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Carlos Eduardo Novaes A História de Cândido Urbano Urubu CÍRCULO DO LIVRO S.A. À Ana Lúcia Cândido acordou com o barulho dos primeiros caminhões descarregando lixo. Respirou fundo, aproveitando o ar impuro e putrefato da manhã, olhou em volta e percebeu que estava só, em casa. Todos os outros urubus já haviam deixado a árvore — um enorme e quase desfolhado sobreiro — e, naquele momento, mal podiam se conter sobrevoando o mon- turo à espera de que os caminhões se retirassem. Lavou o rosto, passou uma flanela no bico e pensou em se juntar aos outros, mas observando na folhinha que era 23 de dezembro lembrou-se de um compro- misso social inadiável. Precisava levar o seu recon- forto a um peru, vizinho e amigo, condenado à mor- te. Sua execução estava marcada para a véspera de Natal (que por sinal no calendário dos perus é dia de finados). Cândido foi encontrá-lo sentado num canto do quintal tomando sol e absorto na leitura de um livro de receitas. Aproximou-se sem se deixar ver, na ponta dos pés, espichou os olhos por cima do ombro e viu que o amigo lia atentamente o capítulo dedicado ao preparo do “peru à Califórnia”. - Você gostaria de ser servido à Califórnia? O peru virou-se, fechou o livro – não sem antes marcar a página – e com um sorriso no bico, como se dissesse “oh, é você”? Balançou a cabeça negativamente: - Claro que não, Cândido – afirmou – eu nunca estive na Califórnia. — Talvez, então, preferisse sair à cabidela, como a galinha? — Também não. — Como lhe agradaria, então, ir para a mesa? — Vivo. Cândido pressentiu o tom amargo de sua voz. Conheciam-se há precisamente um ano, desde que o peru chegou para substituir o irmão sacrificado no último Natal. Havia entre os dois uma afeição muito forte e apesar de não serem parentes tinham, além das penas pretas, muita coisa em comum. Não fosse o regime de engorda a que submeteram o sentenciado e jamais alguém, vendo-os juntos na rua, seria capaz de distinguir o peru do urubu. Cândido lembrou-se que seu avô, um urubu-campeiro, costumava contar que no período neolítico, há milhares de anos, as duas aves faziam parte de uma mesma família, "E há um episódio que pouca gente sabe", dizia o avô, "nós éramos tão parecidos que, no dia do Dilúvio, o peru saiu de casa às pressas, esquecendo todos os seus documentos, e só entrou na arca porque o urubu lhe emprestou seu passaporte." No fundo, pensava Cândido, o peru era um urubu que não tirou o brevê de vôo. — Talvez se fosse o contrário — ponderou o peru — hoje o pessoal estivesse comendo urubu no Natal. — Sabe de uma coisa que me intriga? — indagou Cândido coçando a cabeça pelada. — Por que a festa de nascimento de Cristo é comemorada com a morte do peru? — Também não sei, mas entre nós corre uma história que muitos perus acreditam ser verdadeira: quando Cristo completou, se não me engano, trinta anos, recolheu-se a sua casa e, cansado de ser seguido diariamente por uma multidão, mandou dizer que não estava para ninguém. Os apóstolos, porém, que a essa altura já não lhe davam um sossego, invadiram a casa, pouco antes da hora do almoço, cantando "parabéns pra você". Cristo, um tanto encabulado, perguntou se eles já tinham almoçado. Diante da resposta negativa, pegou em três dinheiros e pediu à empregada para dar um pulinho na venda e comprar dois galetos "porque chegaram uns amigos para almoçar". A empregada ponderou que era domingo e estava tudo fechado. "E nós não temos nada em casa. Temos só uma lata de salsicha", disse a empregada. "Amanhã é que eu vou fazer as compras do mês." Cristo pensou em produzir um milagre, depois achou que seria um exagero, só para dar de comer a uma dúzia de apóstolos. Além do mais, sentia-se cansado, já que na semana anterior fora levado a um grande esforço ao fazer o milagre dos pães. Olhou, por acaso, pela janela da cozinha e viu lá fora um peru que ganhara de presente de um agricultor por ter feito chover na sua horta. "Só nos resta mesmo", comentou com a empregada, "comer o peru." A empregada preparou, então, um excelente "peru à Jerusalém". Os apóstolos gostaram tanto que a partir daí, todos os anos, passaram a comer peru na noite de Natal. Contam, inclusive, vários historiadores, que, na grande ceia — que não foi a 25 de dezembro —, apesar dos garçons terem limpo a mesa antes, em algumas fotos pode-se ver ainda pedaços de peru no prato de Judas Iscariotes. Cândido ouviu silencioso, perplexo com a cultura do amigo. O peru voltou a folhear o livro. Parou numa página e chamou Cândido para vê-la: havia uma foto em cores de um cadáver de peru, pronto para ir ao forno. — Veja, Cândido, igualzinho ao que os nazistas fizeram na Segunda Guerra. — Os nazistas comiam peru durante a guerra? — Não é isso, Cândido. Esse perucídio que cometem hoje, às vésperas do Natal, os nazistas já faziam na Segunda Guerra, contra os judeus. Era o que os homens chamam de genocídio. Na verdade, a diferença está apenas no tipo de forno: o deles era crematório. Cândido impressionava-se com a serenidade de um peru, a menos de vinte e quatro horas da execução. Perguntou-lhe com uma certa cerimônia qual seria a forma de execução. O peru bateu as asas como que dando de ombros: "Não sei. Suponho que não seja por fuzilamento, nem por garrote vil, afinal nunca cometi uma vileza". Pensou um pouco e acrescentou que a forma deveria ser a tradicional: a guilhotina de cozinha. "Vão me embriagar e passar a faca no meu pescoço." — E você já fez o último pedido? — Já. Quero ser embriagado com uísque escocês. O peru começou a falar sobre a morte. Disse que nunca tivera filhos porque nada compensava o desfecho brutal. E afirmou sentir pena dos homens, animais racionais, que eram forçados a carregar pela vida afora a consciência do fim. Nada mais duro. Confessou que desde pequeno vinha se acostumando à idéia de desaparecer num Natal qualquer. "No ano passado, foi meu irmão, antes foi meu pai, minha mãe, meus avós. É como se ficássemos em fila, uma geração atrás da outra, esperando o momento da viagem de volta", explicou, deixando escapar uma furtiva lágrima que não pas- sou despercebida a Cândido. O urubu, meio confuso, tentou desconversar, descontrair um pouco aquele clima, e perguntou ao peru se não queria brincar de roda. — Não, obrigado. Só brinco de roda quando estou bêbedo. Abriu-se um longo silêncio. Não há muito o que dizer a um peru condenado. De repente, Cândido sentiu todo o peso daquele instante. Estendeu a asa para se despedir. O peru aproximou-se e, emocionado, deu-lhe um abraço dizendo: "Se eu não o vir mais, um feliz Natal para você". Cândido quase respondeu "pra você também". Aparentemente nada distinguia Cândido de qualquer outro membro da comunidade dos urubus: negro, de cabeça como que raspada à máquina zero, e com o polegar mais elevado que os outros dedos. Tinha ainda as narinas intercomunicáveis por ausência do septo nasal, razão por que poderia sofrer de qualquer tipo de desvio. Menos do septo. E sofria. Por trás daquela cândida aparência, Cândido Urbano Urubu acumulava inúmeros desvios, sendo que o maior deles parecia ser sua determinada recusa em voar. Uma recusa que se manifestou cedo e foi se acentuando com o tempo, para desgosto de seu pai, que pretendia vê-lo seguindoos passos, ou os vôos, de um primo distante, sempre citado nas reuniões de família como um exemplo de abutre bem-sucedido: o condor da Arte Filmes. — Mas eu não tenho o menor jeito para o cinema — costumava repetir Cândido todas as vezes que seu pai puxava o assunto. — E daí, meu filho? O cinema está cheio de gente que não leva o menor jeito. — Gente, pai, gente. O senhor se esquece que somos apenas uma modesta família de catartídeos e aqui ninguém contrata urubu para apresentar seus filmes. — Claro que contrataria — disse o pai com convicção. — Eu soube, inclusive, que o nosso cinema está muito mais para urubu do que para colibri. E não adiantavam as ponderações de Cândido, explicando que a situação do condor da Arte era excepcional. Seu pai imediatamente lembrava, contando nos dedos, do leão da Metro, da Chita, velha companheira de Tarzan, do asno Francis e da cadela Lassie, que ganhou tanto dinheiro com o cinema, que muito cedo deixou de levar vida de cachorro. — Eu sou muito feio — insistia Cândido, tentando encontrar uma desculpa que convencesse o pai. — Isso não tem a menor importância, o condor também não é nenhum padrão de beleza e, você vê?, deram um jeito: puseram-no de costas para o público. O que interessa não é a cara, meu filho, é a elegância do vôo. Você precisa aprender a voar. Não queira saber as oportunidades que está perdendo, por não sair do chão. Além do mais, o vôo transmite uma intensa sensação de liberdade que pode levá- lo quase aos limites da perfeição. — Ora, meu pai, isso é conversa pra gaivota. Você andou lendo muito Fernão Capelo. — Imagine, meu filho — disse o pai sem dar atenção ao comentário —, você se despregando de um penhasco num vôo suave como o do condor e escrevendo no céu "apresenta". — Que é isso, pai? Eu para imitá-lo, antes de aprender a voar, teria que entrar para um curso de caligrafia. Não tenho aquela letra bonita do condor. O pai não desistia. Não havia nada que o demovesse da idéia de fazer do filho um urubu de projeção — e tanto fazia que a projeção fosse em 16 ou 35 milímetros. De certa forma, como todo pai convencional, além de querer encaminhar o filho, projetava nele, e projetava em tela cinemascope, todas as suas próprias frustrações. — E como é que você meteu na cabeça essa idéia de ser artista de cinema? — perguntou-lhe um dia o filho, olhando os cartazes na porta. — Não. Eu ia ao cinema. — Como, pai? Urubu não entra em cinema. — Sim, mas eu ia ao drive-in. E, balançando-se num frágil galho do sobreiro, o velho recordava-se dos tempos em que saía do campo para passar o verão na cidade. Sua principal diversão era assistir a todos os filmes exibidos no drive-in, aboletado numa mangueira que ficava nos fundos do terreno. — Que emoção indescritível no dia em que vi o condor aparecer pela primeira vez. O público botou a cabeça para fora dos carros e começou a enxotá-lo: xô, xô! Na sessão seguinte, não resisti. Pouco antes do seu início, saí lá da árvore e pousei em cima da tela, esperando que o público se manifestasse, me enxotasse, como fizera com o condor. — E o público enxotou-o? — Claro. Só que ao perceber que se tratava de um urubu e, ainda por cima, vivo, ao invés de dizer apenas "xô, xô", me enxotou a pedradas. Uma pedra acertou-o na asa esquerda, quase deixando-o inutilizado. Entretanto, mesmo sabendo que já não podia voar tão bonito quanto o condor, continuou obcecado pela idéia e não podia ver um muro branco que logo saía num vôo capenga e, com um pedaço de carvão, escrevia "apresenta". — E agora, seu pai faz o quê? — perguntou o velho Noé. — Entrega bebês. — Mas isso não é trabalho da cegonha? — Era. Atualmente, as cegonhas estão rareando e as poucas existentes estão pedindo muito caro para fazer as entregas. — Creio que o vi passar outro dia por aqui, carregando um crioulinho. — É possível. Ele só entrega crioulos. A única vez que me lembro dele ter levado um garotinho pardo, mas louro de olhos azuis, deu a maior confusão. A mãe, que chegara há pouco da cidade e trabalhava numa boate no cais do porto, não estava em casa e o pai, um crioulão enorme, não quis receber a criança, dizendo que não era lá, que o endereço estava errado. Foi um tremendo tumulto. O crioulo teve que ficar com a criança, mas, depois, pagou um vôo especial da cegonha para deixá-lo na Suécia. — E por que seu pai não entrega brancos? — Os brancos acham que urubu dá azar. Na firma anterior em que papai trabalhava, obrigavam-no a se pintar de branco e imitar o vôo da cegonha, quando a entrega era em casa de branco. E o pior é que a tinta demorava cinco dias para sair. — Rapidamente — prosseguiu Cândido — se espalhou que havia um urubu branco no campo e aí não queira saber o que apareceu de gente, gente de revista, dos jornais, de programas de TV e um grupo de cientistas que o perseguiu durante dois dias até que o apanharam. Levaram meu pai para a cidade, prenderam-no e quase o mataram para poder estudar melhor o fenômeno. Já em cima do mármore, de tanto implorar, permitiram que meu pai se despisse, tirasse as pernas e pegasse outras, para provar que era um urubu tão preto quanto os outros. O velho Noé era um homem que vivia de remexer monturos. Conhecia Cândido desde que começara a freqüentar os depósitos de lixo. Alto, meio gordo, com uma cor que a sujeira tornava indefinida, e uma roupa tão encardida quanto a própria pele, andava com um enorme saco nas costas, barba comprida, malcheiroso (do ponto de vista dos homens) ou extremamente perfumado (do ponto de vista dos urubus). Sempre com umas moscas circulando em torno de sua cabeça, o velho Noé era o único amigo homem (ou amigo gente, como costumava dizer) de Cândido. Uma espécie de confidente. Somente a ele, por quem mantinha uma profunda admiração, Cândido foi capaz de revelar o verdadeiro motivo por que não voava. — Sabe por que não vôo, velho Noé? O velho abanava a cabeça, vigorosamente. E abanava com vigor para dizer que não sabia e, ao mesmo tempo, espantar a mosca pousada na ponta do seu nariz. — Eu não vôo porque eu quero ser gente, gente que nem você, e gente não voa. Para os colegas, vizinhos e outros animais, Cândido dizia que não voava porque tinha medo de avião. — E urubu já anda de avião? — perguntou um marreco. — Não. O medo que eu tenho é de ser atropelado por um avião. E explicava sempre que, desde que o homem inventou o avião, o urubu perdeu a tranqüilidade para voar. Contou o que tinha acontecido com uma tia que foi apanhada de raspão por um Caravelle e se salvou por milagre aterrissando sem trem de aterrissagem. Tanto ela quanto o Caravelle. Quando os outros diziam que "isso não é nada, pode acon- tecer aqui embaixo com um caminhão", Cândido, então, contava a história de seu primo, que, num domingo de sol, planava distraído, perto de um aeroporto, foi engolido por uma turbina de DC-10 "e desapareceu sem deixar vestígios". Antigamente, quando os aviões eram mais lentos, movidos a pistão, ainda se podia escapar com um drible de corpo. Agora é impossível. O Boeing se transformou num monstro para os urubus e, quando os urubuzinhos não querem ficar quietos, as mães que não entendem nada de pedagogia moderna ameaçam: "Se você não parar, eu vou chamar um Boeing para te engolir". Em casa, Cândido disfarçou o quanto pôde. Sua mãe,porém, logo desconfiou de seu desinteresse pelo vôo assim que a vizinhança passou a cochichar, insinuando: "Cândido deve ser meio retardado, não acompanha os outros urubus de sua idade". Realmente, Cândido já estava na idade de dar os seus primeiros vôos, pensou ela, mas nos últimos tempos só o vejo abrir as asas para se espreguiçar. As suspeitas aumentaram no dia em que uma tia de Cândido passou mal. A mãe gritou, aflita: — Cândido, vá buscar um remédio pra sua tia que está passando mal. Mas vá voando. Nem assim Cândido tirou os pés do chão. Não foi sequer capaz de pular uma porteira. — Por que você não voa, Cândido? — Eu tenho vertigem de altura — desculpava-se. — Quando subo a mais de cinco metros, fico tonto, enjôo e vomito. — Nós temos que arranjar uma forma de fazê-lo voar — insistiu a mãe —, os vizinhos já estão comentando e, afinal de contas, você é um catartídeo. E nunca houve na história da nossa família alguém que não pudesse voar. Você tem que se aproveitar do fato de sermos mais leves que o ar. — Não vejo muita vantagem nisso, mãe, a atmosfera está tão poluída que daqui a pouco até o homem vai ser mais leve que o ar. Para tentar contornar o suposto problema do filho, a mãe comprou um cinto e meia dúzia desses saquinhos contra enjôo, que as empresas aéreas mantêm atrás das poltronas dos aviões. — Pronto, Cândido, trouxe-lhe uns saquinhos para você pendurar no pescoço, quando for voar. Toda vez que ficar enjoado, abra o saco e vomite dentro. — E esse cinto? — É pra quando seu vôo estiver jogando muito. Aí você aperta o cinto. Cândido, ainda que contrariado, voou pela primeira vez, para fazer a vontade da mãe. Não se demorou nem dois minutos no ar: jogando muito, acabou se chocando com um outro urubu que vinha, com uma bengala, no sentido contrário. Os dois se estatelaram no chão. E só depois de voltar a si, Cândido pôde ver no outro urubu, ainda desmaiado, um cartaz pendurado no pescoço, em que se lia: "Atenção, cuidado, vôo cego". — Não adianta — murmurou Cândido — não entendo nada de vôo. — Mas você tem que voar, Cândido. Eu gasto um dinheirão com você na escola. E pra quê? Pra quê? Pra quê, se no primeiro mês de aula Cândido tirou zero em teoria e zero em prática de vôo? Desesperada, a mãe correu ao colégio e, na entrevista com a diretora, ouviu a humilhante observação: "Seu filho não consegue subir mais alto do que uma galinha". — E a senhora acha que ele poderia melhorar com um professor particular de vôo? — Creio que não. Aconselho-a, como primeira etapa, a procurar um psicólogo e fazer um teste vocacional com Cândido. Seu filho tem um comportamento muito estranho. Me parece que é, realmente, um urubu problema. Na sala de aula, a professora de teoria de vôo fazia perguntas à turma: "Você, diga-me, qual a primeira providência que um urubu deve tomar para pousar?" — Descer o trem de aterrissagem, escamoteável. — Muito bem. E você, diga-me, como se pode fazer isso? — Encolhendo as espáduas para reduzir a área de envergadura. — Ótimo — tornou a professora —, a partir daí, então, o urubu perde altitude e desce num pique, dando a impressão que vai se esborrachar. E só não o faz por quê, Cândido? Antes de pousar, o urubu abre o quê? — O pára-quedas — respondeu Cândido, inteiramente alheio ao que se passava na sala. A professora repreendeu-o. Mal terminou a repreensão, Cândido imediatamente voltou a folhear, com um ar clandestino, uma dessas novas revistas que são capazes de transformar qualquer Biafra num paraíso terrestre, deslumbrado com as maravilhosas aventuras do homem. Na saída da escola, enquanto seus colegas alçavam vôo, Cândido saía caminhando por um matagal até um descampado próximo onde todos os dias pegava carona num helicóptero, agarrado na cauda. Cândido era, assim, uma espécie de pingente de helicóptero. Antes de ir para casa, Cândido deu um pulinho no monturo, como fazia quase sempre, para conversar com o velho Noé e pedir-lhe que contasse uma história sobre os homens. Sentou-se numa pilha de livros que já não cabiam mais nas prateleiras do casebre: "Vamos, velho Noé, conte-me alguma coisa sobre os homens". — Contar o quê, Cândido? Os homens não têm feito nada que mereça ser contado. — Ora, Noé, deixe disso. Eu sei que o mundo está cada vez melhor. Eu vejo pelas fotos nas revistas. Uma vez eu vi uma foto tirada do espaço pelos astronautas. A Terra era linda, toda azul. — Azul, vista de fora — disse Noé, requentando café num bule enferrujado —, aqui dentro, a situação está mais negra que as asas da graúna. Conhece a graúna? Os homens estão complicando tanto que, em breve, teremos que apagar tudo para começar novamente. — Passar a borracha? — comentou Cândido. — Assim como se faz quando se erra nos deveres da escola? — Isso. Os homens não estão sabendo fazer os seus deveres. E a continuar assim, com certeza, vão levar bomba. Cândido levantou uma sobrancelha, desconfiando das previsões do velho Noé: — Acho que está querendo me tapear, velho. Você quer que eu desista, mas não vai ser fácil. Vamos, conte-me, fale-me a verdade, eu preciso saber, eu quero ser gente. Cândido pulou da pilha de livros para o ombro do velho Noé e disse-lhe num tom de proposta: — Olha, vamos por partes, comecemos do princípio, o que faz o homem ao acordar? — Escova os dentes. — Que azar, eu não tenho dentes. Que é que eu vou fazer? — Bem — ponderou Noé, sorvendo um grande gole e limpando a boca com as costas da mão —, você pode mandar fazer uma dentadura. Em matéria de dentadura, o homem evoluiu muito. — E você acha que eu ficaria bem de dentadura? — perguntou Cândido, forçando um sorriso diante de um pedaço de espelho pendurado na parede. — Claro. Quer experimentar a minha? — Agora não. Vamos em frente. E depois de escovar os dentes, o que faz o homem? — Depende, Cândido, depende da classe em que esteja. — Classe? Que é classe? — É uma forma de distinguir os homens — explicou Noé, procurando ser claro —, de separá-los em categorias sociais. — Mas os homens não são todos iguais? Não formam uma família, como os outros animais? Noé respondeu, movendo apenas o indicador, como um limpador de pára-brisas. — E o que distingue uma classe da outra? — tornou Cândido. — A altura? O peso? A cor? O velho Noé espantou as moscas e observou que, em certos países, era possível saber, pela cor, a que classe os homens pertenciam; "normalmente, os pretos pertencem à classe baixa". — Quer dizer que eu, sendo preto, vou pertencer à classe baixa? — Talvez não, se você conseguir as mesmas oportunidades que os brancos. Nos Estados Unidos, por exemplo, você teria dificuldades, mas no seu caso ainda se poderia dar um jeito. — Como? — Fazendo um transplante. Trocando essas penas pretas por outras verdes, amarelas, vermelhas. — Mas aí eu ia virar uma arara. Não ia dar certo. Não tenho voz para gritar que nem a arara. Cândido continuava suas poses diante do espelho. Esforçou- se para repetir o som da arara, mas, apesar de todo o empenho, não arrancou de sua voz anasalada mais do que um sofrido gemido: huuum. . . — E você, Noé, pertence a que classe? — Eu? — disse Noé com um leve sorriso. — Eu estou abaixo da baixa. Estou assim no subsolo das classes. — E Cristo? Se Cristo fosse vivo, a que classe pertenceria? — Cristo? — assustou-se Noé com a pergunta inesperada.— Bem, Cristo, provavelmente, teria que andar com um atestado de pobreza no bolso. Cândido não compreendeu. Tornou a perguntar o que afinal distinguia uma classe da outra. Noé bateu com a mão no bolso que, com toda a certeza, estava vazio, e talvez furado, e disse: "O dinheiro". — Mas por que você lembrou de Cristo? — perguntou Noé. — Porque me disseram que Cristo era um exemplo entre os homens — respondeu Cândido pensativo —, mas já não estou muito certo disso. Um amigo contou-me uma história sua. Estou desconfiado de que Cristo era comunista. — Por que comunista, Cândido? — Porque Cristo comia peru no Natal. E no meu entender quem come um peru pode, perfeitamente, comer uma criancinha. E só quem come criança é comunista. — Ora, Cândido, se comunista comesse criança não haveria mais jovens na União Soviética. — É. Mas me disseram que eles só comem crianças capitalistas. O velho Noé explicou a Cândido que Cristo era anterior a Marx. Mesmo assim, "Cristo tinha algumas idéias sobre igualdade, consideradas muito avançadas ainda hoje e que dificilmente lhe permitiriam viver em alguns países, sem ser considerado subversivo. Nas terras do rei Pinote, estou certo, ao dar o primeiro passo na rua, seria, imediatamente, atirado às masmorras". — Duvido que Cristo fosse capaz de dar tanto ibope, atualmente, se não tivesse uma certa situação — ponderou Cândido —, se não tivesse condições de possuir um TV a cores, o carro do ano, cartão de crédito. Não. Ninguém ouviria-Cristo se ele não tivesse no bolso, no mínimo, umas ações da bolsa. — Eu sei — continuou Cândido — eu sei porque Cristo pregava a igualdade. Porque era um mau executivo, nunca soube ganhar dinheiro. A prova é que, no seu tempo, a Igreja vivia na maior miséria, e hoje, se desenvolveu tanto que formou até um Estado. Duvido que Cristo reconhecesse a sua Igreja se aparecesse, agora, diante do Vaticano. Não, velho Noé, fale-me de outros homens, homens comuns, bem sucedidos na vida. — O homem comum está esmagado, Cândido, esmagado pela desigualdade social, a má distribuição de rendas, o desemprego, a competição, a discriminação, o preconceito, a miséria. Não, Cândido, não vale a pena. Eu, se pudesse, viraria urubu. — Pois eu quero virar gente. Meu maior sonho é largar isto aqui e ir para a cidade ser gente. — Acredite, Cândido, pode ir, mas vá como urubu. A cidade, atualmente, tem um nível de poluição tão elevado que se presta muito mais para um urubu do que para um homem. E tem mais — completou o velho Noé, retirando um pedaço de osso de dentro do saco — vocês, urubus, ainda não foram atingidos como nós pelo problema da fome. Desta vez, porém, o velho Noé se enganou. Ao chegar em casa — o velho sobreiro — Cândido notou que os moradores estavam reunidos na portaria. Não deu importância. Pensou tratar-se de uma reunião do condomínio. Aproveitando estar só em casa, foi para seu quarto, e com todo cuidado, tirou de baixo de seu esconderijo, nas folhagens, um álbum onde colava as fotos dos homens, recortadas das revistas que folheava na escola. Um álbum grosso onde aparecia o homem nas mais diferentes situações: o homem sorrindo, o homem fumando, o homem amando, o homem jogando pólo, o homem es- quiando. "Que legal", exclamou, "não pode haver nada melhor do que ser gente." — Cândido, Cândido — gritou o pai, entrando inesperadamente e surpreendendo o filho no quarto. — Cândido, que é que você está lendo? Novamente, sobre os homens? Será que você não se emenda? Não bastam os outros álbuns que já rasguei? Será que você não percebe que essa leitura não lhe traz o menor proveito? Por que não se dedica a algo mais ligado a nós? Por que não lê Como fazer amigos e influenciar urubus? Vamos, passe-me esse álbum. Temos que ir para a reunião. Estão todos lá. Cândido foi se aproximando e ouviu o vizinho do galho 201 falando alto sobre a crise de alimentação que grassava pelo campo: "Nem mais nos nossos supermercados há comida suficiente para todos!" — Supermercados? Quais são os nossos supermercados? — perguntou Cândido, baixinho, para o pai. — Os depósitos de lixo. — É verdade — bradou um outro urubu —, ontem passei oito horas voando, estou até com as asas doloridas, e não encontrei comida. Não estou mais em idade de ficar voando tanto tempo. Alguma coisa precisa ser feita. — Sim, mas antes é preciso saber por que falta comida. — Falta comida — disse outro — porque os homens estão comendo tudo. Também falta comida para eles. Antigamente, íamos aos monturos e vazadouros e encontrávamos verdadeiros banquetes de restos de comida. Hoje, só há latas de cerveja e sacos plásticos. — Isso mesmo. Quando encontramos carne já nem podemos esperar que deteriore, senão o homem a alcança antes de nós. — É verdade. Ainda outro dia, minha mulher teve uma intoxicação porque comeu uma carne que não estava estragada. - A sobrevivência dos urubus, como se sabe, depende da morte dos outros animais. De certa forma, ocorre o mesmo com os homens. Cândido ficou muito satisfeito ao saber desse ponto em comum, imaginando que "pelo menos, nisso, eu não preciso mudar". Há, contudo, uma pequena diferença: os urubus só se alimentam dos animais encontrados mortos, enquanto o homem mata os animais para comê-los. — Você nunca ouviu falar nos matadouros? — Nunca — respondeu Cândido. — Pois os matadouros são os lugares onde os homens matam os bois. — Tá vendo — retrucou Cândido —, essa é a vantagem de ser homem. Quando os urubus poderão ser donos dos matadouros? Diante da crise, de pouco adiantava a excepcional visão dos urubus. Um abutre é capaz de enxergar a carniça de até mil e quinhentos metros de altitude, graças a um telescópio e uma lente de aumento, acoplados nos olhos. Os abutres, à exceção da coruja, são dotados, também, de uma natural visão binocular, o que significa dizer que jamais alguém verá um urubu de binóculos. Ao contrário dos homens, cujos olhos estão situados num mesmo plano frontal, os urubus têm os olhos colocados do lado da cabeça, o que lhes dá um grande campo de visão. "Mas de que serve essa visão se, quando chegamos à carniça, o homem já se antecipou?" E o urubu do galho 402 passou a contar um episódio ocorrido três dias antes, em que um caminhão atropelou uma vaca na estrada: "Eu voava, mais ou menos, a uns oitocentos metros de altitude. Pois bem, ao manobrar para descer, olhei lá de cima e parecia o festival de Woodstock, de tanta gente se atirando com machadinha, faca, serrote, canivete, gilete. Havia até um policial que, certamente, gosta de carne picadinha, cortando a vaca com metralhadora. Esquartejaram o bicho. Quando aterrissei, vi que tinham levado até a sombra da vaca. Fiquei por ali, procurando uma pelanca qualquer. O último cidadão que saiu, levando o rabo da vaca, ao me ver, ameaçou voltar e, brandindo uma espada, gritou: 'Ei, pessoal, ainda tem um urubu aqui. Vamos pegá-lo para a sobremesa'". — A situação torna-se cada dia mais difícil, insustentável. Não dá para continuarmos sendo carnívoros. — Que tal tentarmos a macrobiótica? — Ou, então, por que não nos transformamos em vegetarianos? — Não. Pelo amor de Deus, tudo, menos comer grama. No dia em que os cientistas souberem que aqui tem urubu comendo capim, estamos fritos. — E será que é bom, urubu frito? A assembléia prosseguia agitada. Era necessáriofazer algo. Já tinha havido vários casos de desidratação com alguns urubus que ficaram muito tempo debaixo do sol, procurando comida. Um grupo considerava que a melhor solução seria instituir um racionamento como na Europa, durante a guer- ra, estabelecendo para cada um uma quota mínima de carniça. — E por que não nos oferecemos aos criadores de galinhas? — sugeriu outro. — Poderíamos viver em galinheiros. — Boa idéia. Assim nós teríamos casa, comida e pena lavada. — E valerá a pena? — A minha pena vale. — A minha, não — gritou um urubu enfurecido —, para mim, só há uma saída: é fazermos como os homens e passarmos a matar os outros animais. — Claro — concordou um outro — e, aproveitando a idéia daquele nosso nobre colega, poderíamos nos intrometer nos galinheiros, porque, com as galinhas, a briga é boa para nós. Melhor do que com os galos de briga. A sugestão do urubu enfurecido criou uma divisão na assembléia. Para resolvê-la, decidiu-se, então, pela realização de um plebiscito: deveremos pegar em armas e nos transformarmos numa família de predadores? Sim ou não? Apurados os votos, os urubus favoráveis à formação de um exército venceram por duzentos e catorze votos contra duzentos e oito, dez em preto e um, anulado, porque havia um palavrão escrito. Sob gemidos de satisfação, gritos de guerra e manifestações de alegria, foi criado um grupo de trabalho que deveria redigir um documento que seria levado ao urubu-rei. No meio de todo aquele tumulto, levantou-se um urubu e indagou: — Antes de redigir o documento, eu gostaria de saber, já que vamos nos transformar em animais predadores, quem aqui tem experiência no ramo? Seguiu-se um completo silêncio. Nunca se soube sequer de um urubu que tenha matado uma barata. Alguém, então, sugeriu que se aproveitasse a experiência dos chacais e das hienas, com quem, freqüentemente, os urubus se encontravam nos almoços e banquetes de carniça. — Mas os chacais e as hienas têm sua técnica própria. — Por quê, então, não recorremos a uma firma americana? Ouvi dizer que há uma empresa que fornece armas e know- how às nações cansadas de viver em paz. — Poderíamos, também, recorrer aos conhecimentos da águia. — Que águia? A que trabalha como símbolo dos Estados Unidos? E você acha que ela iria deixar sua vidinha mole de funcionário público, ganhando em dólar, e vir aqui nos ajudar, só porque estamos morrendo de fome? — E o falcão? Também é nosso parente. — Mas não há falcão, aqui. — E daí? Mandávamos buscar. Faríamos uma vaquinha e contrataríamos um falcão no exterior. Ficou assentado que seria contratado um falcão para ensinar os pacíficos urubus a guerrearem e conquistarem a sua carniça de todos os dias. Enquanto se redigiam os últimos parágrafos do documento, o pai de Cândido sugeriu que, para já ir adiantando os treinamentos sobre manobras táticas de guerra, alguém procurasse por um filme bastante ilustrativo à formação dos primeiros grupos de voluntários. — E qual é esse filme? — Os pássaros, de Hitchcock. — Mas esse filme é altamente subversivo. Não vamos consegui-lo. Não se lembra que a Sociedade Protetora dos Animais o proibiu em todo o território nacional? Terminada a redação do documento, a comissão levou-o até o alto da palmeira-imperial onde o urubu-rei despachava com seus ministros. — Não — disse o urubu-rei, que se distinguia dos demais pela íris branca —, sou terminantemente contra qualquer ato de beligerância. Haverá outro meio de resolvermos o problema. Será que vocês não percebem que temos os pés e os dedos frágeis, não somos dotados para a caça, nem para a luta? Temos uma tradição de pacifistas. Não fomos feitos para a guerra. Aliás, nem nós, nem ninguém. O urubu-rei dirigia a sua comunidade há muitos anos. Foi eleito pelo voto popular, como deve ser nas sociedades democráticas, derrotando o urubu-campeiro e o urubu-de- cabeça-amarela. Instituiu a monarquia, mas não governava com despotismo. E sua imagem gozava de grande prestígio nas nações vizinhas. O urubu-rei ponderou junto à comissão que a saída mais viável seria recorrer aos organismos competentes. — O senhor está pensando em ir a qual? — À ONU, talvez. — À ONU, não adianta nada. Nunca resolveu qualquer conflito. Vai querer mandar uma força de paz para cá. — E a OEA? — Se a ONU não vale nada, muito menos a OEA. Não tem força nenhuma, nem de paz. — Então, quem sabe, o Lions? — Não sei, mas eu penso que o Lions é só pra leões. Tente a Sociedade Protetora dos Animais. O urubu-rei agradeceu a sugestão, viajou e chegou às onze horas à Sociedade Protetora dos Animais. A porta estava fechada. Entrou numa longa fila formada por vários outros animais, um cavalo que reclamava contra as corridas nos domingos de verão, um elefante que reclamava o salário atrasado há três meses no circo em que trabalhava, um cachorro vira-lata reclamando que não adiantava mais virar latas "porque estão todas vazias". Ao meio-dia, a repartição abriu. O urubu-rei, que entrava pela primeira vez na Sociedade Protetora dos Animais, procurou o guiché de informações. Aproximou-se de um funcionário e perguntou: — Por favor, onde é o guichê de informações? — Informações? Não sei, não. Fui transferido ontem para esta repartição. — O guiché de informações — indagou de outro funcionário —, o senhor sabe onde é? — Não sei, não. — Mas o senhor não trabalha aqui? — Sim. Trabalho. Por isso mesmo, nunca precisei pedir informações. O urubu-rei já estava ficando meio irritado, quando uma galinha-d'angola, que fora pedir proteção para seus filhos em Luanda, ouviu-o e indicou o caminho: "Vá por esse corredor, é a última porta à direita". — Curioso, o guichê de informações fica no fim da repartição. — É para ninguém ficar pedindo muita informação — disse o funcionário —, que é que o senhor deseja? — Bem, eu desejo saber a quem devo me dirigir para pedir proteção. — Eu o aconselharia a se dirigir, para pedir proteção, ao Senhor do Bonfim. De qualquer maneira, procure uma senhora baixinha, de cabelos grisalhos, na segunda sala à esquerda. Ela lhe dará maiores informações. — Minha senhora — disse o urubu —, eu vim aqui pedir maiores informações... — Não é aqui, não senhor — interrompeu a senhora. — Aqui é só para menores informações. Para as maiores informações, queira se dirigir à terceira sala, à direita. — Por favor — disse o urubu, na terceira sala à direita —, eu queria pedir proteção à sociedade porque nós.. . — O senhor é de que família? — interrompeu a senhora. — Dos catartídeos. — Catartídeos? — repetiu pensando alto —, deixe-me ver aqui. Sim, urubus. É a primeira vez que aparece um urubu pedindo proteção. Infelizmente, porém, o senhor vai ter que voltar outro dia. Nós só atendemos urubus às terças e quintas. Na terça-feira, o urubu-rei retornou e procurou pela mesma funcionária. Ela, porém, estava doente, não tinha ido trabalhar, mas sua substituta, com uma surpreendente solicitude, pediu que dissesse "do que se trata que nós talvez possamos ajudá-lo". — Eu queria pedir uma providência contra os homens lá do meu reino que estão acabando com a nossa comida. Já não temos quase o que comer. — O problema não é só do seu reino, não — comentou a funcionária, debruçando-se sobre o balcão para falar no ouvido do urubu — eu, aqui, com o salário que ganho, já estou tendo que racionara comida. Virou-se, consultou um arquivo, tirou uma pasta e disse: "Aqui está o item sobre a fome. O senhor tem que trazer todos os seus documentos, comprar um formulário, assinar em quatro vias, pagar uma taxa de expediente no banco, reconhecer a firma, levar ali para o balcão A e encaminhar àquela senhora de blusa vermelha". O urubu-rei demorou mais de dez dias para tomar essas providências, inclusive porque teve que tirar uma segunda via de sua certidão de nascimento. Entregou toda a papelada à senhora de blusa vermelha, que lhe deu um protocolo e pediu que passasse dentro de vinte dias. — Mas por quê, minha senhora? — Porque o seu formulário, agora, se transformou em processo e terá que passar pelos canais competentes. — Eu não posso esperar vinte dias, minha senhora, meu povo já está cansado, desesperado, morto de fome. — Lamento, mas quanto a isso não posso fazer nada. Se a situação se tornar muito dramática, o senhor passa no nosso departamento de emergências que lá talvez possam ajudá-lo. — Ajudar, como? — Com leite em pó. Nos casos de emergência, distribuímos leite em pó, doado, gentilmente, pelos nossos amigos norte-americanos. - Mas, minha senhora, urubu não come leite em pó... — Passa a comer. O senhor quer o quê? Que eu escreva aos americanos, pedindo um cardápio especial para urubus? Quando o urubu-rei reuniu o seu povo para informar que as providências só seriam iniciadas dentro de vinte dias, ouviu- se um clamor geral. Vários urubus entraram em pânico, sem saber o que fazer. Alguns pensaram logo em se mudar para a Índia, onde, provavelmente, a fome era menor. Criou-se um grande mal-estar e uma pequena facção da assembléia começou a conspirar para depor o urubu-rei e instaurar a república. Para aumentar o caos reinante, surgiram uns boatos sobre grupos estrangeiros que percorriam o país, oferecendo a cada casal de urubus uma diária de cinqüenta dólares para ir morar no exterior. Diante de um novo problema — tão logo os boatos se confirmaram — o urubu-rei tratou de mandar um ofício ao Ministério do Exterior, protestando contra a ingerência de estrangeiros nos negócios. De volta, recebeu uma resposta diplomática que, entre outras coisas, dizia: "Se, afinal, nós vivemos num regime de livre iniciativa, é lícito que cada um tome a iniciativa que quiser. Além do mais, não vemos razões para impedir os nossos amigos, que tanto nos ajudam, de levar alguns representantes dos catartídeos, que, diga-se de passagem, estão entre os melhores do mundo. Presumo até que, assim, os urubus estarão dando uma contribuição decisiva para o nosso desenvolvimento, aumentando a pauta de nossas exportações. O urubu nos parece uma boa mercadoria, pois não exige nenhum tipo de embalagem especial. De resto, sem querer ofendê-lo, para que serve um urubu?" O urubu-rei leu a resposta do ministro recordando-se do passado heróico dos catartídeos. Lembrou-se das terríveis perseguições que sofreram no passado e das dificuldades com que uns poucos sobreviveram para perpetuar a espécie. Na época, o Grande Tribunal acusou-os de transmitir a cólera e, como não havia campo de concentração, os urubus acabaram exilados nos depósitos de lixo. Para não morrer, o urubu teve que se alimentar de animais mortos, de carne podre, com o que passou a ser considerado uma ave agourenta e só não foi submetido a um massacre total porque, durante séculos, correu a lenda de que quem atirasse num urubu teria sua arma quebrada. "Para que serve um urubu?" O urubu-rei poderia responder que, com o correr dos anos, os urubus foram reabilitados. Formaram brigadas de saneamento das mais eficazes e, em alguns países, como o Paraguai, onde o departamento de limpeza não é dos melhores, os urubus chegaram a gozar de um status especial, sendo protegidos e contratados a peso de ouro para terminar com a sujeira. Descobriu-se que o aparelho digestivo do urubu destruía as bactérias e concluiu- se que a sua merda não era, exatamente, uma merda e, sim, um poderoso anti-séptico. O urubu, diferente da águia, que não se suja com suas defecções, faz cocô nas pernas. Por isso, talvez, toda a sociabilidade do urubu — muito mais sociável que a águia, que vive isolada — sempre foi repelida. Desde o grande banquete no céu, onde fez uma pequena cagada, o urubu nunca mais foi convidado para lugar nenhum. Pois agora apareciam uns estrangeiros convidando-os, dando-lhes pensão completa e mais cinqüenta dólares. Os urubus sentiam-se profundamente lisonjeados e formavam filas diante das barracas dos estrangeiros no depósito de lixo. O que os estrangeiros não confessavam era que, após trinta dias de férias no exterior, os urubus seriam passados na faca e enterrados numa vala comum, depois de retirados seu suco gástrico e seu processo enzimático, comprovadamente, de alta precisão. Na casa de Cândido, as opiniões divergiam sobre o momento atual dos urubus. Sua mãe era a favor da permanência. Seu pai mostrava-se indeciso. Cândido afirmava que a família deveria desprezar a proposta dos estrangeiros e viajar para a cidade, onde poderiam encontrar novas e maiores oportunidades. Já sua irmã, recém-casada, inclinava-se pelo convite para o exterior que serviria, também "como uma viagem de lua-de-mel". — E você acredita — perguntou o pai — que esses estrangeiros estão morrendo de amores pelos urubus? Acredita? Você nem sabe o que vai fazer lá fora. — Sei, sim — disse a irmã —, nós vamos trabalhar nas brigadas de saneamento. — Isso é o que você pensa. Até agora eles não deram nenhuma informação. Estão despistando. E como estão todos com fome e muito envaidecidos, ninguém se lembra de perguntar. Além do que, eles dispõem das melhores técnicas para industrializar o lixo. Brigada de saneamento é para país subdesenvolvido. — Eu suponho que deveríamos aguardar os vinte dias de prazo que deram ao urubu-rei — aparteou a mãe. — Pois saiba que esses vinte dias vão demorar no mínimo sessenta — respondeu o pai. — Os estrangeiros deram dinheiro para que a repartição atrase o processo. Com isso, a fome vai aumentar e será mais fácil recrutar os urubus. — Mas isso é ilegal — bradou Cândido. — E como poderíamos impedi-lo? — Só dando aos funcionários mais dinheiro do que os estrangeiros. . . — Então, diante disso — falou a mãe —, eu mudo o meu voto. Vamos para a cidade até que a situação melhore. — É uma boa idéia. — Também acho — completou Cândido. A família decidiu contra o voto da filha, que preferiu se inscrever com o marido na excursão ao exterior. Foram fazer as malas. Cândido, sem se conter, saiu correndo atrás do velho Noé, para lhe transmitir a notícia. — Vou para a cidade, velho Noé — disse aos berros —, finalmente, vou para a cidade. Não poderia ser mais feliz. Finalmente, finalmente. Você também não fica alegre comigo? — Claro, Cândido, mas gostaria de lhe dizer que, aqui, você convive com apenas um homem, eu, e vê outros, esporadicamente. Na cidade, você está cercado de homens por todos os lados, e o homem é o maior flagelo ecológico. Sabe do condor da Califórnia? Só existem quarenta sobreviventes. Você ainda é muito jovem, não ouviu falar, mas, no século XIX, havia um tipo de pombo migratório nos Estados Unidos. Eram de três a cinco milhões. Oitenta anos mais tarde, já era tarde demais para salvá-los. O penúltimo pombo foi morto por um caçador em 1900 e o último,capturado vivo e protegido — chamava-se Marta —, morreu no cativeiro do zôo de Cincinnati, em 1914. Seu corpo foi empalhado e até hoje está exposto no Museu de Washington. — Isso não me preocupa, velho Noé, você já está meio caduco. Os homens não são mais assim. Eu vejo nos anúncios... — E se forem? — Se forem — respondeu Cândido, sorrindo dos exageros do velho —, você já imaginou, eu, o último exemplar da espécie? Serei, também, empalhado e poderei até ganhar um busto em praça pública, com os dizeres: Cândido colocou na maletinha seus álbuns, revistas e algumas bugigangas recolhidas, pacientemente, no depósito de lixo e que, segundo ele, serviriam para diminuir suas despesas de enxoval no dia em que virasse gente: um chaveiro, uma esferográfica toda mordida no cabo, um espelhinho, um prendedor de gravatas (que às vezes usava, prendendo as penas) e um isqueiro sem fluido. Botou o chapéu, as botas (partes que lhe couberam na partilha de bens de um vaqueiro que morreu no estouro da boiada) e foi para a estrada, orgulhoso porque seu pai, ao vê-lo arrumado, disse-lhe: "Se não fosse o bico, você estaria igualzinho a Jon Voight, em “Midnight cowboy". Fez sinal para o ônibus. O motorista parou, abriu a porta e, quando Cândido pôs o pé no primeiro degrau, franziu o cenho, como que procurando entender direito aquela figura. Aí, perguntou: — Escute aqui, que espécie de cara é você? — Da espécie animal. — Sim, animal, eu sei — retrucou o motorista agressivo —, animal, eu também sou. Quero saber é que tipo de animal. — E isso importa? — Só não importa se você tiver dinheiro. Tem? Cândido remexeu os bolsos, apanhou umas notas velhas encontradas no vazadouro e entregou-as ao motorista. O motorista conferiu uma por uma e soltou uma estridente gargalhada: — Isso não vale mais nada. Esse dinheiro já saiu de circulação. E, agora, se apresse em se identificar ou você também vai sair de circulação... — Bem — disse Cândido, de cabeça baixa — eu sou um urubu. — Um URUBU? Os senhores ouviram? — gritou o motorista, virando-se para os passageiros — um urubu, querendo viajar num ônibus de luxo. — Se ele entrar, eu saio — resmungou uma senhora, fazendo cara de nojo. — Nós não levamos nem ave-do-paraíso dura, que dirá um urubu. Cai fora, bicho, vai procurar tua turma. Isto aqui é um ônibus de luxo. Não é um ônibus de lixo. O motorista arrancou rápido, jogando Cândido no chão. Cândido ficou alguns segundos pensativo, sentado no meio da estrada. Levantou-se, sacudiu a poeira das penas e permaneceu no acostamento, aguardando um próximo ônibus. Quinze minutos depois, parou uma resfolegante jardineira. Cândido tirou o chapéu para não deixar dúvidas quanto à sua espécie e subiu. O chofer, porém, fez um gesto com a mão, barrando-o: "Um momentinho, não sei se posso levá-lo". — Por que não? Estou vendo outros pássaros dentro do ônibus. — Sim, mas estão todos em gaiolas. Você trouxe sua gaiola? — Eu não vivo em gaiolas — respondeu Cândido indignado. — O regulamento da empresa não permite pássaros viajando soltos. Você não tem nada aí onde possamos acondicioná- lo? Uma caixa? Um alçapão? — Não. Nada. — Então, assim, vai ficar difícil. A não ser que você queira ir escondido dentro desse saco de supermercado. Eu faço um furinho para você respirar melhor. — Não. Em saco de supermercado, como se fosse uma galinha morta, é muito humilhante. Olha, eu sento lá no último banco, coloco o chapéu sobre o rosto e finjo que estou dormindo. Garanto que ninguém vai descobrir. — Não. Não dá — disse o motorista depois de pensar um pouco —, eu tenho mulher e filhos pra sustentar. Não posso me meter em complicações. Se você não tiver pressa, eu pergunto ao chefe se posso levá-lo e, amanhã, o apanho. Cândido tinha pressa. Marcara encontro com os pais — que foram voando — na estação rodoviária da cidade. Esperou mais meia hora, meio impaciente, até que apareceu um caminhão pau-de-arara, carregado de camponeses com as famílias em migração para a cidade. — Posso subir? — Pode — respondeu o motorista —, mas da próxima vez pegue outro. Este, aqui, é um pau-de-arara. Não é um pau- de-urubu. Cândido acomodou-se com alguma dificuldade ao lado de uma mulher que dava de mamar ao filho. Observando ao seu redor, sofreu um impacto com aquelas figuras esquálidas, sujas e mudas que não tinham nada a ver com as fotos coloridas de suas revistas. Por um momento, lembrou-se do velho Noé. Curioso por saber o que levava aquelas pessoas à cidade, perguntou a um homem baixinho, sem os dentes da frente, de bigode, que comia uma papa de farinha dentro de uma lata: — Vocês vão fazer o quê, na cidade? Passear? — Nós? Passear? Não. Vamos tentar ser gente. — Vocês, também? Puxa, que coincidência. Mas espera, vocês têm dois braços, duas pernas, andam vestidos, falam, vocês parecem gente... — É verdade. Temos tudo para ser gente, mas não somos. — E todo mundo que quer ser gente vai para a cidade? — Vai, claro. Na cidade, não falta nada. — Era o que eu pensava — exclamou Cândido excitado —, e quando é que você sabe que já virou gente? — Não sei — respondeu o homenzinho, pensativo. — Talvez no dia em que conseguir comprar um radinho de pilha. Na rodoviária, o caminhão deu uma meia trava e Cândido pulou, acenando para os companheiros de viagem que seguiam para o abrigo do Maior Abandonado. Olhou para um lado, para o outro, e, antes de encontrar os pais, deixou-se ficar estático, quase hipnotizado, diante dos enormes cartazes de publicidade que cobriam as paredes da rodoviária, revelando o mundo encantado da cidade, com homens fortes, sorridentes, bem-vestidos, junto de mulheres bonitas, elegantes, cheias de charme, anunciando produtos da melhor qualidade. Cândido sacudiu as penas num frenesi de satisfação, uniu-se aos pais e os três saíram à procura de um local para morar. É evidente que não pretendiam o mesmo vigoroso sobreiro em que residiam no campo. Uma amendoeira já servia. Procuraram durante horas: — Olha lá, pai — gritou Cândido, apontando para uma distante mangueira —, uma árvore, enfim, uma árvore!. . . Os três correram e se depararam com umà cena que o pai de Cândido disse já ter visto em algum filme: a árvore balançava sob o peso de tantas aves. Dezenas, centenas de pássaros, espremidos como numa arquibancada de futebol em dia de decisão. — Ei! — berrou Cândido para os pássaros — vocês sabem onde poderemos encontrar uma árvore? — Uma árvore? — repetiu um pardal. — Se você encontrar uma árvore, pode se considerar o urubu mais feliz do mundo. — E não se esqueça de nos avisar — disse outro pardal. Cândido e seus pais prosseguiram na romaria. — Sabe onde há uma árvore por aqui? — indagaram de uma menina com uniforme de colegial. — Árvore? Que é mesmo uma árvore? — Árvore — tentou explicar Cândido, meio embaraçado — é assim um tronco de madeira com umas folhas em cima. — Sei, sei, agora me lembro — disse a menina —, mamãe já me falou delas, mas não sei onde tem. Lá em casa, tem uma, mas papai só arma no Natal. Próximo a uma lagoa, o pai de Cândido vislumbrou uma jaqueira sobre os muros altos de uma mansão. Chegaram perto. No portão principal, uma placa de acrílico anunciando: "Aqui, próximo lançamento, Edifício Jardim das Oliveiras". Pularam a murada, arrumaram seus pertencesnum galho firme e, cansados da viagem, trataram de dormir. O dia mal clareara quando acordaram sobressaltados, ima- ginando que um terremoto sacudia a cidade. Cândido espichou o pescoço e viu lá embaixo dois homens serrando a árvore. — Os senhores poderiam me dizer por que estão derrubando esta árvore? — perguntou Cândido, com as asas na cintura. — Porque, pelo que sei, as árvores foram feitas para serem derrubadas. Precisamos do espaço para construir um prédio. — E não podem construí-lo um pouco mais para lá? — Não. Não podemos. — E por que não? — Porque mais para lá já vão construir outro. — Os senhores estão acabando com a natureza. — É natural. — Como natural? Não acham que o verde é indispensável? — Lógico que achamos, tanto que pintaremos todas as paredes dos apartamentos de verde-claro. Cândido ainda tentou argumentar, mas os homens disseram: — Se não levantarmos os prédios onde é que os homens vão morar? Já passou o tempo em que os homens moravam em cima das árvores. Hoje, até mesmo Tarzan já construiu sua casa própria. Cândido, desanimado, chamou os pais e propôs que, para resolver seus problemas, comprassem um colchão. — Colchão, não, meu filho — disse a mãe —, eu dormi a vida inteira em pé. O colchão resolveria um problema, mas criaria outros. — Que outros, mãe? — Problemas de coluna. Combinaram, então, que fariam uma última tentativa, recorrendo a uma loja de aluguel e venda de árvores. — Árvore pronta, nós não temos — informou o vendedor. — Aliás, só restam doze em toda a cidade e nove serão derrubadas ainda este ano. Serve na planta? — Na planta? O senhor não aclra que somos muito pesados para nos pendurarmos na planta? Qual é a planta? Samambaia? — Não. Eu me refiro a planta de árvore. Os senhores compravam e aguardavam que crescesse. — Não, obrigado. Gostaríamos da árvore pronta. — Com quantos galhos? — Dois — disse o pai de Cândido. — Um para mim e minha mulher e outro, para meu filho. Dois galhos e dependências. O corretor foi lá dentro e voltou com o mostruário, informando que "nós temos uma, aqui, com três, mas podemos quebrar um galho para o senhor". — É natural, a árvore? — Não, natural, não. Árvore natural inclusive já caiu de moda. Todas as nossas árvores são pré-fabricadas. Pode examinar, é de um excelente material. — De que é? — perguntou o pai de Cândido, passando a mão. — São de plástico. As árvores de plástico têm várias vantagens sobre as naturais: não dão cupim, não apodrecem, não desfolham, são laváveis e, o mais importante, desmontáveis. O senhor pode levá-la para onde quiser. Os três desistiram. Já estavam há três dias na cidade e ainda não tinham feito nada a não ser procurar uma casa. Na primeira noite, ainda se alojaram sobre a jaqueira, mas, nas outras duas, tiveram que dormir numa casa de cachorro, abandonada. Preocupados, chegaram até a colocar um anúncio nos jornais. A única proposta que apareceu foi de um papagaio. Mesmo assim, oferecendo um poleiro. Sem árvores e descartada a possibilidade dos colchões, os três pararam para encontrar uma solução. O pai de Cândido pensou num poste de iluminação: "Para você, Cândido, que gosta de ler à noite, seria ótimo. Teria uma luzinha à sua cabeceira". Cândido, porém, sempre teve medo de eletricidade. Considerou muito arriscado: "Qualquer dia desses, posso acordar eletrocutado". Analisadas as poucas opções, só restou mesmo uma escolha: a antena de televisão, que substituiu a árvore na paisagem urbana. — Já que nada mais nos resta — declarou o pai de Cândido — vamos morar mesmo numa antena de TV. — De TV a cores? — Não. Para quê, se nós somos em preto e branco? Os dias seguintes, Cândido os passou como um turista, descobrindo, lentamente, os encantos da grande metrópole: as luzes feéricas dos luminosos, os carros arrojados e suas buzinas maravilhosas, as vitrines, praias, supermercados. Realmente, a cidade era muito mais excitante do que pensara a princípio. Pelo que observava nos anúncios e cartazes de publicidade, nada era feio, nada era triste, nada era caro. Os magazines faziam tudo para facilitar a vida das pessoas, vendendo seus artigos sem entrada, sem juros, em quinze, vinte, trinta vezes, oferecendo brindes, liquidando as mercadorias a preço de casca de banana. Cândido se impressionava com aquele espírito de solidariedade. Um dia, leu nos jornais que uma dessas lojas estava no seu mês de aniversário. Sentiu-se na obrigação de ir até lá e levar-lhe um presente. "Como é fascinante ser gente", pensou Cândido. Mas para ser gente, antes de mais nada, era necessário ter dinheiro. Recordou-se de um conselho do velho Noé: "Numa sociedade de livre iniciativa, a primeira iniciativa que você deve tomar, nem que seja tomar emprestado, é conseguir dinheiro, sem o que você não será ninguém". — E onde posso conseguir dinheiro? — Num banco — respondeu-lhe um transeunte. — Qualquer banco? — Bem, eu não lhe aconselharia um banco de sangue. — E existe banco de sangue? — Existe, mas não creio que você deva procurá-lo. Acho que não aceitam sangue de urubu. — E só banco de sangue? Ou tem, também, de suor e lágrimas? — Bem, de lágrimas, eu só conheço vale. — E eu posso tirar um vale no banco? — Não. No banco, vale não vale! Cândido dirigiu-se a um banco: "Boa tarde", disse ao gerente, "eu queria ver se conseguia algum dinheiro". — Pois não. O senhor tem conta aqui? — Não. Eu não tenho dinheiro, como é que vou ter conta? — Quer dizer que o senhor quer dinheiro sem ter dinheiro? Qual é a sua ocupação? — Por enquanto, estou desempregado. — Então, nada feito. O senhor precisa trabalhar para que possamos lhe emprestar dinheiro. — Mas aí não precisa. Quando eu estiver trabalhando, estarei ganhando dinheiro. — Não precisa? Isso é o que o senhor pensa. O senhor está vendo essas pessoas? — disse o gerente, apontando para alguns clientes — todas elas trabalham. Pergunte se têm dinheiro. — E o senhor não pode me adiantar algum? Quando começar a trabalhar, eu pago. — Não posso. O senhor vai demorar muito para arranjar um emprego. O mercado está ruim para cachorro. — Mas eu não sou cachorro. — Para urubu, também. — Escute, não dá para me emprestar nem o da condução? — Não dá — afirmou o gerente, apalpando os bolsos — eu estou durinho. — Como durinho? O senhor não trabalha com dinheiro? — Trabalho. Mas com o dinheiro dos outros. O gerente aconselhou-o a procurar uma agência de empregos. O diretor da agência olhou Cândido de cima a baixo, apanhou uns papéis na gaveta e foi procurando, com auxílio do dedo indicador: "Olha, amigo", disse, "nós não temos nada, agora, para urubu. Passe dentro de dez dias". Terminou de falar, pegou o telefone, e continuou seus afazeres sem dar a menor importancia a Cândido, que continuou parado à sua frente. — Eu ainda não vi nenhum urubu na cidade — disse Cândido, timidamente —, deve haver vagas. O senhor não sabe quem estaria precisando de um fiscal de carniça? — Não. No momento, nós precisamos é da própria carniça. Pagamos um bom seguro de vida. Aceita? — Não estou seguro. Além do mais, se existe um tipo de carniça desprezada é a do urubu. — Deixe-me ver aqui — disse o diretor, desligando o telefone —, temos uma vaga para ave-do-paraíso. Quer tentar? — Ave-do-paraíso? Não. Do paraíso, não. Eu sou um pecador. — Mas é do paraíso terrestre.Acho que você representa bem, não? Cândido balançou a cabeça, negativamente. O diretor, então, perguntou se tinha alguma especialidade: "Você sabe voar ao menos?" — Não. Mas sei dormir em pé. Posso trabalhar num circo. Durmo empoleirado e não caio. — Isso parece interessante. Vou ligar para o Circo Americano — disse, discando o telefone. — Alô, é do circo? Me chame o gerente, por favor. Alô, nós temos aqui um urubu que poderia abrilhantar seus números. Um urubu que dorme em pé. Não estão interessados? Como? Já tem muitos empregados dormindo em pé? Sim, um momentinho, eu vou ver. Virou-se para Cândido: — Eles estão procurando um bicho que equilibre bolas no nariz. Dão preferência a foca, mas, se você souber, podem contratá-lo. Sabe? — Talvez soubesse, se tivesse nariz. O diretor agradeceu a atenção do gerente do circo, desligou, e perguntou a Cândido: "Você trabalha à noite?" — Não. Sou uma ave diurna. — Então, nada feito. A última vaga que eu tinha, aqui, era de vigia noturno. No lugar de uma coruja que foi demitida. Cândido saiu desolado, com aquele ar de desempregado, e não podendo meter as mãos no bolso, enfiou as asas entre as penas. Observava, impressionado, a altura dos edifícios, alguns com cento e cinqüenta, duzentos andares, varando as nuvens, em direção ao céu. "Lá em cima", pensou, "devem morar os anjos." Vagando pelas calçadas, recordou que Noé lhe dissera para não deixar de enfrentar uma fila, instituição desconhecida no campo: "Se você está pensando em virar gente", declarara o velho, com aquela sua sabedoria, "essa experiência é fundamental. Na cidade, todo homem que se preza já entrou numa fila". Cândido parou junto a uma banca de jornais e perguntou ao jornaleiro: — Onde é que eu posso encontrar uma fila? — Fila de quê? — Fila. Qualquer fila. — Serve fila de ônibus? Cândido disse que servia. O jornaleiro, então, indicou uma fila de três pessoas paradas num ponto. — Não tem maior? — indagou Cândido. — Aquela está muito pequena. — Bem, fila grande é o que não falta, mas, assim, de repente, eu preciso pensar. Se fosse durante o carnaval, eu poderia sugerir a fila para compra de ingressos do desfile das escolas de samba. É uma das nossas melhores filas. Deixe-me pensar. Você é do INPS? — Não. — Então, deve entrar. O mais rápido possível. Se você gosta de fila, as do INPS são da maior categoria. O jornaleiro pediu tempo a Cândido, abriu um jornal, e procurou o que estava em falta na cidade. Leu que, na próxima semana, iria faltar carne e açúcar: "Olhe, semana que vem, você terá duas boas filas", disse, "pode esperar? Ou você tem pressa para entrar na fila?" — Tenho. Eu gostaria de aproveitar agora para saber logo como é uma fila. — Quer tentar uma fila de elevador? — Não sei — disse Cândido, meio reticente —, nunca entrei num elevador. Acho que vou sentir medo. — Mas você não precisa entrar no elevador. Entra só na fila. O jornaleiro apontou um prédio, cinza, a uns cem metros: "Tem três elevadores, mas dois deles nunca funcionam. Se você der sorte, pode pegar uma fila que vai até a esquina". Cândido dirigiu-se para o prédio e, todo alegre, entrou na fila. O elevador parou, as pessoas foram entrando, mas, na vez de Cândido, o cabineiro fez um sinal com a mão, avisando que estava completo. O prédio tinha cento e cinqüenta e nove andares, com três elevadores (só um fun- cionando, no momento) que carregavam cinqüenta pessoas, vinte sentadas e trinta em pé. Cândido permaneceu ali, na maior excitação. Olhou para trás e notou que a fila já estava na calçada. Pensou em voltar para último, e certamente, o faria, se, naquele instante, já não tivesse perdido o interesse pela fila, entusiasmado com a possibilidade de passear de ele- vador, uma outra novidade em sua vida. Parado diante da porta, ficou acompanhando pelo painel a descida do elevador. No momento em que a porta se abriu, foi uma explosão: Cândido sentiu-se como que atropelado por uma boiada. Mais de quarenta pessoas, sem vê-lo, pisotearam-no, na pressa de ir para casa. Cândido ergueu-se, meio tonto, e entrou no elevador. O cabineiro, num gesto automático, perguntou: "Andar?" — Andar para onde? — indagou Cândido, ainda zonzo. — Só pode ser para cima — disse o cabineiro, mal- humorado. — Não há andar para baixo. -— Mas andar para cima, aqui dentro? Eu não sei andar pelas paredes. — Eu não estou dizendo para você andar pelas paredes. Quero só saber qual c o seu andar. Cândido ameaçou dizer que era andar de urubu malandro. Depois, preferiu falar a verdade: "O meu andar é de urubu desempregado". — Escute, meu chapa, não estou lhe perguntando se você está desempregado. O cabineiro, imaginando que o urubu falava outra língua, recorreu a seus pequenos conhecimentos de outros idiomas: "Quero saber pelo andar, piso, floor, you understand?" Cândido não disse nada. O elevador continuou subindo até que, no último andar, o cabineiro virou-se e disse: "Aqui é o fim da linha. Daqui para cima, só de avião". Cândido saltou, escalou uma escadinha e saiu num terraço. Percebeu dois urubus circulando em torno da torre. Eram os primeiros membros da sua família que encontrava na cidade. Chamou-os. Os dois se entreolharam como que se interrogando, planaram e pousaram no parapeito do terraço. — Poxa! — expandiu-se Cândido — vocês são os primeiros parentes que eu vejo aqui na cidade. — E o que você quer? — perguntou um deles, muito seco. — Nada. Nada de especial. Só conversar fiado. — Fiado só amanhã. Aqui na cidade não se faz nada fiado. Não temos tempo a perder. Precisamos terminar nosso trabalho. — E vocês fazem o quê? — Somos funcionários públicos. Trabalhamos como observadores do departamento de limpeza urbana. Ficamos sobrevoando a cidade, fiscalizando o movimento do lixo. Quando, em algum lugar, o lixo chega a dez metros de altura, nós avisamos ao departamento. — E como anda a vida por aqui? — Temos escutado muitas pessoas se queixando do custo de vida, da poluição, trânsito, tensão, sujeira, violência, mas para urubu não está mal, não. Cândido não gostou da resposta. Teria sido melhor se eles invertessem os dados. Certamente, se sentiria mais animado em virar gente. "E vocês trabalham todos os dias?" — Não, sábado e domingo temos folga. Saímos para o lazer. — Lazer? Que é lazer? — Lazer é assim como aproveitar o tempo que não se faz nada para ficar sem fazer nada. — É muito difícil de explicar — intercedeu o outro urubu. — E onde é que vocês fazem? — Vamos para o campo. — Mas vocês não vieram do campo? — Viemos. — E então? Por que não ficam na cidade? — É impossível. Na cidade, não há lazer que agüente. Além do que o lazer implica, às vezes, na busca da natureza. — E onde é que vocês vão buscar essa natureza? — Nos vazadouros, ora, nos depósitos de lixo. Escurecia. Cândido se despediu, sem entender direito o que significava lazer, e, ziguezagueando entre os carros que fluíam, na hora do rush, voltou para casa. Mal chegou, sentindo o cheiro que vinha da lagoa, comentou com a mãe: "Oba, isto aqui tá muito melhor do que lá no campo. Pelo menos, muito mais cheiroso. Que cheiro é esse?" — Peixe podre. — Peixe podre? Será que é bom? Tá comi muita coisa podre, mas peixe nunca. Cadê o velho? — Está lá na beira da lagoa. Agora resolveu fazer dieta. Só come peixe. E de preferênciapodre. Antes de sair à procura do pai, Cândido ouviu a mãe lhe dizer que tinham recebido notícias do campo: "Derrubaram o urubu-rei... " — Quem derrubou? Algum caçador? — Não sei, mas instauraram a república e entregaram o governo a uma codorna. — Uma codorna? Mas o que tem a ver uma codorna com os urubus? — Nada. Por isso mesmo. — E o falcão? — O falcão entrou no facão. Nem chegou a assumir. — A senhora tem idéia de quem fez isso? — Suspeita-se que tenha sido uma manobra da águia. — Que águia? — Da águia americana. Ela se mete em tudo. Cândido caminhou até a beira da lagoa e encontrou seu pai sobraçando vários peixes e conversando com os garis. Os garis tentavam convencê-lo a apanhar os peixes que boiavam no meio da lagoa. "Mas os garis não são vocês?", disse o pai de Cândido. - Somos garis só em terra firme. Nenhum de nós sabe nadar. — Eu também não. — Mas sabe voar. O pai de Cândido se dava muito bem com os garis, desde os primeiros tempos de monturo. Alegou que levaria meses para recolher todos os peixes: "Posso trazer, no máximo, uns três de cada vez. Meu bico é muito pequeno. Por que vocês não contratam um tucano?" — Ou um pelicano? — interferiu Cândido. O pai de Cândido sugeriu um bote. Os rapazes da limpeza disseram que eram garis e não remadores. "Mas não há muita diferença", disse o pai de Cândido, "é só vocês pegarem as vassouras e repetirem dentro d'água o mesmo movimento que fazem no asfalto." — E nós podemos remar com as vassouras? — Claro. O que vocês não podem é varrer com o remo, Convencidos, os rapazes entraram num bote, remaram para o meio da lagoa e começaram a enchê-lo de peixe podre. Foram enchendo, enchendo, enchendo, e, como os garis nunca foram bons de cálculos, acabaram enchendo demais. O bote afundou, ao peso de tantos peixes. Foi o primeiro naufrágio de garis na lagoa. Uma lagoa envolvida por um mau cheiro intolerável. Cândido indagou do pai — que aproveitava a fedentina para fazer exercícios respiratórios — por que na cidade eram os garis e não os pescadores que apanhavam os peixes. — Porque pescador só acha graça em apanhar o peixe vivo, — Mas depois não o mata? — Mata. — Então, é melhor ser gari que apanha logo o peixe morto e não fica com aquele sentimento de culpa. E por que esses peixes mortos? Será que, já sabendo que vão ser pescados, eles se suicidam? — Não. Isso é poluição. Os peixes morrem por causa da falta de oxigênio no fundo da lagoa. — Oxigênio? Vai ver que é por isso que estou com falta de ar. — Não pode ser. A falta de ar é só dentro d'água. Os homens estão preocupados. Não sabem como resolver o problema. — Pois, para mim parece muito fácil — disse Cândido. — Se o problema é de falta de ar, por que os homens não jogam uns balões de oxigênio dentro da lagoa? O pai de Cândido, carregando os peixes dentro de três caixas de sapatos, chamou o filho, com um sinal de cabeça, para retornar a casa. O pai de Cândido, cheio de provisões, estava satisfeito com a possibilidade de levar adiante seu regime e perder um pouco da barriga. Lentamente, quase sem sentir, o pai de Cândido submergia aos apelos da cidade. Já estava até pensando em iniciar um cooper e, para isso, pediu emprestado dois tênis dos quatro usados pela anta do Jaguar. No momento, porém, interessava-se pelo emprego do filho. E, ao saber de suas frustradas incursões, bateu no peito, declarando que "eu mesmo vou procurar". Dia seguinte, foi direto à Metro Goldwyn Mayer. — Realmente — disse-lhe o diretor da Metro — nós estamos procurando alguém para o lugar do leão que vai se aposentar no mês que vem. O diretor contou que a notícia da aposentadoria do leão levou uma quantidade interminável de animais à procura da sua vaga: "Isto aqui parecia o dia do embarque na arca, às vésperas do dilúvio. Havia uma fila de animais que dava a volta no quarteirão". Afirmou, porém, que, provavelmente, a empresa substituiria esse leão por um outro leão. — Só que, desta vez, como estamos preocupados com a segurança da empresa, pensamos num tipo diferente de leão. — Qual? — Um leão-de-chácara. O diretor disse, ainda, que andou sondando os animais da praça e, durante algum tempo, esteve inclinado a chamar o tigre da Esso que ruge, fluentemente, em inglês: "Entretanto, fomos obrigados a desistir da idéia, já que o tigre fez uma série de exigências que não podíamos aceitar". — Exigia — completou —, por exemplo, que nós mudássemos a moldura em que o nosso leão aparece e que é redonda, por uma outra, oval. — Quer dizer que urubu não interessa? — Penso que não. Urubu ruge? — Nem um pouco. — Então, não dá. Pelo menos, para substituir o leão. Se o senhor quiser, talvez tenhamos uma vaga de datilografo. O menino bate à máquina? — Só com três dedos. — Só com três? De cada mão? — Não. De cada pé. — Seu filho — estranhou o diretor — bate à máquina com os pés? — Infelizmente, sim — lamentou o pai —, urubu não tem mão. O diretor da empresa desculpou-se dizendo que as máquinas da empresa eram muito frágeis, "mas pode deixar que eu telefono tão logo tenhamos novos modelos que possam ser batidos com os pés". Mostrando-se simpático, solicitou ao pai de Cândido que deixasse com a secretária seu endereço "porque estamos sempre precisando de alguns urubus extras para filmes sobre caçadas". O pai de Cândido, ao preencher a ficha, não teve coragem de confessar que seu filho não sabia voar. Saiu, comprou um jornal, e procurou na página de classificados um outro emprego para o filho. No canto da página, viu um concurso que iam abrir no Flamengo para escolha do símbolo do clube. Havia duas vagas: o urubu primeiro colocado ficaria como símbolo titular e o segundo, como reserva, no banco, pronto para entrar em campo a qualquer momento. O anúncio não falava nada sobre saber voar. Apenas uma exigência: boa apresentação. "Boa apresentação?", resmungou o pai de Cândido. "Nunca vi urubu com boa apresentação. Se esses caras querem boa apresentação, deveriam escolher o pavão para símbolo." No dia do concurso, Cândido — que não teve tempo de fazer o cursinho — estava lá, com seu material embrulhado em jornal, a prancheta e o lápis 6B. Sentou-se nas arquibancadas e observou, surpreso, que todo o anel do estádio do Maracanã estava preto, apinhado de urubus. Dentro do gramado, bem no centro do grande círculo, uma máquina enorme concentrava as atenções dos instrutores e juízes. A máquina, que parecia ser a dona da festa, era, segundo seu colega do lado, um computador. Os testes dividiam-se em práticos e teóricos, sendo que os teóricos constavam de uma prova de português, biologia, moral e cívica, regras da International Board e música. — Para que música? — perguntou Cândido. — Para poder acompanhar a charanga. Os testes práticos eram realizados dentro do campo. Terminada a parte teórica, os urubus eram convocados pelos alto-falantes, por ordem alfabética, e desciam aos grupos para o vestiário onde mudavam de roupa e adentravam o gramado. Todos os testes eram eliminatórios. Cândido colocou o calção, o meião, chuteiras e, antes de entrar em campo, se benzeu. Ainda que um tanto fora de forma, Cândido foi ultrapassando os testes: cobrou pênaltis, laterais, escanteios, tiros de meta, faltas com e sem barreira, matou a bola no peito, fez embaixadas, cabeceou, e assim foi ficando para
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