA MÉDICA, ATADAS À BUSCA DA VIDA, DO BOM, DO BELO, DO JUSTO NOS SÉCULOS 19 E 20 Século 19 Graças aos avanços a partirdo Renascimento europeu que atingiram a anatomia, fisiologia, histologia e anatomia patológica, o século 19 foi marcado por novos progressos na Medicina. Homens extraordinários como Mendel, lançando as bases do terceiro corte epistemológico da Medicina, inaugurando o pensamento molecular e Darwin, divulgando a nova concepção da evolução humana, tornaram esse período o expoente da Medicina voltada para entender o homem além do visível aos olhos desarmados.. Com o aumento da oferta nas universidades, cresceu o número de médicos. Ao combaterem ardorosamente a Medicina-empírica, muitos deles introduziram significativas mudanças nas práticas médicas, as quais perseguiam sistematicamente: - Identificar o agente etiológico da doença por meio da bacteriologia; - Aumentar o nível de investigação de cada doença, no exame clínico, com o objetivo de diferenciá-las rigorosamente e agrupá-las em grupos nosológicos; - Melhorar o conjunto de métodos da investigação clínica por meio de aparelhos que poderiam desvendar a estrutura anatômica em áreas invisíveis aos olhos; 38 - Retirada de material para exame microscópico e/ou físico-químico; - Reproduzir no laboratório as reações físico-químicas humanas; - Aprofundar os estudos das doenças mais comuns e que, historicamente, causaram o medo coletivo da dor e da morte prematuras; - Entender o desenvolvimento fetal. Esse conjunto de ações, entre os séculos 19, voltadas ao melhor compreensão do corpo humano e das doenças conviveu com o livro de Charles Darwin que continuava causando êxtase na intelectualidade, sem dúvida, contribuíndo para diminuir cada vez mais a interferência da Igreja na produção intelectual. Exame clínico e exames auxiliares O gradativo amento no rigor no exame para compreender as manifestações clínicas das doenças, motivou a procura de novos métodos: - Jean Nicolas Corvisat (1755-1821), descreveu a importância da percussão torácica nas doenças pulmonares; - René Laënnec (1781-1826), sistematizou as regras da ausculta pulmonar e cardíaca por meio de um cilindro oco de madeira, em 1819, no seu livro Traité de l’auscutation médiate; - Pierre Bretonneau (1778-1862), descreveu com precisão os sinais e sintomas da febre tifóide a a angina diftérica; - Gaspard Laurent Bayle (1774-1816), chamou atenção para as diferentes formas de apresentação da tuberculose e as evoluções clínicas; - Jean Baptiste Bouillaud (1796-1881), especificou com detalhes o reumatismo articular agudo; - Matthieu Orfila (1787-1853), considerado o pioneiro da toxicologia e da Medicina legal; - Joseph Récamier (1787-1852), inventor do espéculo vaginal. De igual modo, outros métodos buscaram métodos na fisiologia experimental: - François Magendie (1783-1855): -Precursor da fisiologia experimental; 39 - Primeiro cateterismo cardíaco; - Estudo dos gazes pulmonares; -Primeiro cateterismo cardíaco. - Claude Bernard (1813-1878), foi aluno de Megendie, publicou em 1865, o célebre livro L’Introduction à l’étude de la médecine expérimentale, no qual estabeleceu a função da gliconeogênese na glicemia. Em outros trabalhos avanço na compreensão: - Pâncreas; -Nervos vasomotores; - Glândulas endócrinas; - Glândula exócrinas; - Relação do cerebelo no equilíbrio. -Pierre Flourens (1794-1867), aprofundou os estudos entre o cerebelo e o equilíbrio; - Charles Bell (1774-1842), descreveu as localizações e as funções motoras dos nervos raquidianos, em 1830, no livro The Nervous System of the Human Body; - Emil Du Bois-Reymond (1818-1896), fundador da eletrofisiologia que demonstrou a natureza elétrica dos impulsos nervosos; - Auguste Chauveau (1827-1917), demonstrou a atividade elétrica do coração; - Johannes Müller (1801-1858), esclareceu alguns aspectos da fisiologia da visão e da audição; - Carl Ludwig (1816-1895), assinalou a fisiologia da mecânica cardíaca; - Étienne Jules Marey (1830-1904), formou as bases do registro gráfico do coração; - Charles Brown-Sequard (1817-1894), estudou a função das glândulas endócrinas; - Ivan Pavlov (1849-1936), autor do trabalhos pioneiros, em 1897, sobre os reflexos condicionados em cães; - Oskar Hertwig (1849-1922), em estudos experimentais em ursos, demonstrou que a fecundação é o resultado da fusão entre um gameta feminino e um masculino; 40 - Karl Ernst von Baer (1792-1876), descreveu com precisão o desenvolvimento do ovo humano; - Ernst Haeckel (1834-1919), ardoroso defensor do darwinismo, é o autor da famosa frase a ontogênese reproduz a filogênese, assegurando que o desenvolvimento do indivíduo está intimamente atado à espécie. Ainda outros médicos aperfeiçoaram os acessos às cavidades, firmando a base da endoscopia: - Filippo Bozzini (1773-1809), inventor do espéculo iluminado por meio do uso de espelhos; - Max Nitze (1848-1906), melhorou o instrumento de Bozzinni e montou o primeiro uretroscópio e citoscópio. O maior problema enfrentado foi o calor provocado pela lâmpada incandescente que limitava a duração do exame; - Punção lombar: realizada pela primeira vez pelo médico Heinrich Quincke (1842-1922) possibilitando a análise da composição química, celular e bacteriana do líquido cérebro-raquidiano; - Espirometria: idealizada por John Hutchinson (1811-1861), em 1846, para medir a capacidade pulmonar; - Oftalmoscópio: inventado e colocado em uso pela primeira vez, em 1851, pelo médico Hermann Helmholtz (1821-1894) para examinar o fundo do olho. Pensamento micrológico O indiscutível avanço no diagnóstico das doenças infecciosas patrocinado pelas conquistas da micrologia identificando as bactérias, não encontrou paralelo nos tratamentos. Ainda sem opção, os pacientes portadores das doenças infecciosas que sempre causaram medo na humanidade continuaram matando, só que, a partir do século 19, os pacientes morriam com o diagnóstico realizado. Ocorreu enorme esforço para controlar as doenças causadoras das epidemias que encheram e terror a humanidade: O maior representante do pensamento micrológico, precursor da citologia foi o médico Rudolf Virchow (1821-1902). Na sua obra fundamental Omnis 41 cellula a cellula resumiu o princípio fundamental da citologia: Toda célula se origina de outra célula. Sob essa perspectiva, os avanços podem ser agrupados em quatro segmentos: A. Bacteriologia: a. Louis Pasteur (1822-1895) O monumental trabalho de Pasteur tomou corpo, em 1877, em torno dos estudos sobre a fermentação. Logo em seguida, divulgou a método da pasteurizacão, para conservar o vinho e o leite. De modo definitivo, acabou com a teoria da geração espontânea, defendida durante a Idade Média, que preconizava ser possível surgir vida do ar, ao demonstrar que a cólera das galinhas era contagiosa e provocada por bactéria. Mesmo com a clareza das publicações, enfrentou ferozes inimigos que insistiam em negar a relação entre as bactérias e as doenças infecciosas. Entre os relevantes trabalhos de Pasteur, é possível destacar: - Identificação do estafilococo no furúnculo e na osteomielite; - Identificação do estreptococo na febre puerperal; - Introduziu a assepsia e anti-sepsia com famosa frase: Se eu tivesse a honra de ser cirurgião, sempre lavaria as mãos com muito rigor e as exporia, rapidamente, ao calor, e só usaria instrumentos limpos previamente submetidos à temperatura entre 130 e 150 graus e água tratada até 110 graus; - Introduziu o termo vacinação; - Realizou a primeira vacinação anti-rábica, em 6 de julho de 1885, numa criança de 9 anos de idade que
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