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Cândido Urbano Urubu

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Carlos Eduardo Novaes 
 
 
A História de Cândido 
Urbano Urubu 
 
 
 
CÍRCULO DO LIVRO S.A. 
 
 
 
 
 
 
À Ana Lúcia 
 
 
 
 
 
 
Cândido acordou com o barulho dos primeiros 
caminhões descarregando lixo. Respirou fundo, 
aproveitando o ar impuro e putrefato da manhã, 
olhou em volta e percebeu que estava só, em casa. 
Todos os outros urubus já haviam deixado a árvore — 
um enorme e quase desfolhado sobreiro — e, naquele 
momento, mal podiam se conter sobrevoando o mon- 
turo à espera de que os caminhões se retirassem. 
Lavou o rosto, passou uma flanela no bico e pensou 
em se juntar aos outros, mas observando na folhinha 
que era 23 de dezembro lembrou-se de um compro- 
misso social inadiável. Precisava levar o seu recon- 
forto a um peru, vizinho e amigo, condenado à mor- 
te. Sua execução estava marcada para a véspera de 
Natal (que por sinal no calendário dos perus é dia de 
finados). 
Cândido foi encontrá-lo sentado num canto do 
quintal tomando sol e absorto na leitura de um livro 
de receitas. Aproximou-se sem se deixar ver, na ponta 
dos pés, espichou os olhos por cima do ombro e viu 
que o amigo lia atentamente o capítulo dedicado ao 
preparo do “peru à Califórnia”. 
 
 
 
- Você gostaria de ser servido à Califórnia? 
O peru virou-se, fechou o livro – não sem antes 
marcar a página – e com um sorriso no bico, como se 
dissesse “oh, é você”? Balançou a cabeça 
negativamente: 
- Claro que não, Cândido – afirmou – eu nunca estive 
na Califórnia. 
 
— Talvez, então, preferisse sair à cabidela, como a 
galinha? 
— Também não. 
— Como lhe agradaria, então, ir para a mesa? 
— Vivo. 
Cândido pressentiu o tom amargo de sua voz. 
Conheciam-se há precisamente um ano, desde que o 
peru chegou para substituir o irmão sacrificado no 
último Natal. Havia entre os dois uma afeição muito 
forte e apesar de não serem parentes tinham, além das 
penas pretas, muita coisa em comum. Não fosse o 
regime de engorda a que submeteram o sentenciado e 
jamais alguém, vendo-os juntos na rua, seria capaz de 
distinguir o peru do urubu. Cândido lembrou-se que 
seu avô, um urubu-campeiro, costumava contar que 
no período neolítico, há milhares de anos, as duas 
aves faziam parte de uma mesma família, "E há um 
episódio que pouca gente sabe", dizia o avô, "nós 
éramos tão parecidos que, no dia do Dilúvio, o peru 
saiu de casa às pressas, esquecendo todos os seus 
documentos, e só entrou na arca porque o urubu lhe 
emprestou seu passaporte." No fundo, pensava 
Cândido, o peru era um urubu que não tirou o brevê 
de vôo. 
— Talvez se fosse o contrário — ponderou o peru — 
hoje o pessoal estivesse comendo urubu no Natal. 
— Sabe de uma coisa que me intriga? — indagou 
Cândido coçando a cabeça pelada. — Por que a festa 
de nascimento de Cristo é comemorada com a morte 
do peru? 
— Também não sei, mas entre nós corre uma história que 
muitos perus acreditam ser verdadeira: quando Cristo 
completou, se não me engano, trinta anos, recolheu-se a sua 
casa e, cansado de ser seguido diariamente por uma 
multidão, mandou dizer que não estava para ninguém. Os 
apóstolos, porém, que a essa altura já não lhe davam um 
sossego, invadiram a casa, pouco antes da hora do almoço, 
cantando "parabéns pra você". Cristo, um tanto encabulado, 
perguntou se eles já tinham almoçado. Diante da resposta 
negativa, pegou em três dinheiros e pediu à empregada para 
dar um pulinho na venda e comprar dois galetos "porque 
chegaram uns amigos para almoçar". A empregada ponderou 
que era domingo e estava tudo fechado. "E nós não temos 
nada em casa. Temos só uma lata de salsicha", disse a 
empregada. "Amanhã é que eu vou fazer as compras do 
mês." Cristo pensou em produzir um milagre, depois achou 
que seria um exagero, só para dar de comer a uma dúzia de 
apóstolos. Além do mais, sentia-se cansado, já que na 
semana anterior fora levado a um grande esforço ao fazer o 
milagre dos pães. Olhou, por acaso, pela janela da cozinha e 
viu lá fora um peru que ganhara de presente de um 
agricultor por ter feito chover na sua horta. "Só nos resta 
mesmo", comentou com a empregada, "comer o peru." A 
empregada preparou, então, um excelente "peru à 
Jerusalém". Os apóstolos gostaram tanto que a partir daí, 
todos os anos, passaram a comer peru na noite de Natal. 
Contam, inclusive, vários historiadores, que, na grande ceia 
— que não foi a 25 de dezembro —, apesar dos garçons 
terem limpo a mesa antes, em algumas fotos pode-se ver 
ainda pedaços de peru no prato de Judas Iscariotes. 
Cândido ouviu silencioso, perplexo com a cultura do amigo. 
O peru voltou a folhear o livro. Parou numa página e 
chamou Cândido para vê-la: havia uma foto em cores de um 
cadáver de peru, pronto para ir ao forno. 
— Veja, Cândido, igualzinho ao que os nazistas fizeram na 
Segunda Guerra. 
— Os nazistas comiam peru durante a guerra? 
— Não é isso, Cândido. Esse perucídio que cometem hoje, 
às vésperas do Natal, os nazistas já faziam na Segunda 
Guerra, contra os judeus. Era o que os homens chamam de 
genocídio. Na verdade, a diferença está apenas no tipo de 
forno: o deles era crematório. 
Cândido impressionava-se com a serenidade de um peru, a 
menos de vinte e quatro horas da execução. Perguntou-lhe 
com uma certa cerimônia qual seria a forma de execução. O 
peru bateu as asas como que dando de ombros: "Não sei. 
Suponho que não seja por fuzilamento, nem por garrote vil, 
afinal nunca cometi uma vileza". Pensou um pouco e 
acrescentou que a forma deveria ser a tradicional: a 
guilhotina de cozinha. "Vão me embriagar e passar a faca no 
meu pescoço." 
— E você já fez o último pedido? 
— Já. Quero ser embriagado com uísque escocês. 
O peru começou a falar sobre a morte. Disse que nunca 
tivera filhos porque nada compensava o desfecho brutal. E 
afirmou sentir pena dos homens, animais racionais, que 
eram forçados a carregar pela vida afora a consciência do 
fim. Nada mais duro. Confessou que desde pequeno vinha se 
acostumando à idéia de desaparecer num Natal qualquer. 
"No ano passado, foi meu irmão, antes foi meu pai, minha 
mãe, meus avós. É como se ficássemos em fila, uma geração 
atrás da outra, esperando o momento da viagem de volta", 
explicou, deixando escapar uma furtiva lágrima que não pas- 
sou despercebida a Cândido. O urubu, meio confuso, tentou 
desconversar, descontrair um pouco aquele clima, e 
perguntou ao peru se não queria brincar de roda. 
— Não, obrigado. Só brinco de roda quando estou bêbedo. 
Abriu-se um longo silêncio. Não há muito o que dizer a um 
peru condenado. De repente, Cândido sentiu todo o peso 
daquele instante. Estendeu a asa para se despedir. O peru 
aproximou-se e, emocionado, deu-lhe um abraço dizendo: 
"Se eu não o vir mais, um feliz Natal para você". 
Cândido quase respondeu "pra você também". 
Aparentemente nada distinguia Cândido de qualquer outro 
membro da comunidade dos urubus: negro, de cabeça como 
que raspada à máquina zero, e com o polegar mais elevado 
que os outros dedos. Tinha ainda as narinas 
intercomunicáveis por ausência do septo nasal, razão por 
que poderia sofrer de qualquer tipo de desvio. Menos do 
septo. 
E sofria. Por trás daquela cândida aparência, Cândido Urbano 
Urubu acumulava inúmeros desvios, sendo que o maior 
deles parecia ser sua determinada recusa em voar. Uma 
recusa que se manifestou cedo e foi se acentuando com o 
tempo, para desgosto de seu pai, que pretendia vê-lo 
seguindoos passos, ou os vôos, de um primo distante, 
sempre citado nas reuniões de família como um exemplo de 
abutre bem-sucedido: o condor da Arte Filmes. 
— Mas eu não tenho o menor jeito para o cinema — 
costumava repetir Cândido todas as vezes que seu pai puxava 
o assunto. 
— E daí, meu filho? O cinema está cheio de gente que não 
leva o menor jeito. 
— Gente, pai, gente. O senhor se esquece que somos apenas 
uma modesta família de catartídeos e aqui ninguém contrata 
urubu para apresentar seus filmes. 
— Claro que contrataria — disse o pai com convicção. — 
Eu soube, inclusive, que o nosso cinema está muito mais 
para urubu do que para colibri. 
E não adiantavam as ponderações de Cândido, explicando 
que a situação do condor da Arte era excepcional. Seu pai 
imediatamente lembrava, contando nos dedos, do leão da 
Metro, da Chita, velha companheira de Tarzan, do asno 
Francis e da cadela Lassie, que ganhou tanto dinheiro com o 
cinema, que muito cedo deixou de levar vida de cachorro. 
— Eu sou muito feio — insistia Cândido, tentando 
encontrar uma desculpa que convencesse o pai. 
— Isso não tem a menor importância, o condor também 
não é nenhum padrão de beleza e, você vê?, deram um jeito: 
puseram-no de costas para o público. O que interessa não é a 
cara, meu filho, é a elegância do vôo. Você precisa aprender 
a voar. Não queira saber as oportunidades que está 
perdendo, por não sair do chão. Além do mais, o vôo 
transmite uma intensa sensação de liberdade que pode levá- 
lo quase aos limites da perfeição. 
— Ora, meu pai, isso é conversa pra gaivota. Você andou 
lendo muito Fernão Capelo. 
— Imagine, meu filho — disse o pai sem dar atenção ao 
comentário —, você se despregando de um penhasco num 
vôo suave como o do condor e escrevendo no céu 
"apresenta". 
— Que é isso, pai? Eu para imitá-lo, antes de aprender a 
voar, teria que entrar para um curso de caligrafia. Não tenho 
aquela letra bonita do condor. 
O pai não desistia. Não havia nada que o demovesse da idéia 
de fazer do filho um urubu de projeção — e tanto fazia que a 
projeção fosse em 16 ou 35 milímetros. De certa forma, 
como todo pai convencional, além de querer encaminhar o 
filho, projetava nele, e projetava em tela cinemascope, todas as 
suas próprias frustrações. 
— E como é que você meteu na cabeça essa idéia de ser 
artista de cinema? — perguntou-lhe um dia o filho, olhando 
os cartazes na porta. 
— Não. Eu ia ao cinema. 
— Como, pai? Urubu não entra em cinema. 
— Sim, mas eu ia ao drive-in. 
E, balançando-se num frágil galho do sobreiro, o velho 
recordava-se dos tempos em que saía do campo para passar o 
verão na cidade. Sua principal diversão era assistir a todos os 
filmes exibidos no drive-in, aboletado numa mangueira que 
ficava nos fundos do terreno. 
 
 
— Que emoção indescritível no dia em que vi o condor 
aparecer pela primeira vez. O público botou a cabeça para 
fora dos carros e começou a enxotá-lo: xô, xô! Na sessão 
seguinte, não resisti. Pouco antes do seu início, saí lá da 
árvore e pousei em cima da tela, esperando que o público se 
manifestasse, me enxotasse, como fizera com o condor. 
— E o público enxotou-o? 
— Claro. Só que ao perceber que se tratava de um urubu 
e, ainda por cima, vivo, ao invés de dizer apenas "xô, xô", 
me enxotou a pedradas. 
Uma pedra acertou-o na asa esquerda, quase deixando-o 
inutilizado. Entretanto, mesmo sabendo que já não podia 
voar tão bonito quanto o condor, continuou obcecado pela 
idéia e não podia ver um muro branco que logo saía num 
vôo capenga e, com um pedaço de carvão, escrevia 
"apresenta". 
 
 
 
 
 
— E agora, seu pai faz o quê? — perguntou o velho Noé. 
— Entrega bebês. 
— Mas isso não é trabalho da cegonha? 
— Era. Atualmente, as cegonhas estão rareando e as poucas 
existentes estão pedindo muito caro para fazer as entregas. 
— Creio que o vi passar outro dia por aqui, carregando um 
crioulinho. 
— É possível. Ele só entrega crioulos. A única vez que me 
lembro dele ter levado um garotinho pardo, mas louro de 
olhos azuis, deu a maior confusão. A mãe, que chegara há 
pouco da cidade e trabalhava numa boate no cais do porto, 
não estava em casa e o pai, um crioulão enorme, não quis 
receber a criança, dizendo que não era lá, que o endereço 
estava errado. Foi um tremendo tumulto. O crioulo teve que 
ficar com a criança, mas, depois, pagou um vôo especial da 
cegonha para deixá-lo na Suécia. 
 
— E por que seu pai não entrega brancos? 
— Os brancos acham que urubu dá azar. Na firma anterior 
em que papai trabalhava, obrigavam-no a se pintar de branco 
e imitar o vôo da cegonha, quando a entrega era em casa de 
branco. E o pior é que a tinta demorava cinco dias para sair. 
— Rapidamente — prosseguiu Cândido — se espalhou que 
havia um urubu branco no campo e aí não queira saber o 
que apareceu de gente, gente de revista, dos jornais, de 
programas de TV e um grupo de cientistas que o perseguiu 
durante dois dias até que o apanharam. Levaram meu pai 
para a cidade, prenderam-no e quase o mataram para poder 
estudar melhor o fenômeno. Já em cima do mármore, de 
tanto implorar, permitiram que meu pai se despisse, tirasse 
as pernas e pegasse outras, para provar que era um urubu tão 
preto quanto os outros. 
 
 
O velho Noé era um homem que vivia de remexer 
monturos. Conhecia Cândido desde que começara a 
freqüentar os depósitos de lixo. Alto, meio gordo, com uma 
cor que a sujeira tornava indefinida, e uma roupa tão 
encardida quanto a própria pele, andava com um enorme 
saco nas costas, barba comprida, malcheiroso (do ponto de 
vista dos homens) ou extremamente perfumado (do ponto 
de vista dos urubus). Sempre com umas moscas circulando 
em torno de sua cabeça, o velho Noé era o único amigo 
homem (ou amigo gente, como costumava dizer) de 
Cândido. Uma espécie de confidente. Somente a ele, por 
quem mantinha uma profunda admiração, Cândido foi capaz 
de revelar o verdadeiro motivo por que não voava. 
 
 
— Sabe por que não vôo, velho Noé? 
O velho abanava a cabeça, vigorosamente. E abanava com 
vigor para dizer que não sabia e, ao mesmo tempo, espantar 
a mosca pousada na ponta do seu nariz. 
— Eu não vôo porque eu quero ser gente, gente que 
nem você, e gente não voa. 
Para os colegas, vizinhos e outros animais, Cândido dizia que 
não voava porque tinha medo de avião. 
— E urubu já anda de avião? — perguntou um marreco. 
— Não. O medo que eu tenho é de ser atropelado por um 
avião. 
E explicava sempre que, desde que o homem inventou o 
avião, o urubu perdeu a tranqüilidade para voar. Contou o 
que tinha acontecido com uma tia que foi apanhada de 
raspão por um Caravelle e se salvou por milagre aterrissando 
sem trem de aterrissagem. Tanto ela quanto o Caravelle. 
Quando os outros diziam que "isso não é nada, pode acon- 
tecer aqui embaixo com um caminhão", Cândido, então, 
contava a história de seu primo, que, num domingo de sol, 
planava distraído, perto de um aeroporto, foi engolido por 
uma turbina de DC-10 "e desapareceu sem deixar vestígios". 
Antigamente, quando os aviões eram mais lentos, movidos a 
pistão, ainda se podia escapar com um drible de corpo. 
Agora é impossível. O Boeing se transformou num monstro 
para os urubus e, quando os urubuzinhos não querem ficar 
quietos, as mães que não entendem nada de pedagogia 
moderna ameaçam: "Se você não parar, eu vou chamar um 
Boeing para te engolir". 
 
 
 
 
Em casa, Cândido disfarçou o quanto pôde. Sua mãe,porém, 
logo desconfiou de seu desinteresse pelo vôo assim que a 
vizinhança passou a cochichar, insinuando: "Cândido deve 
ser meio retardado, não acompanha os outros urubus de sua 
idade". Realmente, Cândido já estava na idade de dar os seus 
primeiros vôos, pensou ela, mas nos últimos tempos só o 
vejo abrir as asas para se espreguiçar. As suspeitas 
aumentaram no dia em que uma tia de Cândido passou mal. 
A mãe gritou, aflita: 
— Cândido, vá buscar um remédio pra sua tia que está 
passando mal. Mas vá voando. 
Nem assim Cândido tirou os pés do chão. Não foi sequer 
capaz de pular uma porteira. 
— Por que você não voa, Cândido? 
— Eu tenho vertigem de altura — desculpava-se. — 
Quando subo a mais de cinco metros, fico tonto, enjôo e 
vomito. 
— Nós temos que arranjar uma forma de fazê-lo voar — 
insistiu a mãe —, os vizinhos já estão comentando e, afinal 
de contas, você é um catartídeo. E nunca houve na história 
da nossa família alguém que não pudesse voar. Você tem 
que se aproveitar do fato de sermos mais leves que o ar. 
— Não vejo muita vantagem nisso, mãe, a atmosfera está tão 
poluída que daqui a pouco até o homem vai ser mais leve 
que o ar. 
Para tentar contornar o suposto problema do filho, a mãe 
comprou um cinto e meia dúzia desses saquinhos contra 
enjôo, que as empresas aéreas mantêm atrás das poltronas 
dos aviões. 
 
 
— Pronto, Cândido, trouxe-lhe uns saquinhos para você 
pendurar no pescoço, quando for voar. Toda vez que ficar 
enjoado, abra o saco e vomite dentro. 
— E esse cinto? 
— É pra quando seu vôo estiver jogando muito. Aí você 
aperta o cinto. 
Cândido, ainda que contrariado, voou pela primeira vez, 
para fazer a vontade da mãe. Não se demorou nem dois 
minutos no ar: jogando muito, acabou se chocando com um 
outro urubu que vinha, com uma bengala, no sentido 
contrário. Os dois se estatelaram no chão. E só depois de 
voltar a si, Cândido pôde ver no outro urubu, ainda 
desmaiado, um cartaz pendurado no pescoço, em que se lia: 
"Atenção, cuidado, vôo cego". 
— Não adianta — murmurou Cândido — não entendo nada 
de vôo. 
— Mas você tem que voar, Cândido. Eu gasto um dinheirão 
com você na escola. E pra quê? 
Pra quê? Pra quê, se no primeiro mês de aula Cândido tirou 
zero em teoria e zero em prática de vôo? Desesperada, a mãe 
correu ao colégio e, na entrevista com a diretora, ouviu a 
humilhante observação: "Seu filho não consegue subir mais 
alto do que uma galinha". 
— E a senhora acha que ele poderia melhorar com um 
professor particular de vôo? 
— Creio que não. Aconselho-a, como primeira etapa, a 
procurar um psicólogo e fazer um teste vocacional com 
Cândido. Seu filho tem um comportamento muito estranho. 
Me parece que é, realmente, um urubu problema. 
Na sala de aula, a professora de teoria de vôo fazia perguntas 
à turma: "Você, diga-me, qual a primeira providência que 
um urubu deve tomar para pousar?" 
— Descer o trem de aterrissagem, escamoteável. 
— Muito bem. E você, diga-me, como se pode fazer isso? 
— Encolhendo as espáduas para reduzir a área de 
envergadura. 
— Ótimo — tornou a professora —, a partir daí, então, o 
urubu perde altitude e desce num pique, dando a impressão 
que vai se esborrachar. E só não o faz por quê, Cândido? 
Antes de pousar, o urubu abre o quê? 
— O pára-quedas — respondeu Cândido, inteiramente 
alheio ao que se passava na sala. 
 
 
A professora repreendeu-o. Mal terminou a repreensão, 
Cândido imediatamente voltou a folhear, com um ar 
clandestino, uma dessas novas revistas que são capazes de 
transformar qualquer Biafra num paraíso terrestre, 
deslumbrado com as maravilhosas aventuras do homem. Na 
saída da escola, enquanto seus colegas alçavam vôo, Cândido 
saía caminhando por um matagal até um descampado 
próximo onde todos os dias pegava carona num helicóptero, 
agarrado na cauda. Cândido era, assim, uma espécie de 
pingente de helicóptero. 
Antes de ir para casa, Cândido deu um pulinho no monturo, 
como fazia quase sempre, para conversar com o velho Noé e 
pedir-lhe que contasse uma história sobre os homens. 
Sentou-se numa pilha de livros que já não cabiam mais nas 
prateleiras do casebre: "Vamos, velho Noé, conte-me 
alguma coisa sobre os homens". 
— Contar o quê, Cândido? Os homens não têm feito nada 
que mereça ser contado. 
— Ora, Noé, deixe disso. Eu sei que o mundo está cada vez 
melhor. Eu vejo pelas fotos nas revistas. Uma vez eu vi uma 
foto tirada do espaço pelos astronautas. A Terra era linda, 
toda azul. 
— Azul, vista de fora — disse Noé, requentando café num 
bule enferrujado —, aqui dentro, a situação está mais negra 
que as asas da graúna. Conhece a graúna? Os homens estão 
complicando tanto que, em breve, teremos que apagar tudo 
para começar novamente. 
— Passar a borracha? — comentou Cândido. 
— Assim como se faz quando se erra nos deveres da escola? 
— Isso. Os homens não estão sabendo fazer os seus 
deveres. E a continuar assim, com certeza, vão levar bomba. 
Cândido levantou uma sobrancelha, desconfiando das 
previsões do velho Noé: 
— Acho que está querendo me tapear, velho. Você 
quer que eu desista, mas não vai ser fácil. Vamos, conte-me, 
fale-me a verdade, eu preciso saber, eu quero ser gente. 
Cândido pulou da pilha de livros para o ombro do velho Noé 
e disse-lhe num tom de proposta: 
— Olha, vamos por partes, comecemos do princípio, o 
que faz o homem ao acordar? 
— Escova os dentes. 
— Que azar, eu não tenho dentes. Que é que eu vou fazer? 
— Bem — ponderou Noé, sorvendo um grande gole e 
limpando a boca com as costas da mão —, você pode 
mandar fazer uma dentadura. Em matéria de dentadura, o 
homem evoluiu muito. 
 
 
— E você acha que eu ficaria bem de dentadura? — 
perguntou Cândido, forçando um sorriso diante de um 
pedaço de espelho pendurado na parede. 
— Claro. Quer experimentar a minha? 
— Agora não. Vamos em frente. E depois de escovar os 
dentes, o que faz o homem? 
— Depende, Cândido, depende da classe em que esteja. 
— Classe? Que é classe? 
— É uma forma de distinguir os homens — explicou Noé, 
procurando ser claro —, de separá-los em categorias sociais. 
— Mas os homens não são todos iguais? Não formam uma 
família, como os outros animais? 
Noé respondeu, movendo apenas o indicador, como um 
limpador de pára-brisas. 
— E o que distingue uma classe da outra? — tornou 
Cândido. — A altura? O peso? A cor? 
O velho Noé espantou as moscas e observou que, em certos 
países, era possível saber, pela cor, a que classe os homens 
pertenciam; "normalmente, os pretos pertencem à classe 
baixa". 
— Quer dizer que eu, sendo preto, vou pertencer à classe 
baixa? 
— Talvez não, se você conseguir as mesmas oportunidades 
que os brancos. Nos Estados Unidos, por exemplo, você 
teria dificuldades, mas no seu caso ainda se poderia dar um 
jeito. 
— Como? 
— Fazendo um transplante. Trocando essas penas pretas por 
outras verdes, amarelas, vermelhas. 
— Mas aí eu ia virar uma arara. Não ia dar certo. Não tenho 
voz para gritar que nem a arara. 
Cândido continuava suas poses diante do espelho. Esforçou- 
se para repetir o som da arara, mas, apesar de todo o 
empenho, não arrancou de sua voz anasalada mais do que 
um sofrido gemido: huuum. . . 
— E você, Noé, pertence a que classe? 
— Eu? — disse Noé com um leve sorriso. — Eu estou 
abaixo da baixa. Estou assim no subsolo das classes. 
— E Cristo? Se Cristo fosse vivo, a que classe pertenceria? 
— Cristo? — assustou-se Noé com a pergunta inesperada.— 
Bem, Cristo, provavelmente, teria que andar com um 
atestado de pobreza no bolso. 
Cândido não compreendeu. Tornou a perguntar o que afinal 
distinguia uma classe da outra. Noé bateu com a mão no 
bolso que, com toda a certeza, estava vazio, e talvez furado, 
e disse: "O dinheiro". 
— Mas por que você lembrou de Cristo? — perguntou Noé. 
— Porque me disseram que Cristo era um exemplo entre os 
homens — respondeu Cândido pensativo —, mas já não 
estou muito certo disso. Um amigo contou-me uma história 
sua. Estou desconfiado de que Cristo era comunista. 
— Por que comunista, Cândido? 
— Porque Cristo comia peru no Natal. E no meu entender 
quem come um peru pode, perfeitamente, comer uma 
criancinha. E só quem come criança é comunista. 
— Ora, Cândido, se comunista comesse criança não haveria 
mais jovens na União Soviética. 
— É. Mas me disseram que eles só comem crianças 
capitalistas. 
O velho Noé explicou a Cândido que Cristo era anterior a 
Marx. Mesmo assim, "Cristo tinha algumas idéias sobre 
igualdade, consideradas muito avançadas ainda hoje e que 
dificilmente lhe permitiriam viver em alguns países, sem ser 
considerado subversivo. Nas terras do rei Pinote, estou 
certo, ao dar o primeiro passo na rua, seria, imediatamente, 
atirado às masmorras". 
— Duvido que Cristo fosse capaz de dar tanto ibope, 
atualmente, se não tivesse uma certa situação — ponderou 
Cândido —, se não tivesse condições de possuir um TV a 
cores, o carro do ano, cartão de crédito. Não. Ninguém 
ouviria-Cristo se ele não tivesse no bolso, no mínimo, umas 
ações da bolsa. 
— Eu sei — continuou Cândido — eu sei porque Cristo 
pregava a igualdade. Porque era um mau executivo, nunca 
soube ganhar dinheiro. A prova é que, no seu tempo, a 
Igreja vivia na maior miséria, e hoje, se desenvolveu tanto 
que formou até um Estado. Duvido que Cristo reconhecesse 
a sua Igreja se aparecesse, agora, diante do Vaticano. Não, 
velho Noé, fale-me de outros homens, homens comuns, 
bem sucedidos na vida. 
 
 
 
— O homem comum está esmagado, Cândido, esmagado 
pela desigualdade social, a má distribuição de rendas, o 
desemprego, a competição, a discriminação, o preconceito, a 
miséria. Não, Cândido, não vale a pena. Eu, se pudesse, 
viraria urubu. 
— Pois eu quero virar gente. Meu maior sonho é largar isto 
aqui e ir para a cidade ser gente. 
— Acredite, Cândido, pode ir, mas vá como urubu. A 
cidade, atualmente, tem um nível de poluição tão elevado 
que se presta muito mais para um urubu do que para um 
homem. E tem mais — completou o velho Noé, retirando 
um pedaço de osso de dentro do saco — vocês, urubus, 
ainda não foram atingidos como nós pelo problema da fome. 
Desta vez, porém, o velho Noé se enganou. 
Ao chegar em casa — o velho sobreiro — Cândido notou 
que os moradores estavam reunidos na portaria. Não deu 
importância. Pensou tratar-se de uma reunião do 
condomínio. Aproveitando estar só em casa, foi para seu 
quarto, e com todo cuidado, tirou de baixo de seu 
esconderijo, nas folhagens, um álbum onde colava as fotos 
dos homens, recortadas das revistas que folheava na escola. 
Um álbum grosso onde aparecia o homem nas mais 
diferentes situações: o homem sorrindo, o homem fumando, 
o homem amando, o homem jogando pólo, o homem es- 
quiando. "Que legal", exclamou, "não pode haver nada 
melhor do que ser gente." 
— Cândido, Cândido — gritou o pai, entrando 
inesperadamente e surpreendendo o filho no quarto. — 
Cândido, que é que você está lendo? Novamente, sobre os 
homens? Será que você não se emenda? Não bastam os 
outros álbuns que já rasguei? Será que você não percebe que 
essa leitura não lhe traz o menor proveito? Por que não se 
dedica a algo mais ligado a nós? Por que não lê Como fazer 
amigos e influenciar urubus? Vamos, passe-me esse álbum. Temos 
que ir para a reunião. Estão todos lá. 
Cândido foi se aproximando e ouviu o vizinho do galho 201 
falando alto sobre a crise de alimentação que grassava pelo 
campo: "Nem mais nos nossos supermercados há comida 
suficiente para todos!" 
— Supermercados? Quais são os nossos supermercados? 
— perguntou Cândido, baixinho, para o pai. 
— Os depósitos de lixo. 
 
 
 
 
— É verdade — bradou um outro urubu —, ontem passei 
oito horas voando, estou até com as asas doloridas, e não 
encontrei comida. Não estou mais em idade de ficar voando 
tanto tempo. Alguma coisa precisa ser feita. 
— Sim, mas antes é preciso saber por que falta comida. 
— Falta comida — disse outro — porque os homens estão 
comendo tudo. Também falta comida para eles. 
Antigamente, íamos aos monturos e vazadouros e 
encontrávamos verdadeiros banquetes de restos de comida. 
Hoje, só há latas de cerveja e sacos plásticos. 
— Isso mesmo. Quando encontramos carne já nem 
podemos esperar que deteriore, senão o homem a alcança 
antes de nós. 
— É verdade. Ainda outro dia, minha mulher teve uma 
intoxicação porque comeu uma carne que não estava 
estragada. 
- A sobrevivência dos urubus, como se sabe, depende da 
morte dos outros animais. De certa forma, ocorre o mesmo 
com os homens. Cândido ficou muito satisfeito ao saber 
desse ponto em comum, imaginando que "pelo menos, 
nisso, eu não preciso mudar". Há, contudo, uma pequena 
diferença: os urubus só se alimentam dos animais 
encontrados mortos, enquanto o homem mata os animais 
para comê-los. 
 
 
 
— Você nunca ouviu falar nos matadouros? 
— Nunca — respondeu Cândido. 
— Pois os matadouros são os lugares onde os homens 
matam os bois. 
— Tá vendo — retrucou Cândido —, essa é a vantagem de 
ser homem. Quando os urubus poderão ser donos dos 
matadouros? 
Diante da crise, de pouco adiantava a excepcional visão dos 
urubus. Um abutre é capaz de enxergar a carniça de até mil e 
quinhentos metros de altitude, graças a um telescópio e uma 
lente de aumento, acoplados nos olhos. Os abutres, à 
exceção da coruja, são dotados, também, de uma natural 
visão binocular, o que significa dizer que jamais alguém verá 
um urubu de binóculos. Ao contrário dos homens, cujos 
olhos estão situados num mesmo plano frontal, os urubus 
têm os olhos colocados do lado da cabeça, o que lhes dá um 
grande campo de visão. 
"Mas de que serve essa visão se, quando chegamos à carniça, 
o homem já se antecipou?" E o urubu do galho 402 passou a 
contar um episódio ocorrido três dias antes, em que um 
caminhão atropelou uma vaca na estrada: "Eu voava, mais ou 
menos, a uns oitocentos metros de altitude. Pois bem, ao 
manobrar para descer, olhei lá de cima e parecia o festival de 
Woodstock, de tanta gente se atirando com machadinha, 
faca, serrote, canivete, gilete. Havia até um policial que, 
certamente, gosta de carne picadinha, cortando a vaca com 
metralhadora. Esquartejaram o bicho. Quando aterrissei, vi 
que tinham levado até a sombra da vaca. Fiquei por ali, 
procurando uma pelanca qualquer. O último cidadão que 
saiu, levando o rabo da vaca, ao me ver, ameaçou voltar e, 
brandindo uma espada, gritou: 'Ei, pessoal, ainda tem um 
urubu aqui. Vamos pegá-lo para a sobremesa'". 
— A situação torna-se cada dia mais difícil, insustentável. 
Não dá para continuarmos sendo carnívoros. 
— Que tal tentarmos a macrobiótica? 
— Ou, então, por que não nos transformamos em 
vegetarianos? 
— Não. Pelo amor de Deus, tudo, menos comer grama. No 
dia em que os cientistas souberem que aqui tem urubu 
comendo capim, estamos fritos. 
— E será que é bom, urubu frito? 
A assembléia prosseguia agitada. Era necessáriofazer algo. Já 
tinha havido vários casos de desidratação com alguns urubus 
que ficaram muito tempo debaixo do sol, procurando 
comida. Um grupo considerava que a melhor solução seria 
instituir um racionamento como na Europa, durante a guer- 
ra, estabelecendo para cada um uma quota mínima de 
carniça. 
— E por que não nos oferecemos aos criadores de galinhas? 
— sugeriu outro. — Poderíamos viver em galinheiros. 
— Boa idéia. Assim nós teríamos casa, comida e pena 
lavada. 
— E valerá a pena? 
— A minha pena vale. 
— A minha, não — gritou um urubu enfurecido —, para 
mim, só há uma saída: é fazermos como os homens e 
passarmos a matar os outros animais. 
— Claro — concordou um outro — e, aproveitando a idéia 
daquele nosso nobre colega, poderíamos nos intrometer nos 
galinheiros, porque, com as galinhas, a briga é boa para nós. 
Melhor do que com os galos de briga. 
A sugestão do urubu enfurecido criou uma divisão na 
assembléia. Para resolvê-la, decidiu-se, então, pela realização 
de um plebiscito: deveremos pegar em armas e nos 
transformarmos numa família de predadores? Sim ou não? 
Apurados os votos, os urubus favoráveis à formação de um 
exército venceram por duzentos e catorze votos contra 
duzentos e oito, dez em preto e um, anulado, porque havia 
um palavrão escrito. Sob gemidos de satisfação, gritos de 
guerra e manifestações de alegria, foi criado um grupo de 
trabalho que deveria redigir um documento que seria levado 
ao urubu-rei. No meio de todo aquele tumulto, levantou-se 
um urubu e indagou: 
 
 
 
 
— Antes de redigir o documento, eu gostaria de saber, 
já que vamos nos transformar em animais predadores, quem 
aqui tem experiência no ramo? 
Seguiu-se um completo silêncio. Nunca se soube sequer de 
um urubu que tenha matado uma barata. Alguém, então, 
sugeriu que se aproveitasse a experiência dos chacais e das 
hienas, com quem, freqüentemente, os urubus se 
encontravam nos almoços e banquetes de carniça. 
— Mas os chacais e as hienas têm sua técnica própria. 
— Por quê, então, não recorremos a uma firma americana? 
Ouvi dizer que há uma empresa que fornece armas e know- 
how às nações cansadas de viver em paz. 
— Poderíamos, também, recorrer aos conhecimentos da 
águia. 
— Que águia? A que trabalha como símbolo dos Estados 
Unidos? E você acha que ela iria deixar sua vidinha mole de 
funcionário público, ganhando em dólar, e vir aqui nos 
ajudar, só porque estamos morrendo de fome? 
— E o falcão? Também é nosso parente. 
— Mas não há falcão, aqui. 
— E daí? Mandávamos buscar. Faríamos uma vaquinha e 
contrataríamos um falcão no exterior. 
 
Ficou assentado que seria contratado um falcão para ensinar 
os pacíficos urubus a guerrearem e conquistarem a sua 
carniça de todos os dias. Enquanto se redigiam os últimos 
parágrafos do documento, o pai de Cândido sugeriu que, 
para já ir adiantando os treinamentos sobre manobras táticas 
de guerra, alguém procurasse por um filme bastante 
ilustrativo à formação dos primeiros grupos de voluntários. 
— E qual é esse filme? 
— Os pássaros, de Hitchcock. 
— Mas esse filme é altamente subversivo. Não vamos 
consegui-lo. Não se lembra que a Sociedade Protetora dos 
Animais o proibiu em todo o território nacional? 
Terminada a redação do documento, a comissão levou-o até 
o alto da palmeira-imperial onde o urubu-rei despachava 
com seus ministros. 
— Não — disse o urubu-rei, que se distinguia dos demais 
pela íris branca —, sou terminantemente contra qualquer 
ato de beligerância. Haverá outro meio de resolvermos o 
problema. Será que vocês não percebem que temos os pés e 
os dedos frágeis, não somos dotados para a caça, nem para a 
luta? Temos uma tradição de pacifistas. Não fomos feitos 
para a guerra. Aliás, nem nós, nem ninguém. 
 
 
 
O urubu-rei dirigia a sua comunidade há muitos anos. Foi 
eleito pelo voto popular, como deve ser nas sociedades 
democráticas, derrotando o urubu-campeiro e o urubu-de- 
cabeça-amarela. Instituiu a monarquia, mas não governava 
com despotismo. E sua imagem gozava de grande prestígio 
nas nações vizinhas. O urubu-rei ponderou junto à comissão 
que a saída mais viável seria recorrer aos organismos 
competentes. 
— O senhor está pensando em ir a qual? 
— À ONU, talvez. 
— À ONU, não adianta nada. Nunca resolveu qualquer 
conflito. Vai querer mandar uma força de paz para cá. 
— E a OEA? 
— Se a ONU não vale nada, muito menos a OEA. Não 
tem força nenhuma, nem de paz. 
— Então, quem sabe, o Lions? 
— Não sei, mas eu penso que o Lions é só pra leões. 
Tente a Sociedade Protetora dos Animais. 
O urubu-rei agradeceu a sugestão, viajou e chegou às onze 
horas à Sociedade Protetora dos Animais. A porta estava 
fechada. Entrou numa longa fila formada por vários outros 
animais, um cavalo que reclamava contra as corridas nos 
domingos de verão, um elefante que reclamava o salário 
atrasado há três meses no circo em que trabalhava, um 
cachorro vira-lata reclamando que não adiantava mais virar 
latas "porque estão todas vazias". Ao meio-dia, a repartição 
abriu. O urubu-rei, que entrava pela primeira vez na 
Sociedade Protetora dos Animais, procurou o guiché de 
informações. Aproximou-se de um funcionário e perguntou: 
— Por favor, onde é o guichê de informações? 
— Informações? Não sei, não. Fui transferido ontem para 
esta repartição. 
— O guiché de informações — indagou de outro 
funcionário —, o senhor sabe onde é? 
— Não sei, não. 
— Mas o senhor não trabalha aqui? 
— Sim. Trabalho. Por isso mesmo, nunca precisei pedir 
informações. 
O urubu-rei já estava ficando meio irritado, quando uma 
galinha-d'angola, que fora pedir proteção para seus filhos em 
Luanda, ouviu-o e indicou o caminho: "Vá por esse 
corredor, é a última porta à direita". 
— Curioso, o guichê de informações fica no fim da 
repartição. 
— É para ninguém ficar pedindo muita informação — disse 
o funcionário —, que é que o senhor deseja? 
— Bem, eu desejo saber a quem devo me dirigir para pedir 
proteção. 
— Eu o aconselharia a se dirigir, para pedir proteção, ao 
Senhor do Bonfim. De qualquer maneira, procure uma 
senhora baixinha, de cabelos grisalhos, na segunda sala à 
esquerda. Ela lhe dará maiores informações. 
— Minha senhora — disse o urubu —, eu vim aqui pedir 
maiores informações... 
— Não é aqui, não senhor — interrompeu a senhora. — 
Aqui é só para menores informações. Para as maiores 
informações, queira se dirigir à terceira sala, à direita. 
— Por favor — disse o urubu, na terceira sala à direita —, eu 
queria pedir proteção à sociedade porque nós.. . 
— O senhor é de que família? — interrompeu a senhora. 
— Dos catartídeos. 
— Catartídeos? — repetiu pensando alto —, deixe-me ver 
aqui. Sim, urubus. É a primeira vez que aparece um urubu 
pedindo proteção. Infelizmente, porém, o senhor vai ter 
que voltar outro dia. Nós só atendemos urubus às terças e 
quintas. 
Na terça-feira, o urubu-rei retornou e procurou pela mesma 
funcionária. Ela, porém, estava doente, não tinha ido 
trabalhar, mas sua substituta, com uma surpreendente 
solicitude, pediu que dissesse "do que se trata que nós talvez 
possamos ajudá-lo". 
— Eu queria pedir uma providência contra os homens lá do 
meu reino que estão acabando com a nossa comida. Já não 
temos quase o que comer. 
— O problema não é só do seu reino, não — comentou a 
funcionária, debruçando-se sobre o balcão para falar no 
ouvido do urubu — eu, aqui, com o salário que ganho, já 
estou tendo que racionara comida. 
Virou-se, consultou um arquivo, tirou uma pasta e disse: 
"Aqui está o item sobre a fome. O senhor tem que trazer 
todos os seus documentos, comprar um formulário, assinar 
em quatro vias, pagar uma taxa de expediente no banco, 
reconhecer a firma, levar ali para o balcão A e encaminhar 
àquela senhora de blusa vermelha". 
O urubu-rei demorou mais de dez dias para tomar essas 
providências, inclusive porque teve que tirar uma segunda 
via de sua certidão de nascimento. Entregou toda a papelada 
à senhora de blusa vermelha, que lhe deu um protocolo e 
pediu que passasse dentro de vinte dias. 
— Mas por quê, minha senhora? 
— Porque o seu formulário, agora, se transformou em 
processo e terá que passar pelos canais competentes. 
— Eu não posso esperar vinte dias, minha senhora, meu 
povo já está cansado, desesperado, morto de fome. 
— Lamento, mas quanto a isso não posso fazer nada. Se a 
situação se tornar muito dramática, o senhor passa no nosso 
departamento de emergências que lá talvez possam ajudá-lo. 
— Ajudar, como? 
— Com leite em pó. Nos casos de emergência, 
distribuímos leite em pó, doado, gentilmente, pelos nossos 
amigos norte-americanos. 
- Mas, minha senhora, urubu não come leite em pó... 
 
 
 
— Passa a comer. O senhor quer o quê? Que eu escreva aos 
americanos, pedindo um cardápio especial para urubus? 
 
Quando o urubu-rei reuniu o seu povo para informar que as 
providências só seriam iniciadas dentro de vinte dias, ouviu- 
se um clamor geral. Vários urubus entraram em pânico, sem 
saber o que fazer. Alguns pensaram logo em se mudar para a 
Índia, onde, provavelmente, a fome era menor. Criou-se um 
grande mal-estar e uma pequena facção da assembléia 
começou a conspirar para depor o urubu-rei e instaurar a 
república. Para aumentar o caos reinante, surgiram uns 
boatos sobre grupos estrangeiros que percorriam o país, 
oferecendo a cada casal de urubus uma diária de cinqüenta 
dólares para ir morar no exterior. 
 
 
Diante de um novo problema — tão logo os boatos se 
confirmaram — o urubu-rei tratou de mandar um ofício ao 
Ministério do Exterior, protestando contra a ingerência de 
estrangeiros nos negócios. De volta, recebeu uma resposta 
diplomática que, entre outras coisas, dizia: "Se, afinal, nós 
vivemos num regime de livre iniciativa, é lícito que cada um 
tome a iniciativa que quiser. Além do mais, não vemos 
razões para impedir os nossos amigos, que tanto nos ajudam, 
de levar alguns representantes dos catartídeos, que, diga-se 
de passagem, estão entre os melhores do mundo. Presumo 
até que, assim, os urubus estarão dando uma contribuição 
decisiva para o nosso desenvolvimento, aumentando a pauta 
de nossas exportações. O urubu nos parece uma boa 
mercadoria, pois não exige nenhum tipo de embalagem 
especial. De resto, sem querer ofendê-lo, para que serve um 
urubu?" 
 
 
O urubu-rei leu a resposta do ministro recordando-se do 
passado heróico dos catartídeos. Lembrou-se das terríveis 
perseguições que sofreram no passado e das dificuldades 
com que uns poucos sobreviveram para perpetuar a espécie. 
Na época, o Grande Tribunal acusou-os de transmitir a 
cólera e, como não havia campo de concentração, os urubus 
acabaram exilados nos depósitos de lixo. Para não morrer, o 
urubu teve que se alimentar de animais mortos, de carne 
podre, com o que passou a ser considerado uma ave 
agourenta e só não foi submetido a um massacre total 
porque, durante séculos, correu a lenda de que quem atirasse 
num urubu teria sua arma quebrada. 
"Para que serve um urubu?" O urubu-rei poderia responder 
que, com o correr dos anos, os urubus foram reabilitados. 
Formaram brigadas de saneamento das mais eficazes e, em 
alguns países, como o Paraguai, onde o departamento de 
limpeza não é dos melhores, os urubus chegaram a gozar de 
um status especial, sendo protegidos e contratados a peso de 
ouro para terminar com a sujeira. Descobriu-se que o 
aparelho digestivo do urubu destruía as bactérias e concluiu- 
se que a sua merda não era, exatamente, uma merda e, sim, 
um poderoso anti-séptico. O urubu, diferente da águia, que 
não se suja com suas defecções, faz cocô nas pernas. Por 
isso, talvez, toda a sociabilidade do urubu — muito mais 
sociável que a águia, que vive isolada — sempre foi repelida. 
Desde o grande banquete no céu, onde fez uma pequena 
cagada, o urubu nunca mais foi convidado para lugar 
nenhum. 
Pois agora apareciam uns estrangeiros convidando-os, 
dando-lhes pensão completa e mais cinqüenta dólares. Os 
urubus sentiam-se profundamente lisonjeados e formavam 
filas diante das barracas dos estrangeiros no depósito de lixo. 
O que os estrangeiros não confessavam era que, após trinta 
dias de férias no exterior, os urubus seriam passados na faca 
e enterrados numa vala comum, depois de retirados seu suco 
gástrico e seu processo enzimático, comprovadamente, de 
alta precisão. 
 
Na casa de Cândido, as opiniões divergiam sobre o momento 
atual dos urubus. Sua mãe era a favor da permanência. Seu 
pai mostrava-se indeciso. Cândido afirmava que a família 
deveria desprezar a proposta dos estrangeiros e viajar para a 
cidade, onde poderiam encontrar novas e maiores 
oportunidades. Já sua irmã, recém-casada, inclinava-se pelo 
convite para o exterior que serviria, também "como uma 
viagem de lua-de-mel". 
— E você acredita — perguntou o pai — que esses 
estrangeiros estão morrendo de amores pelos urubus? 
Acredita? Você nem sabe o que vai fazer lá fora. 
— Sei, sim — disse a irmã —, nós vamos trabalhar nas 
brigadas de saneamento. 
— Isso é o que você pensa. Até agora eles não deram 
nenhuma informação. Estão despistando. E como estão 
todos com fome e muito envaidecidos, ninguém se lembra 
de perguntar. Além do que, eles dispõem das melhores 
técnicas para industrializar o lixo. Brigada de saneamento é 
para país subdesenvolvido. 
— Eu suponho que deveríamos aguardar os vinte dias de 
prazo que deram ao urubu-rei — aparteou a mãe. 
— Pois saiba que esses vinte dias vão demorar no mínimo 
sessenta — respondeu o pai. — Os estrangeiros deram 
dinheiro para que a repartição atrase o processo. Com isso, a 
fome vai aumentar e será mais fácil recrutar os urubus. 
— Mas isso é ilegal — bradou Cândido. 
— E como poderíamos impedi-lo? 
— Só dando aos funcionários mais dinheiro do que os 
estrangeiros. . . 
— Então, diante disso — falou a mãe —, eu mudo o meu 
voto. Vamos para a cidade até que a situação melhore. 
— É uma boa idéia. 
— Também acho — completou Cândido. 
A família decidiu contra o voto da filha, que preferiu se 
inscrever com o marido na excursão ao exterior. Foram 
fazer as malas. Cândido, sem se conter, saiu correndo atrás 
do velho Noé, para lhe transmitir a notícia. 
— Vou para a cidade, velho Noé — disse aos berros —, 
finalmente, vou para a cidade. Não poderia ser mais feliz. 
Finalmente, finalmente. Você também não fica alegre 
comigo? 
— Claro, Cândido, mas gostaria de lhe dizer que, aqui, você 
convive com apenas um homem, eu, e vê outros, 
esporadicamente. Na cidade, você está cercado de homens 
por todos os lados, e o homem é o maior flagelo ecológico. 
Sabe do condor da Califórnia? Só existem quarenta 
sobreviventes. Você ainda é muito jovem, não ouviu falar, 
mas, no século XIX, havia um tipo de pombo migratório nos 
Estados Unidos. Eram de três a cinco milhões. Oitenta anos 
mais tarde, já era tarde demais para salvá-los. O penúltimo 
pombo foi morto por um caçador em 1900 e o último,capturado vivo e protegido — chamava-se Marta —, morreu 
no cativeiro do zôo de Cincinnati, em 1914. Seu corpo foi 
empalhado e até hoje está exposto no Museu de 
Washington. 
— Isso não me preocupa, velho Noé, você já está meio 
caduco. Os homens não são mais assim. Eu vejo nos 
anúncios... 
— E se forem? 
— Se forem — respondeu Cândido, sorrindo dos exageros 
do velho —, você já imaginou, eu, o último exemplar da 
espécie? Serei, também, empalhado e poderei até ganhar um 
busto em praça pública, com os dizeres: 
 
 
 
 
 
 
 
Cândido colocou na maletinha seus álbuns, revistas e 
algumas bugigangas recolhidas, pacientemente, no depósito 
de lixo e que, segundo ele, serviriam para diminuir suas 
despesas de enxoval no dia em que virasse gente: um 
chaveiro, uma esferográfica toda mordida no cabo, um 
espelhinho, um prendedor de gravatas (que às vezes usava, 
prendendo as penas) e um isqueiro sem fluido. Botou o 
chapéu, as botas (partes que lhe couberam na partilha de 
bens de um vaqueiro que morreu no estouro da boiada) e foi 
para a estrada, orgulhoso porque seu pai, ao vê-lo arrumado, 
disse-lhe: "Se não fosse o bico, você estaria igualzinho a Jon 
Voight, em “Midnight cowboy". 
Fez sinal para o ônibus. O motorista parou, abriu a porta e, 
quando Cândido pôs o pé no primeiro degrau, franziu o 
cenho, como que procurando entender direito aquela figura. 
Aí, perguntou: 
 
 
— Escute aqui, que espécie de cara é você? 
— Da espécie animal. 
— Sim, animal, eu sei — retrucou o motorista agressivo —, 
animal, eu também sou. Quero saber é que tipo de animal. 
— E isso importa? 
 
 
 
 
— Só não importa se você tiver dinheiro. Tem? 
Cândido remexeu os bolsos, apanhou umas notas velhas 
encontradas no vazadouro e entregou-as ao motorista. O 
motorista conferiu uma por uma e soltou uma estridente 
gargalhada: 
— Isso não vale mais nada. Esse dinheiro já saiu de 
circulação. E, agora, se apresse em se identificar ou você 
também vai sair de circulação... 
— Bem — disse Cândido, de cabeça baixa — eu sou um 
urubu. 
— Um URUBU? Os senhores ouviram? — gritou o motorista, 
virando-se para os passageiros — um urubu, querendo viajar 
num ônibus de luxo. 
— Se ele entrar, eu saio — resmungou uma senhora, 
fazendo cara de nojo. 
— Nós não levamos nem ave-do-paraíso dura, que dirá um 
urubu. Cai fora, bicho, vai procurar tua turma. Isto aqui é 
um ônibus de luxo. Não é um ônibus de lixo. 
O motorista arrancou rápido, jogando Cândido no chão. 
Cândido ficou alguns segundos pensativo, sentado no meio 
da estrada. Levantou-se, sacudiu a poeira das penas e 
permaneceu no acostamento, aguardando um próximo 
ônibus. Quinze minutos depois, parou uma resfolegante 
jardineira. Cândido tirou o chapéu para não deixar dúvidas 
quanto à sua espécie e subiu. O chofer, porém, fez um gesto 
com a mão, barrando-o: "Um momentinho, não sei se posso 
levá-lo". 
— Por que não? Estou vendo outros pássaros dentro do 
ônibus. 
— Sim, mas estão todos em gaiolas. Você trouxe sua gaiola? 
— Eu não vivo em gaiolas — respondeu Cândido indignado. 
— O regulamento da empresa não permite pássaros viajando 
soltos. Você não tem nada aí onde possamos acondicioná- 
lo? Uma caixa? Um alçapão? 
— Não. Nada. 
— Então, assim, vai ficar difícil. A não ser que você queira ir 
escondido dentro desse saco de supermercado. Eu faço um 
furinho para você respirar melhor. 
— Não. Em saco de supermercado, como se fosse uma 
galinha morta, é muito humilhante. Olha, eu sento lá no 
último banco, coloco o chapéu sobre o rosto e finjo que 
estou dormindo. Garanto que ninguém vai descobrir. 
— Não. Não dá — disse o motorista depois de pensar um 
pouco —, eu tenho mulher e filhos pra sustentar. Não posso 
me meter em complicações. Se você não tiver pressa, eu 
pergunto ao chefe se posso levá-lo e, amanhã, o apanho. 
Cândido tinha pressa. Marcara encontro com os pais — que 
foram voando — na estação rodoviária da cidade. Esperou 
mais meia hora, meio impaciente, até que apareceu um 
caminhão pau-de-arara, carregado de camponeses com as 
famílias em migração para a cidade. 
— Posso subir? 
— Pode — respondeu o motorista —, mas da próxima vez 
pegue outro. Este, aqui, é um pau-de-arara. Não é um pau- 
de-urubu. 
Cândido acomodou-se com alguma dificuldade ao lado de 
uma mulher que dava de mamar ao filho. Observando ao seu 
redor, sofreu um impacto com aquelas figuras esquálidas, 
sujas e mudas que não tinham nada a ver com as fotos 
coloridas de suas revistas. Por um momento, lembrou-se do 
velho Noé. Curioso por saber o que levava aquelas pessoas à 
cidade, perguntou a um homem baixinho, sem os dentes da 
frente, de bigode, que comia uma papa de farinha dentro de 
uma lata: 
— Vocês vão fazer o quê, na cidade? Passear? 
— Nós? Passear? Não. Vamos tentar ser gente. 
— Vocês, também? Puxa, que coincidência. Mas espera, 
vocês têm dois braços, duas pernas, andam vestidos, falam, 
vocês parecem gente... 
— É verdade. Temos tudo para ser gente, mas não somos. 
— E todo mundo que quer ser gente vai para a cidade? 
— Vai, claro. Na cidade, não falta nada. 
— Era o que eu pensava — exclamou Cândido excitado —, e 
quando é que você sabe que já virou gente? 
— Não sei — respondeu o homenzinho, pensativo. — 
Talvez no dia em que conseguir comprar um radinho de 
pilha. 
Na rodoviária, o caminhão deu uma meia trava e Cândido 
pulou, acenando para os companheiros de viagem que 
seguiam para o abrigo do Maior Abandonado. 
 
 
 
Olhou para um lado, para o outro, e, antes de encontrar os 
pais, deixou-se ficar estático, quase hipnotizado, diante dos 
enormes cartazes de publicidade que cobriam as paredes da 
rodoviária, revelando o mundo encantado da cidade, com 
homens fortes, sorridentes, bem-vestidos, junto de 
mulheres bonitas, elegantes, cheias de charme, anunciando 
produtos da melhor qualidade. Cândido sacudiu as penas 
num frenesi de satisfação, uniu-se aos pais e os três saíram à 
procura de um local para morar. É evidente que não 
pretendiam o mesmo vigoroso sobreiro em que residiam no 
campo. Uma amendoeira já servia. Procuraram durante 
horas: 
— Olha lá, pai — gritou Cândido, apontando para uma 
distante mangueira —, uma árvore, enfim, uma árvore!. . . 
Os três correram e se depararam com umà cena que o pai de 
Cândido disse já ter visto em algum filme: a árvore balançava 
sob o peso de tantas aves. Dezenas, centenas de pássaros, 
espremidos como numa arquibancada de futebol em dia de 
decisão. 
 
 
 
— Ei! — berrou Cândido para os pássaros — vocês sabem 
onde poderemos encontrar uma árvore? 
— Uma árvore? — repetiu um pardal. — Se você encontrar 
uma árvore, pode se considerar o urubu mais feliz do 
mundo. 
— E não se esqueça de nos avisar — disse outro pardal. 
Cândido e seus pais prosseguiram na romaria. 
— Sabe onde há uma árvore por aqui? — indagaram de uma 
menina com uniforme de colegial. 
— Árvore? Que é mesmo uma árvore? 
— Árvore — tentou explicar Cândido, meio embaraçado — 
é assim um tronco de madeira com umas folhas em cima. 
— Sei, sei, agora me lembro — disse a menina —, mamãe já 
me falou delas, mas não sei onde tem. Lá em casa, tem uma, 
mas papai só arma no Natal. 
Próximo a uma lagoa, o pai de Cândido vislumbrou uma 
jaqueira sobre os muros altos de uma mansão. Chegaram 
perto. No portão principal, uma placa de acrílico 
anunciando: "Aqui, próximo lançamento, Edifício Jardim 
das Oliveiras". Pularam a murada, arrumaram seus pertencesnum galho firme e, cansados da viagem, trataram de dormir. 
O dia mal clareara quando acordaram sobressaltados, ima- 
ginando que um terremoto sacudia a cidade. Cândido 
espichou o pescoço e viu lá embaixo dois homens serrando a 
árvore. 
— Os senhores poderiam me dizer por que estão 
derrubando esta árvore? — perguntou Cândido, com as asas 
na cintura. 
 
 
— Porque, pelo que sei, as árvores foram feitas para serem 
derrubadas. Precisamos do espaço para construir um prédio. 
— E não podem construí-lo um pouco mais para lá? 
— Não. Não podemos. 
— E por que não? 
— Porque mais para lá já vão construir outro. 
— Os senhores estão acabando com a natureza. 
— É natural. 
— Como natural? Não acham que o verde é indispensável? 
— Lógico que achamos, tanto que pintaremos todas as 
paredes dos apartamentos de verde-claro. 
Cândido ainda tentou argumentar, mas os homens disseram: 
— Se não levantarmos os prédios onde é que os 
homens vão morar? Já passou o tempo em que os 
homens moravam em cima das árvores. Hoje, até 
mesmo Tarzan já construiu sua casa própria. 
Cândido, desanimado, chamou os pais e propôs que, 
para resolver seus problemas, comprassem um 
colchão. 
— Colchão, não, meu filho — disse a mãe —, eu 
dormi a vida inteira em pé. O colchão resolveria um 
problema, mas criaria outros. 
— Que outros, mãe? 
— Problemas de coluna. 
Combinaram, então, que fariam uma última tentativa, 
recorrendo a uma loja de aluguel e venda de árvores. 
— Árvore pronta, nós não temos — informou o 
vendedor. — Aliás, só restam doze em toda a cidade e 
nove serão derrubadas ainda este ano. Serve na 
planta? 
— Na planta? O senhor não aclra que somos muito 
pesados para nos pendurarmos na planta? Qual é a 
planta? Samambaia? 
— Não. Eu me refiro a planta de árvore. Os senhores 
compravam e aguardavam que crescesse. 
— Não, obrigado. Gostaríamos da árvore pronta. 
— Com quantos galhos? 
— Dois — disse o pai de Cândido. — Um para mim e 
minha mulher e outro, para meu filho. Dois galhos e 
dependências. 
O corretor foi lá dentro e voltou com o mostruário, 
informando que "nós temos uma, aqui, com três, mas 
podemos quebrar um galho para o senhor". 
— É natural, a árvore? 
— Não, natural, não. Árvore natural inclusive já caiu de 
moda. Todas as nossas árvores são pré-fabricadas. Pode 
examinar, é de um excelente material. 
— De que é? — perguntou o pai de Cândido, passando a 
mão. 
— São de plástico. As árvores de plástico têm várias 
vantagens sobre as naturais: não dão cupim, não apodrecem, 
não desfolham, são laváveis e, o mais importante, 
desmontáveis. O senhor pode levá-la para onde quiser. 
Os três desistiram. Já estavam há três dias na cidade e ainda 
não tinham feito nada a não ser procurar uma casa. Na 
primeira noite, ainda se alojaram sobre a jaqueira, mas, nas 
outras duas, tiveram que dormir numa casa de cachorro, 
abandonada. Preocupados, chegaram até a colocar um 
anúncio nos jornais. A única proposta que apareceu foi de 
um papagaio. Mesmo assim, oferecendo um poleiro. 
Sem árvores e descartada a possibilidade dos colchões, os 
três pararam para encontrar uma solução. O pai de Cândido 
pensou num poste de iluminação: "Para você, Cândido, que 
gosta de ler à noite, seria ótimo. Teria uma luzinha à sua 
cabeceira". Cândido, porém, sempre teve medo de 
eletricidade. Considerou muito arriscado: "Qualquer dia 
desses, posso acordar eletrocutado". Analisadas as poucas 
opções, só restou mesmo uma escolha: a antena de televisão, 
que substituiu a árvore na paisagem urbana. 
— Já que nada mais nos resta — declarou o pai de Cândido 
— vamos morar mesmo numa antena de TV. 
— De TV a cores? 
— Não. Para quê, se nós somos em preto e branco? 
 
 
Os dias seguintes, Cândido os passou como um turista, 
descobrindo, lentamente, os encantos da grande metrópole: 
as luzes feéricas dos luminosos, os carros arrojados e suas 
buzinas maravilhosas, as vitrines, praias, supermercados. 
Realmente, a cidade era muito mais excitante do que pensara 
a princípio. Pelo que observava nos anúncios e cartazes de 
publicidade, nada era feio, nada era triste, nada era caro. Os 
magazines faziam tudo para facilitar a vida das pessoas, 
vendendo seus artigos sem entrada, sem juros, em quinze, 
vinte, trinta vezes, oferecendo brindes, liquidando as 
mercadorias a preço de casca de banana. Cândido se 
impressionava com aquele espírito de solidariedade. Um dia, 
leu nos jornais que uma dessas lojas estava no seu mês de 
aniversário. Sentiu-se na obrigação de ir até lá e levar-lhe 
um presente. 
"Como é fascinante ser gente", pensou Cândido. Mas para 
ser gente, antes de mais nada, era necessário ter dinheiro. 
Recordou-se de um conselho do velho Noé: "Numa 
sociedade de livre iniciativa, a primeira iniciativa que você 
deve tomar, nem que seja tomar emprestado, é conseguir 
dinheiro, sem o que você não será ninguém". 
— E onde posso conseguir dinheiro? 
— Num banco — respondeu-lhe um transeunte. 
— Qualquer banco? 
— Bem, eu não lhe aconselharia um banco de sangue. 
— E existe banco de sangue? 
— Existe, mas não creio que você deva procurá-lo. Acho 
que não aceitam sangue de urubu. 
— E só banco de sangue? Ou tem, também, de suor e 
lágrimas? 
— Bem, de lágrimas, eu só conheço vale. 
— E eu posso tirar um vale no banco? 
— Não. No banco, vale não vale! 
Cândido dirigiu-se a um banco: "Boa tarde", disse ao gerente, 
"eu queria ver se conseguia algum dinheiro". 
— Pois não. O senhor tem conta aqui? 
— Não. Eu não tenho dinheiro, como é que vou ter conta? 
— Quer dizer que o senhor quer dinheiro sem ter dinheiro? 
Qual é a sua ocupação? 
— Por enquanto, estou desempregado. 
— Então, nada feito. O senhor precisa trabalhar para que 
possamos lhe emprestar dinheiro. 
— Mas aí não precisa. Quando eu estiver trabalhando, 
estarei ganhando dinheiro. 
— Não precisa? Isso é o que o senhor pensa. O senhor está 
vendo essas pessoas? — disse o gerente, apontando para 
alguns clientes — todas elas trabalham. Pergunte se têm 
dinheiro. 
— E o senhor não pode me adiantar algum? Quando 
começar a trabalhar, eu pago. 
— Não posso. O senhor vai demorar muito para arranjar um 
emprego. O mercado está ruim para cachorro. 
— Mas eu não sou cachorro. 
— Para urubu, também. 
— Escute, não dá para me emprestar nem o da condução? 
— Não dá — afirmou o gerente, apalpando os bolsos — eu 
estou durinho. 
— Como durinho? O senhor não trabalha com dinheiro? 
 
 
— Trabalho. Mas com o dinheiro dos outros. 
O gerente aconselhou-o a procurar uma agência de 
empregos. O diretor da agência olhou Cândido de cima a 
baixo, apanhou uns papéis na gaveta e foi procurando, com 
auxílio do dedo indicador: "Olha, amigo", disse, "nós não 
temos nada, agora, para urubu. Passe dentro de dez dias". 
Terminou de falar, pegou o telefone, e continuou seus 
afazeres sem dar a menor importancia a Cândido, que 
continuou parado à sua frente. 
— Eu ainda não vi nenhum urubu na cidade — disse 
Cândido, timidamente —, deve haver vagas. O senhor não 
sabe quem estaria precisando de um fiscal de carniça? 
— Não. No momento, nós precisamos é da própria carniça. 
Pagamos um bom seguro de vida. Aceita? 
— Não estou seguro. Além do mais, se existe um tipo de 
carniça desprezada é a do urubu. 
— Deixe-me ver aqui — disse o diretor, desligando o 
telefone —, temos uma vaga para ave-do-paraíso. Quer 
tentar? 
— Ave-do-paraíso? Não. Do paraíso, não. Eu sou um 
pecador. 
— Mas é do paraíso terrestre.Acho que você representa 
bem, não? 
Cândido balançou a cabeça, negativamente. O diretor, então, 
perguntou se tinha alguma especialidade: "Você sabe voar ao 
menos?" 
— Não. Mas sei dormir em pé. Posso trabalhar num circo. 
Durmo empoleirado e não caio. 
— Isso parece interessante. Vou ligar para o Circo 
Americano — disse, discando o telefone. — Alô, é do circo? 
Me chame o gerente, por favor. Alô, nós temos aqui um 
urubu que poderia abrilhantar seus números. Um urubu que 
dorme em pé. Não estão interessados? Como? Já tem muitos 
empregados dormindo em pé? Sim, um momentinho, eu 
vou ver. 
 
 
 
Virou-se para Cândido: 
— Eles estão procurando um bicho que equilibre 
bolas no nariz. Dão preferência a foca, mas, se você 
souber, podem contratá-lo. Sabe? 
— Talvez soubesse, se tivesse nariz. 
O diretor agradeceu a atenção do gerente do circo, 
desligou, e perguntou a Cândido: "Você trabalha à 
noite?" 
— Não. Sou uma ave diurna. 
— Então, nada feito. A última vaga que eu tinha, aqui, 
era de vigia noturno. No lugar de uma coruja que foi 
demitida. 
 
Cândido saiu desolado, com aquele ar de desempregado, e 
não podendo meter as mãos no bolso, enfiou as asas entre as 
penas. Observava, impressionado, a altura dos edifícios, 
alguns com cento e cinqüenta, duzentos andares, varando as 
nuvens, em direção ao céu. "Lá em cima", pensou, "devem 
morar os anjos." Vagando pelas calçadas, recordou que Noé 
lhe dissera para não deixar de enfrentar uma fila, instituição 
desconhecida no campo: "Se você está pensando em virar 
gente", declarara o velho, com aquela sua sabedoria, "essa 
experiência é fundamental. Na cidade, todo homem que se 
preza já entrou numa fila". Cândido parou junto a uma banca 
de jornais e perguntou ao jornaleiro: 
— Onde é que eu posso encontrar uma fila? 
— Fila de quê? 
— Fila. Qualquer fila. 
— Serve fila de ônibus? 
Cândido disse que servia. O jornaleiro, então, indicou uma 
fila de três pessoas paradas num ponto. 
— Não tem maior? — indagou Cândido. — Aquela está 
muito pequena. 
— Bem, fila grande é o que não falta, mas, assim, de 
repente, eu preciso pensar. Se fosse durante o carnaval, eu 
poderia sugerir a fila para compra de ingressos do desfile das 
escolas de samba. É uma das nossas melhores filas. Deixe-me 
pensar. Você é do INPS? 
— Não. 
— Então, deve entrar. O mais rápido possível. Se você gosta 
de fila, as do INPS são da maior categoria. 
O jornaleiro pediu tempo a Cândido, abriu um jornal, e 
procurou o que estava em falta na cidade. Leu que, na 
próxima semana, iria faltar carne e açúcar: "Olhe, semana 
que vem, você terá duas boas filas", disse, "pode esperar? Ou 
você tem pressa para entrar na fila?" 
— Tenho. Eu gostaria de aproveitar agora para saber logo 
como é uma fila. 
— Quer tentar uma fila de elevador? 
— Não sei — disse Cândido, meio reticente —, nunca 
entrei num elevador. Acho que vou sentir medo. 
— Mas você não precisa entrar no elevador. Entra só na fila. 
O jornaleiro apontou um prédio, cinza, a uns cem metros: 
"Tem três elevadores, mas dois deles nunca funcionam. Se 
você der sorte, pode pegar uma fila que vai até a esquina". 
Cândido dirigiu-se para o prédio e, todo alegre, entrou na 
fila. O elevador parou, as pessoas foram entrando, mas, na 
vez de Cândido, o cabineiro fez um sinal com a mão, 
avisando que estava completo. O prédio tinha cento e 
cinqüenta e nove andares, com três elevadores (só um fun- 
cionando, no momento) que carregavam cinqüenta pessoas, 
vinte sentadas e trinta em pé. Cândido permaneceu ali, na 
maior excitação. Olhou para trás e notou que a fila já estava 
na calçada. Pensou em voltar para último, e certamente, o 
faria, se, naquele instante, já não tivesse perdido o interesse 
pela fila, entusiasmado com a possibilidade de passear de ele- 
vador, uma outra novidade em sua vida. 
Parado diante da porta, ficou acompanhando pelo painel a 
descida do elevador. No momento em que a porta se abriu, 
foi uma explosão: Cândido sentiu-se como que atropelado 
por uma boiada. Mais de quarenta pessoas, sem vê-lo, 
pisotearam-no, na pressa de ir para casa. Cândido ergueu-se, 
meio tonto, e entrou no elevador. O cabineiro, num gesto 
automático, perguntou: "Andar?" 
— Andar para onde? — indagou Cândido, ainda zonzo. 
— Só pode ser para cima — disse o cabineiro, mal- 
humorado. — Não há andar para baixo. 
-— Mas andar para cima, aqui dentro? Eu não sei andar pelas 
paredes. 
— Eu não estou dizendo para você andar pelas paredes. 
Quero só saber qual c o seu andar. 
Cândido ameaçou dizer que era andar de urubu malandro. 
Depois, preferiu falar a verdade: "O meu andar é de urubu 
desempregado". 
 
 
— Escute, meu chapa, não estou lhe perguntando se você 
está desempregado. 
O cabineiro, imaginando que o urubu falava outra língua, 
recorreu a seus pequenos conhecimentos de outros idiomas: 
"Quero saber pelo andar, piso, floor, you understand?" Cândido 
não disse nada. O elevador continuou subindo até que, no 
último andar, o cabineiro virou-se e disse: "Aqui é o fim da 
linha. Daqui para cima, só de avião". Cândido saltou, escalou 
uma escadinha e saiu num terraço. Percebeu dois urubus 
circulando em torno da torre. Eram os primeiros membros 
da sua família que encontrava na cidade. Chamou-os. Os 
dois se entreolharam como que se interrogando, planaram e 
pousaram no parapeito do terraço. 
 
 
 
— Poxa! — expandiu-se Cândido — vocês são os primeiros 
parentes que eu vejo aqui na cidade. 
— E o que você quer? — perguntou um deles, muito seco. 
— Nada. Nada de especial. Só conversar fiado. 
— Fiado só amanhã. Aqui na cidade não se faz nada fiado. 
Não temos tempo a perder. Precisamos terminar nosso 
trabalho. 
— E vocês fazem o quê? 
— Somos funcionários públicos. Trabalhamos como 
observadores do departamento de limpeza urbana. Ficamos 
sobrevoando a cidade, fiscalizando o movimento do lixo. 
Quando, em algum lugar, o lixo chega a dez metros de 
altura, nós avisamos ao departamento. 
— E como anda a vida por aqui? 
— Temos escutado muitas pessoas se queixando do custo de 
vida, da poluição, trânsito, tensão, sujeira, violência, mas 
para urubu não está mal, não. 
Cândido não gostou da resposta. Teria sido melhor se eles 
invertessem os dados. Certamente, se sentiria mais animado 
em virar gente. "E vocês trabalham todos os dias?" 
— Não, sábado e domingo temos folga. Saímos para o lazer. 
— Lazer? Que é lazer? 
— Lazer é assim como aproveitar o tempo que não se faz 
nada para ficar sem fazer nada. 
— É muito difícil de explicar — intercedeu o outro urubu. 
— E onde é que vocês fazem? 
— Vamos para o campo. 
 
— Mas vocês não vieram do campo? 
— Viemos. 
— E então? Por que não ficam na cidade? 
— É impossível. Na cidade, não há lazer que agüente. Além 
do que o lazer implica, às vezes, na busca da natureza. 
— E onde é que vocês vão buscar essa natureza? 
— Nos vazadouros, ora, nos depósitos de lixo. 
Escurecia. Cândido se despediu, sem entender direito o que 
significava lazer, e, ziguezagueando entre os carros que 
fluíam, na hora do rush, voltou para casa. Mal chegou, 
sentindo o cheiro que vinha da lagoa, comentou com a mãe: 
"Oba, isto aqui tá muito melhor do que lá no campo. Pelo 
menos, muito mais cheiroso. Que cheiro é esse?" 
— Peixe podre. 
— Peixe podre? Será que é bom? Tá comi muita coisa podre, 
mas peixe nunca. Cadê o velho? 
— Está lá na beira da lagoa. Agora resolveu fazer dieta. Só 
come peixe. E de preferênciapodre. 
Antes de sair à procura do pai, Cândido ouviu a mãe lhe 
dizer que tinham recebido notícias do campo: "Derrubaram 
o urubu-rei... " 
— Quem derrubou? Algum caçador? 
— Não sei, mas instauraram a república e entregaram o 
governo a uma codorna. 
— Uma codorna? Mas o que tem a ver uma codorna com os 
urubus? 
— Nada. Por isso mesmo. 
— E o falcão? 
— O falcão entrou no facão. Nem chegou a assumir. 
— A senhora tem idéia de quem fez isso? 
— Suspeita-se que tenha sido uma manobra da águia. 
— Que águia? 
— Da águia americana. Ela se mete em tudo. Cândido 
caminhou até a beira da lagoa e encontrou seu pai 
sobraçando vários peixes e conversando com os garis. Os 
garis tentavam convencê-lo a apanhar os peixes que 
boiavam no meio da lagoa. "Mas os garis não são vocês?", 
disse o pai de Cândido. 
- Somos garis só em terra firme. Nenhum de nós sabe nadar. 
— Eu também não. 
— Mas sabe voar. 
O pai de Cândido se dava muito bem com os garis, desde os 
primeiros tempos de monturo. Alegou que levaria meses 
para recolher todos os peixes: "Posso trazer, no máximo, uns 
três de cada vez. Meu bico é muito pequeno. Por que vocês 
não contratam um tucano?" 
— Ou um pelicano? — interferiu Cândido. 
O pai de Cândido sugeriu um bote. Os rapazes da limpeza 
disseram que eram garis e não remadores. "Mas não há muita 
diferença", disse o pai de Cândido, "é só vocês pegarem as 
vassouras e repetirem dentro d'água o mesmo movimento 
que fazem no asfalto." 
— E nós podemos remar com as vassouras? 
— Claro. O que vocês não podem é varrer com o remo, 
 
 
Convencidos, os rapazes entraram num bote, remaram para 
o meio da lagoa e começaram a enchê-lo de peixe podre. 
Foram enchendo, enchendo, enchendo, e, como os garis 
nunca foram bons de cálculos, acabaram enchendo demais. 
O bote afundou, ao peso de tantos peixes. Foi o primeiro 
naufrágio de garis na lagoa. Uma lagoa envolvida por um 
mau cheiro intolerável. Cândido indagou do pai — que 
aproveitava a fedentina para fazer exercícios respiratórios — 
por que na cidade eram os garis e não os pescadores que 
apanhavam os peixes. 
— Porque pescador só acha graça em apanhar o peixe vivo, 
— Mas depois não o mata? 
— Mata. 
— Então, é melhor ser gari que apanha logo o peixe morto e 
não fica com aquele sentimento de culpa. E por que esses 
peixes mortos? Será que, já sabendo que vão ser pescados, 
eles se suicidam? 
— Não. Isso é poluição. Os peixes morrem por causa da falta 
de oxigênio no fundo da lagoa. 
— Oxigênio? Vai ver que é por isso que estou com falta de 
ar. 
— Não pode ser. A falta de ar é só dentro d'água. Os 
homens estão preocupados. Não sabem como resolver o 
problema. 
— Pois, para mim parece muito fácil — disse Cândido. — Se 
o problema é de falta de ar, por que os homens não jogam 
uns balões de oxigênio dentro da lagoa? 
 
 
 
O pai de Cândido, carregando os peixes dentro de três caixas 
de sapatos, chamou o filho, com um sinal de cabeça, para 
retornar a casa. O pai de Cândido, cheio de provisões, estava 
satisfeito com a possibilidade de levar adiante seu regime e 
perder um pouco da barriga. Lentamente, quase sem sentir, 
o pai de Cândido submergia aos apelos da cidade. Já estava 
até pensando em iniciar um cooper e, para isso, pediu 
emprestado dois tênis dos quatro usados pela anta do Jaguar. 
No momento, porém, interessava-se pelo emprego do filho. 
E, ao saber de suas frustradas incursões, bateu no peito, 
declarando que "eu mesmo vou procurar". Dia seguinte, foi 
direto à Metro Goldwyn Mayer. 
 
 
— Realmente — disse-lhe o diretor da Metro — nós 
estamos procurando alguém para o lugar do leão que vai se 
aposentar no mês que vem. 
O diretor contou que a notícia da aposentadoria do leão 
levou uma quantidade interminável de animais à procura da 
sua vaga: "Isto aqui parecia o dia do embarque na arca, às 
vésperas do dilúvio. Havia uma fila de animais que dava a 
volta no quarteirão". Afirmou, porém, que, provavelmente, 
a empresa substituiria esse leão por um outro leão. 
— Só que, desta vez, como estamos preocupados com a 
segurança da empresa, pensamos num tipo diferente de leão. 
— Qual? 
— Um leão-de-chácara. 
O diretor disse, ainda, que andou sondando os animais da 
praça e, durante algum tempo, esteve inclinado a chamar o 
tigre da Esso que ruge, fluentemente, em inglês: 
"Entretanto, fomos obrigados a desistir da idéia, já que o 
tigre fez uma série de exigências que não podíamos aceitar". 
— Exigia — completou —, por exemplo, que nós 
mudássemos a moldura em que o nosso leão aparece e que é 
redonda, por uma outra, oval. 
— Quer dizer que urubu não interessa? 
— Penso que não. Urubu ruge? 
— Nem um pouco. 
— Então, não dá. Pelo menos, para substituir o leão. Se 
o senhor quiser, talvez tenhamos uma vaga de datilografo. O 
menino bate à máquina? 
— Só com três dedos. 
— Só com três? De cada mão? 
— Não. De cada pé. 
— Seu filho — estranhou o diretor — bate à máquina com 
os pés? 
— Infelizmente, sim — lamentou o pai —, urubu não tem 
mão. 
O diretor da empresa desculpou-se dizendo que as máquinas 
da empresa eram muito frágeis, "mas pode deixar que eu 
telefono tão logo tenhamos novos modelos que possam ser 
batidos com os pés". Mostrando-se simpático, solicitou ao 
pai de Cândido que deixasse com a secretária seu endereço 
"porque estamos sempre precisando de alguns urubus extras 
para filmes sobre caçadas". 
O pai de Cândido, ao preencher a ficha, não teve coragem 
de confessar que seu filho não sabia voar. Saiu, comprou um 
jornal, e procurou na página de classificados um outro 
emprego para o filho. No canto da página, viu um concurso 
que iam abrir no Flamengo para escolha do símbolo do 
clube. Havia duas vagas: o urubu primeiro colocado ficaria 
como símbolo titular e o segundo, como reserva, no banco, 
pronto para entrar em campo a qualquer momento. O 
anúncio não falava nada sobre saber voar. Apenas uma 
exigência: boa apresentação. "Boa apresentação?", 
resmungou o pai de Cândido. "Nunca vi urubu com boa 
apresentação. Se esses caras querem boa apresentação, 
deveriam escolher o pavão para símbolo." 
No dia do concurso, Cândido — que não teve tempo de 
fazer o cursinho — estava lá, com seu material embrulhado 
em jornal, a prancheta e o lápis 6B. Sentou-se nas 
arquibancadas e observou, surpreso, que todo o anel do 
estádio do Maracanã estava preto, apinhado de urubus. 
Dentro do gramado, bem no centro do grande círculo, uma 
máquina enorme concentrava as atenções dos instrutores e 
juízes. A máquina, que parecia ser a dona da festa, era, 
segundo seu colega do lado, um computador. Os testes 
dividiam-se em práticos e teóricos, sendo que os teóricos 
constavam de uma prova de português, biologia, moral e 
cívica, regras da International Board e música. 
 
 
 
— Para que música? — perguntou Cândido. 
— Para poder acompanhar a charanga. 
Os testes práticos eram realizados dentro do campo. 
Terminada a parte teórica, os urubus eram convocados pelos 
alto-falantes, por ordem alfabética, e desciam aos grupos 
para o vestiário onde mudavam de roupa e adentravam o 
gramado. Todos os testes eram eliminatórios. Cândido 
colocou o calção, o meião, chuteiras e, antes de entrar em 
campo, se benzeu. Ainda que um tanto fora de forma, 
Cândido foi ultrapassando os testes: cobrou pênaltis, laterais, 
escanteios, tiros de meta, faltas com e sem barreira, matou a 
bola no peito, fez embaixadas, cabeceou, e assim foi ficando 
para

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