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Os espaços que se exibem 54 2 Os espaços que se exibem 2.1. Museu Judaico de Berlim: arquitetura de sensações Projetado pelo arquiteto polonês Daniel Libeskind, o Museu Judaico de Berlim34 serve como exemplo de espaço de exibição que explora a relação triádica observador-obra-espaço de modo inovador. Carregado de simbolismos, o projeto tematiza e integra explicitamente pela primeira vez no pós-guerra a história dos judeus na Alemanha e as repercussões do Holocausto, fazendo uma fusão entre estas questões e seu design, partindo, porém, de uma nova compreensão do conceito de museu e de uma nova relação entre o programa e do emprego do espaço, traduzido por uma espacialização da história. Através de seu design, o museu exibe a história social, política e cultural dos judeus em Berlim, desde o século IV até o presente. Em sua ênfase especial na dimensão da história, o projeto dá voz a um destino comum: às contradições do ordenado e desordenado, do escolhido e não escolhido, à voz e ao silêncio. Para a realização de tal empreendimento, o governo de Berlim realizou um concurso de arquitetura que teve seu desfecho em junho de 1989, poucos meses antes da queda do muro de Berlim. Após algumas adaptações do projeto em função de questões políticas e financeiras que atrasaram o início da construção do 34 A idéia de fundar em Berlim um novo Museu Judaico – já que outro havia sido criado pouco antes de Hitler ser nomeado chanceler do Reich em 1933 e fechado pela GESTAPO em novembro de 1938 – surgiu a partir da exposição “Empreendimento e Destino” [Achievement and Destiny], organizada pela Comunidade Judaica Ocidental no Museu de Berlim. A idéia original era fazer apenas uma extensão do departamento judaico do Museu, no entanto, o programa foi reformulado e os propósitos anteriormente secundários tornaram-se o foco principal. Sua finalidade então passou a ser a descrição e a pesquisa histórica dos judeus tanto de Berlim quanto do restante do país, mostrando a influência judaico-germânica na Europa e no mundo, procurando em última instância, proporcionar a interação entre a cultura judaica e as demais. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210303/CA Os espaços que se exibem 55 novo edifício de Libes inauguração do museu co setembro de 2001. Dura aberta ao público, sendo uma das mais populares edifício poderia ser de Holocausto, apesar de u construção, enquanto out toda controvérsia envolv modelo de concepção em por essência desafia a in os limites do que denomi Ilustração 6 - Museu Judaico de Berlim, fachada. kind, as obras foram concluídas em 1999. Porém, a m exposições montadas só aconteceria efetivamente em nte este período, a estrutura vazia do museu permaneceu visitada por milhares de pessoas, configurando-o como atrações turísticas de Berlim. Alguns argumentaram que o ixado vazio, como um memorial para os mortos no m memorial específico em Berlim estar em processo de ros condenaram sua arquitetura. De todo modo, apesar de ida na sua aceitação ou de qualquer juízo de gosto, o pregado caracteriza-o como um exemplo de espaço que tegração das obras em seu interior e, sobretudo, tenciona namos como espaço expositivo. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210303/CA Os espaços que se exibem 56 Segundo Libeskind, três idéias básicas formaram a base projetual do seu design. “Primeiro, a impossibilidade do entendimento da história de Berlim sem entender a enorme contribuição intelectual, econômica e cultural feita pelos cidadãos judeus de Berlim. Segundo, a necessidade de integrar física e espiritualmente o significado do Holocausto na consciência e na memória da cidade. Terceiro, que somente através do reconhecimento e da incorporação desta vida judaica apagada e vazia em Berlim, a história de Berlim e da Europa poderá ter um futuro humano”.35 Ainda segundo o autor, o projeto levou em consideração outros aspectos. Para ele, uma matriz invisível de conexões calcada na afinidade entre os alemães e os judeus permanecia ainda como um elo de ligação entre o Leste e o Oeste alemão, onde “certas pessoas, como trabalhadores, escritores, compositores, artistas, cientistas e poetas formavam a ligação entre a tradição Judaica e a cultura alemã”.36 Uma vez identificada esta conexão, o arquiteto concebeu uma ‘matriz irracional’, correspondente a uma planta baixa que faz referência à emblemática estrela de Davi. Outra questão foi o interesse pessoal pela música de Schöemberg, particularmente por seu período em Berlim. Libeskind procurou, segundo ele, “completar arquitetonicamente” seu grande trabalho: a ópera incompleta “Moisés e Aragon”. O terceiro aspecto foi “a dimensão sempre presente dos berlinenses deportados e desaparecidos durante os anos fatais do Holocausto”. 37 O último aspecto surgiu a partir da leitura de um texto de Walter Benjamin, chamado “Rua de Mão Única”, incorporado ao projeto pela seqüência de 60 seções ao longo do edifício, cada um deles representando uma das “Estações da Estrela” descritas no texto. Considerados estes aspectos, o projeto formou-se então por duas linhas principais de pensamento, organização e relacionamento que se expressam fisicamente. Uma linha reta, porém quebrada em diversos fragmentos, dispostos por toda a extensão do Museu, denominada linha do vazio. A outra é a linha de conexão, tortuosa e indefinidamente contínua, infinita, simbolizando as transformações culturais entre judeus e gentios e suas mútuas influências. Esta 35 LIBESKIND, Daniel. The Jewish Museum Berlim: between the lines. Texto divulgado pela assessoria do arquiteto. 36 Idem. 37 Idem. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210303/CA Os espaços que se exibem 57 linha emerge fisicamente de uma base cuja linearidade é freqüentemente interrompida, formando o desenho em ziguezague que corresponde à forma externa do museu, formando a desconstruída estrela de Davi, isto é, comprimida e distorcida. A antiga construção barroca que antes abrigava o Museu de Berlim foi preservada, e passou a ser destinada à parte de serviços e ao acesso ao novo Museu. Projetado por Philipp Gerlach e construído em 1734-35, o edifício possui um grande valor histórico, pois o “Kollegienhaus”, como era chamado, foi a primeira estrutura exclusivamente destinada ao uso oficial na cidade. Deste modo, o Museu Judaico foi composto por duas edificações, onde a nova extensão proposta por Libeskind foi conectada à antiga através de uma ligação subterrânea. Essa ‘conexão invisível’ contribuiu para a preservação das características arquitetônicas originais do antigo edifício, mas também estabeleceu a autonomia contraditória de ambos na superfície, pois são unificados na profundidade do espaço ocultando sua interdependência. Um dos artifícios do museu parece ser explorar essa profundeza no sentido de aumentar o isolamento existente do visitante em relação ao mundo externo, à medida que seu acesso foi dramatizando por um movimento de submersão que intensificou a demarcação do início de uma experiência de natureza profunda e reflexiva. Transpondo o espaço público da rua ao entrar no museu, o visitante encontra um espaço com poucos indícios de sua finalidade, a não ser pela presença de alguns poucos bancos, uma loja com vários postais e um pequeno balcão para venda de ingressos. Desse grande hall, pode-se avistar uma sala adjacente, por onde logo descobrimos ter de entrar. Com paredes brancas, grandes janelas que permitem a entrada abundante de luz, a sala não possui obras de arte, uma sala vazia, sem nada, excetouma abertura no piso em granito, cuja aproximação nos revela uma escada com degraus que parecem flutuar num ambiente escuro, oposto à sala iluminada. Este é o início. A escada é a passagem, a sala, a antecâmara. A escada desce até as fundações do antigo edifício conduzindo ao local onde se inicia o percurso do museu, no nível subterrâneo. Sua planta baixa não corresponde à visão externa do edifício, e consiste basicamente em 3 eixos que se entrecruzam, conduzindo para diferentes conclusões tanto física quanto DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210303/CA Os espaços que se exibem 58 metaforicamente. Estes ‘caminhos’, como denominou Libeskind, possuem histórias separadas. Foram programados para que cada um deles apresente uma das três realidades da história judaico-germânica. Este nível se diferencia dos níveis restantes por ser o mais simbólico, e em função disso, seu espaço expositivo é menos flexível em termos de possibilidades de montagem. Nele Libeskind projetou uma série de vitrines embutidas nas paredes, nas quais não foram exibidas peças da coleção do museu, mas objetos daqueles que não sobreviveram ao Holocausto, emprestados ou doados por familiares e amigos. Cartas, fotografias de família e pertences deixados durante o exílio, incluindo passaportes, fizeram deste espaço uma espécie de memorial. Assim sendo, o uso de itens ligados ao cotidiano da maioria das pessoas constituiu uma técnica eficaz no rompimento das barreiras psicológicas defensivas que os homens inevitavelmente tentam criar, como “nós e eles” ou “naquele tempo e agora”.38 O primeiro e mais longo deles se inicia na antiga construção barroca e prossegue até a escadaria principal do museu, uma longa e íngreme subida por onde o visitante alcança os outros três pavimentos de exibição. Denominado como ‘Eixo da Continuidade’, esse eixo representa a continuidade histórica de Berlim, daquele tempo até os dias atuais e ao futuro incerto. Logo após percorrer o início deste caminho e aproximar-se de uma realidade pertencente não apenas a um grupo social determinado, mas comum a todos os indivíduos, o visitante é confrontado pela escolha de seu próprio caminho. O percurso é aberto e os caminhos são apenas nomeados. Prosseguindo pelo primeiro eixo, surge uma bifurcação, uma possibilidade de desvio causada pelo cruzamento com um segundo eixo, que conduz ao Jardim E.T.A. Hoffmann no exterior do Museu, representando o exílio e a imigração dos judeus da Alemanha. O corredor de acesso é uma passagem difícil, cujas paredes são levemente inclinadas e o piso é irregular. A luz do dia é visível no fim desse mesmo corredor, que, estreitando-se continuamente até uma porta, leva ao Jardim. O Jardim é composto por 49 pilares, cada um com seis metros de altura, implantados na forma de um quadrado, com sete fileiras de sete pilares. Sete é um 38 REID, Susannah. The Jewish Museum Berlin: a Review. Londres. University of Newcastle/UK. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210303/CA Os espaços que se exibem 59 n e d à d e d p n f b Ilustração 7 - Museu Judaico de Berlim, plantas baixas. úmero significante para a história judaica, pois o mundo foi criado em seis dias, no sétimo dia – o Shabbath – as pessoas (Deus em particular) puderam escansar. Os 49 pilares, concebidos como 48 pedras mais uma, fazem referência fundação do Estado de Israel em 1948, somando-se uma para Berlim. Do topo os pilares, crescem ramos de olivas, que, tradicionalmente, simbolizam paz e sperança na tradição judaica. Um terceiro eixo sem saída corta os dois anteriores. Seu extremo è a Torre o Holocausto. Este eixo é acessado através de um pesado portão em aço e suas aredes foram deixadas em concreto aparente. O ambiente é frio e úmido, mesmo o verão, pois o sol não penetra nela. Durante o dia, a luz entra por uma única enda, localizada no alto da torre, iluminando-a sutilmente de cima para baixo. O arulho da rua é audível, porém, o mundo exterior está fora de alcance. É um DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210303/CA Os espaços que se exibem 60 Ilustração 8 - Museu Judaico de Berlim, interior. espaço de experiência e reflexão individual, uma área de memória na qual o vazio e alemão. a m p f s e s p q l c a o a nudez representam as vítimas do genocídio Após percorrer o nível subterrâneo, o visitante acessa as exposições do cervo do Museu organizadas nos três pavimentos superiores, como foi encionado anteriormente, através da escada principal, situada no final do rimeiro eixo. Estes pavimentos compõem a Linha de Conexão, responsável pela orma externa do Museu. Longos, enclausurados e em alguns momentos estreitos, ão tão surpreendentes e desnorteadores, quanto o simbólico subsolo, na medida m que a forma em ziguezague impossibilita a visão antecipada do espaço eguinte, ao mesmo tempo que a ausência de janelas omite ao visitante seu osicionamento dentro do museu, exceto pela existência de algumas fenestrações ue permitem a visualização do exterior, ocasionando momentâneos sensos de ocalização através da referência externa. A fachada, por sua vez, é inteiramente oberta por chapas de zinco, um material que remonta à antiga história rquitetônica de Berlim, que mudará de cor com o decorrer do tempo com a xidação da liga de titânio e zinco em função da exposição ao clima. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210303/CA Os espaços que se exibem 61 Uma outra linha atravessa a linha de conexão, formando nas interseções o que Libeskind denominou como Vazios. Um vazio que corta o Museu, uma linha composta pela sucessão de cinco salas vazias que se estendem do subsolo à cobertura e que funcionam como espinha dorsal da estrutura em ângulos. Para mover-se de uma área à outra no pavimento, o visitante precisa atravessar uma série de pontes que conectam os espaços de exibição do Museu ao mesmo tempo em que oferecem uma visão destes espaços, apesar de isolados do espaço circundante, eles são impenetráveis. A inacessibilidade transforma a Linha de Vazios em foco central, determinando a organização das exibições em sua volta. Como na Torre do Holocausto, suas paredes internas não possuem revestimento, são em cimento aparente. Nas galerias de exibição superiores, o concreto escuro marca suas paredes externas e denota a sua existência. Os Vazios simbolizam a ausência, o desaparecimento que ainda se faz presente, e personificam deste modo algo essencial para a história e a cultura judaico-germânica. Através deles, a falta dos cidadãos judeus de Berlim se apresenta ao visitante. Os Vazios são a personificação da ausência. De fato, uma análise imparcial poderia levar além de seus aspectos positivos, principalmente se o analisarmos pelo viés estritamente museológico. Mas mesmo considerando os eventuais problemas dessa ordem, como a dificuldade de orientação – justificada pela intenção do autor, que considera esta característica indicada à própria história simbolizada pelo Museu – e a impossibilidade de se estabelecer um percurso contínuo, que por vezes o tornam confuso, podendo comprometer que o visitante extraia o máximo da exposição. Segundo nosso entendimento, esses problemas não diminuem o mérito da inovação da proposta. O que se torna latente a partir de sua análise – e que importa para os objetivos desta pesquisa – é a maneira como foi proposta a relação, o confronto, a integração entre as partes que constituem uma exibição: o espaço, os trabalhos e o observador. Através de um design que força os limites entre o que se designacomo espaço e aquilo que se apresenta como objeto a ser exibido, os limites tornaram-se mais fluidos, caracterizando o espaço de exibição como um espaço de participação ativa na fruição das obras. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210303/CA Os espaços que se exibem 62 Se uma exposição pode se constituir como obra de arte, isso dependerá, sobretudo, da superação do caráter passivo-contemplativo da exibição tradicional de obras de arte, que implica conseqüentemente uma total redefinição da relação triádica. Isso ocorrerá somente quando o espaço expositivo for concebido a partir de conceitos produtivos que incorporem procedimentos artísticos contemporâneos como interatividade, ambigüidade e/ou simbolismos suficientemente fortes para ativarem o espaço, o que nos levará a uma distinção fundamental. 2.2. Exposição contemporânea de arte versus exposição de arte contemporânea O Museu Judaico é paradigmático. Demonstra que a configuração do espaço tem a capacidade de intensificar a recepção da obra nele exposta e ainda desmente a aparente dependência de obras arte contemporâneas para que um espaço expositivo contemporâneo se efetive como tal. Seu espaço é contemporâneo sem que os objetos nele expostos também o sejam. Seu acervo sequer é composto exclusivamente por obras de arte, mas por peças antigas que incluem objetos cerimoniais, trabalhos de artesãos judeus, pinturas sobre a vida judaica, objetos relacionados à história judaica, retratos de cidadãos importantes, mapas e vistas da Palestina e de Jerusalém do século XV ao presente, além de uma extensa coleção de documentos, fotografias, livros, periódicos e materiais de publicidade raros. O Museu comprova não apenas a contingência de obras contemporâneas para a realização de uma exposição contemporânea, mas também de qualquer objeto, pois ainda vazio, antes mesmo de incluir estes objetos ou qualquer obra de arte em seu interior, seu espaço foi capaz de emitir significação, um significado próprio, funcionando como uma espécie de escultura arquitetural autônoma. Isso demonstra que o espaço, a montagem, os objetos e o observador são peças manipuláveis na construção da exibição, onde, na junção desses elementos distintos, o espaço tem potencial para determinar a relação triádica, tanto quanto ou mais do que a própria obra de arte. Ao ser concebido de forma ativa, o espaço conduz a recepção de um objeto menos autônomo do que integrado ao significado por ele proposto. Neste caso, a posterior inserção da coleção no espaço (a DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210303/CA Os espaços que se exibem 63 montagem) se constitui como uma integração complexa, pois as obras são ressignificadas. O Museu Judaico é um espaço autônomo e, portanto, moderno; age dentro de uma auto-concentração sobre si mesmo. Sua autonomia em relação às obras expostas pode ser considerada até certo ponto contraditória, à medida que seu espaço é ao mesmo tempo independente das obras (e nesse momento deixa de ser um museu) é capaz de se integrar a elas com toda plenitude. Quando isso ocorre, seu sentido como museu é pelas obras intensificado, e por sua vez, seu caráter não convencional é confirmado. Não obstante, sua concepção opera dentro dos códigos artísticos vigentes, o que o justifica como um espaço contemporâneo (obviamente mais do que o fato de ele ter sido construído na contemporaneidade) e também complica sua classificação tipológica. Apesar de ser um museu, com finalidade correspondente, seu espaço se aproxima do conceito de memorial, causando uma indefinição primeira que logo é substituída, pois os códigos artísticos que o regem o aproximam da noção de instalação (pelo menos antes da inserção dos objetos), um conceito criado pela arte contemporânea para designar a construção de ambientes, que entrou em voga na década de 70. Seu espaço é estruturado conceitualmente segundo critérios próprios à esfera da arte, menos em favor de uma simples exibição de objetos do que de uma experiência do espaço por parte do visitante. Algumas respostas para a Exposição como Trabalho de Arte, como a de Adriano Pedrosa e Ricardo Basbaum, mencionaram essa similitude. Pedrosa associou uma exposição como obra de arte ao conceito de ‘instalação’, citando os exemplos ‘The play of the Unmentionable’ [o jogo do indizível] de Joseph Kosuth, no Brooklyn Museum em 1990 e ‘Mining the Museum’ [Mineração no Museu] de Fred Wilson na Maryland Historical Society em 1992. Basbaum fala da exposição como “espaços de imersão, instalações que capturam o observador em sua trama produzindo efeitos além do sobreaviso defensivo.” 39 Ambos estão presos a uma situação onde uma obra de instalação é pensada para um espaço DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210303/CA Os espaços que se exibem 64 expositivo, e não o inverso, onde um espaço expositivo seja pesado como nos termos de uma instalação. Nesse ponto, a partir da análise do Museu Judaico, podemos chegar a algumas conclusões: 1) A possibilidade de uma exposição ser entendida como ‘obra de arte’ parece não ser válida. O argumento fundamental desse raciocínio é porque uma exposição incorpora aspectos funcionais, algo de que a arte moderna há muito se desvinculou. Nesse sentido, não teríamos ‘exposições como obras de arte’, mas exibições como projetos estéticos, uma atividade, portanto, nos limites do campo do design. 2) No caso do Museu Judaico, essa avaliação fica em suspenso, à medida que os aspectos funcionais são reduzidos ou quase suprimidos em detrimento da estética. A forma nitidamente se sobrepõe à função e o espaço se exibe como numa operação artística formal. Os campos da arquitetura, design e artes plásticas nele se misturam e a indagação retorna. 3) O Museu demonstra que uma exibição contemporânea depende muito menos do objeto exposto do que da superação da relação passiva entre suas partes constituintes (espaço/objeto/observador), no caso, a partir do espaço (mais precisamente do design do espaço). Portanto, a exibição contemporânea está próxima do conceito artístico de instalação, pois é aquela em que o espaço é ativo. 4) Não há necessidade de se exibir nada além do próprio espaço para que uma exibição seja contemporânea. 5) O espaço expositivo quando pensado de forma autônoma, provoca uma inversão no sentido habitual de sua construção, se antecipando ao objeto e terminando por reconfigurar esse objeto. Sendo autônomo, o espaço é conseqüentemente ativo, pois encerra em seus limites suas próprias operações de ordem formal e conceitual, que terminam por resignificar os objetos expostos. De todo modo, essa autonomia do espaço parece não ser uma condição única para que o espaço expositivo deixe de ser neutro. O que parece ser essencial é o modo como a relação entre o espaço e a obra se desenvolve, que não implica necessariamente uma autonomia do espaço, pelo contrário, caracteriza-se por uma 39 “A Exposição como trabalho de arte”. Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Rio de Janeiro, 2003. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210303/CA Os espaços que se exibem 65 interdependência. Nessa relação, o espaço expositivo vem sendo ativado muito menos por conceitos a ele diretamente aplicados do que pelas obras nele expostas. Isoladamente, objetos artísticos vêm ‘ativando’ mais do que a partir de montagens voltadas para esse propósito. 2.3. A obra na sensibilização do espaço expositivo Estando as transformações do espaço expositivo diretamenterelacionadas às mudanças na noção de arte, devemos atentar ao fato de que esta noção possui uma dinâmica envolvida num longo e contínuo processo de renovação da espacialidade do objeto artístico, isto é, ela, a espacialidade, representa o último nível de apreensão do objeto. É sobremaneira importante verificar que o espaço interno da obra, pensado e construído pelo artista, não se encerra nos limites do objeto de arte, pois inevitavelmente interage com o meio externo formando um espaço híbrido, que estabelece não apenas as condições de observação da obra, mas a efetivação da própria obra. Pinturas, esculturas ou qualquer objeto artístico têm a capacidade de reformular o espaço real no momento em que se integram a ele, a partir de seus espaços propostos. Dessa relação entre a espacialidade da obra e o espaço real surge um campo espacial de interação. 40 Em alguns casos mais expansiva, em outros menos, a relação sempre existe. A partir das forças estabelecidas nesse campo, o espaço expositivo ‘externo’ é influenciado ou mesmo determinado pelo espaço da obra, isto é, à medida que a espacialidade da obra age no espaço no qual ela está inserida, modifica esse espaço e sugere novas condições para sua exibição. O limite plástico de configuração desse espaço é a própria extensão das possibilidades de variação do espaço interno da obra. 40 Consideramos esse campo o objeto de nossa pesquisa: a interação entre o espaço da obra e o espaço arquitetônico, o qual denominamos design. Neste sentido, temos um design do espaço. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210303/CA Os espaços que se exibem 66 Assim, de diversas maneiras o ‘espaço interno’ da obra de arte sensibiliza o espaço expositivo. Neste subtítulo, a partir da análise de algumas obras em períodos históricos distintos, pretendemos evidenciar essa interação. Contudo, esta análise não se aterá aos exemplos de obras em espaços de exibições no sentido estrito (museus, galerias, etc.), pois o que nos importa neste ponto é o entendimento do fenômeno no momento da exibição, a ação do objeto no espaço. Nesse sentido, tomaremos como exemplo outras expressões de objetos/obras dentro de espaços que não podem ser denominados salas de museus ou galerias, mas continuam sendo espaços de exibição. Utilizaremos dois exemplos de Michelangelo, três de Bernini e um de Bologna. Em seguida, nos dirigiremos para a pintura, com um exemplo de Velázquez e depois para a pintura do Impressionismo. Através desses exemplos, poderemos perceber a formação dessas interações entre a obra e o espaço. Momentos em que as obras se exibem em seus diferentes níveis de autonomia e integração e as conseqüências nas formas de exibição, para que, em última instância, possamos verificar a possibilidade da utilização da potência estética dos campos espaciais na estruturação de discursos poéticos e linguagens visuais no design de exposições. 2.3.1. A espacialidade das obras Escultura e pintura partem de condições distintas para exibição. Enquanto a pintura precisa da parede, a escultura tem de se haver com o chão, com o problema físico de ficar de pé. O espaço para observação de cada uma dessas modalidades é distinto. As esculturas do período medieval, por exemplo, demandavam espaços frontais de modo semelhante à pintura, pois sob a forma de relevos nas fachadas ou figuras dentro dos nichos, possuíam uma relação subserviente à arquitetura dominante. Por outro lado, a escultura independente, posicionada de forma descomprometida ao muro, partia de condições mais livres para estabelecer relações com o espaço em que se exibia. Em ambos os casos, a escultura interagia de maneira complexa com o espaço. Na verdade poderíamos estender esse raciocínio e afirmar que esse contato obrigatório da obra com o ambiente sempre será num espaço construído pelo homem, já que toda obra de DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210303/CA Os espaços que se exibem 67 arte pertence por fim a uma arquitetura.41 O artista medieval, que descobriu e explorou essa articulação obra/espaço, a transformou em arte ao estender o pensamento da forma ao momento de exibição, entendendo-o como momento estético. Na contemporaneidade, parece-nos que esta questão não tem sido uma preocupação constante dos artistas, e muitas vezes o artista trabalha a relação obra versus espaço de exibição de modo estéril, considerando-os como coisas estanques, ao invés de um todo coeso. Na verdade, a exibição é secundária. A desconsideração de como o objeto será exibido parece ser uma questão contemporânea, graças à autonomia dele em relação a um comanditário específico. O artista muitas vezes cria a obra, mas não se preocupa nem onde, nem como ela será exibida. Estranhamente essa questão, ainda que contemporânea, ou percebida concretamente na contemporaneidade, parece ser muito antiga. Podemos afirmar que já existia na Idade Média, até pelo fato de não haver distinção entre arte e arquitetura nesse período. Talvez seja certo afirmar que a maioria das relações estabelecidas entre os objetos artísticos e seu espaço de exposição sejam quase sempre neutras, isto é, na contemporaneidade e no passado os artistas consideravam a obra de forma autônoma em relação ao espaço de exibição, mas também atentavam para o fato de que existiam casos excepcionais que foram se tornando pouco a pouco mais presentes e isso nos parece ser um fato inequívoco. No caso da exibição de obras, estamos sempre tratando de situações especiais, particulares para exibição dos objetos. Examinando alguns exemplos históricos, já na Idade Moderna, para um modelo de arte que questionou a opção de subordinação do objeto exibido ao espaço contentor, em que o problema da relação dos objetos com alguma significação fosse independente do espaço arquitetônico, o artista plástico Robert Morris indica que essa relação deve ser vista como exceção, ou seja, que a natureza do ‘objeto artístico’ alteraria o nexo da exibição a ponto de estabelecer um momento distinto para o espaço de exibição dos objetos. Cita o caso de Michelangelo, que produziu espaços interiores de modo peculiar42. Para ele (Morris), as obras escultóricas da Capela Medici foram pensadas considerando 41 Entenda-se aqui o termo arquitetura pela arte de criar espaços. 42 MORRIS, Robert. The Present Tense of Space . In.: Continous Project Altered Daily: The Writings of Robert Morris. London: Mit Press, Cambridge Institute of Technology, 1993. p.175. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210303/CA Os espaços que se exibem 68 uma estranha ou arbitrária acomodação entre as quatro figuras em cima dos sarcófagos e o espaço em torno. Diferentemente dos outros túmulos concebidos na época, as figuras formam uma estrutura firmemente fixadas na parede ao invés de alojadas em uma alcova. Os túmulos se fixaram “mais como parte da arquitetura do que como ataúdes separados”, se projetando da parede como forma presa e saliente. A disposição das figuras as colocava em uma nova relação com o espaço: “a elas foi negada a dignidade do nicho protetor ou a declaração de independência fornecida por um pedestal firme”, o que contribuiu para uma integração maior com o espaço. As figuras “participam da articulação de um todo espacial”, ao invés de configurarem fragmentos espaciais independentes e isolados. Para Morris, “a força que está contida nelas leva à compressão geral do volume da sala como um todo”, estabelecendo um tipo de campo de força espacial. Ainda, citado por Morris, outro exemplo de integração da esculturacom o espaço é o vestíbulo da Biblioteca Laurentiana. Nela, o tratamento similar dos detalhes arquitetônicos faz com que o espaço seja ocupado agressivamente em vez de oferecer limites passivos, transições ou relevo. Ao serem superestimadas, as escadas, as volutas e as colunas duplas rebaixadas, tornam o espaço escultural e comprimido. Michelangelo forçou os traços arquitetônicos mais do que a figura esculpida e estabeleceu, tal como na Capela Medici, um campo de força, um espaço de tensão. A tensão do espaço resultante da relação entre os limites espaciais e a massa da escultura escapa às tendências de sentido de compressão ou tração. Enquanto no período maneirista, Michelangelo modelava a arquitetura como escultura transformando o espaço, Bernini, um pouco mais tarde, no período Barroco, criou peças bem mais independentes, mas ainda integradas em relação à arquitetura. Podemos perceber que Bernini, quando executou o grupo escultórico ‘Êxtase de Santa Teresa’, fez com que o espaço não exercesse nenhum tipo de ‘pressão’ e a obra, como um quadro, ou como um espetáculo num palco, foi emoldurada por duas colunas de mármore e um frontão curvo. O grupo está disposto de modo que parece pairar sem apoio algum. Além disso, outras figuras esculpidas estão espalhadas em nichos da igreja observando e discutindo o evento milagroso. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210303/CA Os espaços que se exibem 69 Através das diagonais de seus olhares, as figuras não apenas se integram à escultura como também integram a escultura ao espaço da igreja como um todo. O tema desse grupo escultórico de Bernini é a visão de Santa Teresa do amor de Deus, que ela sente na forma de um dardo flamejante lançado por um anjo que se aproxima. Desfalecida, a Santa é arrebatada para o céu numa nuvem em direção à luz que jorra do alto na forma de raios dourados. Para representar esse momento, Bernini fez uso de recursos naturais: a luz que ilumina a escultura é filtrada através de um vidro amarelo e continuada ilusionisticamente por meio de raios de metal dourado. Sem descrever uma situação ou evento que pudesse ser visto com os olhos, Bernini projetou em termos visuais o que poderia ser imaginado, representando um ‘espaço mental’ leve e rarefeito. Não há tensão, mas sim um tratamento dinâmico do espaço – que parece ser uma tendência das obras barrocas em geral – pois, tanto o momento do êxtase celeste quanto o espaço em que ele se projeta tendem à imaterialidade. Na Catedral de São Pedro, onde Bernini trabalhou durante quarenta anos organizando o espaço interior, o resultado é um conjunto escultórico que, como nos exemplos anteriores, se integra de forma plena ao espaço. O Baldacchino e a Cathedra Petri são projetos que não apenas comprometem a categorização das obras como escultura stricto senso, como também fazem do espaço parte indissociável da obra. A posição, os afastamentos, os alinhamentos, enfim, os vazios fazem parte da obra tanto quanto os volumes cheios. Situado diretamente embaixo da cúpula da basílica sobre o túmulo de São Pedro, alinhado no eixo principal da nave, o Baldacchino é uma obra arquitetural tratada em termos escultóricos. A Cathedra se integra a ele devido ao posicionamento, pois está situada à sua frente, no fundo da catedral. Derrama-se sobre duas grandes pilastras pertencentes ao projeto de arquitetura de Michelangelo (seu antecessor em São Pedro), entre as quais há uma janela redonda com a imagem do Espírito Santo – a Pomba Sagrada em contraluz – por onde entra um feixe de luz natural. Cercando a janela, estão figuras de anjos em estuque dourado flutuando sobre nuvens, e por baixo deles está suspenso o trono de bronze que contém a relíquia, a antiga cadeira de madeira de São Pedro, DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210303/CA Os espaços que se exibem 70 sustentado com milagrosa facilidade por quatro grandes figuras de bronze que representam os pais gregos e latinos da igreja. Bernini criou uma unidade artística e ótica entre as duas obras que, inclusive, se tornou um modelo de composição encontrado em inúmeras igrejas da Europa. A Cathedra fica emoldurada pelas colunas retorcidas do Baldacchino. Quando o sol poente se alinha ao plano da janela, forma-se um feixe luminoso que proporciona um efeito único, um dos supremos triunfos espaciais da visualidade barroca. Os espaços interiores de Michelangelo e Bernini são esculturais e estão situados entre a ‘escultura subserviente à arquitetura’ e a ‘escultura livremente posicionada’. São momentos em que a escultura e o espaço entram em equivalência, ou seja, são exceções. A figura (objeto) livremente posicionada, em direção a uma figura autônoma, com espaço próprio, representou um avanço na emancipação da escultura em relação à arquitetura. Desvencilhando-se da condição de observação frontal que estava em sua origem, a escultura pode explorar novos pontos de vista, o que correspondeu a uma nova interação com o espaço, como no caso do grupo escultórico maneirista. Poderíamos dizer que ‘Rapto das Sabinas’, de Giovanni Bologna, escultor oficial da família Médici, marcou o clímax dessa transição. Composto por três figuras que formam uma espiral ascendente, com vazios que penetram entre as figuras entrelaçadas, o resultado é a primeira escultura sem um ponto de vista principal43. A inexistência de um único ponto de vista principal faz com que o espaço circunde ainda mais enfaticamente o objeto representado, criando um espaço radial. A escultura barroca ‘Davi’, realizada por Bernini, foi outro exemplo de escultura independente que inova em sua relação com o espaço. Embora possua um eixo principal de ação, essa escultura apresenta múltiplos pontos de vista tal como na escultura de Bologna. Ao contrário das versões Renascentistas deste mesmo tema como o Davi de Donatello, o de Verocchio e o de Michelangelo, que exibem um Davi em uma pose de tranqüilidade, com a cabeça de Golias, ou o estilingue, como atributos iconográficos, Bernini representa a figura em ação, no momento exato em que ele está atirando a pedra no confronto com Golias. O lado DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210303/CA Os espaços que se exibem 71 direito mostra o movimento de Davi cujo passo largo é quase um salto; quando visto de frente a pose é estática, segundos antes do arremesso fatal, quando visto diagonalmente, há um balanço ritmico entre movimento e pose. No entanto, Bernini faz uso de um recurso ilusionista44 que incorpora o espaço à frente do eixo de ação: toda a postura, assim como aquela expressão dos olhos da figura, sugerem um movimento para além dos limites da própria escultura, que retira o foco de dentro da obra, colocando-o fora dela, no espaço do observador. Antes de avançarmos mais, entendemos que seriam necessários alguns exemplos dessa associação com o espaço real vivido pelo observador no âmbito do espaço bidimensional, como o caso da pintura. Essa advertência é importante, pois até agora viemos dando exemplos tridimensionais (esculturas) e agora passaremos para o espaço bidimensional. De forma muito semelhante à transição que ocorreu com a escultura barroca, Velázquez em Las Meninas (1656), dirige o foco de sua composição para fora da obra, colocando-se no espaço do observador situado à frente da tela. Na cena, onde o pintor se retrata numa típica cena do exercício de seu ofício, praticamente todas as figuras retratadas olham na mesma direção, diretamente para fora da tela, para o observador. A posição do observador corresponde à mesma posição da figura que está sendo retratada na representação, ou seja, a visadada cena é a visada do retratado, ao mesmo tempo que é a visão do observador. Desse modo, há uma sobreposição do espaço real do observador ao espaço da narrativa. Não obstante, há um espelho na parede do fundo da cena com o reflexo de duas figuras. Sua posição indica que a imagem nele refletida é a imagem das pessoas que estão sendo retratadas na representação. Como o espaço das figuras representadas é o mesmo espaço que do observador, Velázquez cria um “fascinante e interminável labirinto de reflexões nas relações da pintura, do 43 Algo que só havia sido feito numa escultura em bronze numa escala muito menor por Pollaivolo, ‘Hércules e Anteu’. 44 Embora não fosse uma invenção do Barroco, e nem todas as obras barrocas os utilizassem, os recursos ilusionistas tornaram-se nesse período mais comuns e convincentes do que em qualquer outra época. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210303/CA Os espaços que se exibem 72 pintor, do modelo e do observador” 45, pois na verdade, coloca o espelho para um observador que é ao mesmo tempo o soberano, o próprio pintor e qualquer observador passante. O espelho parece refletir os espectadores, eles mesmos o foco dos olhares fixos das figuras representadas, porém, não vemos o que está sendo retratado, pois a superfície da tela do pintor não é revelada na representação. Las Meninas é uma pintura sobre a pintura, uma representação da representação, uma ‘meta-figura’, independente em si mesma. A representação fala sobre ela mesma, mostrando o ciclo completo da reprodução de um espaço natural: o pintor, suas ferramentas e materiais, as pinturas terminadas nas paredes. Mas mostra, sobretudo, uma obra em que o espaço do observador se confunde com o espaço representado a partir da introdução de um espelho que inclui esse observador num jogo de reflexos através de sua presença diante da obra. Ao invés de ignorar o observador, Velázquez “dispõe o auto-conhecimento de representação para ativar o auto-conhecimento do observador ao questionar a identidade de sua posição externa”; 46 solicita e representa sua posição ao mesmo tempo que a desestabiliza através do uso do espelho, gerando uma auto- reflexividade que inclui o espaço expositivo. Apesar de possuir uma imagem única, o espelho reflete múltiplos espaços, ou melhor, um espaço multiplamente ocupado. O espaço de projeção imaginário em frente à pintura é um espaço de caráter ambíguo, composto por três observadores projetados: o espaço ocupado pelo pintor quando pintava a tela; pelas figuras que presumivelmente se refletem no espelho, que são os modelos do pintor e o foco dos olhares das figuras representadas; e pelo observador. Forma-se um outro ciclo, de olhares e mudanças visuais, onde os ‘aspectos’ da tela se alternam e se modificam no espaço onde a subjetividade do espectador é constituída. Segundo Foucault, 45 MITCHELL, W. J. Thomas. Picture Theory: Essays on verbal and visual representation. Chicago: University of Chicago Press, 1994, p. 58. 46 Idem, p. 61-62. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210303/CA Os espaços que se exibem 73 “nenhum olhar fixo é estável, ou ainda, no sulco neutro do olhar fixo que a um certo ângulo na tela penetra, sujeito e objeto, espectador e modelo, revertem seus papéis na infinidade [...] Por que vemos apenas o lado reverso (da tela na pintura) não sabemos quem somos, ou o que ele está fazendo. Vendo ou sendo visto?”47 Embora Velázquez trabalhasse dentro das convenções da tradição da pintura de cavalete, podemos verificar que como no caso das esculturas acima citadas, o resultado é certamente uma exceção. Como uma armadilha à espera do olhar, seu espaço interno contraditoriamente inclui o externo a partir do observador, que, ao mesmo tempo em que é incluído, inclui o espaço real à obra. Ao contrário da pintura projetiva, que tende a apenas simular uma continuidade espacial, Las Meninas efetivamente incorpora o espaço diante da tela, fazendo dele um espaço que não é de nenhuma maneira neutro. A ascensão da pintura de cavalete coincide com o surgimento do espaço perspectivo, que por sua vez, confirma a promessa de ilusão inerente à pintura48. Posicionando a figura representada ao longo de um cone de espaço a partir da superfície da tela, a perspectiva forja uma ilusão. Cenas acontecem perto ou distantes desse plano limite, mas sempre para além dele, no interior delimitado pela moldura, um tema interminavelmente repetido na pintura ocidental. Na maioria dos casos, o eixo frente-fundo prepondera ao eixo esquerda-direita. Nesse processo ilusionístico, a estabilidade da moldura é fundamental, pois a segurança de seus limites define completamente a experiência dentro dela. Quando a moldura restringe, elide ou confina o conteúdo, isto ocorre de modo a fortalecer as margens, confirmando-as como limite absoluto da pintura de cavalete.49 Colocada na parede, a pintura nela penetra com sua ‘profundidade’, funcionando como uma janela portátil. Desse modo, não há sugestão de continuidade entre o espaço interior da figura e o espaço externo além dos limites da moldura. 47 In.: MITCHEL. The Order of Thing: An Arqchaeology of the Human Sciences. New York: Vintage, 1973, p. 05. 48 A idéia de uma continuidade verdadeira do espaço retratado por meio de um fundo contínuo tornou-se uma forma necessária desde os séculos XIV e XV, quando o fundo dourado foi substituído pelo céu e o horizonte. Logo, a representação (o fundo) se tornaria cada vez mais fiel ao mundo natural e seu espaço passaria a cumprir a função ilusionística de modo mais e mais convincente. Já no Quattrocento, a formulação de Bruneleschi e Alberti das leis geométricas para a construção gráfica da perspectiva fez com que essa ilusão de profundidade atingisse o ápice de rigor científico. 49 O’DOHERTY, Brian. Inside the white cube: the ideology of the gallery space. California: University of California Press, 1999, p. 18-19. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210303/CA Os espaços que se exibem 74 No caso das representações bidimensionais, talvez a pintura de paisagem represente um dos primeiros momentos onde se sugerem espaços mais independentes para a exibição de obras de arte, aliás, o gênero paisagem alcança legitimação artística, um estatuto de ‘obra de arte’, aspirando à perfeição artística como o gênero histórico, no final do rococó, no início do século XIX. Diferentemente da perspectiva stricto sensu que “imita” o olhar humano, a sua forma biológica, que o “repete” dentro das bordas do quadro50, nesse tipo de pintura (a paisagem), o limite ocular (biológico) parece coincidir ainda menos. A expansão da figura representada em direção às margens do quadro é maior do que nas pinturas históricas ou o grande gênero, pois apesar da profundidade, a horizontalidade preponderante tende a forçar os limites da moldura que passa a funcionar como parênteses. No caso da pintura de paisagem, o horizonte parece escapar dos limites impostos pela moldura do quadro e logo a separação das pinturas ao longo das paredes torna-se inevitável, sendo ditada por uma “repulsão magnética”. 51 Do mesmo modo que a pintura de paisagem, poderíamos citar o caso da fotografia, pois ela também sugere ao observador uma vaga consciência da existência de um espaço para além de seus limites físicos. Seria mesmo interessante verificar que a fotografia surge como meio de representação no momento em que se instituide forma definitiva a autonomização do campo da arte. A pintura de paisagem e a fotografia representam uma intenção de exclusão do entorno em detrimento de uma cena mais ampla. Na fotografia, o posicionamento da margem é, sobretudo, uma decisão primária e no início era comum o uso de convenções pictóricas da tradição para fazer o trabalho de emoldurar a cena. Mas logo a fotografia reinterpretou a moldura sem o auxílio dessas convenções e permitiu que o conteúdo se compusesse por ele mesmo, mais do que o alinhando com a margem, diminuindo a tensão sobre ela.52 O primeiro movimento de arte moderna, o impressionismo, influenciado pela fotografia, percebeu a importância dos limites da composição para seus propósitos de registro 50 Apenas aparentemente, pois a perspectiva é monocular, enquanto a visão humana é binocular. 51 Idem, p. 19. 52 Idem, p. 19-20. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210303/CA Os espaços que se exibem 75 imediato, alterando o enquadramento tradicional e fazendo do ponto de vista algo tão importante quanto a própria composição. Contudo, o que ocorreu no movimento impressionista, determinante para a relação entre os espaços interno e externo à obra, foi o impulso decisivo para o processo de autonomia da arte. A partir dele foi deflagrada uma sistemática desconstrução formal que possibilitaria à arte libertar-se da representação da natureza, do ilusionismo perspectivo da janela renascentista Albertiana, dos valores projetivos, enfim, de qualquer caráter moral, historicista ou social que regulasse sua produção, em nome de uma arte com objetivos voltados para si. Ao que tudo indica, a arte moderna se formou tanto a partir como contra o naturalismo de matriz na Renascença. “A arte moderna começa com a ruptura do espaço organizado a partir da perspectiva e segue como uma constante interrogação sobre a natureza da relação quadro realidade. Cézanne levado adiante pelos cubistas é um questionamento dessa relação e funda uma nova posição do artista ante o quadro. Os vínculos estabelecidos entre o trio artista/arte/real ficam desfeitos, passa a ser necessário repensá-los. Ao romper o esquema representacional vigente, a arte moderna desloca o eixo de observação tradicionalmente fixado para o sujeito-artista; este gira agora não mais em torno de uma simples relação arte-realidade, mediante as convenções, mas em torno da relação artista-arte, tomada agora como de conhecimento específico. Processo mais ou menos análogo ao da ciência em sua superação do empirismo.”53 O questionamento progressivo do antigo espaço pictórico tradicional, na pintura e na escultura, ilusório, metafórico e com formas ‘naturais’, levou a pintura ao espaço plano, abstrato. A planaridade, tal como Greenberg54 a definiu, alterou a idéia de figura incorporada ao seu espaço circundante ao determinar o desenvolvimento de um espaço raso, superficial e literal que contivesse formas inventadas. A lógica planar, um poderoso argumento para a autodefinição da pintura, representou um novo estágio nas relações entre a obra e o espaço expositivo, pois se por um lado a pintura tradicional de cavalete baseava a relação observador-obra-espaço numa virtualização, a pintura planar não. Nessa transição 53 BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro. São Paulo: Cosac Naify Edições, 1999, p. 35. 54 GREEMBERG, Clement. Clement Greemberg e o debate crítico. Organização e notas de Glória Ferreira e Cecília Cotrim de Mello. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges . Rio de Janeiro: Ministério da Cultura/FUNARTE e Jorge Zahar Editor, 1997. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210303/CA Os espaços que se exibem 76 alterou-se a relação triádica e a noção de arte obrigou-se a deixar de ser virtual, pois não havia mais representação. A superfície da tela assumiu um caráter objetual, e ao obter a importância de um objeto, pôde lançar-se no espaço sob outro nível de interação: “a pintura tornou-se agora uma entidade que pertence a mesma ordem espacial a que pertencem nossos corpos; não é mais o veículo de um equivalente imaginado dessa ordem. O espaço pictórico perdeu seu ‘interior’ e tornou-se todo ‘exterior’. O espectador não pode mais escapar para dentro do espaço pictórico a partir do espaço que ele mesmo se encontra.” 55 A moderna ou contemporânea lógica planar logo tornou supérflua a existência da moldura na pintura e do pedestal na escultura, à medida que as obras mais se assumiam como objetos independentes, menos necessitavam de um isolamento do mundo. A dissolução da moldura transferiu essa função para o espaço da galeria. 2.3.2. A ordem espacial do expressionismo abstrato Depois do movimento Impressionista o processo de renovação da espacialidade na pintura prosseguiu durante o século XX e cada movimento artístico esteve apto a desenvolver de forma experimental o seu próprio espaço, mas ao que tudo indica, somente nos anos 50, num salto qualitativo, a relação espaço-obra definitivamente se estreitou56. No Expressionismo Abstrato, a cena foi mais uma vez comprimida pela lógica planar. As pinturas, enquanto objetos dispostos à exibição, seguiram a rota da expansão lateral, saltando para fora da tela, concebendo gradualmente as bordas já sem molduras como unidade estrutural através da qual a pintura entrava em diálogo com as paredes além dela. A relação do espaço expositivo com a obra passou a ser mais relevante do que em 55 GREENBERG, Clement. A Nova Escultura. In.: Arte e Cultura. São Paulo: Ed. Ática, 2001, p.152. 56 Sobre a relação da obra com o espaço externo à tela, destacamos, nesse período, as colagens de Braque e Picasso durante o Cubismo sintético, quando os planos já haviam se tornado independentes. Segundo Greenberg, áreas adjacentes as bordas dos materiais afixados eram sombreadas, elevando aquela borda acima da superfície, isto é, invadindo o espaço do obsevador. Ao mesmo tempo, algo era pintado, desenhado ou mesmo colado sobre outra parte da mesma superfície, devolvendo-a à profundidade, expandindo o que o autor denominou como ‘oscilação entre superfície e profundidade’. Ver GREENBERG, Clement. Colagem. In.: Arte e Cultura. São Paulo: Ed. Ática, 2001, p. 91. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210303/CA Os espaços que se exibem 77 qualquer momento anterior. A quantidade de espaço necessário para o trabalho de arte ‘respirar’ tornou-se um novo tema para o qual o artista não podia se esquivar. A pintura declarava implicitamente seus próprios termos de ocupação do espaço e o que vinha a se integrar do entorno circundante tornava-se difícil de ignorar.57 A espacialidade da obra ganhou em escala e a sua compreensão dependia de um envolvimento corpóreo por parte do observador, que seria rompido caso sua exibição fosse incorreta, com um espaço insuficiente ou se houvesse interferências externas de outros trabalhos. Em oposição à estética tradicional de montagem de exibições, desenvolvida de acordo com hábitos que se tornaram convenções e finalmente leis, entrava-se num momento em que os trabalhos de arte se apropriavam das paredes como um território para si e não mais pertencente às concepções padronizadas. Naquele momento, o modo como os projetistas de exposições58 apresentavam os trabalhos, juntamente com os artistas, contribuiu para a definição da nova pintura. O campo de interação formado com as paredes fez com que elas acabassem participando das obras e não mais como um suporte passivo. A aparente neutralidade das paredes brancas era agora umailusão. Não mais uma zona neutra, as paredes se tornaram no locus das ideologias, uma força estética que modificava qualquer coisa nelas expostas. A partir de então, qualquer novo desenvolvimento na arte deveria estar preparado para uma atitude quanto a isso.59 Como contexto da arte, a parede tornou-se rica em conteúdo e significação e ao que parece a pintura passou a considerar definitivamente as condições efetivas de sua exibição. Porém, não apenas as paredes, mas o volume do espaço foi invadido, tomados pelas obras em exposição. Nas telas de Rothko, por exemplo, que são grandes faixas retangulares de cor, dispostas em paralelo, geralmente num formato vertical do tipo retrato alargado, os limites suavemente imprecisos das faixas conferem uma qualidade brumosa e pulsante, como se estivessem suspensas e flutuando sobre a tela. 57 O’DOHERTY, Brian. Inside the white cube: the ideology of the gallery space. California: University of California Press, 1999, p. 27. 58 Nesse momento surgiu a figura do curador que pode ser definido nesse momento como alguém que seria um pouco mais do que um projetista ou do designer da exposição, mas que se ocupava também da seleção das obras que participarão da exposição. Nessa ocasião vigia o poder do museólogo, o especialista da aquisição, guarda e catalogação (documental) das obras e muitas vezes solicitado para organização ou projetos de exposição. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210303/CA Os espaços que se exibem 78 Diferentes campos de cor alinham-se todos no mesmo plano e parecem pulsar todos juntos, num movimento de expansão e irradiação semelhante às propriedades da luz. Nenhuma teoria, como de cores quentes e frias poderia conduzir tal feito. A superfície não mais pintada foi então tingida, saturada fisicamente no limite da cor, da tinta e do pigmento puro formando “véus de cor [...] esbatidos uns sobre os outros – frio sobre quente, quente sobre frio, mais frio sobre quente, mais quente sobre frio, ou escuro sobre claro – até o ponto em que níveis de ilusão tornam-se inseparáveis numa superfície totalmente macia, translúcida e essencialmente profunda.”60 A expansão espacial, nesse caso, não foi apenas lateral, mas principalmente frontal. A enorme presença literal dessas telas reivindicava uma área própria e por essa razão demandavam uma aproximação lenta e um senso de posicionamento, que não privilegiava nem o antes nem o depois, mas situava-se no limite de seu campo visual. Uma experiência silenciosa, de caráter individual, que ao mesmo tempo envolvia e pulsava, numa escala corpórea e íntima que produzia um efeito de calma e contemplação. Todo o resto de cena era liquidado pela opacidade, através da cor, ao mesmo tempo em que atingia algo contraditório: um envolvimento planar. Uma experiência sublime, de nítida elevação, que intuitivamente escapava às coordenadas funcionalistas, pragmáticas da sociedade moderna. Planas e expressivas, suas telas são como ‘muros de sentidos’61 que se expandem na direção do espaço do observador. 59 O’DOHERTY, Brian. Inside the white cube: the ideology of the gallery space. California: University of California Press, 1999, p. 27-29. 60 HARRISON, Charles, In.: STANGOS, Nikos. Conceitos de arte moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000, p.143. 61 Expressão cunhada por Giulio C. Argan. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210303/CA Os espaços que se exibem 79 2.3.3. O contexto artístico brasileiro e a questão da espacialidade Enquanto a arte norte americana potencializava o espaço expositivo por conta do seu dinâmico processo experimental, no Brasil a arte concreta se desenvolveu até se desdobrar no neoconcretismo no início dos anos sessenta.62 Mas para efeito de um estudo da relação tríade observador-obra-espaço, o neoconcretismo torna-se mais interessante do que o concretismo. Menos por seu rompimento com os esquemas formais dominantes (característico dos movimentos artísticos vanguardistas em geral), mas pelo rompimento do modo de relacionamento da obra com o observador (que em última instância significava o afastamento das categorias tradicionais das belas-artes, iniciado pela própria arte moderna). Ao buscar redefinir a operação-arte e seu relacionamento com o observador, o movimento neoconcreto ia “além do projeto construtivo do planejamento ambiental, com sua necessária interpenetração das categorias de pintura e escultura e integração arquitetural.”63 Este parece outro ponto de contato dos espaços, outro momento em que as revoluções artísticas mais uma vez deixavam de estar circunscritas aos limites da estrutura interna da obra. Em nosso entender, o desejo neoconcreto brasileiro de modificação da relação obra- observador atingiu o espaço real, fazendo com que o limite entre os espaços interno e externo à obra se diluísse. O observador foi transformado em participante e os espaços se envolveram sem passividade, pois a obra modificava o espaço no sentido de uma ativação. Segundo Ronaldo Brito, a abordagem do espaço – ou campo, devido ao seu caráter ativo e irradiado – feita pelos neoconcretistas girava basicamente em torno de uma concepção fenomenológica e da conseqüente recusa unânime de uma apreensão puramente gestaltística. Criticavam, com veemência, o esquema figura- fundo (base do espaço representacional pré-cubista) lançando-se à tarefa de mobilização total do espaço, tomado naquele momento como elemento não metafórico. Nas suas palavras: 62 Essa dissidência foi realizada por um grupo restrito de artistas no Rio de Janeiro, enquanto a arte permanecia concretista em São Paulo. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210303/CA Os espaços que se exibem 80 “O artista neoconcreto não abordava propriamente o espaço, ele o experimentava. Dispunha-se a vivenciá-lo, atuar contra o relacionamento tradicional entre sujeito observador e trabalho. Tinha uma concepção não-instrumental do espaço, desejava imantá-lo, torná-lo campo de projeções e envolvimento num registro quase erótico .”64 Buscando criar uma tensão entre os limites do modo de relação em vigor com a arte e os processos de leitura estabelecidos, os neoconcretistas opuseram-se à passividade, ao convencionalismo e ao platonismo da fruição “normal”, o que terminou levando-os ao rompimento do espaço representacional, metafórico e alusivo. É o caso das propostas fenomenológicas dos “Bichos” (1961) e dos relevos de Lygia Clark, que representaram tentativas de rompimento da distância entre o espaço da obra e o espaço exterior através de uma nova inserção do trabalho no real. Exigiam um convite para uma participação diferenciada do trabalho de arte no espaço humano, transformando-o agora num elemento ativo, um agente capaz de atribuir uma nova significação ao antigo espaço passivo- contemplativo. Entretanto, apesar das inúmeras operações de produção artística, capazes de estabelecer novos limites na manipulação do espaço plástico, bem como novos parâmetros para relação entre observador-objeto, parece-nos que somente a partir da produção de uma geração de artistas norte-americanos nos anos 60 é que um impacto nas práticas de exibição foi sentido. Em Nova York, entre 1963 e 1965, artistas começaram a expor independentemente trabalhos tridimensionais que vieram a ser classificados de ‘minimalistas’.65 Sob o mesmo aspecto de relativa simplicidade e austeridade, porém, com significativasdiferenças entre si, os trabalhos se associavam a partir de conceitos produtivos para solução da unidade da obra distintos dos conceitos tradicionais, o que levou alguns desses trabalhos estabelecerem uma participação mais completa no confronto com preocupações espaciais. 63 BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro. São Paulo: Cosac Naify Edições, 1999, p. 87. 64 Idem, p. 81. 65 BATCHELOR, David. Minimalismo. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 2001, p. 06. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210303/CA Os espaços que se exibem 81 2.4. Os anos 60: o espaço como obra O espaço expositivo, meio para a recepção artística e esteio fundamental para a noção de arte, tornou-se um laboratório para as experiências estéticas com trabalhos que cada vez mais incorporariam sua situação física, ou ainda, onde o artista, deixando de produzir no ateliê, passaria a realizar seus trabalhos. A sala vazia da galeria era o novo suporte para a arte. Sobretudo, a partir de então, a neutralidade, a falta de significação do espaço expositivo moderno, sintetizada pelo conceito do cubo branco, foi confrontada a uma produção artística com trabalhos cada vez mais integrados ao espaço real. Do ponto de vista concreto, percebe-se uma espécie de definitiva invasão física no espaço destinado à observação da obra. Os artistas minimalistas passaram a assumir o local da exibição como parte indissociável do trabalho, elevando-o à instância de significação máxima e equivalente à obra. O espaço expositivo deixava de ser neutro, ou um campo para expansões da obra – como no Expressionismo Abstrato – para se tornar um fator determinante na definição dos parâmetros tanto para a execução dos trabalhos quanto para as condições de observação. A potência estética das paredes assinalada pelo Expressionismo Abstrato recebeu um impulso final com Frank Stella. Suas telas negras vazadas no centro, com o perímetro dos núcleos vazios, repetidos em progressões geométricas concêntricas, de linhas brancas finas tanto no plano pictórico como no limite das telas, eram cortadas na lateral de acordo com a demanda da lógica interna que as gerou. As formas [shapes] dessas telas – exibidas pela primeira vez em 1960 na Galeria Leo Castelli – estabeleceram um novo diálogo entre obra e espaço ao eliminarem a referência entre a ortogonalidade dos chassis e os limites das paredes – pois os olhos freqüentemente vão à procura tangenciando os limites das paredes –, desvelando o espaço expositivo. Planura, laterais, formato e paredes tiveram a possibilidade de diálogo sem precedência na história da exibição das obras de arte. A quebra formal do retângulo confirmou a autonomia da parede, alterando o conceito de espaço da galeria. O resultado ativou com força as paredes tornando-a parte da estética, e o ato de pendurar passou a ser tão revolucionário quanto a própria pintura. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210303/CA Os espaços que se exibem 82 Ilustração 9 - Frank Stella, vista da instalação, 1964, Galeria Leo Castelli, Nova York. Paradoxalmente, mais do que uma inclusão das paredes, o Minimalismo propôs a introdução definitiva da relação recíproca entre obra e espaço. A partir da adoção de um novo espaço-tempo que implicou a substituição da relação tradicional observador-obra, criou-se uma interdependência entre obra e espaço. O movimento minimalista convocava o observador a interagir na totalidade espacial da obra, exigia uma nova postura perante o trabalho de arte, uma presença física e e ue e i o 6 p 6 a a T d xperimental que não era mais a contemplação, mas um vivenciar dos objetos q ram concebidos como estruturas espaciais coincidentes com o espaço real.66 A ntrusão dos elementos no espaço interagia com a arquitetura forçando o bservador a considerar o ambiente em um contexto estrutural. Os artistas minimalistas reconhecem tanto o observador quanto o espaço da galeria. [...] Forçam a audiência a uma consciência da existência que vai além da presença de qualquer objeto de arte particular. A audiência é persuadida a andar no espaço recém definido e delineado, e o caminho é determinado pela arte. [...] O artista minimalista não apenas pergunta – ele desafia e observa. 67 6 No caso dos bichos de Lygia Clark ou dos Parangolés de Oiticica o espaço também era ativado, orém, sua integração não era estrutural. 7 “Minimal artists acknowledge both the viewer and the space of the gallery. They grasp gressively at all available space, and in so doing point in every direction. They force the udience to an awareness of existence that goes beyond the presence of any particular art object. he audience is persuated to walk about the newly defined and delineated space, and the path is etermined by the art. In so doing, the artists allow no room for confusion or misrepresentation. A DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210303/CA Os espaços que se exibem 83 Naquele momento “o escultor moderno se movia próximo a um estilo de arte que intencionalmente estruturava, dividia e compartimentava todo o espaço interior disponível”.68 Os trabalhos eram quase exclusivamente articulados e exibidos dentro das estruturas contidas das salas ao invés de ambientes externos. Com raras exceções operavam em situações de ‘campo’ aberto. Relacionavam-se diretamente com o espaço interno em que eram exibidos, jogando com a escala desses ambientes. Os trabalhos minimalistas recusavam o conceito de composição vinculado à tradição européia, propondo a substituição desse conceito tradicional e as demais noções vinculadas, tais como a projeção, o equilíbrio e a forma (no sentido morfológico), pelos conceitos produtivos de estrutura, série, repetição, processo, elemento como solução de unicidade. Em vez de compostos, os trabalhos eram reunidos e ordenados; deixaram de ser esculpidos e passaram a ser soldados, aparafusados, colados ou simplesmente empilhados, configurando assim um deslocamento da questão artística do eixo abstração/figuração para o eixo relacional/não relacional. Um dos núcleos de problemas empíricos e teóricos do Minimalismo foi a formulação realizada pelo all over da pintura expressionista-abstrata de Jackson Pollock. Ao fazer uso de um tratamento relativamente uniforme da superfície da tela, Pollock fechava a grade cubista e conseqüentemente fazia com que tudo valesse por tudo, sem privilégio de partes, numa soma igual a zero, num todo, rompendo com o conceito tradicional de composição, de parte e extra parte, bem como com os valores e noções vinculadas tais como orientação, hierarquia, centro e harmonia. Esse problema conduziu ao conceito-chave da produção minimalista: o raciocínio não relacional. Absorvido pelo Minimalismo, o all over é diametralmente oposto ao raciocínio por composição pela adição. Em lugar dos conceitos tradicionais de projeção, equilíbrio, forma, a unicidade dos trabalhos row of panels on a wall owe the possibility of their existence in the selected form to presence of the wall, just as the patern of our own existence is determined largely by enviromental factors. The minimal artist no longer questions – he challenges and observes.” BATTCOCK, Gregory. Introduction. In.: BATTCOCK, Gregory (org.). Minimal Art: A Critical Anthology. Berkeley: University of California Press, 1995, p.32.68 Idem, p.20. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210303/CA Os espaços que se exibem 84 minimalistas era garantida a partir da lógica serial, de uma ordem de coeficiente racional, da repetição, da combinatória e da progressão de elementos autônomos e não a partir do agenciamento de partes69, gerando um nexo estrutural. Desse modo, os trabalhos eram estruturas que em maior ou menor medida, sensibilizaram o espaço expositivo. Fundamental para o êxito dessa integração foi outro de seus núcleos: a questão da geometria. O Minimalismo estava relacionado à redescoberta da geometria pelo construtivismo russo – ausente nos movimentos artísticos anteriores, tanto no Expressionismo Abstrato quanto na arte pop –, o que coloca o construtivismo como um precursor da integração espaço-obra, a exemplo dos contra-relevos de Tatlin. A maior parte dos trabalhos minimalistas eram do tipo construtivo, entretanto, diferentemente do construtivismo ou mesmo de qualquer arte geométrica – que por essência traduzem uma espécie de a priori intelectual de uma forma sensível –, não partem de figuras geométricas, de formas ideais ou da geometria como pensamento (como no caso do neoconcretismo), mas sim, de padrões regulares, homogêneos, axiomáticos, não virtuais. Não são polígonos, mas elementos livres, que ordenados, exibem um nexo estrutural em consonância com a estrutura de produção anônima do mundo pós-industrial, abstrata, de estruturas recorrentes e repetitivas, de economia dos meios, de extração do máximo a partir do mínimo. Por outro lado, criticam o consumismo capitalista ao se valerem de um modo de apresentação direto, frontal, sem intermediação, refratário às qualidades expressivas, oposto à lógica de consumo, da maquiagem e do fetiche da mercadoria – ao contrário da arte pop que mostrou ser a sedução da mercadoria igual à da arte. O Minimalismo parece ter levado essa aproximação entre arte e vida ainda mais adiante. Os materiais empregados eram industriais, anônimos e assumidos de modo literal. Uma recusa de ressignificação do objeto que conduzia todo o raciocínio da leitura do trabalho, pois a literalidade não apenas expunha as propriedades físicas do objeto, o caráter objetual, mas caracterizava a situação como um todo. A relação tríade, observador-obra-espaço, se desenvolvia nesse 69 Faz-se uma distinção entre os conceitos de forma e elemento no sentido morfológico. A unidade – muitas vezes descontínua – não pertence à retórica do fragmento, apropriada à forma, mas a um processo de construção a partir de elementos que exclui a idéia de partes. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210303/CA Os espaços que se exibem 85 registro. O endereçamento direto e imediato – pertencente à lógica planar defendida por Greenberg – eliminou o caráter de transcendência e os resíduos metafísicos da arte, em favor da prática de uma arte conforme a vida. Os trabalhos são enfaticamente anti-ilusionistas: não há narratividade do mundo, nem representação, mas um pragmatismo que resulta na redução da arte ao fenômeno visual, ao consumo óptico. Como afirmara Greenberg, “sob a ‘redução’ modernista, a escultura tornou-se quase tão exclusivamente visual em sua essência quanto a própria pintura”.70 O caráter de ‘presença’ dos trabalhos é produzido pela relação estabelecida entre a obra e o espectador, em função das circunstâncias em que a obra é enfrentada: o trabalho é experimentado somente em tempo e espaço reais, em ato, exatamente como experimentamos na vida cotidiana qualquer objeto ordinário. O Minimalismo coincide o espaço e o tempo da obra com o espaço e o tempo real, vivido. A relação tradicional entre obra e espaço é modificada, pois se passa no registro literal. Assume o tempo e o espaço da vida, ao modo contínuo da vida moderna, a realidade secular e desencantada da vida e terminam reduzindo a arte à uma condição extremamente austera. No momento em que a arte minimalista envolveu uma relação empírica, de situação, ela se remeteu muito mais ao curso da vida do que qualquer outra arte anterior, fazendo os objetos de arte ingressarem na ordem natural das coisas do mundo, tornando-a substantiva. Esse empirismo significava que qualquer solução teria de ser encontrada mais na experiência do que no pensamento, o que de certo modo reforçava o papel do espectador na consubstanciação do fenômeno artístico. O trabalho deixava de ser uma presença em si porque dependia do outro, esperava o outro para completá-lo como presença. De certo modo, a integração minimalista espaço-obra pode ser considerada similar aos conceitos expositivos de organização e montagem de uma exibição. No Minimalismo, analisando de maneira reducionista, embora a obra dependa do espaço, numa exposição o espaço depende da obra. Contudo, ao contrário do cubo branco que neutraliza o espaço, os trabalhos minimalistas o ativam ao incorporá- 70 GREENBERG, Clement. Arte e Cultura. São Paulo: Ed. Ática, 2001, p. 153. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210303/CA Os espaços que se exibem 86 lo à sua estrutura. A ausência de significado espacial que o conceito do cubo branco pressupunha, que começara a ruir no Expressionismo Abstrato, se extinguiu ao entrar em conflito com as ideologias dessa arte, que pode ser melhor entendida pela descrição do escultor minimalista Carl Andre, ao sintetizar a evolução da escultura no século XX como uma mudança de interesse da “escultura como forma” para “escultura como estrutura” e finalmente para “escultura como lugar.” 71 Ilustração 10 - Lever, Carl Andre, 1966. 71 “Sculpture as form. Sculpture as structure. Sculpture as place”. BOURDON, David. The raized sites of Carl Andre. In.: BATTCOCK, Gregory (org.). Minimal Art: A Critical Anthology. Berkeley: University of California Press, 1995, p.103. DBD PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210303/CA Os espaços que se exibem 87 Entre a escultura e o ready made, os trabalhos de Andre parecem estar entre aqueles que mais exploram o espaço em que se inserem. Neles há um deslocamento da ênfase da idéia do espaço dentro de um trabalho para a idéia de um trabalho dentro do espaço. Estão muito mais próximos à incorporação do espaço do que de um recorte no mesmo. Tendem a envolver o espectador com o entorno, com o meio, com as condições físicas da experiência, pois mobilizam integralmente o espaço cúbico em que se inserem formando estruturas de situação espacial que conjugam a obra e o espaço. Essas estruturas são efetivadas somente quando incluídas à experiência perceptiva do sujeito fruidor, pois exigem dele a experimentação de seu espaço estrutural. ‘Lever’ (1966), por exemplo, funciona como extensão espacial do corpo do espectador, um desdobramento correlato de seu caminhar e do chão da galeria. A coluna horizontal de tijolos intervém no espaço da sala. Há também em Andre um questionamento explícito do espaço como instância institucional. Os trabalhos são desmontáveis e facilmente reprodutíveis. Os materiais são banais (tijolos, compensados) e, tal como o restante dos trabalhos minimalistas, desinvestidos de qualquer qualificação ou expressividade. A relação entre os trabalhos minimalistas e o espaço expositivo variaram bastante. Os trabalhos de Tony Smith, por exemplo, se relacionavam com o espaço de modo singular. Sua produção estava mais vinculada à tradição geométrica, a uma geometria de caráter combinatório – e até certo ponto serial, mas em antítese à idéia de repetição literal. Um raciocínio que envolvia
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