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[Resumo] O corpo diante da medicina - Anne Marie Moulin

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O corpo diante da Medicina
Anne Marie Moulin
O século XIX havia reconhecido o direito à doença, já o século XX deu um novo direito do homem, o direito à saúde, que de fato foi compreendido, sobretudo, como o direito à assistência médica.
A medicina ocidental tornou-se não apenas o principal recurso em caso de doença, mas um guia de vida concorrente das direções de consciência. A sua justificação reside no progresso de seus conhecimentos sobre o funcionamento do organismo e a vitória sobre as enfermidades.
A história do corpo no século XX talvez chegue um dia a fazer de cada um o médico de si mesmo, tomando a iniciativa e as decisões com conhecimento de causa.
O corpo no século XX: nem doente nem são
O nosso século XX se gaba de muitas vitórias sobre as doenças. Antigamente, a doença se desenrolava em tempo real, e o corpo era nesse caso o teatro de um drama repleto de majestade. 
Os hospitais urbanos interromperam as representações de potenciais focos de infecção. O número de leitos hospitalares tende a diminuir. O hospital que antigamente se refugiava do mundo atrás dos muros, hoje se abre à cidade e se organiza em torno de uma rua comercial onde se acotovelam profissionais de saúde e pacientes.
Paralelamente, a preocupação com a saúde é superior à preocupação com a doença. Se a palavra chave do século XVIII era a felicidade, e a do século XIX a liberdade, pode-se dizer que a do século XX é a saúde. 
A medicalização, iniciada em meados do século XIX e apoiada pelos poderes públicos, fez dos médicos os intermediários obrigatórios da gestão dos corpos presos em uma rede de obrigações em concordância com os grandes acontecimentos da socialização: entrada na escola, serviço militar, viagens e escolha de uma profissão.
O desenvolvimento da medicina preventiva provocou um curto- circuito na experiência da doença. Agora a medicina procura não apenas enunciar um prognóstico para os próximos dias, mas dizer o futuro. 
Portanto, o triunfo do século XX sobre a doença, celebrado à disputa, é uma vitória.
A contabilidade dos corpos
A vitória em questão se deve ao recuo das epidemias do passado. O historiados William O’Neill, autor de uma famosa obra sobre a peste, em 1983 começava assim o seu estudo: “Um dos elementos que nos separam dos nossos ancestrais, e torna a experiência contemporânea profundamente diferente daquela de outras épocas, é o desaparecimento das epidemias que afetavam gravemente a vida humana.”
O’Neill exprimia assim a convicção generalizada de que, ao menos nos países industrializados, a epidemia se havia tornado impensável.
A partir de 1895, a mortalidade epidêmica havia começado a declinar regularmente nos países da Europa. Muitas vezes esse declínio numérico é atribuído ao que se denomina, nos países de língua francesa, à revolução pasteuriana.
O século XX terá sido o do grande salto demográfico, tanto na Europa como no conjunto do mundo. Esse salto pode ser sentido através de três grandes indicadores que concordam: a mortalidade global, a esperança de vida na hora do nascimento e a taxa de mortalidade infantil.
A mortalidade global não desistiu de declinar desde o começo do século. A curva assumiu progressivamente o mesmo contorno em toda a Europa, que hoje conhece uma taxa inferior a 10%, com exceção dos países do Leste.
Da mesma maneira, a esperança de vida europeia passou de 46 para 70 anos, para os homens, e de 49 para 77, para as mulheres. Esta mudança se deve à diminuição da mortalidade infantil e do fardo das doenças infecciosas.
O declínio da mortalidade infantil atingiu, sobretudo, as crianças com mais de um ano de idade. Deve-se esse declínio à eliminação das doenças infecciosas eruptivas, das diarreias e das afecções respiratórias.
Estamos passando, hoje, de um regime demográfico onde a probabilidade de morrer era quase igual para todas as classes de idade a um regime onde ela se concentra na etapa final da vida: 80% dos casos a morte atinge agora as pessoas depois dos setenta anos. Vive-se hoje a morte de uma criança ou de um adolescente, na maioria dos casos em consequência de um acidente, como um escândalo, como um fato inaceitável que só pode despertar a revolta dos parentes.
A mortalidade por morte violenta (excluindo as guerras) está, em compensação, aumentando e sofrendo uma mudança qualitativa. No começo do século, ela se repartia principalmente entre afogamentos e acidentes de trabalho. Está mais tarde ligada aos acidentes de trânsito e ao frenesi da velocidade.
A volta das doenças infecciosas?
Na década de 1970, diversas pessoas bem intencionadas tinham anunciado o final de um ciclo histórico, não somente o fim das epidemias, mas o das doenças infecciosas, nos países industrializados pelo menos. 
Mas não tardou que os primeiros fracassos sofridos a propósito do paludismo, lançaram uma sombra sobre o quadro. As esperanças depositadas na utilização de inseticidas em larga escala, mudaram bruscamente de direção diante da resistência dos mosquitos a esses produtos e com a percepção de seus perigos. Ao mesmo tempo aumentou a resistência dos parasitas aos tratamentos habituais.
A chegada da Aids (Sida) e a “emergência” de novos tipos de vírus puseram em duvida a nossa certeza da vitoria, ou quase, sobre as doenças infecciosas. 
É na África que teria aparecido o vírus Ebola, responsável por uma febre hemorrágica, que levava à morte em pouco tempo, provocando pequenas hecatombes. A difusão do vírus na Europa não parece muito provável, dada a sua fragilidade no meio ambiente. Mas os cenários de catástrofes que seu aparecimento acarretou, contribuíram para a sensação de fragilidade do ser humano do século XX em confronto com o luxuriante mundo dos vírus. Laboratórios para manter os vírus isolados, cercados de precauções draconianas de segurança, foram construídos na Europa a fim de protegê-la dos germes sem fronteiras.
Um “espectro” veio contribuir para o desencantamento. Doença urbana, favorecida pela moradia insalubre e pela falta de higiene, a tuberculose parecia ter cedido a um conjunto de medidas que associavam BCG e diagnostico por raios-X e teste de tuberculose.
Condenada antigamente como doença social, hoje imagem sincrética do risco que envolve os grupos desfavorecidos, a tuberculose traz de novo à vida um medo social ainda mais irracional, visto que o tuberculoso não se deixa adivinhar nos transportes coletivos ou nos lugares públicos.
Quanto à BCG, é ainda a mais controvertida das vacinas. Se conseguiu fazer desaparecer a meningite tuberculosa infantil, não conseguiu vencer a tuberculose dos adultos.
Duas historias do século XX, portanto, se opõem: a de um progresso que se exprime em números demográficos, com o alongamento da expectativa de vida e a eliminação das doenças infecciosas, e uma segunda história, onde o ser humano, com um aumento dos cânceres e a volta das doenças infecciosas, se debate no seio de um mundo em equilíbrio instável.
A Aids (Siga, em Francês)
A Aids ocupa um lugar à parte na história do corpo do século XX, embora só tenha marcado as suas duas últimas décadas. Projetou uma sombra sobre a liberdade sexual, abalou os usos e costumes dos homens e mostrou claramente a grandeza e os limites da ciência.
A Aids ocupa um lugar à parte na história do corpo. Provocando a morte de vários jovens, as barreiras tradicionais vieram ao chão, as associações pressionaram os médicos para que dissessem tudo,puseram as questões e exigiram respostas.
No final da década de 1970, o Centro de Controle das Doenças de Atlanta, nos EUA, foram alertados pela subida rápida do consumo de um tratamento diferente destinado a bebês prematuros que tinham dificuldade para se defender contra os micróbios ou a pessoas submetidas a quimioterapias agressivas. Para esses “imunodeficientes” sem razão conhecida, imaginaram a hipótese de uma imunodeficiência “essencial”, responsável pelos sintomas: febre, emagrecimento, diarreia. A afecção é denominada como Síndrome de Imunodeficiência Adquirida (Sida, em francês e Aids em inglêse português), palavra que se difundiu por todo o mundo com a doença.
Por toda parte a Aids provoca o terror da epidemia junto com a angústia de um mal que é transmitido por contato sexual. Ela também acarretou uma mobilização inédita com os congressos reunindo nas grandes capitais com milhares de pessoas. 
No decorrer dos últimos anos, os novos tratamentos antivirais transformaram a Aids em uma doença crônica grave, mas cuja ocorrência está recuando. Com o auxílio dos novos tratamentos antirretrovirais, o corpo é capaz, se não ficar curado, ao menos recupera a iniciativa e mantém ativamente a carga viral em um nível não detectável no laboratório.
V - VIII
Depois da Segunda Guerra Mundial, a epidemiologia passou a se interessar mais pelas doenças crônicas do que pelas infecciosas. Essas doenças, já conhecidas em séculos anteriores, se popularizaram muito com o saber medico, e o paciente passou a ter mais intimidade com a anomalia, adequando assim a sua vida a ela. Um exemplo e a hemofilia, que antes do século XX os portadores sequer chegavam à idade adulta, e agora sabem ate detectar o espessamento do sangue em suas articulações antes do clinico.
O corpo se torna um processo de descoberta e teste dos limites. Nos jogos olímpicos dos portadores de deficiência física, deficientes visuais superam homens comuns, tentando aproximar-se sempre do normal.
Outra demonstração da reivindicação da autonomia é a hospitalização em domicilio, que começou na década de 60 e fez com que cidadãos comuns manipulassem aparelhos complexos e sangue. Apoiados por, inclusive, as autoridades desejosas de diminuir os custos com enfermidade.
No século XX houve uma grande união entre o homem e a máquina - aparelhos utilizados para compensar falência de algumas funções do corpo a longos ou curto prazo começaram a ser disseminados em larga escada. Nesse contexto os principio da reanimação foram enunciados, o termo causando ambiguidade, por questionar-se se a vida e mantida ao corpo ou se se chama a alma de volta. Alguns comparam a um leito de crucificação, pela frieza como o corpo é tratado, outros veem com gratidão os esforços feitos para evitar a morte. 
Os "órgãos artificiais" foram sendo desenvolvidos, melhorando seu desempenho e hoje, a sociedade funciona como laboratório de experimentação.
Essa experimentação, que ainda causa desconforto em muitos, foi impulsionada pelos médicos no inicio do século XX, e começaram com os mais dependentes, que eram as minorias, os pobres, os colonizados como objeto de estudo por questionarem menos sobre o produto depois de receberem uma quantia de dinheiro. Para os abastados, porém, chegavam a demonstrar em si mesmos as doenças e tratamentos.
Havia, porém, uma resistência da população acerca desses experimentos médicos, atestada por revelações de ex-estudante de medicina e temas como o de cientista maluco, que fez sucesso na literatura. Havia resistência também nos juristas que defendiam o Código Civil como válido no exercício de todas as profissões, incluindo medicina.
Na segunda metade do século XX, os médicos puderam contar com uma ciência baseada em evidencias, e não no empirismo, sendo essas experiências muito desenvolvidas a partir dos seres humanos, num extenso processo de observação do corpo. As experiências do duplo cego deram inicio enquanto a relação do medico com os paciente foi posta em segundo plano. Na sociedade atual, há uma vigilância rigorosa de experimentos clínicos, que visam dividir as responsabilidades de medico e paciente (consentimento esclarecido) igualmente, em que a apresentação do erro cabe ao paciente, e que toda informação foi dada cabe ao medico.
A dor não seguiu um tratamento linear ao longo da historia. As milenares medicinas árabe e chinesa usavam ervas e opiláceos para curar a dor, mas cirurgias exigiam resistência sobre-humana dos pacientes. Por muito tempo houve dualidade entre a anestesia completa e parcial. Junto com a assepsia foi um avanço para os médicos. No pós-guerra, a anestesia local e parcial foi sendo usadas com diferentes objetivos, algumas ate hoje presentes em alguns procedimentos. Com os anestésicos vieram os neurolepticos, que permitiam manter a consciência dissociada da dor. Essas substâncias foram usadas conforme o cirurgião achasse urgente, independente da recusa do paciente. Um aspecto explorado da anestesia foi o sono sem sonhos.
O uso dos anestésicos se banalizou no século XX. A familiaridade com a anestesia indica a recusa na dor operatória, esquecendo-se dos riscos que, ainda que pequenos, existem, e existe uma razão para dor. 
A pratica obstétrica começou a mudar em meados do século XX, usando o método que dissociava  a dor e maternidade, e ate hoje utilizado, aparecendo como um "parto moderno". 
No século XXI, se demorou a explorar a dor quando ela resume em si mesma, como a enxaqueca, e nos últimos vinte anos tem sido estudada com mais atento nas faculdades. Diversos centros especializados em dor tratam dela de acordo com suas posições teóricas. Ao reconhecer a legitimidade do uso de analgésicos, o Papa Pio XII findou a atitude dolorista do cristianismo e abriu caminho para a contribuição entre os profissionais. A dor da agonia, que acomete os doentes terminais, e a aceitação do fim de tratamento pelo médio e a reapropriação do corpo pelo  indivíduo, tentando apenas buscas suas potencialidades e não mais cura.
	IX. A singularidade do corpo reconhecida pela ciência
Cada ser humano conhece um destino singular e não é igual a nenhum outro. O corpo toma parte nessa aventura. Não é apenas o "princípio de individuação", como escrevia o sociólogo Émile Durkheim, parafraseando Aristóteles. Ele é um meio de expressão, de ação e pathos (paixão, excesso), de sedução e repulsa, vetor fundamental de nosso ser-no-mundo. Em 1935, testemunha da crise do pensamento europeu, Edmund Husserl pregava uma racionalidade que compreendesse a unidade do corpo e do pensamento e a explorasse em suas operações concretas.
Uma das características, a cor da pele, havia retido a atenção a ponto de se chegar a admitir, contra toda lógica, a existência de raças humanas, no entanto inegavelmente interfecundas. Eça é de fato apenas umas das manifestações contingentes da inesgotável variedade dos corpos. A biologia do século XX, durante muito tempo orientada pela zoologia para a consideração da espécie (e das raças), deu um substrato material àquilo que o médico sempre havia sabido, desde Hipócrates até Avicena, da singularidade do seu paciente.
Em 1900, o médico austríaco Karl Landsteiner realizou um experimento onde misturavam em tubos os glóbulos vermelhos de alguns indivíduos e o soro (o sangue sem os glóbulos) de outros. A partir do fenômeno de aglutinação, ele observou que a diferença entre os glóbulos vermelhos permitia dividir os seres humanos em diversos "grupos" sanguíneos, que nada têm a ver com a cor da pele ou origem. A descoberta que a transfusão de uma pessoa para outra só era possível dentro do mesmo grupo sanguíneo ocorreu logo em seguida.
As impressões digitais já eram conhecidas desde o fim do século XIX. No corpo humano, no sangue, nos tecidos, nas membranas, encontram-se infinitas moléculas que se diferem como as digitais. Não existe dois seres humanos perfeitamente idênticos, com exceção dos gêmeos univitelínicos. 
Até o século XX, o Código Civil ignorava o corpo e não conhecia senão a pessoa abstrata. A partir desse momento, a individualidade da pessoa estaria ligada à integridade de um corpo que o direito procura definir, regulamentar e proteger: proclamando extrapatrimonial e inalienável mesmo por seu possuidor. O corpo passou a ser reconhecido como sujeito de direitos e deveres, em relação com as técnicas que lhe permite dar novos usos. Inclui nesses usos a possibilidade de realçar ou até evoluir a aparência dele por meio de cirurgias plásticas, em busca de uma adequação maior da imagem corporal à verdade da pessoa.
X. O espaço social do corpo
O Renascimento fez emergir os indivíduos, quebrandoas solidariedades comunitárias e corporativas, usando da razão crítica para combater as tradições. A compreensão acrescentou a essa emergência as reivindicações de igualdade. O século XX dotou o indivíduo autônomo como a base de um corpo singular. A garantia dessa evolução foi o aumento da solidão.
Nos trinta anos após a II Guerra Mundial, o crescimento econômico fez com que o Estado se encarregasse da tarefa de substituir as solidariedades comunitárias antigas: o copor de um indivíduo é uma moeda de câmbio cobrada ao Estado que deve fornecer-lhe meios para melhorar sua qualidade de vida e prolongá-la. Entre esses meios, há inovações médicas que interferem nas relações entre os corpos no espaço social, colocando novamente em jogo a definição de "si-mesmo com um outro", de Paul Ricoeur. Como exemplo disso pode citar a transfusão sanguínea, que foi celebrada por inúmeros países como um meio privilegiado de recordar a solidariedade dos corpos e das pessoas.
Os transplantes são outro episódio relevante na história do corpo no século XX. No começo do século, diversos cirurgiões tentaram os enxertos surrealistas de um rim instalado no nível do pescoço ou da coxa, com uma uretra implantada junto a pele. Os enxertos se configuraram, portanto, como mecanicamente possíveis, mas seu funcionamento era de curta duração. Segundo o cirurgião Aléxis Carrel, o sistema imunológico se encarrega de destruir com seus anticorpos e suas células o órgão estranho introduzido pela arte médica.
Os primeiros enxertos de rim coroados de êxito duradouro ocorreram entre gêmeos idênticos. Para evitar que houvesse rejeição para outros pacientes havia dois métodos: retardar a rejeição com rádio ou quimioterapia e emparelhar doador e receptor, quanto possível, com base na analogia entre os seus grupos de tecidos.
Na França, em 1955, os doadores de sangue, voluntários, foram convidados pelo biologista Jean Dausset a oferecer seu corpo pra pesquisa, a fim de descobrir em que certos indivíduos são biologicamente mais próximos que outros. As variações do prazo de rejeição do enxerto tinham feito suspeitar da lei do tudo ou nada: daí a ideia de selecionar os doadores para aproximar a identidade não encontrável. Dausset fez entrar na história o "doador anônimo" que levou consigo a Estocolmo, convidado de honra ao Prêmio Nobel.
Portanto, era possível emparelhar doador e receptor como acontecera com a transfusão. Os primeiros rins enxertados pertenciam a parentes do enfermo, visto que já se sabia que era possível sobreviver apenas com um rim. Mas, havia inúmeras dificuldades ao se utilizar doadores vivos, tornando suas aplicações limitadas. A partir do "coma induzido" um reservatório de órgãos potenciais apareceu. Esse termo, cunhado em 1958 por neurologistas franceses, designa a manutenção da vida artificial do corpo em vida, privado de consciência e de regulação espontânea, e sem esperança de recuperação. Esses corpos, mortos para as relações sociais, mas biologicamente mantidos em vida, parecem exploráveis para o transplante.
Depois da II Guerra Mundial, a morte era definida como a perda da capacidade de respirar espontaneamente de forma satisfatória e de garantir a circulação do sangue, bem como o desaparecimento da consciência. Em 1968, a faculdade de medicina de Harvard, nos Estados Unidos, se refere ai critério da morte cerebral, confirmada por eletroencefalograma plano, autorizando a retirada de membros do corpo com o coração ainda batendo, o chamado cadáver quente. A França adotou tal definição no mesmo ano, mediante uma circular e, três dias depois, o cirurgião Christian Cabrol realizou o primeiro enxerto de coração em um dominicano, o Padre Boulogne.
A definição científica dos critérios do óbito não satisfaz tampouco o público, que teme ver a morte decretada por ordem médica. Apesar dos anteparos colocados pela lei, insinua-se a obsessão de abandonar o corpo às manipulações dos médicos. Ademais, o avanço da técnica dos transplantes, saudado inicialmente como uma façanha, acabou por revelar a persistência do apego ao respeito pelo cadáver e da crença na sobrevivência.
Para permitir a retirada de órgãos do cadáver, hoje coexistem dois sistemas na Europa, conforme seja o consentimento implícito ou explícito. 
No decorrer da década de 1980, a procura de órgãos aumentou devido as indicações, estendidas a doenças incuráveis alcançando sempre mais pessoas. A idade não era mais uma limitação. Passou-se do rim ao fígado, ao pulmão, ao pâncreas, ao intestino ou até "blocos", como coração-pulmão. Os progressos técnicos fizeram do transplante um incansável devorador de órgãos, sendo o cérebro o único órgão considerado totalmente não intransplantável.
A escassez de órgãos resulta de fato, tanto numa diminuição do número de acidentes de trânsito como do aumento das recusas e, sobretudo, do aumento das necessidades. A alegria de uma família ao receber a notícia de um "doador" significa um luto para outra família.
O transplante, baseado sobre a compatibilidade biológica dos grupos de tecidos do doador e do receptor revelou seu ponto fraco, a compatibilidade cultural. Ilustra igualmente um traço da medicina contemporânea, para a qual tudo aquilo que é possível sobre o corpo deve logo ser executado, sem medir as consequências. A experiência do enxerto colocou em evidência, além do desejo do indivíduo de prolongar a própria existência o máximo possível, a dificuldade de atender a esse desejo em meio a sociedade.
Quando os avanços da reanimação permitiram o transplante com retirada de órgãos de cadáveres, em muitos países declinou a prática de mutilar doadores vivos. Todavia, o enxerto de rim custa no total menos que a diálise e reabilita mais completamente o doente, que pode voltar ao trabalho: o econômico se une ao científico para pleitear em favor do doador vivo.
As leis haviam mais ou menos restringido a prática do doador vivo ao caso do parentesco próximo para afastar a possibilidade de um comércio de órgãos disfarçado.
O enxerto de um órgão de cadáver não é uma experiência tranquila. Houve um enxertado que não foi capaz de viver e chegou até suicidar-se. A doação de um órgão vivo talvez seja ainda mais perturbadora, em vista da carga afetiva maior.
Nos anos 2000, os transplantes levaram seus concidadãos a entreverem a possibilidade de uma segunda ou mesmo de uma terceira vida de reposição. Ainda não é a imortalidade, mas parece aberto o caminho.
Na falta de transplante, é o enxerto de células-tronco que acena ao povo atônito com a esperança de reparar de acordo com a sua vontade as deficiências do corpo. Essas células da juventude, retiradas do embrião ou do cordão umbilical, seriam capazes, quando injetadas, de reconstruir os tecidos.
O século XX se encerra, assim, embalado ao sonho da imortalidade, sem ter, no entanto, particularmente progredido na compreensão, prevenção e gestão do inelutável envelhecimento.
XI. Ver através do corpo - A história da produção de imagens
A anatomia ocupou um lugar considerável no conhecimento do corpo. A anatomia parecia não somente uma etapa preliminar para toda aprendizagem médica, mas até o modelo do saber: anatomatizar significa descrever.
A anatomia superficial perdeu sua importância com o passar do tempo devido a criação de aparelhos precisos para ferir pressão e auscutar, por exemplo.
As novas técnicas de exploração foram progressivamente derrubando para segundo plano a aprendizagem clínica do corpo do outro, um olhar articulando com os dados dos cinco sentidos, baseado sobre uma proximidade física, face a face, ao alcance da mão e da respiração. Logo, o know how do clínico, com sua competência sensorial específica, poderia ser inscrito no museu das tradições como tantos outros saberes artesanais.
A produção de imagens do corpo, no século XX, tem como primeira característica ser uma produção de imagens do ser vivo a oferecer a todos o meio para olhar sem violência para o interior do corpo.
XII. O corpo em sombras chinesas
No começo do século XX, a radiografia ofereceo primeiro exemplo de produção de imagens do corpo com base em métodos físico-químicos tributários das ciências fundamentais.
A primeira radiografia foi a dos ossos da mão de Bertha Roentgen, identificável graças a um anel. A cirurgia não demorou a se apossar do novo método para descobrir corpos estranhos, projéteis, objetos engolidos ou inalados por crianças, muitas vezes metálicos e, por conseguinte, opacos aos raios-x. Os sinais de fratura se mostraram também facilmente visíveis, porque o osso é mais fácil de visualizar do que os órgãos internos.
Com a invenção do cinema, a junção de uma tela fluorescente ao aparelho de raios-x permitiu a observação do movimento da caixa torácica e ver claramente os pulmões no momento da inspiração e da tosse. Em suma, olhar o funcionamento dos órgãos no interior do corpo.
Todavia, o saber de referência continua sendo por um tempo o cadáver. Entretanto, a radiologia passou a ser um retrato do corpo novo.
Outrora, as radiografias eram extremamente precárias, devido a falta de noção de quantidade correta de irradiação, distância entre a fonte de irradiação e o objeto, além dos ângulos de aproximação. Na atualidade, a radiologia é quase completamente automatizada por conta da tecnologia. Se antes o radiologista se mantia junto ao paciente, mudando a posição dos membros para uma imagem melhor e correndo risco de contaminação, agora, existe uma barreira física que o protege.
O método de diagnóstico foi evoluindo por etapas. A primeira etapa consistiu em comparar as chapas obtidas sobre os vivos e sobre os mortos para os quais a autópsia havia determinado ou confirmado o diagnóstico. A seguir, os dados da radiografia eram comparados com os do exame clínico. Por fim, a leitura ganhava autonomia, as radiografias passaram a ser comparadas apenas entre si, à medida que se esboça um significado específico, intentariando "claridades" e "opacidades", localizadas ou difusas, normais ou patológicas.
A tuberculose é o primeiro diagnóstico visado. A partir de 1900, Atoine Béclère sugere uma radioscopia sistemática a todos os enfermos hospitalizados, na esperança de que as anomalias da mobilidade do diafragma dêemprecocemente o alarme, o que não ocorre. 
Na França, o radiodiagnóstico era sistematizado para as campanhas contra a tuberculose em atenção às diretrizes baixadas em outubro de 1945. Tornou-se protótipo do diagnóstico de massa. a ausência de um tratamento eficaz, o princípio de investigação sistemática era criticada por alguns. A chegada dos remédios contra tuberculose consolida uma medida que permaneceu durante meio século um modelo garantido de luta contra um flagelo social em proporções nacionais. Tal como a vacina obrigatória, a radiografia universalizada tinha outras funções além da médica. O procedimento universal se opunha às medidas objetivadas, fator de condenação.
XIII. Corpos Radioativos
Em 1935, Fréderic Joliot-Curie sugeriu a exploração de órgãos difíceis de visualizar como fígado e pâncreas através de elementos radioativos.
Para que isso fosse possível, foi necessária a desintegração do núcleo estável de átomos, tornando assim a radiação detectável e inofensiva ao corpo humano.
Um dos experimentos foi com o iodo 128 e um contador mantido pelo paciente no pescoço. Através dele foi possível mapear a absorção de iodo pela tireoide, órgão que antigamente não era visível nas radiografias. 
Em 1949, entrou em uso um contador que cintilava um cristal através da radiação emitida pelo corpo, dando origem a cintilografia. Esse aparelho construía ponto por ponto a imagem da tireoide e foi usado por muito tempo também em outros órgãos. Já em 1954, com os recursos do cinema aliado a medicina foi possível observar o funcionamento de órgãos vivos, descobrindo tumores e abcessos inacessíveis. Fazendo o aparelho girar em torno do paciente, foi possível multiplicar os planos de perfil e reconstruir órgãos em três dimensões.
Toda essa radioatividade também trouxe dúvidas e medos por parte das pessoas. Os pacientes tratados por substâncias radioativas são “segregados”. A cintilografia óssea se tornou, aos olhos do público, sinônimo de detecção de câncer.
O interesse da medicina nuclear não reside somente na exploração fisiológica de órgãos dificilmente acessíveis, ela inventa novas formas no interior do corpo. A molécula levada por sua radiação se fixa em receptores específicos desenhando o corpo de modo que não tem nada a ver com a anatomia de Vesálio.
A cintilografia com o passar dos anos foi se sofisticando, principalmente no ramo das neurociências. Através dela foi possível ver estímulos cerebrais em cores, ligadas ao pensamento humano e atividades motoras. Apesar de que isso não tenha chegado ao entendimento do fluxo das nossas emoções, já é possível ver com mais clareza a parte funcional do cérebro.
Essas novas formas de estudo fizeram com que as imagens mentais se tornassem verdades absolutas, onde estas estavam acima até mesmo do pensamento e ação do ser humano analisado.
XIV. O corpo no Radar
Apesar de surgir da mesma vertente, a ultrassonografia veio impulsionada das ondas sonoras que de certa forma delimitavam o corpo. Obstáculos encontrados eram identificados como tumores, quistos ou abscessos. As primeiras imagens não se pareciam com nada e não podiam ter maior relevância do que a anatomia clássica. Por isso, quem era capaz de ver através dessas imagens era considerado altamente qualificado e quase sempre esse conhecimento não era compartilhado devido a falta de didática para o assunto.
A ultrassonografia conquistou popularidade devido aos diagnósticos de gravidez, inclusive em casos extrauterinos (onde o óvulo não fecundado não migra normalmente para a trompa), que antes era feito muito tarde no estágio de ruptura e hemorragia e hoje pode ser feito antes disso. Além de que foi possível com que as famílias pudessem ver seus filhos antes do parto, saber o andamento salutar da criança e o sexo. Isso também acarretou um aumento do número de abordos de fetos do sexo feminino na China, devido a tradições culturais.
Foi possível também determinar o início e fim de uma gravidez, aumentando assim um controle moral e teológico sobre o aborto e a contracepção no século XIX. Mudando a visão da gravidez como apenas um objeto biológico, mas dando ao feto função humanística.
Em contra partida, o aborto é admitido na maior parte das legislações. A ultrassonografia sensibilizou o público quanto a natureza do feto, antes encoberto e fez com que fossem abertas várias discussões sobre a consideração desse ser como um humano e sua proteção a vida ou o direito ao aborto.
A produção de imagens fez com que a vida surgisse antes do corpo, para logo após esse indivíduo existir propriamente. E tem levantado discussões sobre o aborto terapêutico diante das consequências previsíveis da noção de ressarcimento por “dano de vida”.
XV. O corpo social como imagem
Atualmente, os métodos de imagens corporais foram se aprimorando, tornando-se mais precisas e confiáveis a vista popular. O Scanner permite a visualização do corpo inteiro sem aplicação de injeções.
Essas tecnologias influenciam no contexto social. De um lado pode ser algo positivo, prevenindo doenças e por outros acarretando, de acordo com o ponto de vista, maus procedimentos como o aborto. Enquanto uma parcela usa dos recursos tecnológicos para manter-se informado sobre a saúde, outra prefere não saber ou não confia nesses novos métodos da medicina.
Apesar dos exames trazerem uma certa claridade, não devem ser encarados como verdade irrefutável.
XVI. O corpo na internet 
O material corporal produzido pela medicina tornou-se acessível ao público e encorajou a onipotência da medicina. Hoje em dia é possível se fazer operações sem corte, preservando a estética, fazendo com que quase tudo na medicina se tornasse irreal e menos sofredor. 
Conclusão. No alvorecer do século XXi “Conhece-te a ti mesmo”
A medicina tornou-se acessível atravésdo produto da imagem que passa. O conhecer a si mesmo deixou de ser algo puramente filosófico e imaterial para algo físico, concreto e corporal, levando a discussões sobre o futuro, sobre o que se deve proteger e antecipar. Em suma, aumentando a responsabilidade do indivíduo em face do seu corpo.

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