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1 O arquivo e a gestão da informação por Renato Tarciso Barbosa de Sousa Professor Adjunto do Curso de Arquivologia da Universidade de Brasília, especialista em Organização de Arquivos pela Universidade de São Paulo, mestre em Biblioteconomia e Documentação pela Universidade de Brasília, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo. Introdução A banalização das novas tecnologias e a escassez crônica dos recursos financeiros impõem às organizações um repensar constante de sua cultura, tradições, práticas e procedimentos. Quem dispõe com mais rapidez das melhores informações, pouco importando a sua proveniência, o seu suporte ou tipo, apresenta as melhores condições de ter uma maior e melhor competitividade, como dizem os canadenses. Falar da importância estratégica dos recursos informacionais nas organizações contemporâneas é, atualmente, um lugar comum em um ambiente com uma infinidade de velhas e novas tecnologias da informação, que são diariamente oferecidas pelo mercado. O que não é comum, é o entendimento de que uma parte significativa desses recursos informacionais é acumulada pelos próprios órgãos públicos e empresas privadas. É um capital informacional pouco compreendido e pouco explorado e que poderia dar uma enorme contribuição para a busca da eficiência e da qualidade na prestação de serviços e, no caso dos órgãos públicos, para a transparência das ações do Estado. Não estamos falando de nada novo, mas de algo que surge junto com os próprios órgãos públicos e as próprias empresas privadas, de algo que é inerente às ações desenvolvidas e é um dos produtos gerados pelas atividades de cada unidade administrativa. Estamos falando dos Arquivos (isso mesmo, com “A” maiúsculo). Arquivos que registram as ações, os direitos, os deveres, a trajetória e que são, sobretudo, fontes inigualáveis de tomadas de decisão seguras e eficientes. O senso comum transformou os arquivos em coleções de papéis velhos, em “arquivo morto” e os relegou aos subsolos, às garagens e aos banheiros desativados. Documentos que garantem direitos e deveres dos funcionários e da 2 organização, que registram a memória institucional e que poderiam tornar as decisões mais seguras são misturados aos que não possuem valor que justifique a sua guarda. São, infelizmente, comuns os exemplos de prejuízos decorrentes da falta de tratamento dos documentos de arquivo. As organizações que reconhecem a importância estratégica dos recursos informacionais sabem que os arquivos não são mortos, mas “vivos”, mais do que isso, são conjuntos de informações que podem representar um diferencial em períodos de escassez de recursos financeiros, materiais e humanos. As experiências têm demonstrado que a microfilmagem, a digitalização e o gerenciamento eletrônico de documentos não resolvem o problema, apenas o transferem para uma nova mídia. Essas velhas e novas tecnologias da informação só surtem efeito quando precedidas por uma gestão de documentos, traduzida por um conjunto de procedimentos, de instrumentos técnicos que cuidam do documento (informação) desde o momento da produção ou recebimento até a sua destinação final, que pode ser a eliminação, no caso daqueles documentos sem valor (jurídico, fiscal e técnico), ou a guarda permanente. Falar em gestão de documentos significa ter um sistema de registro e controle do trâmite documental, ter um instrumento que organize a informação de modo a torná-la acessível, ter uma ferramenta de gerenciamento dos prazos de guarda e uma série de normas e procedimentos que determinem como a organização deve tratar esses recursos informacionais. Acreditamos que essa tecnologia (a gestão de documentos) é, sobretudo, um instrumento gerencial e um instrumento de preservação da memória institucional. Os fatores que levarão a atingir o sucesso na sua implementação estão diretamente vinculados ao estabelecimento de uma política institucional de tratamento da informação em que todos os elementos da organização participem como agentes desse processo. 3 O arquivo e o documento de arquivo O objetivo deste capítulo é delimitar o objeto da Arquivística. Busca-se, sobretudo, entendê-lo em toda amplitude, peculiaridade, funcionamento, extensão, pois acreditamos que o que-fazer arquivístico deve refletir, com a maior exatidão possível, a natureza do próprio objeto. E, nesse aspecto, os conceitos de arquivo e de documento arquivístico devem ser chamados para ocupar um espaço privilegiado nessa discussão. Não se procura aqui fazer uma história dos arquivos ou dos documentos arquivísticos, os manuais escritos em várias línguas já cumpriram essa tarefa, mas de buscar a natureza desses elementos para, em um primeiro momento, identificar os traços que os caracterizam e, em seguida, distingui-los dos outros objetos. É consenso entre os autores que só podemos falar em arquivo quando o homem passou a produzir registros escritos de seus atos, sentimentos e conhecimentos. A memória individual e coletiva passava a ser materializada. Luciana Duranti cita Sócrates, quando ele conta como a divindade que inventou a escrita foi repreendida por Tamuz (rei do Egito), para demonstrar o significado dessa nova invenção humana: Se os homens aprenderem isto, estará implantado o esquecimento em suas almas: eles deixarão de exercitar a memória porque confiarão no que está escrito e chamarão as coisas à lembrança não mais de dentro de si, mas por meio de marcas externas; o que descobriste é um remédio não para a memória, mas para a lembrança. (PLATÃO apud DURANTI, 1994, p. 50). E é no Oriente Médio, mais precisamente na Mesopotâmia, que a escrita desempenhou um papel fundamental. Nesse momento, os registros escritos estavam a serviço das classes dominantes. Característica que percorrerá grande parte da história das sociedades. Acredita-se que parcela significativa desses documentos se referia a tratados, contratos, atos notariais, testamentos, promissórias, recibos e sentenças de tribunais. E a guarda deles em locais de acesso restrito testemunha, de alguma forma, a importância alcançada por esses registros. (SILVA et. al., 1999, p. 45- 4 46). Os arquivos nascem como uma necessidade da vida pública e privada, de fazer duradoura as ações religiosas, públicas e econômicas e, ao mesmo tempo, constituem- se na sua memória. (HEREDIA HERRERA, 1991, p. 105). Alguns traços desses registros escritos já se fizeram perceber desde esse primeiro momento. Silva et. al. esclarecem que: (...) os primeiros arquivos reúnem já ingredientes que vieram a tornar-se clássicos e hoje são ainda defendidos pela disciplina (Arquivística). A mais importante das revelações tem a ver com o respeito pelos aspectos orgânicos da estrutura arquivística, como se comprovou em Ebla (Síria). Mas havia também grandes cuidados com a identidade e a autenticidade dos próprios documentos. As placas sumérias evidenciam também, desde cedo, uma estrutura diplomática coerente e eficaz, a qual, em grande medida, servirá de modelo às chancelarias européias da época medieval e moderna. A correspondência e os contratos administrativos incluem, conforme os casos, a identificação das partes, o nome das testemunhas ou do escriba, a menção da data e, até, a estampagem de selos de validação. A tipologia documental era muito variada, estando já então definidas as principais categorias que integram os arquivos de época mais recente: cartas régias, tratados internacionais, atas, missivas, contratos, assentos contábeis, censos etc. Nem mesmo estão ausentes os documentos cartográficos, como, por exemplo, a placa legendada emcaracteres cuneiformes, do século XIII a.C., com a representação da cidade de Ninive ou o papiro egípcio com a planta topográfica das minas de ouro de Gebel. (SILVA et. al., 1999, p. 46- 47). O significado da palavra arquivo, entretanto, só foi aparecer muito tempo depois entre os gregos nos séculos III ou II a.C. Archeion era utilizado por aquele povo para designar o palácio do governo, enquanto a palavra arch significava comando, poder, autoridade. Mas é com o sentido de conjunto de documentos que o termo grego foi transmitido, posteriormente, aos romanos sob a forma latina de archivum. 5 Gagnon-Arguin (ROUSSEAU, COUTURE, 1998, p. 32-33) percebeu, nas origens, dois papéis fundamentais exercidos pelo arquivo. Primeiro, como necessidade para o exercício do poder. E é Lodolini quem melhor resume essa característica. Para ele: (...) a mais antiga transcrição da memória foi constituída por documentos correntes cujo modo de gestão que por vezes se perpetuou durante muito tempo, atingiu uma perfeição requintada nas civilizações do Oriente Próximo, da Grécia e de Roma. Os documentos eram produzidos e conservados para as necessidades do governo e da administração; a gestão do poder e a gestão de documentos estavam estreitamente ligadas por toda a parte. (LODOLINI apud ROUSSEAU, COUTURE, 1998, p. 32). O papel de prova foi, também, um traço que pode ser percebido desde os primeiros momentos da história dos arquivos e durante toda sua trajetória. Os gregos identificavam a autenticidade dos documentos a partir do local onde eles eram guardados (archeion), tradição observada na Roma Antiga, onde os juristas destacavam o local como relevante para conferir a fé pública aos documentos. Na Idade Média, os diplomas e as cartas eram utilizados para a defesa dos direitos e privilégios da nobreza. E, até hoje, os documentos de arquivo servem para a garantia de direitos e deveres das pessoas e das instituições, mas agora intimamente próximo ao conceito de cidadania. Naquele período e, ainda, na Idade Moderna, a denominação arquivo correspondia somente ao que havia sido constituído em um determinado lugar por um soberano ou por quem havia recebido tal investidura. Lodolini (1993, p. 67) esclarece que o lugar da custódia e a presença de um “responsável”, revestido de fé pública, eram condições para existência do arquivo. Os arquivos estavam, nesses primeiros momentos, relacionados diretamente ao caráter pragmático e administrativo de defesa e manutenção de direitos e privilégios. E o aparecimento do papel, além de facilitar o aumento da produção documental, favoreceu o fortalecimento daquela característica. Tomando de empréstimo uma expressão cunhada pelo francês Charles Langlois, essa fase dos arquivos pode ser conhecida como a de “arsenal de um regime”. O acesso aos depósitos de arquivos na Antiguidade era estritamente limitado 6 aos funcionários oficiais, que tinham a guarda, ou as pessoas possuidoras de uma permissão específica emanada pela autoridade suprema. Acessar, então, os documentos dos arquivos era um privilégio, não um direito. É por isso que o cargo de “arquivista”, nos tempos antigos, sempre foi considerado como um cargo de alto nível, próximo da autoridade maior. O uso dos arquivos foi protegido contra toda indiscrição e contra toda curiosidade hostil. Nem nos reinos e impérios do Oriente e do Extremo-Oriente, nem em Roma, nem na Europa da Idade Média o acesso aos arquivos foi aberto senão aos privilegiados ou aos possuidores dos arquivos. Os monges que redigiam os anais dos monastérios, os cronistas que os reis e os príncipes encarregavam de escrever o relato de seus reinos podiam certamente recorrer aos documentos de arquivos, mas se tratava apenas de casos excepcionais, e nunca de um direito. A partir do século XVI, os arquivos evoluíram sob a influência de três fatores. A especialização dos diferentes órgãos governamentais e administrativos em decorrência da consolidação do poder monárquico nos diferentes países, foi um dos fatores. O advento da investigação histórica e o desenvolvimento, sobretudo no século XVIII, das pesquisas eruditas, foi outro fator. E, por último, o aparecimento de novas tecnologias de comunicação, de transmissão e de documentação. Jean Favier (1985, p. 17) entende que o primeiro fator teve um resultado rápido quanto à constituição dos arquivos, mas os outros não terminaram, ainda, de transformar a noção de arquivos e os métodos da Arquivística. Outro papel dos arquivos começoui a se delinear: o de fonte para a investigação. E nesse aspecto, a História assumiu um papel privilegiado na consulta e acesso a essas fontes documentais. Mas outras áreas do conhecimento humano também foram e são usuárias das informações contidas nos arquivos para suas pesquisas e investigações. O avanço dos estudos históricos a partir do século XV detonou um combate que se estenderia por vários séculos. Os historiadores mostravam-se, cada vez mais, interessados em pesquisar os documentos originais. Esse interesse esbarrava na resistência maior dos possuidores dos arquivos em liberar ao público os documentos que, por muito tempo, fundaram as tradições, os direitos e os privilégios, reais ou usurpados. 7 Mas foi precisamente no século XVIII que se produziu a grande mutação intelectual que possibilitou, no século seguinte, a abertura progressiva dos arquivos à pesquisa. Tratava-se do nascimento ou renascimento da noção de democracia. Essas inovações intelectuais, que culminaram com a Revolução Francesa, criaram, também, os Arquivos Nacionais da França, acabando por estabelecer um modelo institucional vigente até nossos dias. O reconhecimento da importância dos documentos para a sociedade foi uma conquista da Revolução Francesa, que gerou importantes realizações no campo arquivístico: criação de uma administração nacional e independente dos arquivos; proclamação do princípio de acesso do público aos arquivos; reconhecimento da responsabilidade do Estado pela conservação dos documentos de valor, do passado. (DUCHEIN, 1983). Essa brusca passagem do princípio do segredo ao princípio da liberdade total foi efêmera. Em 1856, na França mesmo o regulamento dos arquivos nacionais determinou que o diretor, considerando a conveniência administrativa, era quem autorizaria ou recusaria o acesso aos documentos. Era, de fato, o retorno à arbitrariedade. Durante o século XIX, explica Duchein (1983), assistiu-se uma abertura progressiva dos depósitos de arquivos públicos. Países como a Inglaterra, Bélgica, a França, a Itália, dentre outros, admitiram o princípio de livre comunicabilidade dos documentos sob algumas condições e limites. Mas isso não indicou que os arquivos fossem acessíveis a todos os pesquisadores. Numerosas categorias de arquivos ficaram fechadas, seja porque eles eram considerados como propriedade privada e assim fugiam dos regulamentos dos arquivos públicos (que era o caso notadamente, em muitos países, dos arquivos eclesiásticos), seja porque os julgavam mais confidenciais, por razões políticas ou jurídicas, para serem liberados à curiosidade pública (era o caso dos arquivos das casas reinantes, os arquivos judiciários, os arquivos diplomáticos, os arquivos militares). Mas a partir da Segunda Guerra Mundial vários elementos contribuiram para a abertura cada vez maior dos arquivos ao público. Duchein (1983) cita, por exemplo: 8 1. a transformação dos estudos históricos, que passaram a versar cada vez mais sobre os assuntos que interessam as épocas recentes; 2. o desenvolvimento dos métodos quantitativos em história demográfica e históriaeconômica, que necessitam consultar grandes massas de documentos para extrair os dados quantitativos solicitados; 3. o interesse pelos aspectos econômicos e sociais do desenvolvimento histórico da sociedade, exigindo pesquisa nos arquivos de empresas, sindicatos, associações; 4. a emergência progressiva, sobretudo a partir dos anos 60, da noção de direito à informação. O acesso aos documentos é considerado não mais do ponto de vista da pesquisa histórica ou científica, mas como um direito democrático de todo cidadão. Atualmente, o conceito de arquivo, difundido nos manuais arquivísticos elaborados em todo mundo e nos textos legais de vários países, aparece vinculado à noção de cidadania, ao direito à informação, ao apoio à administração, à cultura, ao desenvolvimento científico e, ainda, como elemento de prova. É o caso brasileiro, por exemplo, em sua “Lei dos Arquivos”, a Lei nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991. O significado da palavra arquivo nunca foi completamente pacífico, como diz Duchein (1993, p. 21) em referência a uma expressão típica dos italianos. Os vários sentidos do termo estão relacionados às práticas administrativas próprias a cada instituição e a cada país e ao contexto de sua elaboração. O Manual de Arranjo e Descrição dos arquivistas holandeses, de 1898, foi, sem dúvida, o primeiro trabalho a sistematizar o conceito de arquivo. Entendido como o “conjunto de documentos escritos, desenhos e material impresso, recebidos ou produzidos oficialmente por determinado órgão administrativo ou por um de seus funcionários, na medida em que tais documentos se destinavam a permanecer na custódia desse órgão ou funcionário”. (ASSOCIAÇÃO DOS ARQUIVISTAS HOLANDESES, 1973, p. 13). Interessante nessa concepção dos holandeses foi a meticulosa construção de cada parte da definição de arquivo. O conjunto é entendido como o “todo”, mesmo que esse “todo” se restrinja a existência de um único documento. Quando eles falam de “documentos escritos, desenhos e matéria impressa” há embutido nisso a ideia de 9 distinção com outros objetos, que pela natureza, pertencem aos museus e às coleções de antiguidades. O termo “oficialmente” refere-se à constituição do arquivo pelo conjunto (todo) de documentos produzidos ou recebidos pelos órgãos administrativos ou pelos funcionários a título oficial, isto é, os documentos particulares não pertencem aos arquivos. O arquivista inglês Hilary Jenkinson definiu, em seu manual, arquivo como os “(...) documentos produzidos ou usados no curso de um ato administrativo ou executivo (público ou privado) de que são parte constituinte e, subsequentemente, preservados sob a custódia da pessoa ou pessoas responsáveis por aquele ato e por seus legítimos sucessores para sua própria informação”. (JENKINSON apud SCHELLENBERG, 1973, p. 14-15). O arquivista italiano Eugenio Casanova, em seu manual Archivistica, entendia o arquivo como “a acumulação ordenada de documentos criados por uma instituição ou pessoa no curso de sua atividade e preservados para a consecução de seus objetivos políticos, legais e culturais, pela referida instituição ou pessoa”. (CASANOVA apud SCHELLENBERG, p. 15). Enquanto o alemão Adolf Brenneke definiu como “o conjunto de papéis e documentos que promanam de atividades legais ou de negócios de uma pessoa física ou jurídica e se destinam à conservação permanente em determinado lugar como fonte e testemunho do passado”. (BRENNEKE apud SCHELLENBERG, 1973, p. 15). Schellenberg, de alguma forma, sintetizou as formulações dos arquivistas holandeses, de Jenkinson, de Casanova e de Brenneke para construir a sua. Ele percebeu naquelas concepções dois fatores que as percorrem: fatores concretos e abstratos. Os concretos estão relacionados à forma dos arquivos, à fonte de origem e ao lugar de sua conservação. Esses fatores não são essenciais, no entendimento do arquivista americano, à caracterização do material de arquivo, pois os arquivos “podem ter várias formas, podem vir de várias fontes e podem ser guardados em vários lugares”. Os fatores abstratos são os elementos essenciais. Ele enumera três: a razão pela qual os documentos foram produzidos e recebidos, isto é, para serem considerados de arquivo, os documentos devem ter sido criados na consecução de algum objetivo (cumprimento de sua finalidade oficial, como diziam os holandeses); o valor pelo qual os documentos são conservados, ou seja, para que os documentos 10 sejam arquivados devem ser preservados por razões outras que não apenas aquelas para as quais foram criados (função administrativa); a custódia, que aparece como uma influência direta de Jenkinson, pois para o arquivista inglês os documentos são arquivos se o “fato da custódia ininterrupta puder ser estabelecido”. Schellenberg ponderou que, mesmo os documentos não atendendo a esse último elemento, eles podem ser considerados de arquivo se as outras duas exigências forem atendidas, isto é, esse terceiro elemento é difícil de ser aplicado nas administrações modernas. (SCHELLENBERG, 1973, p. 15-17). A partir desses três elementos e da influência dos autores citados anteriormente, Schellenberg elaborou sua própria concepção de arquivo: “são os documentos de qualquer instituição pública ou privada que hajam sido considerados de valor, merecendo preservação permanente para fins de referência e de pesquisa e que hajam sido depositados ou selecionados para depósito, num arquivo de custódia permanente”. (SCHELLENBERG, 1973, p. 19). A legislação americana, fortemente influenciada por esse último sentido do termo arquivo, fez uma distinção muito clara entre archives (documentos que perderam sua utilidade corrente) e records (documentos em uso nas administrações). E foi esse modelo que influenciou a definição contida no Dicionário de Terminologia Arquivística (1988), do Conselho Internacional de Arquivos: “documentos que não são mais necessários ao trabalho corrente e que são conservados, com ou sem avaliação prévia, em razão de seu valor de prova ou de informação, pelo organismo que os criou ou por uma instituição de arquivo apropriada”. A tradição espanhola, aqui representada por Antonia Heredia Herrera, entendeu o arquivo como “(...) um ou mais conjuntos de documentos, seja qual for sua data, sua forma e suporte material, acumulados em um processo natural por uma pessoa ou instituição pública ou privada no transcurso de sua gestão, conservados, respeitando aquela ordem, para servir como testemunho e informação para a pessoa ou instituição que os produziu, para os cidadãos ou para servir de fonte de história”. Heredia Herrera explica que a definição de conjunto de documentos acumulados e de processo natural é o que diferencia da noção de coleção e do resultado de um ato voluntário e caprichoso de alguém. Para que exista arquivo é necessário uma instituição com uma função e com atividades a desenvolver. Nessa definição, estão 11 contempladas, ainda, a unicidade entre os arquivos administrativos (correntes) e histórico (permanente) e a amplitude dos suportes, incluindo as novas tecnologias. (HEREDIA HERRERA, 1991, p. 89-90). A arquivística francesa, em uma versão oficial, definiu como “o conjunto de documentos, qualquer que seja sua data, sua forma e seu suporte material, produzido ou recebido por toda pessoa... e por todo serviço ou organismo... no exercício de sua atividade”. Complementou a definição francesa, instituída por uma lei de 1979, que a qualidade de arquivo é conferida ao documento desde sua origem, nenhuma condição de antiguidade lhe é requerida, e que a forma física e o suporte do documento não intervêm na noção de arquivo.Essa idéia de entender os arquivos como todos os documentos produzidos ou recebidos por uma pessoa física ou jurídica no exercício de suas atividades, sem distinção entre os documentos correntes e os permanentes foi largamente ignorada na prática. As administrações francesas não são conscientes da questão que os documentos produzidos ou recebidos são os arquivos desde sua criação. Para o conjunto do público e dos funcionários, um documento somente torna-se parte de um arquivo quando é recolhido ao arquivo (permanente). Os canadenses, em uma definição mais extensa e que pareceu agregar as contribuições das várias correntes de pensamento, entenderam os arquivos como: (...) o conjunto das informações, qualquer que seja a sua data, natureza, ou suporte, organicamente (e automaticamente) reunidas por uma pessoa física ou jurídica, pública ou privada, para as próprias necessidades da sua existência e o exercício das suas funções, conservadas inicialmente pelo valor primário, ou seja, administrativo, legal, financeiro ou probatório, conservadas depois pelo valor secundário, isto é, de testemunho ou, mais simplesmente, de informação geral. (ROUSSEAU, COUTURE, 1998, p. 284). No Brasil, destacamos duas definições. A primeira é a da “Lei dos Arquivos”, de 1991, que entende como “os conjuntos de documentos produzidos e recebidos por órgãos públicos, instituições de caráter público e entidades privadas, em decorrência do exercício de atividades específicas, bem como por pessoa física, qualquer que seja o suporte da informação ou a natureza dos documentos”. A segunda é a de Camargo e Bellotto (1996), dada no Dicionário de Terminologia Arquivística, que 12 aparece no sentido de um “conjunto de documentos que, independentemente da natureza ou do suporte, são reunidos por acumulação ao longo das atividades de pessoas físicas ou jurídicas, públicas ou privadas”. Lodolini (1993, p. 67-80) defendeu que as divergências sobre o conceito de arquivo podem ser vistas a partir de dois pontos fundamentais: o momento do nascimento do arquivo e a amplitude do conceito de arquivo. Ele resumiu o debate sobre a natureza e os limites do termo arquivo a partir das seguintes considerações: o arquivo compreende todos os documentos, desde o momento que são criados nos escritórios produtores, isto é, os documentos correntes formam parte do arquivo; o arquivo compreende somente os documentos que perderam interesse dos escritórios que os produziram, adquirindo “maturidade” arquivística e tendo sido selecionados para a conservação permanente: os documentos correntes não podem, portanto, de nenhuma maneira formar parte do arquivo; arquivo é somente o produzido por uma autoridade pública, não podem, portanto, existir arquivos privados; arquivo é o produzido por uma autoridade pública como por uma privada; por arquivos privados entendem-se somente os produzidos por pessoas jurídicas privadas, não os por pessoas físicas ou famílias; o arquivo está constituído também por material não documental, quer dizer, pelos manuscritos das obras literárias ou científicas. Lodolini se posiciona claramente a favor da restrição do conceito de arquivo aos documentos que não têm mais interesse para a administração que os produziu. Nesse sentido, ele se afastou de Jenkinson e se aproximou de Schellenberg. Luis Carlos Lopes propõe, segundo ele, um novo conceito de arquivo como resultado da adaptação da teoria clássica aos novos tempos. Ele chamou a atenção para o fato de que o arquivo não é apenas papéis com textos, nem é somente público, mas também privado, não consiste de documentos do passado, mas também de informações do e sobre o presente. Para o autor brasileiro (2000, p. 33), arquivo é: 13 1 – Acervos compostos por informações orgânicas originais, contidas em documentos registrados em suporte convencional ou em suportes que permitam a gravação eletrônica, mensurável pela sua ordem binária (bits); 2 – Produzidos ou recebidos por pessoa física ou jurídica, decorrentes do desenvolvimento de suas atividades, sejam elas de caráter administrativo, técnico, artístico ou científico, independentemente de suas idades e valores intrínsecos. O desenvolvimento do conceito de arquivo, que foi tributário do princípio de respeito aos fundos, tem uma característica marcante: ele é resultado de um acúmulo sucessível de conhecimentos (produzidos a partir de um clima epistemológico próprio da época), onde alguns elementos foram sendo agregados durante a sua trajetória. Nós temos uma matriz comum, que foram as definições dos arquivistas holandeses, de Jenkinson, de Casanova e de Brenneke, interpretadas por Schellenberg e reinterpretadas nas definições mais recentes com a inclusão de elementos que surgiram com os novos contextos das administrações, com a explosão documental e com o aparecimento das novas tecnologias da informação. Bruno Delmas ([s.n.], p. 71) chegou a afirmar, empiricamente, que a massa documental acumulada nos anos de 1950 até 1987 corresponde a todo volume produzido nos períodos anteriores. Não podemos dizer que houve uma mudança de paradigmas, mas sim que o modelo “tradicional” passou por uma releitura com base em novos parâmetros. Isso é bem claro na afirmação, por exemplo, de Luis Carlos Lopes. Os primeiros exercícios de uma tentativa de mudança do modelo foi a concepção elaborada pelos portugueses, fundamentado na reformulação do objeto da Arquivística. Silva et. al. (1999, p. 214) propuseram o arquivo total, isto é, uma ampliação da natureza do arquivo. O significado disso é que, em primeiro lugar, o arquivo não é uma mera soma de fundo (conjunto orgânico de documentos) mais serviço (instituição ou serviço responsável). Em segundo lugar, ele é uma unidade integral e aberta ao contexto dinâmico e histórico que o substancializa. E, por último, se o arquivo é a representação de um sistema semi-fechado (orgânico-funcional) de informação, o objeto da Arquivística é a dimensão sistêmica de arquivo. Para os autores portugueses o arquivo é, então, “um sistema (semi-)fechado de informação 14 social materializada em qualquer tipo de suporte, configurado por dois fatores essenciais – a natureza orgânica (estrutura) e a natureza funcional (serviço/uso) – a que se associa um terceiro – a memória – imbricado nos anteriores”. Não se tem informação sobre o impacto dessa concepção na prática e na teoria arquivística. Por certo a influência desses estudos ainda está restrita a Portugal. De qualquer forma, entendemos que foi uma contribuição importante para o debate e para o aprofundamento da teoria arquivística. Independente da tradição e das escolas de pensamento, o arquivo é entendido sempre como um conjunto de documentos. E documento é, de acordo com o Conselho Internacional de Arquivos, um “conjunto constituído por um suporte e pela informação que ele contém”. Essa definição genérica não delimita, com certeza, o objeto da Arquivística, além de poder ser aplicado aos objetos de outras disciplinas do conhecimento humano (Biblioteconomia, Documentação, Museologia). O arquivo durante muitos anos foi visto como fonte para a administração, para a história, para o direito, para a cultura e para a informação. A razão pela qual ele serviu a tão variadas finalidades é entendida por Luciana Duranti a partir do fato de que os materiais arquivísticos, ou melhor, os registros documentais representam um tipo de conhecimento único: produzidos ou recebidos durante as atividades pessoais ou institucionais. Os documentos são os instrumentos e subprodutos e as provas fundamentais para conclusões e inferências sobre aquelas atividades.E a capacidade que eles têm de registrar e preservar as ações e os atos dos seus criadores é dada pela relação visceral que existe entre os documentos e a atividade da qual eles resultam. (DURANTI, 1994, p. 50-51). Duranti (1994, p. 51-53), privilegiando o caráter contextual do documento arquivístico, aponta as características desse tipo de material. São elas: 1 – a imparcialidade: os documentos são inerentemente verdadeiros. A autora utiliza, nesse momento, a concepção do arquivista inglês Hilary Jenkinson para reforçar seus argumentos. As razões de sua produção (para desenvolver atividades) e as circunstâncias de sua criação (rotinas processuais) asseguram o caráter de prova e de fidedignidade aos fatos e ações; 2 – a autenticidade: “os documentos são autênticos porque são criados tendo- se em mente a necessidade de agir através deles, são mantidos como garantias para futuras ações ou para informação. (...) Assim, os documentos são autênticos porque são criados, mantidos e conservados sob custódia de acordo 15 com procedimentos regulares que podem ser comprovados”. Duranti ressalta que mesmo aqueles documentos produzidos à margem desses procedimentos estabelecidos e regulamentados podem ser considerados autênticos, tendo apenas o caráter fidedigno de prova documental comprometido; 3 – a naturalidade: os documentos de arquivo não são coletados artificialmente, mas surgem de acordo com o curso dos atos e ações de uma administração. “O fato de os documentos não serem concebidos fora dos requisitos da atividade prática, isto é, de se acumularem de maneira contínua e progressiva, como sedimentos de estratificações geológicas, os dota de um elemento de coesão espontânea, ainda que estruturada”; 4 – o inter-relacionamento: “cada documento está intimamente relacionado ‘com outros tanto dentro quanto fora do grupo no qual está preservado e (...) seu significado depende dessas relações’.” O documento, tomado na sua individualidade, não é um testemunho completo dos atos e ações que o gerou, mas é na relação que ele estabelece com outros documentos e com a atividade da qual é resultado, que lhe é dado significado e capacidade comprobatória. Nessa mesma linha de destacar o contexto, Esteban Navarro (1995, p. 69), que se diz tributário da teorização de documento de arquivo elaborada por Schellenberg, afirma que os traços que o individualizam não são nem o suporte e nem o conteúdo informativo, mas sua origem, o modo pelo qual é produzido e sua função, de onde resultam suas três características mais singulares: sua involuntariedade, sua organicidade e sua unicidade. O documento de arquivo não é resultado de um ato voluntário ou criativo, seja artístico ou investigador, mas o produto da atividade natural de uma instituição, criado para seu auxílio e destinado a deixar testemunho de sua gestão. Trata-se de um objeto único e não repetível, daí a unicidade. E a organicidade, porque ele surge mediante um processo normalizado em que cada ação da instituição produtora origina um conjunto de documentos ligados entre si. Assim, diferentemente de outros documentos, que respondem a uma unidade de concepção (cada documento existe de per si e se entende plenamente sem necessidade de ter em conta o resto), o de arquivo não pode ser entendido de modo isolado, mas em relação com outros documentos no marco dos agrupamentos documentais. Martín-Pozuelo Campillos, a partir das características de unicidade, integridade e autenticidade defendidas por Vicenta Cortés, propõe cinco traços diferenciadores do documento de arquivo: 1 – o contexto em que é criado. “Todo documento de arquivo é produto de um acúmulo de circunstâncias muito específicas que encadeadas umas as outras o 16 conferem um traço diferenciador do resto dos documentos. (...) Dessa maneira, o valor informativo incluído em seu conteúdo informacional ficaria desvirtuado se fosse separado dos motivos de sua gênese”. Essa característica é, para a autora, suficiente para distingui-los de outros objetos. E é dela que decorrem os outros elementos; 2 – sua unicidade. “(...) para estabelecer um paralelo, pode-se dizer que os documentos vêm para povoar os arquivos como o homem veio para povoar a terra: do mesmo modo que não existem duas pessoas iguais, nenhum documento é igual ao outro”. Essa característica é derivada não da proximidade com a gênese do documento, mas de sua gênese mesma; 3 – sua autenticidade. “Em sua origem os documentos de arquivo não são senão ferramentas de trabalho da administração, fato que sem dúvida os confere a categoria de autênticos, convertendo-os, depois, em testemunhos fiéis de momentos e situações específicas”; 4 – a heterogeneidade de seu conteúdo e a multiplicidade da informação nele contida. Independente da matéria ou assunto que trate, cuja riqueza informativa-cultural é de alguma maneira incalculável, um documento de arquivo contém uma informação sempre indefinível e desde logo alheia ao objeto de sua criação. A autora se refere a um tipo de informação considerada não literal e cuja leitura é feita nas entrelinhas. O documento singular oferece uma informação acerca do trâmite e das possíveis incidências do mesmo; 5 – a necessidade de que cada uma das características esteja sempre presente. A ausência de uma das características invalida o resto. A heterogeneidade de seu conteúdo e a multiplicidade da informação também é abordada e destacada por Miguel Angel Esteban Navarro. Para ele, o documento de arquivo é um tipo concreto capaz de conter toda classe de informação em qualquer tipo de suporte material e mediante as mais variadas formas de representação. (ESTEBAN NAVARRO, 1995, p. 69). Percebe-se, no exercício de caracterização e diferenciação dos documentos arquivísticos, dois movimentos cumulativos e não excludentes: o contexto de produção e a compreensão da informação veiculada. No primeiro movimento, o documento é considerado como resultado de uma ação administrativa. Dessa forma, ele é, ao mesmo tempo, resultado e prova, testemunho dessa atividade. Lopez resume, de forma muito clara, a contextualização. Para ele: O contexto de produção liga-se às condições institucionais sob as quais o documento foi produzido, para tanto, é preciso indicar: quem o criou, onde e quando isso se deu, por que foi produzido (quais foram as etapas e trâmites necessários). A compreensão deste contexto é fundamental para que se possa perceber os 17 motivos responsáveis pelo arquivamento; isto é, o que o documento pretende provar. (LOPEZ, 2000, p. 82). E é o contexto de produção que permitirá a compreensão da informação contida no documento de arquivo. Paola Carucci percebe isso com muita propriedade. Para a autora italiana é evidente que: (...) o documento interessa por seu conteúdo, pelas informações que transmite. Todavia, as notícias que ali são representadas ou descritas requerem, de quem as adequa às capacidades técnicas, que sejam traduzidas em cânones de representação, os quais, por sua vez, podem constituir objeto de análise, sendo, esses testemunhos diretos da atividade de documentar. (CARUCCI apud LOPES, 2000, p. 83). A informação contida no documento de arquivo é resultado da atividade que o produziu. Dessa forma, em um primeiro momento essa informação, por mais abrangente que seja, é vinculada e marcada por essa atividade. Mas, para Lopez (2000, p. 84), isso não representa uma limitação. As várias possibilidades de leituras, interpretações e inferências informativas são válidas. Entretanto, essa heterogeneidade e multiplicidade, como diz Martín-Pozuelo Campillos, não podem fazer parte do método arquivístico, isto é, não são fundamentos para organização dos documentosde arquivo e não devem impactar na construção dos planos de classificação, por exemplo. Esse já foi o método utilizado, mas abandonado, parcialmente, em detrimento da aplicação do princípio de respeito aos fundos. Bellotto (2002, p. 11) defende a análise ou crítica diplomática das espécies documentais e o estudo das diferentes tipologias para se ter um entendimento sobre a estrutura e natureza dos documentos arquivísticos. Explica a autora: As análises diplomática e tipológica são aplicações práticas dos estudos teóricos e metodológicos da Diplomática e da Tipologia Documental (...) que se concentram, respectivamente, no estudo formal do documento diplomático, quando considerado individualmente, e no estudo de suas relações com o contexto orgânico de sua produção e de atuação 18 dos enunciados do seu conteúdo, quando considerados dentro dos conjuntos lógicos denominados séries arquivísticas. O tipo documental, segundo Bellotto, é a configuração que assume a espécie documental de acordo com a atividade que ela representa. A fórmula é: um substantivo (espécie) e uma locução adjetiva (função). Por exemplo: relatório de atividades; plano de ação; projeto de pesquisa etc. Essa abordagem tem enriquecido, sobretudo, as práticas de classificação, avaliação e descrição dos arquivos, pois vincula a espécie (“configuração que assume um documento de acordo com a disposição e a natureza das informações nele contidas”) à atividade geradora, isto é, à competência, função e atividades do sujeito criador. Jardim e Fonseca (1998, p. 370-371) consideram que as transformações ocorridas desde a metade do século XX, causadas pela diversificação dos suportes materiais e pelo surgimento dos princípios da gestão de documentos, não provocaram um redirecionamento do objeto de estudo, mas uma sobrevida de um marco referencial influenciado fortemente por um ponto de vista historiográfico capitaneado pela arquivística francesa. Timidamente alguns trabalhos têm aparecido na literatura da área defendendo a informação arquivística como objeto de trabalho e pesquisa. Percebe- se, inclusive, um movimento no sentido de incluir a Arquivística no âmbito das ciências da informação. Carol Couture, no Canadá, Armando Malheiro da Silva, em Portugal, Luis Carlos Lopes, no Brasil, têm feito essa defesa. Rousseau e Couture (1998) defendem que “em uma época onde o progresso tecnológico nos projetou na era da informação, o arquivista, como todos os que trabalham com a informação, deve atravessar a parede do formato – o documento – para ir na direção do conteúdo, a informação”. A Arquivística funda a sua razão de ser na simples existência de informação social materializada em suportes físicos e implicada numa dinâmica, também ela eminentemente social, de comunicação. As informações arquivísticas são, também, extensões do pensamento e da ação humana e social, contendo, também, 19 uma margem variável de imprecisão e de representação subjetiva. (SILVA et al., 1999, p. 37). A imprecisão do objeto obriga, segundo Silva et al. (1999, p. 36), as disciplinas do conhecimento humano, que investigam as propriedades e o comportamento da informação, a convocar um intercâmbio metodológico com outras ciências sociais, especialmente com a Sociologia e a História, além de agregar contribuições procedentes da Informática, das disciplinas ligadas à Comunicação Social e às Ciências Sociais. Luis Carlos Lopes (2000, p. 70-72) que, no campo da Documentação, considera a informação arquivística como primacial, chega a esboçar uma teoria da informação para uso geral e, especificamente, no interesse do conhecimento arquivístico. Ele enumera pressupostos da informação de caráter arquivístico, destacamos alguns: 1 – os atos humanos produzem informações de modo arbitrário, de acordo com as relações que estabelecem entre si e com a natureza; 2 – “a informação é uma categoria abstrata que se materializa quando é registrada, e representa uma sucessão de atos ou fragmentos que possam ser definidos como fatos”; 3 – “quanto mais único e isolado for o registro da informação, mais ele será parcial, fragmentário e de difícil cognoscibilidade”. E em sentido contrário, “quanto mais plural e correlacionado for o registro da informação, mas será integral e possível de ser interpretado”; 4 – há várias possibilidades de leitura de um objeto, isto é, poderão ser atribuídos a ele conteúdos informacionais distintos. Essa multiplicidade vai depender de fatores históricos e sociais; 5 – “considera-se documento todo e qualquer suporte material, a que possa ser atribuído, de modo arbitrário, científico ou não, a existência de um conteúdo informacional”. O redirecionamento proposto no objeto de estudo abre as portas para um universo novo de possibilidades, de inter-relações, de diálogos que, sem dúvida, proporcionarão uma consistência teórico-metodológica para a Arquivística. Para Jardim e Fonseca (1998, p. 372) essa abordagem “inaugura um importante espaço de reflexão em torno das questões mais específicas do fenômeno informacional e preconiza uma maior relação entre a arquivística e a ciência – ou ciências – da informação.” 20 Esse enfoque, entretanto, é recente na literatura da área e merece, ainda, um aprofundamento teórico, como diz José Maria Jardim. A informação como objeto de estudo Em um primeiro momento, ou melhor, com um olhar pouco rigoroso podemos afirmar que o objeto de estudo, o objeto de pesquisa da Arquivística é o Arquivo. Mas quando começamos a desconstruir esse objeto, desnudá-lo percebemos que o arquivo nada mais é do que um conjunto articulado, orgânico de documentos com características próprias, que o fazem diferente daqueles outros conjuntos documentais que habitam o ambiente organizacional. Ora, mas esse documento, como qualquer outro, carrega dentro de si uma informação, ou melhor, um conteúdo informacional. Se tomarmos a definição do francês Le Coadic (1996, p. 5) de que “a informação é um conhecimento inscrito (gravado) sob a forma escrita, oral ou audiovisual”, não conseguimos ainda diferenciar esse tipo específico de estoque informacional, que é o arquivo e os objetos que o compõem, isto é, os documentos de arquivo e a informação que eles carregam, ou seja, a informação orgânica arquivística, como dizem os canadenses. Sabemos, então, que essa informação materializada gera o documento. E que isso é um pressuposto importante, talvez fundamental para a existência do documento de arquivo e da informação arquivística. E que documento é toda informação registrada em um suporte material utilizado para consulta, estudo e pesquisa. Entendendo suporte como o material sobre o qual as informações são registradas. E aí vale a pena ressaltar que os suportes da informação conheceram desde o final do século XIX, com o aparecimento da fotografia, uma expansão incrível e passaram a povoar, cada vez mais, o ambiente organizacional. 21 Figura 1 – Definição de documento Podemos ver o documento, como propõe Martín-Calero (s.d., p. 13), a partir de um elemento externo, que é o suporte, de um elemento interno que é a informação, que se apresenta em forma de um texto, de um gráfico, de imagens ou de sons e que o conteúdo dessa informação sempre está ligado a uma ação ou argumentação. Está aqui, também, mais um pressuposto da informação que nós buscamos caracterizar. 22 Figura 2 – A constituição do documento Fonte: MARTÍN-CALERO, s.d. Bom, mas até agora o caminho percorrido não nos permite revelar a natureza específica da informaçãoarquivística. Essa natureza só pode ser percebida quando relacionamos essa informação à existência de um sujeito específico: a organização com seu papel na sociedade ou a pessoa com suas atividades. Peguemos, como exemplo, a instituição Controladoria Geral da União (CGU). A finalidade maior, a missão ou o objetivo principal dessa entidade é a de “Defesa do patrimônio público, controle interno e auditoria pública”. Para buscar esses objetivos, para atingir essa missão, para cumprir com essa finalidade maior, a CGU produz e recebe informações, que servem para falar em nome da instituição, para provar, para testemunhar, para informar e para registrar. Como produto disso, como prova disso surge a informação materializada em um documento. 23 Figura 3 – A gênese documental Fonte: www.cgu.gov.br Numa imersão no ambiente organizacional, verificamos a existência de uma função conhecida como Gestão dos Recursos Humanos, desempenhada por uma Coordenação-Geral de Recursos Humanos, que tem entre suas atividades o pagamento dos funcionários. E como produto dessa atividade surge ou é produzida a folha de pagamento, um tipo documental. 24 Figura 4 – Natureza do documento/informação de arquivo Abaixo, apresento um exemplo da Universidade de Brasília. Figura 5 – A gênese documental. O exemplo da Universidade de Brasília Entretanto, nem todas as informações registradas que habitam o ambiente organizacional podem ser consideradas orgânicas, isto é, resultado de uma atividade específica vinculada direta ou indiretamente à missão. A organização ou a 25 entidade lança mão de uma série de outras informações que vão auxiliar, que vão subsidiar as atividades. Trata-se de material de referência e que não podem e nem devem ser confundidos com aquelas informações nascidas naquele outro contexto. Aqui estão alguns exemplos. Figura 6 – Documentos não arquivísticos O nascimento da informação, dentro daquele esquema, a partir daquela gênese não é um fim em si mesmo. Ele é, na verdade, o início de um novo ciclo. Os documentos e informações administrativos permitem tomadas de decisão que geram novas ações, essas ações são registradas e vão fazer parte do estoque informacional que permitirá novas decisões e novas ações. 26 Figura 7 – O caráter dinâmico do arquivo Fonte: SMIT, Johanna Wilhelmina. Como organizar o arquivo enquanto sistema de informação. São Paulo : Arquivo do Estado/ARQSP, 2005, p. 39. Depreende-se daí que a qualidade e a segurança das tomadas de decisão e das ações que as precedem estão diretamente vinculadas à qualidade desse estoque informacional. E por qualidade do estoque informacional entende-se uma informação organizada, inteligível e colocada em canais que facilitem o seu uso. Podemos afirmar que o arquivo é um dos recursos informacionais da organização. É um recurso privilegiado (registra, prova, testemunha e fala sobre as funções e atividades desenvolvidas pela instituição). É um recurso estratégico, pois é uma fonte de informação para a tomada de decisão, para a garantia de direitos e deveres e para a produção de novas informações. É um recurso que não representa um custo a mais para a organização, pois ele nasce naturalmente durante o desenvolvimento das atividades e, portanto, tem seus custos amortizados no âmbito dos procedimentos administrativos. O potencial informativo do arquivo pode ser visto ou identificado a partir de dois elementos: - a informação contida no documento; 27 - a informação contextual, que é a informação obtida do conjunto de documentos/informações que registra uma atividade ou tarefa. Usando como exemplo o processo licitatório, verificamos que ele é formado por um grupo de documentos, mas o entendimento completo do mesmo só se dá pela junção de todos. Figura 8 – O potencial informativo do arquivo. Um exemplo ArquivoArquivo Potencial InformativoPotencial Informativo ((ExemploExemplo)) Processo Processo LicitatLicitatóóriorio edital da licitaedital da licitaçção;ão; proposta dos fornecedores;proposta dos fornecedores; mapa das propostas;mapa das propostas; ata de julgamento das propostas;ata de julgamento das propostas; recursos;recursos; etc...etc... É ingenuidade pensar que a informação arquivística é o único recurso informacional capaz de dar eficiência, segurança e qualidade na tomada de decisão na organização, mas é simplório pensar também que sem ela, ou seja, sem a informação arquivística é possível ter eficiência, segurança e qualidade na tomada de decisão na organização. Mas queria chamar a atenção para o fato de que a informação arquivística é matricial para todos os recursos informacionais existentes na organização. O conhecimento tácito ao ser registrado transforma-se em uma informação arquivística; 28 Os livros e periódicos de uma biblioteca são, na sua origem, informação arquivística para seus autores e para a editora que os publicou; As bases de dados não institucionais são informações arquivísticas para a organização que as produziu. Figura 9 – Os recursos informacionais nas organizações Os Recursos InformacionaisOs Recursos Informacionais Biblioteca Bases de Dados Arquivo Conhecimento Tácito O que se defende aqui, então, é que o gerenciamento da informação seja o fruto da articulação entre os vários recursos informacionais existentes na organização e fruto, também, do respeito pelas particularidades e especificidades de cada um deles. E que as tecnologias da informação, usando uma imagem criada por Davenport, é a tubulação por onde corre a informação. Mas não adianta nada ter uma tubulação de excelente padrão se a água que passa por dentro dela é de péssima qualidade. 29 Figura 10 – Gerenciamento da informação Gerenciamento da Informação ambiente organizacional Biblioteca Conhecimento Tácito Bases de dados não institucionais Arquivo Museu Centro de Documentação Tecnologias da Informação Áreas do conhecimento humano Defende-se aqui, também, que os recursos informacionais sejam tratados com o mesmo nível de importância dispensado aos recursos financeiros, aos recursos materiais e recursos humanos de uma organização. 30 Figura 11 – Os sistemas administrativos Sistemas Administrativos Gestão de Documentos Gestão dos Recursos Humanos Gestão dos Recursos Financeiros Gestão dos Recursos Materiais Agora, como tratar as informações produzidas e/ou recebidas e que são a base para a tomada de decisões e para a garantia de direitos e deveres? Figura 12 – A massa documental por período cronológico Massa Documental por Período Cronológico 1950-1987 50% 1500-1800 10% 1800-1950 35% 500-1500 5% 31 Verificando este gráfico. Podemos afirmar que a maior parte da massa de informações existente nas organizações foi constituída nos últimos cinquenta anos. A explosão da informação é um fenômeno relativamente recente. O que não é recente é o fato das organizações continuarem a tratar os produtos e subprodutos de suas atividades, isto é, as informações arquivísticas com o mesmo instrumental que os romanos tratavam seus documentos. Percebemos, portanto, como é necessário lançar mão de um ferramental mais sofisticado, que não quer dizer de forma nenhuma mais complicado, para resolver o problema. A Arquivística tem procurado a partir de seus estudos e pesquisas fazer a ponte entre o necessitadorda informação e esse estoque informacional privilegiado e estratégico que é o arquivo. Evoluímos muito, mas as organizações precisam ter consciência que não existe uma fórmula mágica, ou melhor, um software mágico que resolva todos os problemas. O desastre das soluções de microfilmagem na década de 1970 está presente ainda na memória e tem repercutido em algumas experiências de digitalização. Figura 13 – O espaço informacional Espaço Informacional Estoque Informacional Arquivo Estoque Informacional Arquivo Necessitador da informação Solução As organizações que reconhecem a importância estratégica dos recursos informacionais sabem que os arquivos não são mortos, mas “vivos”, mais do que isso, 32 são conjuntos de informações que podem representar um diferencial em períodos de escassez de recursos financeiros, materiais e humanos. Referências ASSOCIAÇÃO DOS ARQUIVISTAS HOLANDESES. Manual de arranjo e descrição de arquivos. Rio de Janeiro : Arquivo Nacional, 1973. BELLOTO, Heloísa Liberalli. Arquivos permanentes: tratamento documental. São Paulo : T.A. Queiroz, 1991. 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