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Gadamer - Homem e linguagem

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Homem e Linguagem 
Hans-Georg Gadamer (1966) 
 1. É de Aristóteles a definição clássica do homem como o ser vivo que possui logos. Na tradição do Ocidente, essa definição foi 
canonizada com a forma: o homem é o animal racional, o ser vivo racional, o ser que se distingue de todos os outros animais pela 
capacidade de pensar. A palavra grega logos foi traduzida no sentido de razão ou pensar. Na verdade, a palavra significa também e 
sobretudo: linguagem. Em certa passagem1, Aristóteles estabeleceu a diferença entre homem e animal do seguinte modo: os animais 
têm a possibilidade de entender-se mutuamente, mostrando uns aos outros o que lhes causa prazer, a fim de poder buscá-lo, e o que 
lhe causa dor, a fim de evitá-lo. Aos animais a natureza só lhes permitiu chegar até esse ponto. Apenas aos homens foi dado ainda o 
logos, para que se informem mutuamente sobre o que é útil ou prejudicial, o que é justo e injusto. Uma frase de sentido muito 
profundo. O útil e o prejudicial são o que não é desejável em si mesmo, e sim em vista de algo outro que ainda não está dado, mas 
motiva a sua busca. Isso expõe como característica do homem um sobrepor-se ao atual, um sentido para o futuro. E Aristóteles 
acrescenta depois que, com isso, também se dá o sentido para o justo e o injusto... e tudo isso porque o homem é o único ser que 
possui o logos. Ele pode pensar e falar. Poder falar significa: poder tornar visível, pela sua fala, algo ausente, de tal modo que 
também um outro possa vê-lo. O homem pode comunicar tudo que pensa. E mais: É somente pela capacidade de se comunicar, que 
unicamente os homens podem pensar o comum, isto é, conceitos comuns e sobretudo aqueles conceitos comuns, pelos quais se 
torna possível a convivência humana sem assassinatos e homicídios, na forma de uma vida social, de uma constituição política, de 
uma convivência social articulada na divisão do trabalho. Isso tudo está contido no simples enunciado: o homem é um ser vivo 
dotado de linguagem. 
2. Em geral supomos que essa afirmação tão significativa e convincente garantiu desde o início um lugar privilegiado ao 
fenômeno da linguagem no pensamento sobre a essência do homem. O que é mais convincente do que afirmar que a linguagem dos 
animais, se quisermos chamar assim o seu modo de entender-se, é algo muito diferente da linguagem humana, na qual 
representamos e comunicamos um mundo objetivo? E isso por meio de signos que não são fixos como os signos de expressão dos 
animais, mas variáveis, não apenas no sentido de que existem diversos idiomas, mas que, dentro do mesmo idioma, as mesmas 
expressões podem designar algo diferente e expressões diferentes podem designar o mesmo. 
3. Na verdade, a essência da linguagem não constitui o ponto central do pensamento filosófico do Ocidente. É bem verdade que 
sempre chamou a atenção que na história da criação, narrada no Antigo Testamento, Deus outorgou ao primeiro homem o 
domínio do mundo, ao lhe permitir nomear os seres do modo que melhor lhe conviesse. Também a história da Torre de Babel 
atesta o significado fundamental da linguagem para a vida do homem. Mesmo assim, foi justamente a tradição religiosa do 
Ocidente cristão que acabou paralisando de certo modo o pensamento sobre a linguagem. De fato foi só a época do Iluminismo que 
se colocou de maneira nova a pergunta pela origem da linguagem. Deu-se um grande passo quando se deixou de responder a 	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  
1 Política, A 2, 1253 a 9s. 
questão da origem da linguagem sob a perspectiva do relato da criação, mas a partir da natureza do homem. Pois só assim tornou-se 
inevitável um passo adiante, ou seja, admitir que a naturalidade da linguagem não permite colocar a questão de um estado anterior 
do homem, destituído de linguagem, e consequentemente a questão da origem da linguagem. Herder e W. von Humboldt 
caracterizaram a humanidade originária da linguagem como linguagem originária do homem, desenvolvendo o significado 
fundamental desse fenômeno para a visão humana do mundo. A diversidade da estrutura da linguagem humana foi o campo de 
investigação do antigo ministro da cultura, o sábio de Tege retirado da vida pública que pela obra produzida em sua velhice tornou-
se o fundador da moderna ciência da linguagem. 
4. A fundação da filosofia da linguagem e da ciência da linguagem por Wilhelm von Humboldt não representou, contudo, uma 
autêntica restauração da visão aristotélica. Como seu objeto de investigação eram os idiomas dos povos, abriu-se um caminho de 
conhecimento que pôde esclarecer de maneira nova e fecunda a diversidade dos povos e dos tempos e a essência humana comum a 
eles subjacente. Mas o que definiu aqui o horizonte da pergunta pelo homem e pela linguagem foi apenas admitir no homem uma 
faculdade e esclarecer o regimento estrutural dessa faculdade – que chamamos de gramática, sintaxe, vocabulário da linguagem. No 
espelho da linguagem, podiam se reconhecer as cosmovisões dos povos, conhecer detalhadamente a estrutura de sua cultura - um 
bom exemplo é o conhecimento do estágio cultural da constituição dos povos indogermânicos, que devemos às excelentes 
investigações de Viktor Hehns sobre plantas de cultivo e animais domésticos. A ciência da linguagem, como qualquer outra pré-
história, representa a pré-história do espírito humano. Mesmo assim, nesse modo de pensar, o fenômeno da linguagem só adquire o 
significado de um campo de expressão eminente, no qual é possível estudar a essência do homem e sua evolução na história. Por 
essa via, no entanto, não é possível penetrar nos postulados centrais do pensamento filosófico. Isso porque no pano de fundo de 
todo pensamento moderno encontrava-se ainda a definição cartesiana de consciência como autoconsciência. Esse inabalável 
fundamento de toda certeza, o mais certo de todos os fatos, o fato de que conheço a mim mesmo, tornou-se no pensamento da 
modernidade o parâmetro para tudo que quisesse satisfazer ao postulado de conhecimento científico. Também a investigação 
científica da linguagem acabou apoiando-se no mesmo fundamento. Tratava-se da espontaneidade do sujeito, a qual possui uma de 
suas formas de confirmação na energia que forma a linguagem. Por mais fecunda que pudesse ser a interpretação dessa cosmovisão 
subjacente aos idiomas, feita a partir desse princípio, não é possível entrever o enigma que a linguagem propõe ao pensamento 
humano. Pois a essência da linguagem comporta igualmente uma inconsciência abissal da mesma. Nesse sentido, a caracterização 
do conceito de linguagem não é um resultado fortuito e a posteriori. A palavra logos não significa apenas pensamento e linguagem, 
mas também conceito e lei. A cunhagem do conceito de linguagem pressupõe uma consciência de linguagem. Mas isso é apenas o 
resultado de um movimento reflexivo, no qual o sujeito pensante reflete a partir da realização inconsciente da linguagem, colocado a 
uma distancia de si próprio. O verdadeiro enigma da linguagem, porém, é que isso jamais se deixa alcançar plenamente. Todo 
pensar sobre a linguagem, pelo contrário, já foi sempre alcançado pela linguagem. Só podemos pensar dentro de uma linguagem e é 
justamente o fato de que nosso pensamento habita a linguagem que constitui o enigma profundo que a linguagem propõe ao 
pensar. 
5. A linguagem não é um dos meios pelos quais a consciência se comunica com o mundo. Não representa um terceiro 
instrumento, ao lado do signo e da ferramenta - embora esses dois certamente façam parte da caracterização essencial do homem. A 
linguagem não é nenhum instrumento. nenhuma ferramenta. Pois uma das características essenciais do instrumento é dominarmos 
seu uso, e isso significaque lançamos mão e nos desfazemos dele assim que prestou seu serviço. Não acontece o mesmo quando 
pronunciamos as palavras disponíveis de um idioma e depois de utilizadas deixamos que retornem ao vocabulário comum de que 
dispomos. Esse tipo de analogia é falso porque jamais nos encontramos como consciência diante do mundo para num estado 
desprovido de linguagem lançarmos mão do instrumental do entendimento. Pelo contrário, em todo conhecimento de nós mesmos 
e do mundo, sempre já fomos tomados pela nossa própria linguagem É aprendendo a falar que crescemos, conhecemos o mundo, 
conhecemos as pessoas e por fim conhecemos a nos próprios. Aprender a falar não significa ser introduzido na arte de designar o 
mundo que nos é familiar e conhecido pelo uso de um instrumentário já dado, mas conquistar a familiaridade e o conhecimento do 
próprio mundo, assim como ele se nos apresenta. 
6. Um processo enigmático e profundamente oculto. É uma grande ilusão pensar que a criança fala uma palavra, a primeira 
palavra. Foi uma insensatez querer descobrir a linguagem originária da humanidade, isolando crianças e deixando-as crescer 
totalmente incomunicáveis com todos os sons humanos para depois, partindo do primeiro som articulado, querer atribuir a uma 
linguagem humana concreta o privilégio de ser a linguagem originária da criação. A ilusão dessas ideias consiste em buscar 
suspender, de modo artificial, nossa inserção real no mundo de linguagem em que vivemos. Na verdade já estamos tão habituados e 
inseridos na linguagem como estamos no mundo. Penso que é novamente em Aristóteles que se encontra a mais sábia descrição do 
processo de aprendizagem da fala.2 A descrição aristotélica, no entanto, não se refere ao aprendizado da fala, mas ao pensar, isto é, à 
aquisição de conceitos comuns. Como é possível dar-se uma permanência na fugacidade dos fenômenos, no fluxo constante de 
impressões cambiantes? É certamente a capacidade de retenção, portanto a memória,` que nos capacita reconhecer algo como o 
mesmo, e isso é resultado de uma grande abstração. Aqui e ali, a partir da fuga dos fenômenos cambiantes, começamos a perceber 
algo de comum e assim, aos poucos, pelos reconhecimentos que vão se acumulando e que chamamos de experiências, forma-se a 
unidade da experiência. Pela experiência dispomos expressamente daquilo que experimentamos, nos moldes de um conhecimento 
do comum. Aristóteles pergunta então: como pode realmente dar-se esse conhecimento do comum? Com certeza não é no 
transcurso dos fenômenos, um após o outro, que de repente o conhecimento do comum se estabelece num determinado elemento 
singular que reaparece e é reconhecido como o mesmo. Não é esse elemento singular, como tal, que se distingue de todos os outros 
pela força misteriosa de expressar o comum. Esse elemento não é diferente de todos os outros. E, no entanto, não deixa de ser 
verdade que em algum momento se estabelece o conhecimento do comum. Onde começou? Aristóteles apresenta uma imagem 
ideal para isso: Como chega a deter-se um exército em fuga? Onde começa a deter-se? Não é, com certeza, pelo fato de o primeiro 
soldado ter parado, ou o segundo ou o terceiro. Não podemos afirmar que o exército se detém quando um determinado número de 
soldados fugitivos parou de correr, nem tampouco quando o último soldado tiver parado. Não é com ele que o exército começa a 
deter-se; uma vez que já começou a deter-se bem antes. Ninguém pode saber, ninguém pode controlar por um plano nem pode 
afirmar que conhece como começa, como prossegue e como, por fim, se detém o exército, ou seja, como volta a obedecer à unidade 	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  
2 Analíticos Posteriores, B 19, 99 b 35s. 
de comando. E no entanto não há dúvida que isso ocorreu. O mesmo ocorre com o conhecimento do comum, pois na verdade trata-
se do mesmo fenômeno, o surgimento da linguagem. 
7. Em todos os nossos pensamentos e conhecimentos sempre já fomos precedidos pela interpretação do mundo feita na 
linguagem, e essa progressiva integração no mundo chama-se crescer. Nesse sentido, a linguagem representa o verdadeiro vestígio 
de nossa finitude. A linguagem já sempre nos ultrapassou. O parâmetro para medir seu ser não é a consciência do indivíduo. Não 
existe consciência individual que pudesse conter sua linguagem. Mas como existe então a linguagem? Com certeza não sem a 
consciência individual. Mas também não pela mera reunião de muitas consciências individuais. 
8. Nenhum indivíduo, quando fala, tem uma verdadeira consciência de sua fala. São muito raras as vezes em que alguém está 
consciente da linguagem que fala. Quando temos em mente dizer algo e nos vem à memória uma palavra que nos faz hesitar, que 
soa estranha ou cômica, nos perguntamos: "Pode-se dizer isso?" Nesse momento, a linguagem que falamos torna-se consciente, por 
não fazer o que é o seu próprio. E o que é o seu próprio? Creio que podemos distinguir três aspectos nessa questão. 
9. O primeiro é o esquecimento essencial de si mesmo que advém à linguagem. A linguagem viva não tem consciência de sua 
própria estrutura, gramática, sintaxe etc., portanto, de tudo aquilo que a ciência da linguagem tematiza. Uma das perversões típicas 
do natural aparece quando a escola moderna introduz a gramática e a sintaxe em sua própria língua materna em lugar de introduzi-
la numa língua morta como o latim. Exige-se de todos um gigantesco esforço de abstração para tomar consciência expressa da 
gramática do idioma que se domina enquanto língua materna. A concretização efetiva da linguagem faz com que essa desapareça 
detrás daquilo que nela se diz. Uma bela experiência disso, feita por todos nós, dá-se no aprendizado de uma língua estrangeira. 
Pensemos nas frases paradigmáticas usadas nos manuais e cursos de idiomas. Sua tarefa é fazer com que se tome consciência 
expressa de um determinado fenômeno de linguagem. Antigamente, quando ainda se acreditava na tarefa de abstração 
materializada no aprendizado da gramática e da sintaxe de uma língua, figuravam frases absurdas, falando sobre César ou sobre o 
Tio Carlos, por exemplo. A tendência moderna de transmitir informações interessantes sobre o país estrangeiro por via dessas 
frases paradigmáticas tem um efeito colateral indesejado, a saber, à medida que o conteúdo da frase ganha interesse a sua função 
paradigmática se obscurece. Quanto mais vivo o ato de linguagem, tanto menos consciência temos dele. Assim, o esquecimento de 
si próprio da linguagem nos mostra que o seu verdadeiro sentido é o que nela se diz, o que constitui o mundo comum, onde vivemos 
e onde se insere também a grande corrente da tradição, que nos alcança por meio da literatura de línguas estrangeiras, vivas ou 
mortas. O verdadeiro sentido da linguagem é aquilo que adentramos quando a ouvimos: o dito. 
10. A meu ver, um segundo traço essencial do ser da linguagem é a ausência de um eu. Quem fala uma língua que ninguém mais 
compreende simplesmente não faia. Falar significa falar a alguém. A palavra quer ser palavra que vai ao encontro de alguém. Mas 
isso não significa apenas que a coisa em questão, referida pela palavra, se apresente diante de mim, mas que se apresenta também 
àquele a quem eu falo. 
11. Nesse sentido, o falar não pertence à esfera do eu, mas à esfera do nós. Assim, damos razão a Ferdinand Ebner, por ter 
acrescentado o subtítulo de Pneumatologische Fragmente (Fragmentos pneumatológicos) ao seu importante escrito Das Wort und 
die geistigen Realitäten (A palavra e as realidades espirituais). Pois a realidade espiritual da linguagem é a realidade do Pneuma, do 
espírito, que une eu e tu. Como já se observou desde há muito, a realidade do falar consisteno diálogo. Em todo diálogo, porém, 
vige um espírito; bom ou mau, espírito de enrijecimento, paralisação ou um espírito de comunicação e intercâmbio fluente entre eu 
e tu. 
12. Já demonstrei em outro lugar que a forma em que se realiza todo diálogo pode ser descrita a partir do conceito de jogo.3 Para 
isso é necessário livrar-se de um hábito de pensar que define a essência do jogo a partir da consciência do jogador. Essa definição do 
jogador popularizada por Schiller apreende a verdadeira estrutura do jogo apenas em sua aparência subjetiva. Jogo é, na verdade, 
um processo dinâmico (cinético) que abarca os jogadores ou o jogador. Quando falamos de jogo do navio ou de jogo cênico ou do 
livre jogo das articulações, não se trata de uma mera metáfora. Pelo contrário, a fascinação do jogo para a consciência que joga 
repousa justamente nessa saída extática de si próprio para um nexo dinâmico que desenvolve sua própria dinâmica. Dá-se jogo 
quando o jogador individual leva a sério o jogo, isto é, quando entra seriamente no jogo, sem considerar-se apenas um jogador. Às 
pessoas que não conseguem isso, dizemos que não conseguem jogar. Penso que a estrutura fundamental do jogo de estar 
impregnado de seu espírito - espírito de leveza, de liberdade, do prazer do logro - e . nisso impregnar o jogador é aparentada com a 
estrutura do diálogo, onde se dá a linguagem real. A vontade de o indivíduo reservar-se ou abrir-se já não é determinante par a o 
modo de entrarmos em diálogo mútuo e de sermos levados por ele. O determinante é a lei da coisa que está em questão (Sache) no 
diálogo, que provoca a fala é a réplica e acaba conjugando a ambas. Assim, quando se dá o diálogo sentimo-nos plenos. O jogo da 
fala e da réplica prolonga-se para um diálogo interior da alma consigo mesma, como Platão já havia tão bem qualificado o 
pensamento. 
13. Conjugado com isso aparece o terceiro aspecto, que gostaria de chamar de universalidade da linguagem. A linguagem não 
constitui um âmbito fechado do que pode ser dito ao lado de outros âmbitos do indizível, mas ela é omniabrangente. Uma vez que o 
simples ter em mente já se refere a algo, não há nada que se subtraia fundamentalmente à possibilidade de ser dito. A possibilidade 
de dizer avanço em deter-se por causa da universalidade da razão. Todo diálogo possui, portanto, uma infinitude interna e não 
acaba nunca. O diálogo é interrompido, seja porque os interlocutores consideram já ter dito o suficiente, seja por não terem mais 
nada a dizer. Toda interrupção desse diálogo guarda, por sua vez, uma referência interna à retomada do diálogo. 
14. Fazemos essa experiência, às vezes de maneira dolorosa, quando nos exigem um enunciado ou uma declaração. A pergunta 
que se deve responder - pense-se no exemplo extremo do interrogatório ou da declaração diante de um tribunal - é como uma 
barreira que se ergue contra o espírito da linguagem que quer expressar-se e dialogar ("Aqui falo eu" ou "Responda à minha 
pergunta!"). Tudo que é dito não tem sua verdade simplesmente em si mesmo, mas remete amplamente ao que não é dito. Todo 
enunciado é motivado, isto é, a tudo que é dito podemos perguntar com razão: "Por que dizes isso?" Um enunciado só consegue 
tornar-se compreensível quando no dito compreende-se também o não dito. Sabemos isso sobretudo pelo fenômeno da linguagem. 	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  
3 Verdade e método, vol. I, p. 7O4s. ��� 
Uma pergunta da qual não sabemos a motivação não pode ser respondida. Pois é só a história da motivação da pergunta que abre o 
âmbito a partir do qual pode-se procurar e dar uma resposta. Assim, tanto no perguntar quanto no responder dá-se um diálogo 
infinito em cujo espaço se dão palavra e resposta. Tudo que é dito encontra-se nesse espaço. 
15. Podemos esclarecer isso através de urna experiência comum a todos nós. Trata-se da tradução ou da leitura de traduções de 
línguas estrangeiras. O que o tradutor tem diante de si é um texto de linguagem, isto é, algo dito oralmente ou por escrito que ele 
deve traduzir para a própria língua. Ele está ligado ao texto que tem diante de si e não pode simplesmente transportar o material da 
língua estrangeira para sua própria língua sem transformar-se ele próprio no sujeito que diz. Isso significa porém que ele deve 
conquistar em si próprio o espaço infinito do dizer que corresponde ao que é dito na língua estrangeira. Todos sabemos que é uma 
tarefa difícil. Sabemos como a tradução unidimensionaliza o que é dito na língua estrangeira. Cria-se uma dimensão em que o 
sentido das palavras e a forma das frases da tradução imitam o original, mas não se cria espaço para a tradução. Falta-lhe aquele 
terceiro plano onde o que é dito originalmente, isto é, o 
que é dito no original se sustenta em seu âmbito de sentido. É uma barreira inevitável para todas as traduções. Nenhuma 
tradução pode substituir o original. Engana-se quem pensa que a simples projeção no nível da superfície daquilo que é enunciado 
no originai deveria facilitar a compreensão da tradução. Isso não acontece por ser impossível traduzir o que no original está como 
pano de fundo ou nas entrelinhas. Se imaginarmos que essa redução a um sentido simplificado poderia facilitar a compreensão, 
enganamo-nos. Nenhuma tradução é tão compreensível como O original. O sentido multirrelacional do que é dito - e sentido 
significa sempre sentido direcional - vem à fala apenas na originalidade do dizer; na repetição e na imitação ele se esvai. Por isso, a 
tarefa do tradutor nunca deve ser retratar o que é dito, mas colocar-se na direção do que é dito, isto é, no seu sentido, para transferir 
aquilo que deve ser dito para a direção de seu próprio dizer. 
16. Isso aparece exemplarmente naquelas traduções que deveriam possibilitar um diálogo oral, pela intermediação do intérprete, 
entre pessoas de idiomas diferentes. Um intérprete que se limita a reproduzir o que representam na outra língua as palavras e frases 
ditas por um dos interlocutores torna o diálogo incompreensível. O que deve reproduzir não é o que foi dito em seu sentido literal, 
mas o que o outro quis dizer e disse, deixando muita coisa impronunciada. O limite de sua reprodução também deve ganhar o único 
espaço que possibilita o diálogo, isto é, a infinitude interna que convém a todo entendimento. 
17. A linguagem é, pois, o centro do ser humano, quando considerada no âmbito que só ela consegue preencher: o âmbito da 
convivência humana, o âmbito do entendimento, do consenso crescente, tão indispensável à vida humana como o ar que 
respiramos. Realmente o homem é o ser que possui linguagem, segundo a afirmação de Aristóteles. Tudo que é humano deve poder 
ser dito entre nós. 
(GADAMER, H. G. Verdade e Método II. Ed. Vozes, Rio de Janeiro, 2000.)

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