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Direito Izabela Hendrix – Belo Horizonte – vol. 10, nº 10, agosto de 2013 46 A maioridade penal sob a óptica do direito comparado: discussões acerca da viabilidade da redução da idade penal no Brasil Kênia Maira de Souza1 Enio Luiz de Carvalho Biaggi2 Resumo O presente trabalho se destina a contribuir para as discussões social e jurídica acerca da possibilidade da redução da maioridade penal no ordenamento jurídico brasileiro à luz da política criminal e legislação vigentes. Para isso, foi realizada uma análise do art. 288 da CR/88, enquanto cláusula pétrea, além do Estatuto da Criança e do Adolescente, a fim de verificar as (im) possibilidades de trasnformações normativas. Para enriquecer o debate, recorreu-se a diversos contributos teóricos sobre institutos penais relacionados à culpabilidade do agente, em especial sobre a inimputabilidade. Adentrou-se, ainda, em discussões sociais, que são frequentemente conduzidas pelos veículos de comunicação. Por fim, foi feito um estudo comparativo entre a política criminal infanto-juvenil brasileira, de caráter ressocializador, e a norte-americana, voltado à punição, verificando-se aspectos positivos e negativos dos sistemas. Palavras-chave: Maioridade penal. Estatuto da Criança e do Adolescente. Inimputabilidade. Direito Comparado. Introdução Com o aumento de casos de atos infracionais cometidos por menores no Brasil, debatidos com veemência por veículos de comunicação, buscou-se analisar a possibilidade da redução da maioridade penal enquanto solução provável para violência social e urbana, uma vez que há, no momento, um crescente clamor popular e midiático por mudanças legislativas, citando as políticas criminais adotadas por outros países como modelo ideal, em especial o adotado por alguns estados da federação norte-americana. Esse discurso, no entanto, geralmente deixam de lado aspectos relevantes que norteiam a adoção dessas políticas normativas, como os aspectos sociais, econômicos, políticos e culturais de cada Estado. Como o objetivo de contribuir para esse debate, o presente trabalho se propôs a analisar os critérios adotados pelo legislador brasileiro ao estabelecer, como parâmetro, a idade penal mínima de dezoito anos, bem como a possibilidade e a viabilidade de uma mudança na legislação, os motivos que levaram à descrença no Estatuto da Criança e do Adolescente e se o modelo norte-americano de justiça criminal voltada para jovens e adolescentes infratores é mesmo um modelo a ser utilizado como referência a ser seguida. 1 Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Advogada. 2 Professor no Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix e na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Advogado. Direito Izabela Hendrix – Belo Horizonte – vol. 10, nº 10, agosto de 2013 47 Até início do século XX, as crianças eram concebidas como “autêntica propriedade de seus pais”, cabendo a eles instruí-las como bem entendessem, sem que houvesse qualquer tipo de interferência do Estado, como explicam os autores Rossato et al. (2011, p. 51) em seu livro Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. A Comunidade Internacional, por sua vez, também não se preocupava em resguardar os direitos da criança. Este panorama começou sofrer transformações a partir de dois importantes eventos históricos: os protestos da classe operária por melhores condições de trabalho e a Primeira Guerra Mundial. O primeiro, iniciado a partir dos primeiros anos do século XX, foi marcado por movimentos sociais que reivindicavam melhores condições de trabalho, redução da carga horária e idade mínima para trabalhar. “Essas iniciativas importaram na criação da Organização social do trabalho que, de uma só vez, aprovou seis convenções, duas delas são direcionadas à proteção do direito das crianças”. (Ibid., 2011, p. 52). O segundo fator – a Primeira Grande Guerra – que acarretou num grande número de crianças órfãs, despertou a indignação da União Internacional Salve as Crianças, “vanguardista na luta pelos direitos da infância em todo planeta, que elaborou a declaração de Genebra”. (Ibid., p. 52). A Declaração dos Direitos da Criança, entretanto, só foi aprovada em 1959. Apenas a partir desse momento que a criança passou a ser reconhecida como sujeito de direitos, deixando de ser considerada unicamente objeto de proteção. Esse texto normativo, porém, não era munido de coercibilidade, ficando a sua efetivação a cargo dos ordenamentos jurídicos internos dos Estados-nacionais. Somente em 1989, mediante a Convenção sobre os Direitos da Criança, a Declaração dos Direitos da Criança passou a ganhar efetivamente caráter coercitivo. Ainda neste contexto de evolução da criação de sistemas protetivos, verifica-se a existência de dois sistemas de proteção dos Direitos Humanos da Criança e do Adolescente: os sistemas homogêneo e heterogêneo. O primeiro disponibiliza sistemas de proteção indistintamente à universalidade de pessoas, enquanto que o segundo disponibiliza sistemas de proteção a um grupo distinto em face de diversas circunstâncias em que eles possam se encontrar, por exemplo, crianças, mulheres, idosos, deficientes. (Cf. ROSSATO et al., 2011, p. 55). Quanto ao sistema heterogêneo, no que diz respeito às crianças, existem vários documentos internacionais de âmbito global, dentre eles as “regras mínimas das Nações Unidas para a administração da justiça da infância e da juventude, regras de Beijing ou regras de Pequim”, além da “Convenção do Direito das Crianças”. (ROSSATO et al., 2011, p. 62-63). As Regras de Beijing ou Pequim são instruções proferidas pelo 7º Congresso das Nações Unidas, ocorrido em Milão, no ano de 1985, para a administração da Justiça da Infância e da Juventude, com orientações acerca da prevenção de delitos e o tratamento dos autores. Voltado unicamente para situações de julgamento de crianças e adolescentes infratores, as Regras de Beijing ou Pequim estabelecem garantias como “julgamento justo, imparcial e conduzido em um Juízo especializado”. (Cf. ROSSATO et al., 2011, p. 62). Trata-se de um Tratado Internacional de Proteção aos Direitos Humanos com o maior número de ratificações. A Convenção contém diversas normas com o objetivo precípuo de desenvolvimento integral da criança. O bem-estar do menor deve ser colocado em primeiro lugar por autoridades legislativas ou administrativas, tendo em vista a sua falta de maturidade, necessitando, assim, de proteção e cuidados especiais. (Ibid., p. 63). Direito Izabela Hendrix – Belo Horizonte – vol. 10, nº 10, agosto de 2013 48 A definição acima deixa ressalvada a legislação aplicada em cada Estado-nação, ou seja, as normas internacionais estabelecem um norte, mas cada país terá sua própria lei quanto à maioridade penal e quanto ao sistema processual. Verifica-se, assim, que o surgimento do sistema protetivo infanto-juvenil era básico, universal e homogêneo. Com o passar do tempo, esse sistema se transformou, provocando o nascimento do sistema heterogêneo que legisla assuntos específicos, sobre determinados grupos. Como exemplo, temos a administração da Justiça da Infância e Juventude. Essas normas internacionais objetivam a colaboração dos Estados para que utilizem essas regras como uma espécie de bússola na formulação das legislações internas, visando ao bem-estar do menor. Porém elas não influem diretamente na autodeterminação de cada país, ou seja, cada Estado tem suas normas e sistemas processuais próprios de acordo com seus costumes, crenças, política, economia e direito. A maioridade penal, portanto, é variável, determinada conforme a política criminal adotada internamente em cada país. O Brasil é signatário da Convenção dosDireitos da Criança, mas, assim como os demais países signatários, possui seu próprio ordenamento, passando por evoluções históricas no tocante à maioridade penal. Faz-se, assim, imprescindível entender o desenvolvimento do instituto da inimputabilidade e consequentemente da Justiça infanto-juvenil brasileira. Contexto histórico da inimputabilidade no Brasil O antigo Código Criminal do Império não permitia o julgamento de menores de quatorze anos. Essa norma, porém, não se aplicava aos filhos de escravos. A mudança no ordenamento jurídico ocorreu apenas em 1852, com a criação do artigo 10, aviso nº 190. O fundamento teórico utilizado para a inimputabilidade, nesta época, era o discernimento entre o bem e o mal pela inteligência. A capacidade civil, entretanto, era diferente da capacidade penal, pois se acreditava que “mais cedo se tem a consciência de um delito do que de seus interesses”. (BEMFICA, 2001, p. 160). O artigo 27 do Código Penal de 1890 estabelecia que infratores menores de nove anos ou maiores de nove anos e menores de quatorze anos praticavam infrações sem discernimento ou juízo, ou seja, não entendiam as consequências de seus atos. O parágrafo 1º do artigo 27 foi revogado pela Lei nº 4.242, de 5 de janeiro de 1921, determinando que infratores menores de quatorze anos não fossem submetidos nenhum tipo de processo criminal. (Ibid., p. 160). O Decreto nº 6.026, de 1943, fez considerações relevantes acerca do menor de quatorze anos, maior de quatorze anos e menor de dezoito anos, estabelecendo algumas providências, como destaca Bemfica (Cf. Ibid., p. 161), no que diz respeito à troca da palavra crime pela palavra infração. Segundo ele, o menor de quatorze anos, por sua vez, ficaria sujeito a medidas de proteção e assistência, enquanto que o maior de quatorze anos e menor de dezoito anos, se perigoso, deveria ser enviado a um estabelecimento adequado ou em casos especiais, estabelecimentos destinados a adultos até cessar a periculosidade. Se não oferecesse risco, poderia ser colocado sob a guarda do pai, ou responsável, ou internado em estabelecimento de reeducação profissional. Direito Izabela Hendrix – Belo Horizonte – vol. 10, nº 10, agosto de 2013 49 O artigo 27 da nova parte geral do Código Penal estabelecia que o menor se submetia às normas do Direito Penal. O entendimento, naquele momento, era o de que as leis não possuem caráter punitivo, mas meramente corretivo: não havia penas, mas sim medidas protetivas. A Lei 6.697, de 10 de outubro de 1979, revogou as demais leis e decretos até então vigentes, sendo que o Código de Menores conteria todas as normas de proteção, vigilância e assistência, pautando-se em aspectos sociais, econômicos e políticos a favor do bem-estar do menor. Desta forma, foram dados os primeiros passos para que a atual Constituição determinasse a idade mínima de dezoito anos, sujeitando-se às normas da legislação especial, qual seja, o atual Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). No início do século XX no Brasil, não existiam políticas sociais bem definidas. A tutela de pessoas desfavorecidas economicamente era realizada pela Igreja Católica e outras instituições, como a Santa Casa de Misericórdia. Havia, na Santa Casa, um programa intitulado A roda, muito utilizado na Europa, que tinha como intuito, recolher órfãos e donativos. Em 1854, o ensino se tornou obrigatório, mas não englobava os escravos, portadores de moléstias graves e os não vacinados. A regulamentação do trabalho para menores ocorreu apenas em 1891, pelo Decreto nº 1.313, fixando a idade mínima de 12 anos. Em 1917, surgiram lutas sociais exercidas pelo proletariado. Uma das reivindicações era a que houvesse a proibição de trabalho para menores de 14 anos e para menores de 18 anos no período noturno. Em 1942, foi instituído um órgão semelhante a uma prisão para menores que se chamava Serviço de Assistência ao Menor (SAM). Seu objetivo era punitivo e correcional, sendo que o atendimento para o menor infrator era reformatórios e casas de correção, enquanto que os menores carentes e abandonados eram destinados a patronatos agrícolas de aprendizagem de ofícios urbanos. Em 1950, o primeiro escritório da UNICEF foi instalado no Brasil, na capital da Paraíba, João Pessoa. A intenção era a proteção à saúde das crianças, gestantes que viviam no nordeste. No período do Regime Militar foi criada a FUNABEM (Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor, Lei 4.513 de 1 de dezembro de 1964), que tinha como objetivo dar assistência as crianças, atuando de forma a internar tanto os menores infratores, quanto os menores carentes ou abandonados. O Código de Menores, sancionado em 1979, visava à proteção das crianças com a infância em perigo, ou seja, que se encontravam em situação irregular, destinando-as à proteção do Poder Judiciário. Em 1988, com a abertura democrática, houve avanços importantes com movimento sociais em prol da infância. Havia, por um lado, a corrente menorista, que defendia uma manutenção no Código de Menores, de 1979, e, de outro, a corrente estatutista, que defendia mudanças no Código, pregando por novos e amplos direitos e inserção da causa na Política Nacional. Percebe-se, então, que a história da inimputabilidade no Brasil e a do Estatuto da Criança e do Adolescente, de alguma forma, caminham juntas. Institutos penais da (in) imputabilidade e maioridade penal A discussão da menoridade penal envolve institutos penais que auxiliam na aplicação e interpretação das normas e colocam em voga a presunção de incapacidade de Direito Izabela Hendrix – Belo Horizonte – vol. 10, nº 10, agosto de 2013 50 compreensão do ato ilícito praticado pelo menor de idade. Mesmo que se levante a questão do acesso à informação, cada vez mais precoce ao jovem, o ordenamento jurídico vigente e seus institutos partem do pressuposto da imaturidade e da formação incompleta da personalidade do indivíduo. Luiz Régis Prado (2008, p. 376) define imputabilidade como “a plena capacidade (estado ou condição) de culpabilidade, entendida como capacidade de entender e de querer, e, por conseguinte, de responsabilidade criminal (o imputável responde pelos seus atos)”. Essa capacidade detém dois aspectos: o volitivo, que é atuação embasada na própria compreensão, e o cognoscitivo, que é a capacidade de entender a ilicitude do ato cometido. Os penalistas Zaffaroni & Pierangeli (2009, p. 538) nos ensinam que “a imputabilidade é a capacidade psíquica de ser sujeito de reprovação, composta da capacidade de compreender a antijuricidade da conduta e de adequá-la de acordo com esta compreensão”. A imputabilidade está, como se pode observar, ligada à consciência, à capacidade e ao entendimento do agente de querer e praticar o ato proibido pela lei. Por sua vez, a imputabilidade pode, em algumas hipóteses, ser excluída, podendo ser chamada de excludentes de imputabilidade, ou inimputabilidade. Luiz Régis Prado (2008, p. 376) nos ensina que em sede doutrinária há três métodos: a) Sistema biológico: “que leva em consideração o estado anormal do agente”; b) Sistema psicológico: “tem em conta apenas as condições psicológicas do agente à época do fato”; c) Sistema biopsicológico: “atende tanto as bases biológicas que produzem a inimputabilidade como as suas consequências na vida psicológica ou anímica do agente”. Autores como Rogério Greco e Fernando Galvão abordam respectivamente, em seus textos, o critério biológico como fator determinante para a responsabilidade criminal: A inimputabilidade por imaturidade natural ocorre em virtude de uma presunção legal, em que, por questões de política criminal, entendeu o legislador brasileiro que os menores de 18 anos não gozam de plena capacidade de entendimento que lhes permitaimputar a prática de um fato típico e ilícito. Adotou-se, portanto, o critério puramente biológico (ROGÉRIO GRECO, 2012 p. 388). A legislação nacional admite hipótese em que a inimputabilidade seja presumida de modo absoluto, bem como que sua identificação ocorra pela utilização de critério exclusivamente objetivo ou biológico. (GALVÃO, 2011, p. 462). O teórico Júlio Fabrini Mirabete, por sua vez, entende que a culpabilidade se deve a fatores de “capacidade psíquica”: Há imputabilidade quando o sujeito é capaz de compreender a ilicitude de sua conduta e de agir de acordo com esse entendimento. Só é reprovável a conduta se o sujeito tem certo grau de capacidade psíquica que lhe permita compreender a antijuricidade do fato e também a de adequar essa conduta a sua consciência. Quem não tem essa capacidade de entendimento e de determinação é inimputável, eliminando-se a culpabilidade. (MIRABETE, 2004, p. 210). Direito Izabela Hendrix – Belo Horizonte – vol. 10, nº 10, agosto de 2013 51 De forma geral, pode-se afirmar que a inimputabilidade é, então, a ausência de capacidade que o indivíduo possui de entender a gravidade e as consequências advindas da conduta antijurídica. Dentro das causas de imputabilidade, existe a excludente da maioridade penal, consistindo no fato de que menores de dezoito anos são absolutamente inimputáveis. Menores de dezoito anos – consagra-se aqui o princípio da inimputabilidade absoluta por presunção (art. 27, CP), com fulcro no critério biológico da idade do agente, e que a partir da Carta de 1988, tem assento constitucional (art. 228, CF). (RÉGIS PRADO, 2008, p. 377). Para a responsabilidade criminal do agente, deve-se levar em consideração, portanto, a presunção de que a personalidade do menor se encontra em fase de formação, colocando-o no rol de inimputabilidade. A imputabilidade se aplica a pessoas com personalidades desenvolvidas, que sabem o caráter ilícito de seus atos praticados, assim como as consequências advindas de seus crimes. Nesse sentido, Fernando Galvão observa que, caso o agente não tenha completado dezoito anos de idade, mesmo sendo plenamente capaz de entender a ilicitude de seu ato e de determinar -se conforme esse entendimento, não é possível a reprovação. A inimputabilidade por menoridade resulta de opção político-criminal que estabelece a presunção absoluta de incapacidade psíquica e impede a aplicação de pena. (GALVÃO, 2011, p. 463). A presunção de incapacidade absoluta que a Constituição da República de 1988 determina, com o estabelecimento da idade mínima de dezoito anos para responsabilização penal, vem gerando diversas discussões e polêmicas. Atualmente, devido o aumento de infrações leves e graves cometidos por menores de idade, há o clamor da sociedade pela redução da maioridade penal. Dentre os argumentos usados por quem é a favor da redução, é que o menor possui pleno entendimento da prática ilícita cometida, e, portanto, se beneficia do sistema de justiça infanto-juvenil brasileiro, que objetiva a ressocialização, e não punição, entendido pela maioria como branda demais. O primeiro caso foi de um jovem de 19 anos morto com um tiro na cabeça durante um assalto em frente ao prédio onde morava em São Paulo, no mês de abril. O ladrão era um adolescente de 17 anos. O menor se entregou a polícia um dia depois, quando completou 18 anos. O fato de ter 17 anos quando cometeu o crime o impediu de ser julgado pela justiça comum. O outro caso ocorreu poucos dias depois em São Bernardo do Campo, em São Paulo, quando uma dentista teve seu consultório invadido por três homens que roubaram e a queimaram. Foram presos um rapaz de 24 anos, um de 21 e um menor de 17 anos. A responsabilidade por atear fogo na dentista foi atribuída ao menor, que pela idade teria a pena amenizada, mesmo se tratando de um crime grave. (CAROLINA CUNHA, 2013). Os meios de comunicação inflamam a opinião dos cidadãos por meio de reportagens e críticas ao sistema penal, ao ECA e ao judiciário. Porém a discussão é mais complexa do que se aparenta e carece de minuciosa análise, como observa Bruno Milanez e Felipe Foltran Campanholi (2013): questão que sazonalmente aparece nos meios de comunicação, e é matéria de discussão acalorada na sociedade civil, diz respeito à redução da idade de imputabilidade penal (maioridade penal). A discussão, pela sua Direito Izabela Hendrix – Belo Horizonte – vol. 10, nº 10, agosto de 2013 52 importância, deve ser tratada com o devido grau de cientificidade que a sociedade merece, evitando-se a disseminação de argumentos de senso comum, que não raro conduzem à incompreensões e em nada colaboram para um amadurecimento democrático sobre o assunto. (MILANEZ; CAMPANHOLI, 2013). As pressões exercidas pela sociedade e pelos veículos de comunicação forçam os políticos a tomarem medidas para modificar a legislação vigente, no sentido de garantir punição severa ao menor infrator. A urgência em atender o clamor da população faz com que aspectos sociais, econômicos, psicológicos e educacionais sejam colocados em segundo plano. Criou-se a falsa sensação de que a legislação voltada para os atos infracionais cometidos por crianças e adolescentes, no Brasil, ficou ultrapassada, sem eficácia. Sobre o assunto, Miguel Reale Júnior diz que os adolescentes são muito mais vítimas de crimes que autores , contribuindo este fato para a queda de expectativa de vida no Brasil, pois se existe um “risco Brasil” este reside na violência da periferia das grandes cidades. Dados impressionantes é o de que 65% dos infratores menores vivem em família desorganizada, junto com a mãe abandonada pelo marido que, por vezes, tem filhos de outras uniões também desfeitas e lutam para dar sobrevivência a sua prole [...]. Alardeia-se pela mídia, sem dados, a criminalidade do menor de dezoito anos, dentro de uma visão tacanha da “lei e da ordem” que de má ou boa- fé crê resolver a questão da criminalidade com repressão penal, como se por um passe de mágica a imputabilidade aos dezesseis anos viesse a reduzir comodamente sem políticas sociais, a criminalidade. (REALE JUNIOR, 2009, p. 211). Percebe-se que, apesar de grande parte da população desejar que ocorra a redução da menoridade penal, o assunto vai além das esferas legislativa e judiciária, estendendo- se à política criminal e governamental, à distribuição de renda, a problemas sociais como a corrupção, dentre outros aspectos que contribuem com o aumento de ocorrências de infrações penais. Além da questão da inconsciência da ilicitude que o Código Penal adota, e que é alvo de discussões de correntes favoráveis e contrárias a redução da menoridade, outro aspecto muito importante que contribui para o debate jurídico diz respeito à possibilidade de altreação do art. 288 da Constituição Federal, definida por alguns teróricos como cláusula pétrea. O limite constitucional para a inimputabilidade está instituído no art. 288 da CR/88, consideram penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial. Teóricos contrários à redução da idade penal entendem que o referido dispositivo está relacionado ao rol dos Direitos e Garantias Fundamentais, positivados no art. 5º da Constituição da República. Segundo eles, a responsabilidade penal seria um direito individual e, portanto, blindado como cláusula pétrea, não sendo objeto de emenda por estar amparado no art. 60, § 4º, IV da CR/88. Rossato et al. (2011, p. 308) comentam que órgãos que defendem os interesses das crianças e adolescentes se mostram contrários a maioridade penal calcados por este motivo: De fato, entende-se serem inconstitucionais eventuais propostas de emenda constitucional que tenham por intuito reduzira maioridade penal, pois atingem direitos fundamentais de adolescente que, segundo a tese dos direitos análogos, apesarem de não constituírem direito individual formal (por não constarem expressamente no rol do art. 5º da CF), goza de Direito Izabela Hendrix – Belo Horizonte – vol. 10, nº 10, agosto de 2013 53 proteção de cláusula pétrea conforme disposição no art. 60 §4º, IV da Constituição Federal. Nesse sentido o atingimento da imputabilidade pena l somente aos 18 anos de idade é garantia individual material, pois representa uma liberdade negativa em face do Estado. Dessa forma, nem por vontade popular, seja em sua maioria majoritária ou mesmo absoluta, poderia se falar em insurgências de leis infraconstitucionais. Há, no entanto, autores contrários à redução da menoridade, mas que não coadunam com a tese da cláusula pétrea, pois, segundo eles, há a possibilidade de mudança da legislação por via da Emenda Constitucional, afastando o caminho da Lei ordinária e consequentemente afirmando que o art. 288 da CR/88, não está relacionado ao rol dos Direitos Fundamentais descritos no art. 5º da CR/88, muito menos ao art. 60, § 4º, IV da CR/88, dentre eles o eminente jurista Miguel Reale Júnior (2009, p. 210): entendo absolutamente inconveniente a alteração, por razões de política criminal, mas não considero as propostas inconstitucionais por ferir regra pétrea da Constituição, consoante o art. 60, IV, da Constituição Federal e por conseguinte insuscetível de ser abolida. Entendo que não constitui regra pétrea não por não estar o dispositivo incluído no art. 5º da Constituição Federal, referentes aos direitos e garantias individuais mencionadas no art. 60, IV da Constituição. Não é a regra do art. 228 da Constituição Federal regra pétrea, pois não se trata de um direito fundamental ser reputado penalmente inimputável até completar dezoito anos. A medida foi adotada pelo Código Penal e depois pela Constituição Federal em face do que se avaliou como o necessár io e o conveniente, tendo em vista atender aos interesses do adolescente e da sociedade. A grande maioria dos doutrinadores, entretante, é contrária a redução da idade penal, seja por razões de entendimento social ou político penal. A corrente contrária firma seu posicionamento principalmente no aspecto social que é deficiente, não compactuando com a ideia de que a redução do limite de idade para responsabilidade penal seja a solução para o problema enfrentado pelo país. Os autores que são favoráveis à redução da maioridade penal embasam sua posição na insegurança vivida pela população, da pena branda aplicada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente em face de infrações graves. A falta de temor pelos jovens que desdenham da Justiça se intitulando culpados por crimes cometidos por maiores de dezoito anos, firmando sua opinião no sentimento de impunidade que atinge a todos os cidadãos. Análise do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) O Estatuto da Criança e do adolescente é fruto de manifestações sociais em prol dos direitos infanto-juvenis e possui dentre suas características a proteção integral ao jovem, garantias essenciais para o desenvolvimento até a fase adulta, indistinção de raça, cor, etnia ou classe social. Tem-se que o artigo 2° do ECA, estabelece que criança é a pessoa até doze anos incompletos e adolescente o indivíduo entre doze e dezoito anos. Estes são sujeitos de direito, insuscetíveis a violência, maus tratos e opressão. A absoluta prioridade que trata a Lei compreende a primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias, a precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública, a preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas e a destinação Direito Izabela Hendrix – Belo Horizonte – vol. 10, nº 10, agosto de 2013 54 privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude. (SILVA, 2014). O Estatuto da Criança e do Adolescente possui em seu corpo normativo Direitos Fundamentais, como saúde, liberdade, dignidade e respeito. Adentra no âmbito familiar, tanto natural quanto adotiva ou substituta, guarda e tutela. Assegura direitos fundamentais, como a educação, lazer, esporte e acesso à cultura. Também abarca o direito a profissionalização e a proteção no trabalho. Em razão da extrema dificuldade do brasileiro médio em continuar a estudar, pela freqüente demanda da família na sua contribuição com ganhos salariais para ajuda no sustento, é importante destacar que é proibido qualquer trabalho a menores de quatorze anos de idade, salvo na condição de aprendiz. Considerando a aprendizagem a formação técnico- profissional ministrada segundo as diretrizes e bases da legislação de educação em vigor (sic.). Hoje existe um mecanismo estatal denominado bolsa-escola que tem como objetivo manter a criança na escola, com pequena colaboração do Estado. (SILVA, 2014). Assim como o Estatuto regula direitos e garantias, também institui regras acerca de atos infracionais que podem ser praticados por crianças e adolescentes, além de observar as entidades responsáveis pelo acolhimento e medidas cabíveis. Atualmente seu escopo de proteção integral vem sido duramente criticado pela não eficiência na reabilitação do infrator, bem como nas penas, consideradas por muitos autores como brandas, que não causam temor nas crianças e nos adolescentes. Exemplo disso são as situações em que um menor pratica um crime um dia antes de completar dezoito anos, sendo impedido de ser julgado pela justiça comum criminal, pois o período de internação não deve passar de três anos. Ao lado de diversos projetos de Emenda Constitucional que visam a reduzir a idade penal, há projetos que aumentam a pena do Estatuto da Criança e do Adolescente. Surge assim, uma nova opção de mudança na legislação que substitui a discussão acerca da redução da idade penal. Percebe-se, porém, que só o aumento de pena não será eficiente se as instituições de cumprimento não funcionam efetivamente, bem como as políticas sociais contra a pobreza e violência. O perfil da maioridade penal no mundo O perfil da idade penal pelo mundo possui variações significativas, embasadas na economia, nos costumes, na legislação, na política e na sociedade. Há também diferenças no cumprimento das penas, sistema processual e julgamento, bem como no objetivo, podendo ser de ressocializador ou punitivo. Vejamos somente alguns países na tabela 1: PAÍS IRPJ IRPA DETERMINAÇÕES Brasil 12 18 O Art. 104 do Estatuto da Criança e do Adolescente determina que são penalmente inimputáveis os menores de 18 anos, sujeitos às medidas socioeducativas previstas na Lei. Direito Izabela Hendrix – Belo Horizonte – vol. 10, nº 10, agosto de 2013 55 Estados Unidos 10 12/16 Na maioria dos Estados do país, adolescentes com mais de 12 anos podem ser submetidos aos mesmos procedimentos dos adultos, inclusive com a imposição de pena de morte ou prisão perpétua. O país não ratificou a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança. China 14/16 18 A Lei chinesa admite a responsabilidade de adolescentes de 14 anos nos casos de crimes violentos como homicídios, lesões graves intencionais, estupro, roubo, tráfico de drogas, incêndio, explosão, envenenamento, etc. Nos crimes cometidos sem violências, a responsabilidade somente se dará aos 16 anos. Argentina 16 18 O Sistema Argentino é Tutelar. A Lei N° 23.849 e o Art. 75 da Constitución de la Nación Argentina determinam que, a partir dos 16 anos, adolescentes podem ser privados de sua liberdade se cometem delitos e podem ser internados em alcaidías ou penitenciárias. França 13 18 Os adolescentes entre 13 e 18 anos gozam de umapresunção relativa de irresponsabilidade penal. Quando demonstrado o discernimento e fixada a pena, nesta faixa de idade (Jeune) haverá uma diminuição obrigatória. Na faixa de idade seguinte (16 a 18) a diminuição fica a critério do juiz. Irlanda 12 18 A idade de inicio da responsabilidade está fixada aos 12 anos porém a privação de liberdade somente é aplicada a partir dos 15 anos. Japão 14 21 A Lei Juvenil Japonesa embora possua uma definição delinqüência juvenil mais ampla que a maioria dos países, fixa a maioridade penal aos 21 anos. Inglaterra e Países de Gales 10/15 18/21 Embora a idade de início da responsabilidade penal na Inglaterra esteja fixada aos 10 anos, a privação de liberdade somente é admitida após os 15 anos de idade. Isto porque entre 10 e 14 anos existe a categoria Child, e de 14 a 18 Young Person, para a qual há a presunção de plena capacidade e a imposição de penas em quantidade diferenciada das penas aplicadas aos adultos. De 18 a 21 anos, há também atenuação das penas aplicadas. México 11 18 A idade de inicio da responsabilidade juvenil mexicana é em sua maioria aos 11 anos, porém os estados do país Direito Izabela Hendrix – Belo Horizonte – vol. 10, nº 10, agosto de 2013 56 possuem legislações próprias, e o sistema ainda é tutelar. Turquia 11 15 Sistema de Jovens Adultos até os 20 anos de idade. Fonte: Ministério Público do Paraná – CAOPCAE. O sistema norte-americano se apresenta uma das menores faixas etárias de idade para responsabilidade penal no mundo. O objetivo do sistema infanto-juvenil dos Estados Unidos é basicamente destinado à punição, conforme já foi dito anteriormente. Mesmo com um regime tão severo, os índices de crimes cometidos por menores de idades são significativos e se estendem na fase adulta. Nas sociedades em que este critério objetivo não é adotado, várias são as críticas formuladas. Exemplo disso são os EUA, que admitem a aplicação de sanção penal a menores de 18 anos e que “[...] cometeram um erro de cálculo desastroso quando submeteram adolescentes infratores à Justiça de Adultos, em lugar de aplicar-lhes as regras e procedimentos das Cortes Juvenis. Os promotores argumentavam que tal política retiraria das ruas os infratores adolescentes violentos e inibiria futuros crimes. Entretanto, um recente estudo nacional endossado pelo governo federal demonstrou que os jovens submetidos às penas de adultos cometeram, posteriormente, crimes mais violentos, se comparados àqueles que foram julgados e responsabilizados pela Justiça Juvenil Especializada.” (Jornal New York Times, 11 de maio 2007). (MILANEZ; CAMPANHOLI, 2013). Já no Brasil, o ECA possui, como missão, proteger os interesses da criança e do adolescente, determinando penalidades que objetivam a ressocialização e reabilitação do menor. Quando se compara à situação da justiça da criança e do adolescente nos dois países (Brasil e EUA), apesar das diferenças culturais, econômicas e legislativas, dentre outros, percebe-se que ambos compadecem da falta de políticas sociais: O estudo The Lives Of Juvenille Lifers (“As vidas dos jovens que cumprem prisão perpétua”), feita pelo The Sentencing Project e publicada pela revista In These Times, é a primeira pesquisa nacional sobre o tema. Após ouvir cerca de 1,6 mil condenados por crimes cometidos antes dos 18 anos, a pesquisa chegou a algumas conclusões: * 79% afirmou já ter presenciado violência doméstica; * metade deles sofreu agressão física antes de cometer o crime (cerca de 80%, entre as garotas); * um em cada cinco foi vítima de violência sexual (77% das meninas foram estupradas). Sobre o perfil dos sentenciados, a realidade prisional juvenil segue à risca as estatísticas do sistema carcerário como um todo: 60% dos entrevistados são negros e apenas 25% são brancos. E pior, os números indicam que quanto mais escura é a pele do réu, mais dura é a sentença. Se o acusado é negro, é mais alta a probabilidade de ser condenado à morte pelo júri — se a vítima for branca, então, a chance aumenta mais quatro vezes. Por passar tantos anos na prisão sem qualquer perspectiva de um dia sair de lá — a média entre os ouvidos pela pesquisa é de 16 anos gastos atrás das grades —, os jovens passam a reagir de maneira mais positiva com o ambiente que os cerca. Depois de uma década na prisão, cerca de 35% conseguiu ficar três anos sem ser submetido a qualquer medida disciplinar. Depois de 21 anos, 60% não protagonizou incidentes. (AMORIM, 2013). Direito Izabela Hendrix – Belo Horizonte – vol. 10, nº 10, agosto de 2013 57 As políticas sociais brasileiras também são alvo de críticas, quando o assunto é criminalidade cometida por menores, como se observa em um trecho de um texto elaborado pelo Promotor de Justiça do Estado de São Paulo, José Heitor dos Santos: Vejam quantas crianças sem escola (quase três milhões) e sem saúde (milhões) por omissão do Estado; quantas outras abandonadas nas ruas ou em instituições, por omissão dos pais e da família; quantas sofrendo abusos sexuais e violências domésticas por parte dos pais e da família; quantas exploradas no trabalho, no campo e na cidade (cerca de 7,5 milhões), sendo obrigadas a trabalhar em minas, galerias de esgotos, matadouros, curtumes, carvoarias, pedreiras, lavouras, batedeiras de sisal, no corte da cana-de-açúcar, em depósitos de lixo etc, por ação dos pais e omissão do Estado. A sociedade, por seu lado, que não desconhece todos estes problemas, que prejudicam sensivelmente os menores, não exige mudanças, tolera, aceita, cala-se, mas ao vê-los envolvidos em crimes, muito provavelmente por conta destas situações, grita, esperneia, sugere, cobra, coloca-os em situação irregular e exige, para eles, punição, castigo, internação, abrigo em instituições. (SANTOS, 2014). A constatação de que as políticas sociais ineficazes colaboram com o índice de crimes praticados por crianças e jovens, coloca em xeque a eficácia do sistema processual e prisional nos Estados Unidos, que utilizam o sistema punitivo, e no Brasil, que utiliza do sistema ressocializador. Em meio às discussões sobre a redução de idade penal no Brasil, que envolve tanto questões normativas quanto biológicas, nota-se que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), como alguns membros da sociedade insistem em negar, é composta de medidas protetivas. Nos Estado Unidos não é diferente: em que pese as legislações estaduais serem distintas e o país não ter aderido à Convenção dos Direitos da Criança, há uma legislação informativa e interpretativa que auxilia os Estados na elaboração de normas a respeito da justiça da criança e do adolescente. Muitas se parecem com ECA brasileiro no que se refere à ampla defesa, ao bem-estar do menor e ao direito a ter um julgamento justo. No entanto, o propósito básico é o de punir. Ao direcionar a atenção para a realidade, a prática se destoa da teoria. Em tese, o Estatuto da Criança e do adolescente deveria ter maior efetividade prática, mas infelizmente não é o que ocorre. O objetivo primordial é o da recuperação do menor infrator, mas, se pensarmos bem, não há lógica em aplicar medidas “ressocializadoras” em indivíduos que nunca foram devidamente “socializados”. Todas as etapas de garantias processuais, legislativas, institucionais, familiares, correcionais e constitucionais são queimadas pela falta de perspectivas de mudança para um futuro melhor, de uma reviravolta no sistema existente, de uma renovação institucional quanto aos meios empregados. Na busca por materiais que demonstrassem as constatações acima observadas, Maria Augusta Ramos dirigiu um documentário produzido que aborda o dia-dia das instituições de acolhimento para menores infratores, demonstrando que a realidade desentoacompletamente do propósito do Estatuto da Criança e do Adolescente, agravada pelas condições precárias dos estabelecimentos, histórico familiar devastado e pobreza extrema. Direito Izabela Hendrix – Belo Horizonte – vol. 10, nº 10, agosto de 2013 58 Juízo é um documentário de 2007, produzido por Maria Augusta Ramos, que tem a seguinte sinopse: Juízo acompanha a trajetória de jovens com menos de 18 anos de idade diante da lei. Meninas e meninos pobres entre o instante da prisão e o do julgamento por roubo, tráfico, homicídio. Como a identificação de jovens infratores é vedada por lei, no filme eles são representados por jovens não infratores que vivem em condições sociais similares. Todos os demais personagens de Juízo- juízes, promotores, defensores, agentes do DEGASE, familiares- são pessoas reais filmadas durante as audiências na II Vara da Justiça do Rio de Janeiro e durante visitas ao Instituto Padre Severino, local de reclusão dos menores infratores. Juízo atravessa os mesmos corredores sem saída e as mesmas pilhas de processos vistas no filme anterior de Maria Augusta Ramos, o premiado Justiça. Conduz o expectador ao instante do julgamento para desmontar os juízos fáceis sobre a questão dos menores infratores. Quem sabe o que fazer? As cenas finais de Juízo revelam as consequências de uma sociedade que recomenda “juízo” as seus filhos, mas não o pratica. (RAMOS, 2007). O documentário é muito esclarecedor no sentido do por que a ressocialização do menor infrator no Brasil é deficiente. A raiz do problema está na extrema pobreza, na falta de perspectivas de mudança da miserabilidade vivida, famílias desestruturadas e com muitos membros, violência, falta de escolaridade dos pais e dos menores, falta de emprego com salário digno para aquisição de bens desejados. A base do problema é, portanto, a falta de política social, que atravessa gerações. Em tese, caberia então ao Estado o papel de reparador desse problema social, aplicando os remédios de conduta, ou seja, medidas sócio-educativas, liberdade assistida, regime de semi liberdade e internação. Entretanto, esses “medicamentos de conduta” não surtem o efeito desejado, pois a dose está desajustada. O documentário Juízo mostra que os adolescentes, na maior parte do tempo, ficam em celas precárias, ociosos, com disciplina de penitenciárias, ou seja, ordem apenas para comer, se apresentarem no pátio ou nas idas e vindas da Vara da Infância e Juventude. Não há estímulo e nem perspectivas de melhora. Cada jovem internado, de alguma forma, tem a consciência do ato infracional praticado, motivo que o levou até aquela circunstância, e o que lhe aguarda ao ganhar a liberdade. Num Estado Democrático de Direito, o objetivo não deveria ser a concentração de esforços na produção de remédios contra a violência, mas sim na prevenção das infrações. Constata-se que não há elementos efetivos de ressocialização, assim sendo, o sistema brasileiro na prática, não possui essa característica. Não se vislumbra mudança de comportamento do menor infrator, se este vive na miséria, é atraído para o crime, internado em instituições precárias, com um mínimo de disciplina e motivação, e retornam para as ruas para viver a mesma realidade de antes, de violência e pobreza. Assim, reduzir a menoridade penal sem mudar o sistema institucional seria o mesmo que andar em círculos: os menores de dezesseis anos que praticaram ato infracional vão continuar nas mesmas condições atuais, sem serem realmente ressocializados, e os maiores de dezesseis anos além de também não serem recuperados, entrarão em contato com criminosos de todas as espécies em um sistema penal por muitos considerado falido. Assim como o documentário Juízo retrata a realidade dos menores infratores brasileiros, a TV Record mostrou uma reportagem que retrata um programa americano para menores infratores, “programa de impacto americano”. O vídeo está disponível no Direito Izabela Hendrix – Belo Horizonte – vol. 10, nº 10, agosto de 2013 59 site Youtube e revela como o Estado do Colorado lida com adolescentes que praticaram crimes como tráfico, assalto, tentativa de homicídio, sequestro, estupro, porte ilegal de armas. Usando as palavras do narrador, é a última tentativa de reabilitá-los e, se estes menores fracassarem, serão enviados para a prisão de adultos, onde estão os piores condenados do país. Ainda como explica o narrador, nos presídios de adultos o índice de suicídio de menores é trinta e seis vezes maior que na prisão especial. Para sua reabilitação, os menores devem passar por um tratamento de choque que inclui disciplina rígida e treinamento militar com exercício pesados, sem descanso, e o caminho para a mudança de comportamento reside na disciplina. Os agentes são severos e as jornadas de atividades podem durar até quatorze horas. Os apenados aprendem tarefas e como dividir responsabilidades, mas seu engajamento é evidente, pois, se aprovados, são transferidos para outra prisão especial em que podem obter a liberdade condicional. Os jovens têm medo de ir para a prisão de adultos, pois, conforme é demonstrado na reportagem, o número de abusos e estupros é até cinco vezes maior que nas prisões juvenis. Na segunda etapa do programa de impacto, os menores aprendem uma profissão. No final, há formatura com a presença dos pais e quando saem, tem ajuda para arrumar emprego e um lugar para morar. Segundo a reportagem, cada interno custa ao Estado cerca de cem mil reais por ano. Não são todos que conseguem terminar o programa, mas 70% dos jovens saem reabilitados. Análise sobre possíveis critérios de exclusão da imputabilidade do menor de dezoito anos Tem-se que a imputabilidade é a capacidade do indivíduo querer e entender o ato ilícito praticado. Por sua vez, a inimputabilidade é a falta desta capacidade de discernimento, e, portanto, a menoridade penal reside neste critério. No entanto, a idade penal foi estabelecida pela Constituição há vinte e cinco anos e as regras do Estatuto da Criança e do Adolescente há vinte e três anos. É notório que as relações humanas, políticas, tecnológicas e legislativas, dentre outras, evoluíram rapidamente. O acesso às informações tornou-se muito mais fácil com a internet e outros meios de comunicação. Porém, por mais que haja o conhecimento mínimo do que é lícito ou ilícito, as circunstâncias em que o indivíduo se encontra determinam o motivo do cometimento da infração e, consequentemente, a pena a ser aplicada. Verifica-se que há um desequilíbrio no que se chama de justiça satisfatória. De um lado, a vítima deseja uma resposta rápida do Estado, com punição severa ao seu agressor. De outro, o Poder Judiciário tem a missão de ressocializar o infrator, que pode ser tanto um indivíduo que cresceu na miséria, quanto outro que nasceu em um melhor padrão de vida. Nesse sentido, apesar de ser uma obra antiga, o raciocínio de Cesare Beccaria alcança a atualidade: A autoridade de interpretar leis penais não pode ser atribuída nem mesmo aos juízes criminais, pela simples razão de que eles não são legisladores. Os juízes não receberam as leis de nossos antepassados como tradição de família, nem como testamento, que só deixasse aos pósteros a missão de obedecer, mas receberam-nas da sociedade vivente ou do soberano que a Direito Izabela Hendrix – Belo Horizonte – vol. 10, nº 10, agosto de 2013 60 representa, como legítimo depositário do atual resultado da vontade de todos. (BECCARIA, 1999, p. 32). Para que se possa chegar o mais perto da verdadeira justiça, faz-se necessário a análise de conjuntos de fatores que vão além da idade e presunção de incapacidade. A justiça divina e a justiça natural são, por essência, imutáveis e constantes, porque a relação entre dois objetosiguais é sempre a mesma; mas a Justiça humana, ou seja, política, não sendo senão a relação en tre a ação e o estado variável da sociedade, pode variar à medida que se torne necessária ou útil à sociedade tal ação, e só será bem discernida por quem analisar as relações complicadas e mutabilíssimas das combinações civis. (BECCARIA, 1999, p. 20-21). Aspectos sociológicos, familiares, educacionais e econômicos devem servir como instrumento para melhor direcionamento na forma de cumprimento da pena, até mesmo para aqueles que acham que ficarão impunes. Ademais, melhor resultado se vislumbra se houver integração entre o Poder Executivo e o Poder Judiciário. Renovação do Estatuto da Criança e do Adolescente, investimentos em políticas sociais, espaços físicos adequados, agentes capacitados e projetos de ressocialização que vão além dos muros das instituições. Considerações finais Verificou-se que o Código Penal Brasileiro confere ao menor de idade o status de inimputável, pelo fato de não possuir identidade totalmente formada, autodeterminação, ser imaturo e não ter total consciência da gravidade do ilícito cometido. Por esse motivo, amparado pelo critério biológico, fixou-se a idade mínima de dezoito anos para responsabilização penal, assim como a Constituição da República de 1988, em seu art. 288, instituiu o mesmo limite. A discussão sobre as propostas de alteração do art. 288 da CR/88 ainda não chegou a um consenso doutrinário, mas verificou-se plausível o entendimento de que a norma constitucional não constitui cláusula pétrea, pois não está diretamente ligada aos direitos fundamentais, sendo apenas escolha do legislador, pautado em critérios sociais, cotidianos e biológicos. O ECA, por sua vez, é extremamente cuidadoso e bem articulado, com o objetivo precípuo de proteção integral da criança e do adolescente. No entanto, a forma em que ela é colocada em prática e os resultados obtidos, não correspondem às expectativas. A falta de políticas sociais anula qualquer ressocialização que a legislação vigente propõe. Não há perspectivas de mudança na infraestrutura da vida do menor infrator, que continuará a viver à margem da sociedade, na extrema miséria. O crime se torna, portanto, o caminho mais curto para adquirir, em pouco tempo, o que em meses de trabalho ele não poderia comprar. Esses bens materiais, na visão dos jovens, se traduzem em respeito e dignidade que lhes faltam. Outro aspecto que frustra os planos do ECA é a precariedade das instituições de internação. Aliadas à deficiência das políticas sociais estão as más condições dos centros de internação. Anteriormente, eram vistas com frequência diversas rebeliões na extinta FEBEM, que hoje se transformou na Fundação Casa. Por meio do documentário Juízo, constatou-se a falta de estrutura da entidade, chamando atenção Direito Izabela Hendrix – Belo Horizonte – vol. 10, nº 10, agosto de 2013 61 também para a disciplina inadequada, bem como para a ociosidade do tempo para os internados. Os meios de comunicação comungam com a ideia de que a redução da idade penal seria a solução da violência cometida pelos jovens. Deste modo, inclinam os expectadores, muitas vezes coagidos pelo aumento dos crimes, a pensar da mesma forma. Utilizam-se de um discurso retórico evocando, por diversas vezes, como exemplo ideal, o limite de idade utilizado pelos Estados Unidos. Porém, percebe-se que os americanos passam por problemas bem semelhantes que os do Brasil no que toca aos índices de violência e a promoção de pouca política social, com a exceção de alguns Estados, que contam com a realização de programas inovadores, que visam à reabilitação do jovem por meio da disciplina, profissionalização e ajuda além dos presídios de menores. O fato dos países diminuírem a idade penal não é garantia de segurança. Pouco importa a situação econômica de cada nação, se as engrenagens da lei não funcionarem com o respaldo do Poder Executivo. Não se pode ignorar o sofrimento das vítimas de crimes cometidos por menores infratores, muito menos a sensação de impunidade e o medo que tomam conta da sociedade. Não basta que os políticos adentrem com diversos projetos no senado para atender o clamor da população, há de se ter uma mudança na postura política no modo de encarar os problemas de nosso país, pois a pobreza, a violência, a indignidade, de alguma forma, está diretamente interligado à falta de eficiência do sistema de Justiça Infanto-Juvenil. Só existirá reabilitação se houver esperança de mudança, perspectivas de dias melhores, educação, saúde, trabalho, salário digno, melhor distribuição de renda. A redução da maioridade penal, dessa forma, está longe de ser considerada a solução ideal, mas apenas uma medida paliativa, que pode causar uma falsa sensação de segurança na sociedade. The criminal responsibility from the perspective of comparative law: discussions about the feasibility of reducing the age of criminal in Brazil Abstract This work is intended to contribute to the social and legal about the possibility of reducing the legal age in the Brazilian legal system in light of the criminal policy and legislation discussions. For this, an analysis was performed art. CR 288/88, while entrenchment clause, beyond the Statute of Children and Adolescents, in order to verify the (im) possibilities of normative trasnformações. To enrich the debate, we have examined several theoretical contributions on criminal Institutes of guilt of the agent, particularly on the unaccountability. If entered, still, in social discussions, which are often led by the media. Finally, a comparative study between Brazilian criminal policy juvenile, resocializing of character, and the American, focused on punishment, verifying positive and negative aspects of the systems was done. Direito Izabela Hendrix – Belo Horizonte – vol. 10, nº 10, agosto de 2013 62 Keywords: Criminal responsibility. Statute of Children and Adolescents. Unaccountability. Comparative Law. Referências AMORIM, Felipe. Revista Samuel, EUA: Menores punidos com prisão perpétua são negros, pobres e vítimas de violência. 2013. São Paulo. Disponível em: < http://revistasamuel.uol.com.br/conteudo/view/20310/Eua_menores_punidos_com_ prisao_perpetua_sao_negros_pobres_e_vitimas_de_violencia.shtml>. Acesso em: 12 de mai. 2014. Assembleia Geral das Nações Unidas, 20 de novembro de 1989. Convenção sobre os direitos da criança, Aderido pelo Brasil por meio do Decreto nº 99.710, de 21 de novembro de 1990. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/convdir_crianca.pdf> Acesso em 11 de mai. 2014. BECCARIA, Cesare Bonesana. Dos Delitos e Das Penas. Trad. J. Cretella Jr. & Agnes Cretella. 2. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999. BEMFICA, Francisco Vani. 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