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3 Buracos de rato (RKurz)

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1 
KURZ, Robert. Buracos De Rato Para Elefantes. Folha de S. Paulo, 01/12/96, p. 5-11 
(Mais). 
 
Por muito tempo, a esperança social nos países do Terceiro Mundo esteve voltada para o 
paradigma da "libertação nacional". A dependência às economias imperiais dos antigos 
Estados industriais devia ser superada em favor de uma industrialização nacional autônoma. 
O meio para tanto foi sempre uma maior ou menor impermeabilidade ao mercado mundial, 
a fim de concentrar-se na própria economia interna. As importações dos países 
industrialmente avançados deviam ser substituídas na medida do possível pela produção 
própria. Essa estratégia, que como se sabe gozou por um bom tempo de primazia em suas 
incontáveis versões, não pôde desenvolver uma alternativa histórica ao capitalismo 
ocidental, mas seja como for representou em vários Estados a tentativa de conduzir todo o 
país à "modernização" e distribuir a cada qual os frutos do desenvolvimento. 
Em muitos aspectos formais pode-se comparar tal projeto com o mercantilismo, a doutrina 
do absolutismo europeu nos séculos 17 e 18. Mas na teoria desenvolvimentista do Terceiro 
Mundo tratava-se apenas de um "mercantilismo pela metade". A exemplo da política 
econômica dos velhos príncipes absolutistas, a importação de mercadorias devia ser 
limitada e o Estado ser o responsável pelo planejamento da economia nacional ou mesmo 
agir ele próprio como empresário. À diferença do mercantilismo histórico, porém, a 
exportação a todo custo não era o objetivo, mas ao contrário a concentração no próprio 
desenvolvimento interno. 
Essa diferença pode ser também facilmente explicada. A doutrina mercantilista apoiava-se 
na exportação porque não queria, em primeiro lugar, desenvolver o próprio país como tal, 
mas antes arrancar aos demais países o máximo de dinheiro possível, a fim de engrossar os 
fundos de guerra dos príncipes salteadores. O exército e a suntuosidade da corte absolutista 
eram glutões insaciáveis de moeda. Os regimes desenvolvimentistas do Terceiro Mundo 
possuíam igualmente certos traços "absolutistas": eram autoritários, não raro também 
propensos à ruinosa ambição militar e à pompa burocrática irracional. De outro lado, no 
entanto, eles eram vincados por um momento socialmente emancipatório que se sedimentou 
na opção do desenvolvimento interno. Talvez eles fossem menos afeitos à exportação 
porque, como retardatários históricos, não podiam se impor da mesma forma que o 
 2 
absolutismo europeu, que ainda nada tivera a temer com a concorrência superior no 
mercado mundial. 
O modelo político de desenvolvimento do Terceiro Mundo caiu por terra. Já antes de seu 
flagrante colapso ele padeceu uma longa agonia. Pois logo ficou patente que a 
impermeabilidade ao mercado mundial era absolutamente impossível, caso não se quisesse 
deixar de lado o objetivo do próprio desenvolvimento industrial. A substituição das 
importações impôs-se apenas a produtos relativamente simples e pouco numerosos. Muitos 
componentes necessários para uma produção industrial abrangente não podiam ser 
elaborados pelos países do Terceiro Mundo. Se mesmo assim quisessem desenvolver-se 
industrialmente, eles tinham antes de tudo de importar tais componentes do mundo 
ocidental. Pouco a pouco, a economia do desenvolvimento viu-se a contragosto obrigada a 
curvar-se à exportação ou até a um "mercantilismo total", muitas vezes à custa do 
abastecimento interno de bens de consumo e mantimentos básicos. A pobreza, que se 
quisera eliminar, batia de novo à porta dos fundos. 
Como a disparidade entre os custos de importação e as receitas de exportação aumentasse 
cada vez mais, os regimes resolveram-se pela contração de dívidas no mercado financeiro 
mundial. Ora, com isso a perspectiva do desenvolvimento interno viu-se de uma vez por 
todas denegada. De fato, agora se patenteava que já em médio prazo os custos para os 
créditos resultavam mais elevados que as rendas dos investimentos financiados com ajuda 
desses mesmos créditos. 
O saldo foi a crise de endividamento do Terceiro Mundo, que desde então não pára de 
inchar. 
Trocando em miúdos, as rendas com a exportação já não podiam sequer ser utilizadas para 
o desenvolvimento interno da economia, mas quase exclusivamente para cobrir as dívidas 
nos mercados financeiros globais. Isso em nada mudou até hoje. A maioria dos países do 
Terceiro Mundo verte sangue. Os velhos regimes desenvolvimentistas transformaram-se em 
feitores do capital monetário transnacional e desse modo perderam todo momento 
emancipatório. 
Desta necessidade fizeram virtude as instituições internacionais como o Banco Mundial e o 
FMI, sob a égide da abertura neoliberal ao mercado global. Elas prometem uma nova 
perspectiva, diametralmente oposta à antiga teoria do desenvolvimento: agora o 
 3 
desenvolvimento não cabe mais à substituição de importações e à vasta industrialização 
interna, mas antes a uma industrialização voltada às exportações. 
Isso significa que já não se aspira mais a um complexo industrial amplo e escalonado, que 
englobe todos os setores essenciais, desde a indústria de base até a produção de bens de 
consumo, e garanta a coesão da economia interna. Em vez disso, cada país há de procurar 
seu "produto de exportação" específico, de acordo com a teoria do livre-cambismo, e 
concentrar-se naqueles produtos que podem ser manufaturados com custos relativamente 
baixos e para os quais vigoram, portanto, "vantagens comparativas". 
Infelizmente, essa teoria das "vantagens comparativas" de David Ricardo (1772-1823) não 
vingou nem mesmo no passado. Quando muito ela podia funcionar quando se tratasse de 
uma troca entre nações que, em primeiro lugar, promovem o grosso de sua reprodução por 
meio da economia interna e exportam ou importam relativamente poucos produtos e que, 
em segundo lugar, possuem quase o mesmo nível de desenvolvimento. Ambas as condições 
aplicam-se menos do que nunca ao mundo atual. Não há que se falar nem em nível 
comparável de desenvolvimento nem em economias coligadas. 
A globalização do capital já é uma manifestação da crise histórica que alcançou também os 
países da metrópole capitalista. Eis por que, todavia o declínio do desenvolvimento não 
diminuiu. A crise tem, portanto, de atingir com tanto mais virulência os antigos "países em 
desenvolvimento". A rigor, os conceitos "exportação" e "importação" tornaram-se 
absurdos. Somente no plano formal trata-se ainda de uma troca entre economias nacionais 
independentes. 
Por isso, também a expressão "vantagens comparativas" caiu no absurdo. De modo algum 
procede que as nações produzam o grosso para si e importem e exportem somente os 
produtos para os quais vigoram "vantagens comparativas". O novo imediatismo do mercado 
mundial impõe a manufatura sucessiva e excludente dos produtos capazes de encontrar seu 
lugar ao sol a preços relativamente mais baixos e largar mão de tudo mais. Mesmo a 
Ricardo isto seria um descalabro ou uma inconseqüência. 
A totalidade dos países só pode ocupar uns poucos nichos de exportação, ao passo que o 
resto é inundado e sufocado pela oferta globalizada. Os países deixam de ser países e 
tornam-se zonas do mercado mundial com diferentes densidades. E isto equivale a afirmar 
que a possibilidade de existência abre-se somente a quantos sejam capazes de tomar posse 
 4 
dos nichos do mercado mundial. Isso não toca apenas aos trabalhadores, mas também aos 
empresários. 
A bem da verdade, a chamada industrialização seletiva voltada para as exportações não é 
um projeto econômico, mas simplesmente empresarial. Os ideólogos do livre-cambismo, a 
quem já no século 19 coubera a ruína de vários milhões de pessoas, argumentam agora que 
a situaçãonão é necessariamente essa. Como suposta prova, eles invocam os "pequenos 
tigres" do Sudeste asiático. Há muitas razões por que também a opção dos "pequenos 
tigres" não é sustentável a longo prazo. Eles não vivem somente de ciclos globais 
deficitários, mas também ameaçam a todo instante recair em novas crises de endividamento 
graças aos custos com infra-estrutura e investimentos na área de racionalização. Afora isso, 
resta saber se o sucesso relativo e historicamente talvez apenas efêmero dos poucos novatos 
são extensíveis a todos. 
A industrialização seletiva voltada para as exportações significa ocupar nichos no mercado 
mundial. O termo "nicho" já diz todavia que se trata de um espaço bastante restrito e 
apertado. 
Os "tigres" já têm de ser um bocado pequenos, se quiserem como país se encaixar nesse 
espaço. Ou melhor dizendo: eles têm na verdade de ser ratos, pois apenas ratos cabem num 
buraco de rato. Daí a validade do preceito: quanto menor um país e quanto menor sua 
população, mais a estratégia empresarial dos nichos de exportação harmoniza-se com todo 
o Estado. E vice-versa: quanto maior um país e quanto maior seu número de habitantes, 
mais absurda torna-se a opção pelos nichos no mercado mundial. 
Acerca disso dispõe-se de provas absolutas e relativas. As estrelas do mercado global no 
Sudeste asiático, Hong Kong e Cingapura, são minúsculas cidades-estados com menos de 3 
milhões de habitantes. Isso equivale a mais ou menos 1/6 da população de São Paulo. Estes 
ratos têm ao menos um posto temporário num buraco de rato do mercado mundial. Já mais 
delicado é o caso de países como Coréia do Sul, Taiwan ou Tailândia, na Ásia, Argentina e 
Chile, na América Latina, e Polônia, República Tcheca ou Hungria, no Leste europeu. Estes 
países, que têm aproximadamente entre 15 e 50 milhões de habitantes, já possuem mais o 
tamanho de gatos que de ratos. Graças a tanto, eles podem alocar no nicho apenas uma 
parte de seus homens e têm de suportar as feridas da compressão. Indonésia ou Índia, na 
Ásia, Brasil, na América Latina, e Rússia, no Leste europeu, todos países com mais de 120 
 5 
milhões de habitantes, assemelham-se por sua vez a elefantes, aos quais a oferta de um 
lugar no buraco de rato não passa de derrisão ou cinismo. 
Há porém um país no mundo onde a opção pelo nicho de exportação surte por assim dizer 
um efeito aterradoramente monstruoso e obsceno. Este país é a China. A enorme massa que 
excede hoje 1,2 bilhão de habitantes nem mais elefante é, mas sim um mamute ou mesmo 
um dinossauro. O que ocorrerá quando se oferecer a essa montanha humana um confortável 
lugar num buraco de rato? Os ideólogos neoliberais do livre-cambismo são loucos o 
bastante para fazerem tal oferta com toda ingenuidade. E, de fato, o governo chinês tentou 
nos últimos decênios ceder passo à estratégia da industrialização voltada às exportações. 
Nas províncias do Sul foram erigidas "zonas econômicas privilegiadas" como Shenzhen, as 
quais se tornaram atraentes aos investidores estrangeiros em virtude de regalias tributárias, 
salários baixos e isenção de impostos sociais ou ecológicos. Sob condições pré-capitalistas, 
lá se fabricam principalmente componentes para empresas globalizadas do Japão, Hong 
Kong ou países ocidentais. Os trabalhadores são aquartelados e mantidos como 
presidiários, as jornadas de trabalho são extremamente longas e quase não há precauções 
com a segurança. 
Tornou-se rotina o comunicado de graves acidentes e incêndios catastróficos. Em 1995, um 
sem-número de jovens trabalhadoras de uma empresa têxtil foram carbonizadas porque as 
portas da fábrica estavam cerradas. A despeito dessas condições brutais, os setores da 
industrialização voltada às exportações podem abarcar, numa estimativa otimista, o 
máximo de 200 milhões de operários. A longo prazo, é impossível que a China dite o ritmo 
dos mercados mundiais e conduza o grosso de sua reprodução por outros critérios que não 
os do setor das exportações. Isso vale, sobretudo para todo o sistema de crédito e monetário 
assim como para o câmbio. A industrialização voltada para as exportações só é viável caso 
a moeda seja conversível. Uma moeda conversível exige por sua vez que a quantidade de 
moeda permaneça sob controle e os créditos só sejam concedidos pelas regras da 
rentabilidade. 
Isso acarreta graves conseqüências para a economia interna. Grande parte das mais de 2 
milhões de empresas estatais chinesas com 150 milhões de empregados seriam obrigadas a 
fechar. Inúmeras microempresas do setor de serviços, que dependem do poder de compra 
dos empregados na indústria estatal, teriam igualmente de entregar os pontos. A própria 
 6 
lavoura de que vive grande parte dos chineses, considerada improdutiva segundo os 
critérios globais, estaria fadada à ruína. 
A fim de evitar essas conseqüências, a administração chinesa adotou uma contabilidade de 
partidas dobradas. Não somente diversas cotações da moeda, mas também diversas formas 
de lançamento estatal correm lado a lado. 
As elevadas taxas de crescimento que deixaram pasmos todo o mundo constam de 
elementos absolutamente heterogêneos. Elas contêm não apenas o crescimento real dos 
setores de exportação, mas também o crescimento puramente fictício de grande parte da 
economia interna, que depende das injeções estatais da Casa da Moeda. Ao cotejar a 
estatística chinesa das exportações com as correspondentes estatísticas dos parceiros 
comerciais, ressalta, além disso, que uma parte dos números consiste de meras "exportações 
ilusórias" que jamais existiram e só servem para ludibriar a própria burocracia. 
Enquanto no Ocidente a China é bajulada como o sustentáculo do grande boom do século 
21, a situação real há muito tornou-se crítica. Segundo depoimentos da agência oficial 
"Xinhua", em 1995 a cifra de desempregados atingiu 230 milhões, mais de 25% da 
população ativa. Por volta de 150 milhões de pessoas vagam pelo país em busca de salário. 
A inflação faz com que até mesmo os mantimentos básicos tornem-se exorbitantes para 
muitos. Mais cedo ou mais tarde a contabilidade de partilha dobrada irá por água abaixo. 
Explicará então o governo chinês a 1 bilhão de habitantes que eles são "supérfluos" na 
economia de mercado? Em muitos lugarejos, camponeses insurrectos respondem à bala aos 
policiais e ao Exército. As províncias costeiras há muito já não transferem ao governo 
central os impostos recolhidos. Peritos do Instituto Londrino para Estudos Internacionais 
temem a eclosão iminente de uma guerra civil na China. A terra do sonho do grande boom 
poderia tornar-se um modelo catastrófico da industrialização voltada às exportações.

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