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1 Sociologia e Trabalho: Uma Leitura Sociológica Introdutória Walmir Barbosa 2 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO.................................................................................................................04 1. AS CIÊNCIAS SOCIAIS...................................................................................................05 2. AS TEORIAS CLÁSSICAS ..............................................................................................11 2.1. O Pensamento Positivista................................................................................................11 2.2. O Pensamento de Marx...................................................................................................13 2.3. O Pensamento Liberal de Max Weber ..........................................................................27 3. O SENTIDO ONTOLÓGICO DO TRABALHO............................................................35 4. HISTÓRIA, SOCIEDADE E TRABALHO.....................................................................39 4.1. Sociedade Primitiva e Trabalho.....................................................................................39 4.2. Sociedade Escravista e Trabalho ...................................................................................41 4.3. Sociedade Feudal e Trabalho .........................................................................................43 4.4. Sociedade Moderna e Trabalho .....................................................................................50 4.5. Sociedade Contemporânea e Trabalho .........................................................................60 5. CAPITALISMO, DINÂMICA DE REPRODUÇÃO E CRISE.....................................71 6. UMA ABORDAGEM CRÍTICA DO ESTADO..............................................................85 7. ESTADO E AUTORITARISMO NO BRASIL107 8. PADRÃO DE ACUMULAÇÃO CAPITALISTA NO BRASIL DO SÉCULO XX.....119 8.1. Introdução........................................................................................................................119 8.2. Reorganização da Cafeicultura e Industrialização ......................................................120 8.2.1. A Formação do Assalariado Urbano ..........................................................................122 8.2.2. Da Manufatura à Indústria: A Difícil Transição ......................................................124 8.3. Estado, Classe Operária e Padrão de Acumulação de 1930 a 54................................129 8.3.1. A Revolução de 30 e o Surgimento do Estado Intervencionista...............................130 8.3.2. O Operariado no Conjunto das Transformações do Período ..................................133 8.3.3. Industrialização e Padrão de Acumulação.................................................................136 8.4. Padrão de Acumulação Capitalista Internacionalizado ..............................................142 8.4.1. A Nova Fase de Expansão............................................................................................144 8.4.2. Contradições e Desequilíbrios do Novo Padrão de Acumulação e Financiamento Capitalista ...............................................................................................................................147 8.4.3. A Crise de 1962 a 1967.................................................................................................149 3 8.4.4. As Características do Ciclo Econômico do “Milagre Econômico Brasileiro” ........155 8.5. Contradições e Crise do “Milagre Econômico Brasileiro”..........................................160 8.6. O II Plano Nacional de Desenvolvimento......................................................................163 8.6.1. O II PND: O Prolongamento da Acumulação Precedente e a Postergação da Agonia......................................................................................................................................164 8.6.2. O II PND e as Contradições Burguesas......................................................................167 8.6.3. Contradições e Crise do II PND..................................................................................170 8.7. A Articulação do Modelo Econômico ............................................................................172 8.8. A Transição Para o Novo Padrão de Acumulação Capitalista e de Financiamento .180 9. GLOBALIZAÇÃO E REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA........................................183 10. IMPÉRIO E DESTRUIÇÃO...........................................................................................207 Anexo 1 4 APRESENTAÇÃO Convivemos com um período histórico particularmente difícil para o mundo do trabalho. A democracia liberal reduzida a um caráter formal e a economia de mercado global acima da política de sentido público e das necessidades humanas, têm determinado fenômenos sociais como o acirramento das contradições e conflitos sociais, a busca pelas soluções individuais, a desideologização do debate político e o avanço do relativismo, do irracionalismo e do niilismo na sociedade atual. O cinismo percorre o pensamento e a ação social de grande parte dos indivíduos e grupos sociais que têm conservado o acesso privilegiado aos bens materiais e culturais. Legitimam e justificam, de forma ativa ou passiva, direta ou indireta, explícita ou implícita, a democracia liberal formal e a economia de mercado global, arquitetas do fascismo social em curso em todo o mundo. O presente texto pretende-se uma contribuição de caráter introdutório, no âmbito de temas sociológicos e históricos, no sentido de proporcionar uma instrumentação teórica e metodológica de abordagem crítica da realidade atual. O enfoque buscará uma abordagem de totalidade da realidade a partir do mundo do trabalho. O presente texto pretende-se constituir em um caderno didático básico e disponível eletronicamente, voltado para a disciplina Sociologia do Trabalho. Enquanto material didático concebido eletronicamente nos permitirá a sua reapreciação e reestruturação continuada a partir da avaliação permanente conduzida por alunos e professores da disciplina. Em que pese os limites de um texto de caráter introdutório e do próprio autor é necessário que se registre as contribuições de Ana Paula O. S. Nunes e de Sebastião Cláudio Barbosa. Estas contribuições ocorreram por meio de leituras críticas e debates pessoais, nem sempre assimiladas pelo autor. 5 1. AS CIÊNCIAS SOCIAIS As ciências sociais possuem como objeto de investigação e estudo o comportamento social humano. Comportamento este que pode assumir diversas expressões e formas sociais. À medida que o conhecimento acerca do comportamento humano foi sendo ampliado, as ciências sociais foram se dividindo em diversas ciências particulares. Dessa forma se consolidaram na: a) Sociologia, que se ocupa do estudo das relações sociais e das formas de associação dos diversos grupos sociais. São temas de investigação da sociologia a divisão social da sociedade, os conflitos sócio-politicos, os processos de mudança social etc. b) Economia, que se ocupa do estudo do processo de produção, circulação, distribuição e consumo de bens e serviços. São temas da investigação da economia o padrão de acumulação capitalista vigente, as políticas públicas sobre a esfera do mercado etc. c) Antropologia, que se ocupa do estudo das origens e desenvolvimento da cultura dos diversosgrupos humanos (étnico, nação etc), bem como suas identidades culturais. São temas de investigação da antropologia a indústria cultural, mitos e ritos antigos reminiscentes na nossa contemporaneidade etc. d) Ciência Política, que se ocupa do estudo das relações de poder no âmbito das macro e micro estruturas sociais. São temas de investigação da Ciência Política o caráter e o papel do Estado, as lutas e conflitos políticos etc. Surge a Sociologia Conforme disse certa vez um pensador “não há raios em dia de céu azul”. Os fenômenos, sejam eles naturais ou sociais, são fruto de condições e circunstâncias que podem ser mais ou menos evidentes, mas que serão sempre determinantes para a sua materialização. A sociologia surge como o resultado de condições e circunstâncias historicamente determinadas. A acumulação primitiva do capital, que transforma o trabalho em mercadoria e revoluciona a produção e a circulação das mercadorias, e a emergência do urbanismo, antropocentrismo e do espírito crítico-investigativo, que dessacraliza a política e o Estado e coloca o pensamento liberal e contratual no centro das relações sociais, desagrega 6 progressivamente o chamado Antigo Regime, isto é, a sociedade de ordens, o absolutismo e o mercantilismo. Entre os séculos XV e XVIII transformações progressivas nas esferas sociais econômicas, políticas e culturais estão, portanto, em curso. Como conseqüência, ocorrem as revoluções industrial e burguesa, de forma a consolidar definitivamente a sociedade moderna e o projeto social burguês. A afirmação da nova sociedade intensifica as contradições e os conflitos sociais. Os conflitos de classes envolvendo as classes sociais tradicionais (aristocracia, artesãos e camponeses) e as classes sociais emergentes (burguesia, camadas médias e proletários) e, principalmente, as novas classes sociais fundamentais, isto é, a burguesia e o proletariado. A sociologia surge, portanto, para refletir sobre as transformações, crises e antagonismos de classes que acompanham a afirmação da sociedade industrial e burguesa. A sociologia não surge para contestar e/ou criticar a nova sociedade em consolidação. A preocupação fundamental dos primeiros “sociólogos” consiste na reorganização e reestruturação da sociedade capitalista e burguesa, de forma a encontrar um “padrão social saudável”. O compromisso para com a preservação e manutenção da chamada nova ordem capitalista encontra-se explícita no pensamento dos primeiros sociólogos. A objetividade científica na sociologia O conhecimento científico objetivo ou objetividade científica é uma busca permanente de toda ciência e de todo pesquisador. Nas ciências sociais este objetivo não é facilmente alcançável. Os fatos sociais são singulares, não se repetem jamais. Tal singularidade priva as ciências humanas da possibilidade de formular sistemas explicativos causais, o que faz de qualquer fato social e de qualquer pesquisa sobre ele, processos sociais singulares e sujeitos à “arbitrariedade” do sujeito que investiga o objeto. É necessário, portanto, reconhecer o quanto é problemática a questão da objetividade científica nas ciências sociais. De fato, podemos nos deixar conduzir, no estudo da sociedade ou de grupos sociais a que pertencemos ou com os quais nos identificamos, por um conjunto de idéias, crenças e valores que apreendemos ao longo da nossa existência. Hoje reconhecemos mais claramente que a imparcialidade e a neutralidade do sujeito que investiga frente ao objeto investigado é uma ilusão, uma miragem cada vez mais raramente não reconhecida. Este fato, todavia, não pode ser tranqüilizador. A objetividade científica, que não é 7 de forma alguma facilmente alcançável, pode ser conquistada. Portanto, é necessário buscar o “distanciamento” ideológico-político frente ao fenômeno investigado e a abertura para novas possibilidades teóricas, metodológicas e técnicas na investigação do referido fenômeno. A sociologia no Brasil Transformações profundas têm início no Brasil a partir da lei Eusébio de Queiroz e da Lei de Terras, ambas de 1850. Por meio delas tem início a transição do trabalho escravo para o trabalho livre e a transformação do trabalho (não do trabalhador) em mercadoria, isto é, tem início a transição das relações escravistas de produção para as relações capitalistas de produção no país. Transformações são mais sentidas a partir de 1870. Observa-se uma rápida expansão demográfica, um considerável processo de urbanização, a formação de segmentos médios urbanos, uma intensa imigração européia, uma expansão inusitada da nova cafeicultura capitalista, o surgimento das primeiras indústrias, entre outros processos. Estas transformações culminam no processo de afirmação do projeto liberal republicano por meio da abolição da escravidão, da Proclamação da República e da constituição promulgada de 1891. Surge nesse processo, o Estado burguês no Brasil. Estas transformações também estão presentes no pensamento. No plano da criação literária, por exemplo, surge a reflexão e a crítica social, conforme demonstram as obras de Aluízio de Azevedo, de Machado de Assis e de Castro Alves. Mas, seguramente, será com Euclides da Cunha, por meio da obra Os Sertões (1902), que a reflexão e a crítica social opera um grande passo no Brasil, seja para compreender o país, seja para afirmar um pensamento que se ocupa do comportamento social humano. Os Sertões permite um olhar para o país a partir dele mesmo, no qual se busca identificar as contradições entre o litoral e o interior, o urbano e o rural. Permite, ainda, um olhar para as classes sociais subalternas, e as mesmas são reconhecidas como possuidoras de capacidade e possibilidade de transformar a realidade. Nas primeiras décadas do século XX o processo de urbanização e de industrialização acentuará perspectivas nacionalistas, modernistas e desenvolvimentistas. São exemplo destas perspectivas o movimento tenentista, a Semana de Arte Moderna e a Revolução de 1930. Definitivamente encontra-se despertada junto a setores da classe burguesa vinculada a indústria e às camadas médias intelectualizadas a necessidade da compreensão dos conflitos sociais, das contradições entre modernização e arcaísmo, do aprimoramento das instituições 8 públicas em face das novas necessidades. O ambiente histórico favorável para o surgimento da sociologia enquanto uma ciência voltada para o conhecimento sistemático e metódico da sociedade, culmina na fundação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (1934) da Universidade de São Paulo, influenciada pela sociologia francesa de inspiração weberiana e marxista, e com a fundação da Escola Livre de Sociologia e Política (1933), influenciada pela sociologia norte-americana de inspiração neopositivista e funcionalista. O surgimento das faculdades de sociologia encontra-se profundamente influenciado por Caio Prado Júnior, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. Estes estudiosos influenciaram profundamente os anos 30 e 40. Caio Prado Júnior, lançando mão do método marxista e partindo do referencial histórico, busca uma investigação de cunho social. Por meio de obras como Evolução Política do Brasil (1933) e Formação do Brasil Contemporâneo (1942), investiga o caráter subalterno e dependente da sociedade brasileira, desde a sua origem até o século XX, bem como as formas de opressão e exploração dos grupos sociais subalternos. Sérgio Buarque de Holanda, lançando mão do método weberiano e partindo do referencial histórico-cultural, busca uma investigação da trama estabelecida entre a ocupação do espaço brasileiro e a construção da subjetividadedestes grupos humanos. Por meio de obras como o Raízes do Brasil (1936) e Visão de Paraíso (1959), investiga a visão esteriotipada dos europeus acerca do Brasil. Gilberto Freyre, lançando mão do método funcionalista e partindo do referencial antropológico, busca uma investigação da cultura nacional. Por meio de obras como Casa- Grande e Senzala (1933) e Sobrados e Mocambos: decadência do patriarcado rural no Brasil (1936), investiga a fusão de raças, regiões e culturas e o papel do negro na formação da identidade cultural brasileira. Nos anos 50 o Pensamento social brasileiro amadurece definitivamente graças aos estudos de Florestan Fernandes e Celso Furtado. Florestan Fernandes busca, de um lado, uma síntese entre a formação teórica e a formação prática transformadora, isto é, busca uma ciência da práxis; de outro, uma abordagem que combinasse a identificação das estruturas – os fundamentos da organização social – com conjunturas históricas – contradições geradas pela dinâmica interna da estrutura. Florestan Fernades representa uma continuidade em relação a Caio Prado Júnior, visto que também busca compreender as raízes do caráter subalterno e dependente do Brasil, bem como dar voz aos grupos sociais subalternos por meio de obras como A organização social dos tupinambás (1948) e A integração do negro à sociedade de classes (1964). 9 Celso Furtado busca construir uma interpretação histórica da formação e desenvolvimento econômico do Brasil e da América Latina no contexto das relações internacionais, a partir de referencias weberianas e keynesianas. O seu objetivo principal é compreender o subdesenvolvimento. Para Celso Furtado o subdesenvolvimento não seria uma etapa histórica necessária para os países alcançarem o pleno desenvolvimento capitalista, e sim o fruto do próprio desenvolvimento do capitalismo, e que leva ao sacrifício de povos, países e continentes. Celso Furtado compreendia, ainda, que o subdesenvolvimento poderia ser superado nos marcos do próprio capitalismo por meio de intervencionismo e planificação estatal, da estratégia de industrialização por substituição de importações, da defesa do mercado interno e da modernização do setor agropecuário.Procura demonstrar estas teses por meio de obras como Formação Econômica do Brasil (1959) e Formação Econômica da América Latina (1969). Nos anos 60 e 70 o pensamento social brasileiro é profundamente marcado por pensadores como Darcy Ribeiro e Octávio Yanni. Darcy Ribeiro busca estudar a questão indigenista sob influência do estruturalismo de Levi-straus e do marxismo. Dentre suas obras de maior destaque encontram-se O Processo Civilizatório (1968) e Os Brasileiros (1969). Octávio Yanni busca estudar o desenvolvimento econômico brasileiro, a exploração e a resistências dos grupos sociais do mundo do trabalho, referenciados nos clássicos marxistas e weberianos. Dentre suas obras de maior destaque encontram-se Estado e Planejamento Econômico no Brasil – 1930 a 1970 (1971) e A sociedade global (1993). O pensamento social brasileiro encontra-se profundamente influenciado pela ofensiva liberal, também denominada neoliberal, em todo o mundo. Esta ofensiva teve início com a ascensão dos conservadores e republicanos neoliberais, respectivamente, na Inglaterra (Thacher, 1979) e nos Estados Unidos (Reagan, 1980) e foi aprofundada com a queda do Muro de Berlim (1988) e com o fim da União Soviética (1991). A ofensiva liberal culmina na campanha ideológica neoliberal, ancorada em aspectos como na crítica do intervencionismo estatal, na defesa da privatização e desregulamentação da economia, na ação política de desarticulação da rede pública e previdenciária de proteção social, de um lado, e na campanha ideológica globalitária, ancorada em aspectos como na crítica das barreiras alfandegárias, na livre movimentação de capital, mercadorias e serviços, no novo impulso no processo de mundialização das empresas transnacionais. As conseqüências para o pensamento social brasileiro foram o refluxo dos estudos sociais, o abandono da teoria e 10 metodologia marxista por diversos intelectuais, o crescimento dos estudos de abordagem fragmentada, a revitalização de estudos de mentalidade, cultura, identidade etc. Mais recentemente, observa-se a intensa retomada dos estudos dos fenômenos sociais, da teoria e metodologia marxista e de abordagens de totalidade. Isto porque, de um lado, a ordem mundial pós–guerra fria não proporciona uma distribuição mais justa dos bens materiais e culturais, muito pelo contrário. De outro lado, o próprio agravamento da crise social, econômica, política e ideológico-cultural do capitalismo e da sociedade burguesa, impõe desafios e respostas inusitadas para as contradições e conflitos sociais. Enfim, a perspectiva de uma ordem social nacional e internacional de abastância de bens e de paz e do fim das revoluções, imortalizada na tese do “ fim da história ” de Francys Fukuyama, dá lugar a bruta realidade. Neste contexto cabe à sociologia, em especial na sua concepção crítico-transformadora, contribuir para a interpretação dessa realidade. 11 2. AS TEORIAS CLÁSSICAS A sociologia, já na sua origem, se ocupa das contradições e conflitos que percorrem a sociedade. Todavia, a abordagem das contradições e conflitos assumem perspectivas e compromissos sociais e políticos profundamente diferenciados. O pensamento positivista, o pensamento de Marx e o pensamento de Weber expressam o prolongamento das contradições e conflitos sociais para o próprio pensamento social. 2.1. O Pensamento Positivista O Positivismo nasce de pensadores como Saint-Simon, August Comte e Émile Durkeim. Para os positivistas a sociedade, tal qual o mundo natural, seria regida por leis naturais, invariáveis, independentes da ação e da vontade dos indivíduos. O papel da ciência positiva seria observar e descrever, sob neutralidade e objetividade científica, estas leis de forma que os homens pudessem agir de acordo com elas. A concepção positivista concebe a sociedade como um organismo composto por partes diferentes e interdependentes. A existência saudável desta sociedade depende da integração entre as partes e do desempenho da função específica de cada uma das mesmas. Assegurar integração e desempenho de função proporcionaria um padrão de saúde social cuja expressão seria o consenso, a conciliação e a coesão social. Assegurar a harmonia entre as partes, dentro da ordem natural do mundo social, tornaria possível a sociedade evoluir crescentemente, isto é, atingir o progresso. Contudo, em uma sociedade em que cada indivíduo ou grupo – a parte – contestasse o seu lugar natural no interior da sociedade, desconhecendo o seu papel e função específica, teria início a desintegração e a crise de desempenho de função. Estabeleceria um estado de “patologia social”, cuja evidência seria o conflito. Neste contexto, o progresso técnico, econômico, social, político, cultural, escolar etc, estaria comprometido. Para os positivistas a própria dinâmica acelerada das sociedades industriais contemporâneas geraria um ambiente social permissivo a conflitos. A dinâmica acelerada de criação de novas relações sociais proporcionada pela sociedade industrial, por exemplo, não permitiria o tempo necessário para sedimentar usos e costumes que gerariam uma regulamentação legal adequada sobre os direitos e deveres das partes que compõem o todo social. Estabeleceria estados de anomia social, isto é, de ausência de leis claramente 12 estabelecidas para dirigir a conduta dosindivíduos. A perpetuação do estado de anomia geraria o caos e a desordem social de forma a colocar sob risco a sociedade e o progresso social. A investigação das relações entre capital e trabalho sob uma conjuntura de transformações capitalistas mergulhadas em estado de anomia social cumpriria, por exemplo, o papel de proporcionar ao poder público e empresários as condições para formular e estabelecer a legislação trabalhista adequada aos novos tempos. Como resultado ocorreria a superação do conflito entre capital e trabalho. Estado e Política Científica Para a concepção positivista o cientista social, em especial o sociólogo, possui o instrumental científico para detectar os estados de normalidade e de patologia social. Todavia, não dispõe do instrumental político para materializar as suas conclusões científicas. A materialização das conclusões científicas caberia a outro grupo social, os políticos. Isto porque os políticos integrariam o Estado, instituição concebida por eles como sendo superior a todas as outras instituições e acima dos indivíduos e dos grupos sociais, cuja função seria coordenar as funções das diversas partes da sociedade, de forma a assegurar o bem comum, a harmonia, a ordem e o progresso social. Assim, “o Estado seria o cérebro social, o lugar da política que zela pelo bem comum” (Ridenti, 1992, p. 9). A concepção positivista concebe a política como instrumento para o “tratamento” das “patologias” identificadas e descritas pela sociologia, isto é, como a instituição necessária entre a descoberta científica da ciência sociológica e a realidade a ser “tratada”. A atuação política não poderia, portanto, encontrar-se ao sabor irresponsável e inconstante dos operadores políticos. Poderia e deveria ser conduzida cientificamente pelos operadores políticos para combater os conflitos, gerar a ordem social e promover o progresso econômico. Nesta perspectiva, quando a atuação dos operadores políticos for igualmente científica, o futuro político será previsível. Isto porque o futuro, ainda que sujeito a anomia social, seria o desenvolvimento natural do presente racionalizado e planejado. Sociedade e Vontade Política Para a concepção positivista a sociedade, por meio de instrumentos ou espaços sociais como a educação, a família, a igreja, a empresa etc, impõe um processo de sociabilização dos indivíduos. O indivíduo incorporaria como seus valores próprios as regras de conduta social 13 impostas pela sociedade, a exemplo do uso da linguagem, do amor à pátria, do respeito às instituições, e assim por diante. Na sociedade contemporânea os indivíduos teriam realçado o seu papel. Isto porque ocorreria uma intensa divisão social e técnica do trabalho, respectivamente, na sociedade e no local de trabalho. O fortalecimento das individualidades se articularia com a extrema interdependência e solidariedade dos indivíduos, isto é, quanto mais o progresso técnico individualizasse o indivíduo mais o tornaria interdependente. Nesta perspectiva, progresso social e liberdade individual caminhariam na mesma direção quando a sociedade se encontrasse sob um estado de ordem social. Do ponto de vista político caberia aos indivíduos declinar de realizar mudanças nas leis que regem o desenvolvimento social e que estão fora e acima das vontades particulares. Caberia aos indivíduos concorrer para que estas leis atuassem livremente, somente possível com o desenvolvimento da sociedade sob um estado de ordem social. 2.2. O Pensamento de Marx Marx, por meio do diálogo crítico com os pensadores que o precedem e do compromisso com o mundo do trabalho, formula um novo método de análise. Método este que proporciona uma nova concepção de homem e de sociedade, uma interpretação dialética da história e uma crítica da economia política burguesa. Sociedade e Totalidade em Marx Identificar o método de análise de Marx nos impõe, de início, expor o seu conceito de “sociedade”. Para Marx, a sociedade, articulada por meio de uma formação social concreta e específica, seria produto do desenvolvimento individual e da ação recíproca dos homens, tenham eles consciência disso ou não. Entretanto, não poderiam eleger a formação social em que se encontram, nem tampouco arbitrar livremente sobre suas forças produtivas. A formação social e as forças produtivas seriam o resultado, respectivamente, das lutas sociais e da ação sobre a natureza conduzidos por parte dos homens que os precederam. A sociedade se conformaria em um todo complexo e interdependente, sujeita a múltiplas determinações. A um determinado nível do desenvolvimento das forças produtivas, corresponderia um determinado desenvolvimento da produção, do comércio e do consumo. Um determinado nível do desenvolvimento da produção, do comércio e do consumo, corresponderia 14 a um determinado desenvolvimento das formas de organização social – organização da família, das classes sociais etc. Um determinado nível de desenvolvimento das formas de organização social, corresponderia a um determinado Estado. Um determinado desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção, corresponderia a determinadas expressões ideológico- culturais (Marx e Engels, 1952, p. 414-424). A sociedade, articulada por meio de uma formação social concreta e específica, encontrar-se-ia em constante movimento. Portanto, qualquer formação social seria sempre transitória e histórica. Este conceito de “sociedade” é uma construção proporcionada pelo método dialético e compõe a concepção materialista da história. A compreensão das sociedades de classes, por exemplo, não pode ocorrer, portanto, abstraindo a gênese da sociedade, o modo como ela é produzida e o modo como ela opera em função da sua própria gênese. O Método Dialético Para Marx, a idéia não pré-existiria ao real, ao material. A idéia seria o próprio real transposto e traduzido no pensamento do homem. Marx excluía o sublime, o fantástico do existente, do real. Essa leitura dialética e materialista da relação entre idéia e real determinaria o método de análise de Marx, de modo que este partiria sempre da investigação preliminar do real e do concreto. Não do real e do concreto idealizado, como poderia sugerir o termo “população”, quando abstraído das suas classes sociais, das relações de produção sobre as quais se apoia etc, que, segundo Marx, somente poderia permitir atingir abstrações frágeis e progressivamente mais simples. Mas do real e do concreto enquanto uma rica totalidade de determinações e diversas relações. Para Marx 1982, p. 14), (...) o concreto aparece no pensamento como o processo da síntese, como resultado, não como ponto de partida, ainda que seja o ponto de partida efetivo e, portanto, o ponto de partida também da intuição e da representação. No primeiro método, a representação plena volatiliza-se em determinações abstratas, no segundo, as determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto por meio do pensamento. Por isso é que Hegel caiu na ilusão de conceber o real como resultado do pensamento que se sintetiza em si, se aprofunda em si, e se move por si mesmo; enquanto que o método que consiste em elevar-se do abstrato ao concreto não é senão a maneira de proceder do pensamento para se apropriar do concreto, para reproduzi- lo como concreto pensado. Mas este não é de modo nenhum o processo da gênese do próprio concreto. 15 Partir do real e do concreto permitiria, segundo Marx, apreender dinâmicas1 e formular conceitos, enquanto expressão de múltiplas determinações do real captado e (re)construído no pensamento. Para Marx, expressaria “o curso do pensamento abstratoque se eleva do mais simples ao complexo” – e que corresponderia, efetivamente, ao próprio processo histórico (Marx, 1982, p. 15). Encerrado esse momento retornar-se-ia ao real, mas agora enquanto real reconstruído e conhecido. O real se apresentaria enquanto um fluxo permanente de movimento e de contradição. Movimento e contradição seriam dados objetivos do real, visto que emergiriam das próprias bases sobre as quais historicamente se configuraria o real. Portanto, independentemente da própria compreensão da idéia de movimento e de contradição (ou das representações construídas no âmbito do pensamento, tendo em vista expressá-las), elas percorreriam o pensamento e a prática do homem. Movimento e contradição expressar-se-iam em um período ou etapa histórica dominado por um modo de produção. Esse, por sua vez, se manifestaria por meio de formações sociais concretas e específicas. O modo de produção, bem como as formações sociais concretas e específicas, seriam estruturas sociais historicamente determinadas. Marx concebe o real (a sociedade concreta em seu movimento e sob contradições) como um processo histórico. Esse real estaria regido por dinâmicas históricas. Não dinâmicas gerais, a- históricas que, emergidas de leis naturais, regeriam para todo o sempre o real, mas dinâmicas específicas a cada período ou etapa histórica e que se expressariam por meio de modos de produção e de formações sociais concretas e específicas. Essas dinâmicas regeriam o movimento social, por um lado, como um processo, em grande medida, independente da vontade, consciência e intenção dos homens; mas, por outro, capazes, ao mesmo tempo, de determinar concretamente a vontade, a consciência e as intenções dos homens como agentes sociais diferenciados. Esgotado historicamente um modo de produção, novas dinâmicas se conformariam ao longo do processo de surgimento de um novo modo de produção. Assim, por exemplo, as dinâmicas que regulamentariam o comércio, a população, a moeda, no mundo medieval 1 Marx em diversas passagens utilizou o termo “lei” para retratar a dinâmica de um modo de produção ou uma formação social concreta e específica, provavelmente influenciado pelo cientificismo do século XIX. Lei não no sentido que o positivismo atribuía a essa palavra, ou seja, algo constante, necessário e determinado pela coisa em si, que poderia ser reconhecido pelo homem através da observação direta dos fenômenos sociais e naturais. Para o positivismo, as leis naturais e sociais seriam idênticas. Já para Marx, as “leis” ou dinâmicas sociais seriam históricas e transitórias, expressando movimentos passíveis de transformação pela ação humana, não possuindo um sentido de 16 ocidental, não poderiam ser transpostas para compreender o comércio, a população e a moeda, no mundo capitalista ocidental. Categorias que encerram sentidos genéricos, como comércio, por exemplo, deveriam, por sua vez, ser investigadas dentro da especificidade que assumiriam em cada modo de produção. Para Marx, o fundamental na pesquisa científica seria, portanto, descobrir as dinâmicas que regeriam e modificariam os fenômenos estudados. Para ele essas dinâmicas atuariam nas condições e interesses materiais, inclusive no âmbito do próprio pensamento. Assim, a crítica do próprio pensamento, idéia, cultura, da sociedade moderna, somente poderia surgir do real, do material que o determina e não do pensamento refletindo diretamente sobre si mesmo. É da sua base material, o real, desvendado pela pesquisa, que o pensamento poderia auto-criticar-se e desalienar-se. Assim, o pensamento, a idéia, a cultura, em princípio fora de ‘lugar’, poderiam ser colocadas em seus devidos ‘lugares’. Marx cuida de distinguir, ainda, o método da pesquisa do método de exposição. Para Marx, “a pesquisa tem de captar detalhadamente a matéria, analisar as suas várias formas de evolução e rastrear sua conexão íntima. Só depois de concluído esse trabalho é que se pode expor adequadamente o movimento real” (Marx, 1988, p. 26). Marx dá exemplo concreto desta prática científica no estudo da economia política. Anteriormente à confecção da obra O Capital, Marx conduz estudos amplos e profundos sobre a mercadoria, o valor, a mais-valia, a reprodução (simples e ampliada) do capital, o dinheiro, entre outros temas, como podemos confirmar nos esquemas de estudo pessoal que tomam a forma das obras Para a Crítica da Economia Política e Teorias da Mais-Valia. Elas culminam, por meio do método dialético, na apreensão das dinâmicas que regem o capitalismo e que podem proporcionar condições sociais capazes de modificá-lo. A conquista do conhecimento do real e a sua exposição ordenada no plano do pensamento, podem criar a ilusão de uma construção a priori, de esquemas dedutivos. Mera ilusão, se pensarmos que uma obra, quando finalizada, nada mais é do que fruto de intensa pesquisa e exposição articulada por meio de uma coerência discursiva interna. Marx, conforme observamos, apresenta o seu método dialético dentro de uma configuração racional, empírica e materialista. Movimenta suas pesquisas do particular para o geral e vice-versa, busca apreender dinâmicas e formular conceitos por meio de estudos comparados dos fenômenos sociais, esforça para demonstrar a coesão entre o que anda nas exatidão matemática, mas de coerência geral determinada pelo todo interdependente dos elementos que compõe a sociedade. 17 ‘cabeças’ e as bases materiais sobre as quais se localizam os ‘pés’ e coloca a temporalidade dos fenômenos sociais no centro do seu pensamento. A Concepção Materialista da História Os debates sobre a destruição furtiva e o parcelamento da propriedade do solo, em curso na Província Renana, desperta em Marx uma preocupação com os chamados “interesses materiais” (Marx e Engels, 1983, Volume 1, p. 300 e 301). O recolhimento de lenha por parte de um camponês em uma propriedade, considerada furto pela Dieta Renana, conduz Marx à tomada de consciência de que o direito protegia a propriedade. Esse processo ocorre na sua experiência como redator da Gazeta Renana, entre os anos de 1842-43. Em 1844, por meio dos Anais Franco-Alemães, as investigações desembocam na conclusão “(...) de que tanto as relações jurídicas como as formas de Estado não podem ser compreendidas por si mesmas nem pela chamada evolução geral do espírito humano (...)”. Segundo Marx, elas “(...) se baseiam, pelo contrário, nas condições materiais de vida (...)”. Ainda segundo Marx, “(...) a anatomia da sociedade civil precisa ser procurada na economia política” (Marx e Engels, 1983, Volume 1, p. 301). A continuidade dos seus estudos permite a Marx concluir que “(...) na produção social da sua vida, os homens contraem determinadas relações necessárias e independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a uma determinada fase de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais” (Marx e Engels, 1983, Volume 1, p. 301). As relações de produção seriam as relações concretas que os homens estabeleceriam em uma determinada sociedade, tendo em vista a produção e reprodução dos indivíduos, das classes sociais e da sociedade. As relações de produção se expressariam na forma de propriedade, na forma de produção e distribuição dos excedentes sociais e na forma de organização das relações de trabalho entre as classes sociais. As relações de produção condicionariam profundamente as relações sociais em geral. As relações de produção encontrar-se-iam correlacionadas noseu desenvolvimento com as forças produtivas, que seriam os recursos tecnológicos, o conhecimento científico, as estruturas de produção rural e urbana, o nível de consciência social2 etc. Para Marx, não seria 2 O conceito de “consciência social” em Marx incorporaria as formas de expressão da subjetividade humana (expressões literárias e filosóficas, romances, doutrinas religiosas, criações artísticas etc), bem como o nível de consciência e conhecimento da relação homem/natureza e das relações sociais. Essas manifestações da consciência social seriam ideológicas e mais ou menos racionais, humanistas e críticas, segundo o grau de desenvolvimento da 18 possível forças produtivas desenvolvidas, a exemplo do nível conquistado no capitalismo, coexistindo com relações de produção ‘atrasadas’ historicamente se comparadas a estas, a exemplo das relações de produção feudais. Portanto, relações de produção e forças produtivas determinar-se-iam no desenvolvimento da sociedade humana. As relações de produção e as forças produtivas, em suas relações concretas e socialmente estabelecidas, formariam a estrutura3 (ou base) econômica da sociedade. Sobre a estrutura “(...) se levanta a superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social” (Marx, 1983, Volume 1, p. 301). Marx concebe uma interação e uma interdependência profunda entre a estrutura, responsável pela produção e reprodução da vida material, e a superestrutura, responsável pela produção e reprodução da vida política e espiritual. A relação dialética que Marx estabelece entre estrutura e superestrutura não exclui a ontologia. Neste ponto, Marx é categórico quando afirma que “(...) não é a consciência do homem que determina o seu ser, mas, pelo contrário, o seu ser social é que determina a sua consciência” (Marx, 1983, Volume 1, p. 301). Dito de outra forma, Marx não reconhece nas leis, nas formas do Estado, nas expressões subjetivas dos indivíduos, segmentos e classes sociais uma autonomia e independência da estrutura, ou seja, das condições materiais de existência da sociedade. Para Marx, a compreensão das superestruturas exige, necessariamente, um movimento de investigação que parta da estrutura. O Conceito de “Modo de Produção” Marx formula o conceito “modo de produção” para retratar a totalidade social representada pela estrutura e pela superestrutura. Marx integra, portanto, totalidade e estrutura para a compreensão, em grandes traços, dos longos períodos históricos de permanência ou conservação – entendidos como movimentos que não alterariam a essência de uma estrutura, mas que coexistiriam com a acumulação quantitativa de condições materiais e espirituais, que levariam a um ponto de ruptura num futuro indeterminado – ou breves períodos históricos de estrutura econômica, da experiência e de amadurecimento das classes sociais. Enfim, do estágio de desenvolvimento da sociedade humana. 3 O conceito de “estrutura” pode receber diversos sentidos e dimensões na teoria e metodologia marxista. Pode significar estrutura (base) econômica; superestrutura (estrutura fruto da materialização de instituições e formas de consciência social); estrutura global e abstrata identificada com o conceito de “modo de produção”; estrutura global identificada com uma formação social (ou sócio-econômica) específica e concreta. O fundamental é que o conceito de “estrutura” remete sempre para um conjunto complexo de elementos interdependentes e estáveis (o que não significa eterno) no tempo; a estrutura pode ser pensada em si própria ou em relação a outras estruturas. 19 transformações bruscas ou revolucionárias – entendidos como movimentos que alterariam a essência de uma estrutura, ou seja, rupturas qualitativas das condições materiais e espirituais responsáveis pela edificação de uma nova totalidade e estrutura. Marx indica que os grandes períodos históricos estariam estruturados a partir dos modos de produção comunal, asiático, antigo (escravo), feudal, e burguês. Modos de produção, social e historicamente determinados, mutáveis, portanto, contrariando o ideal burguês da naturalização das relações sociais, da sociedade burguesa e capitalista etc. Modo de Produção e Transformação Histórica Marx identifica contradições e conflitos na estrutura econômica da sociedade. Para Marx, as forças produtivas tenderiam para o desenvolvimento, o que as faria colidir com as relações de produção, que qualificaria e conservaria o modo de produção. Essa contradição, emergida da estrutura econômica, prolongar-se-ia para além das condições materiais da sociedade, penetrando na superestrutura e se expressando no âmbito jurídico, político e ideológico. Isto porque Marx entende a sociedade como uma totalidade, na qual a estrutura econômica exerce um profundo condicionamento sobre a superestrutura. A contradição surgida entre as forças produtivas e as relações de produção, responsáveis pelo prolongamento da contradição para o todo social, criaria um ambiente propício para transformações. Nas palavras de Marx (1983, Volume 1, p. 302), (...) abre, assim, uma época de revolução social. Quando se estudam essas revoluções, é preciso distinguir sempre entre as mudanças materiais ocorridas nas condições econômicas de produção e que podem ser apreciadas com a exatidão própria das ciências naturais, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, numa palavra, as formas ideológicas em que os homens adquirem consciência desse conflito e lutam para resolvê-lo. Assim, a contradição que nasceria no âmbito da estrutura econômica e que se prolongaria para a superestrutura, não poderia ser superada por ela mesma. A contradição acima referida apenas criaria o espaço e o ambiente propício para as transformações. A transformação dependeria da ação do sujeito social, de forma a dar um sentido e uma direção para a remoção dos obstáculos que as relações de produção (em um determinado nível de desenvolvimento das forças produtivas) representariam no sentido do posterior desenvolvimento das forças produtivas. Para Marx, o termo sociedade expressaria um sujeito social genérico. Compreender a 20 história a partir desse sujeito social como um todo indiferenciado seria idealismo. A sociedade se manifestaria, de fato, por meio de sujeitos sociais concretos, ou seja, das classes sociais antagonizadas pela propriedade privada e em conflitos explícitos – revoltas, revoluções, greves etc – e ocultos – inculcação de valores ideológicos, remanejamentos político-institucionais etc. As lutas de classes seriam conduzidas pelas classes dominantes e dominadas. Expressariam a praxis, ou seja, ações sociais (políticas, culturais etc), intencionais ou não, sempre ideológicas, com o propósito de conservar ou revolucionar as relações de produção. Marx supera, por meio da sua interpretação dialética do curso da história, o economicismo, que atribui ao fator econômico a responsabilidade pelas transformações, o evolucionismo, que reconhece uma dinâmica evolutivo-natural comandando o curso das mudanças, e o voluntarismo, que personifica as mudanças por meio da ação de determinados personagens e pequenos grupos, desprezando as estruturas econômicas e os embates de classes. Modo de Produção e Formação Social A distinção entre modo de produção e formação social não se apresenta clara para diversos cientistas sociais marxistas - incluindo historiadores. Alguns cientistas sociais marxistasreduzem o conceito de “modo de produção” a estrutura econômica. Reconhecem no conceito de “superestrutura” (formas de consciência e instituições) uma dimensão que se encontraria fora do conceito de “modo de produção”. Para esses cientistas sociais, modo de produção (estrutura econômica) e superestrutura (formas de consciência e instituições) se comporiam de forma interdependente em uma estrutura mais ampla denominada formação social - conjugação, portanto, do modo de produção e da superestrutura em uma realidade concreta e específica (Gorender, 1985, p. 1-35). Na concepção de Marx, modo de produção englobaria de forma integrada a estrutura (ou base) econômica e a superestrutura. O modo de produção seria o objeto teórico, genérico e abrangente. Uma elaboração teórico-abstrata em nível do pensamento que se prestaria a contribuir com os estudos de uma formação social (ou econômico-social) concreta e específica. Enquanto conceito teórico-abstrato estaria em constante construção, visto que os estudos sócio- históricos permitiriam a descoberta de novos elementos e relações no âmbito do conceito de “modo de produção” (Vilar, 1988, p. 173 e 174). O conceito de “formação social” encerraria a realidade social concreta e específica. Seria, portanto, um conceito menos abrangente e que nos remeteria a uma formação histórica concreta e específica, a exemplo da formação social portuguesa do século XVI ou da formação 21 social capitalista brasileira do século XX. O conceito de “modo de produção” seria, portanto, um instrumento operatório, tendo em vista o estudo de uma formação social concreta e específica. O Conceito de “Classe Social” O termo classe social não é criado por Marx. Os enciclopedistas franceses e Adam Smith se referiam a “estados” ou “ordens”, enquanto que Babeuf e os socialistas franceses falam de classes de possuidores e laboriosas. A contribuição de Marx para a construção do conceito de “classe social” surge, primeiramente, da identificação e localização social das classes sociais a partir das relações de produção, ou seja, da forma de propriedade e das relações que os homens estabeleceriam em torno dela, tendo em vista a geração e apropriação dos excedentes sociais. As classes sociais seriam definidas, em primeira instância, sobre as condições materiais em que se inseriam. Marx define as classes sociais também em termos políticos. As classes sociais, distribuídas em termos de dominantes e dominadas, se relacionariam de uma determinada forma com o poder em cada período histórico. As classes sociais se expressariam por meio de “partidos”, estabeleceriam alianças, conformariam regimes políticos etc. “A história de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história das lutas de classes”, diria Marx (Marx e Engels, Volume 1, p. 21, 1983). A partir das relações de produção e das lutas políticas que lhes seriam inerentes, Marx identifica as classes em termos de classes sociais fundamentais, em torno das quais a qualidade das relações de produção e dos conflitos seriam definidos, e classes sociais não fundamentais, periféricas no âmbito das relações de produção e incapazes de definir um projeto social alternativo às relações sociais dominantes e conduzir um bloco de alianças em torno do mesmo. Portanto, as relações de produção e a identidade e consciência acumuladas por meio da experiência política definiriam a posição e a função das classes sociais na formação social concreta e específica. Marx não reconhece a existência de classes sociais nas sociedades que não se apoiam na propriedade privada (comunidades tribais dos celtas, germânicos, eslavos; povos pastores do oriente; índios da América; sociedades despóticas orientais etc). As sociedades despóticas, embora coexistindo com a desigualdade social, não assumiria a forma completa de desigualdade social, na medida em que a unidade centralizadora – Estado – se ergueria sobre as pequenas comunidades concentrando a propriedade, mas estabelecendo relações de 22 tributação/reciprocidade. Para Bourdé e Martin, se Marx e Engels tivessem possuído mais informações históricas teriam dissociado “estados”, “ordens”, “castas” etc, de classes sociais propriamente ditas nas formações pré-capitalista de produção (Bourdé e Martin, 1983, p. 159- 164). Como esboço de uma sociologia das classes a partir de Marx, é possível identificar que: a) a definição de uma classe social implica na referência a aspectos sociais, econômicos, políticos e ideológicos; b) seria pertinente considerar as classes em função da estrutura de classes e não isoladamente; c) as lutas de classes determinam, em grande medida, os conflitos e dinâmicas do nível político e dos demais níveis da sociedade. Tais conflitos e dinâmicas não podem, entretanto, ser interpretados como mero prolongamento das lutas de classes. O Conceito de “Ideologia” Marx parte da compreensão de que existiria um elo entre formas ‘invertidas’ de consciência e a existência material dos homens. Essa compreensão nasce da crítica a Feuerbach e a Hegel. Marx apreende a tese materialista de Feuerbach de que os homens criam Deus e as religiões, e não o contrário. Distancia-se deste quando demonstra que tal inversão não é uma pura construção do pensamento, mas que encontra-se no mundo real, que é um bálsamo criado pelos homens para compensar as contradições do mundo real. Marx submete o próprio pensamento de Hegel a esta crítica. Hegel supôs que a Idéia ou Razão Absoluta se manifestaria no mundo empírico e que o Estado prussiano seria a auto- realização da Idéia objetivada. Marx busca demonstrar que a idéia do Estado enquanto “universal absoluto” que determina a sociedade civil, não seria apenas uma ilusão. Que havia um real sob aquela ilusão e que somente poderia ser encontrada nas bases concretas de edificação da sociedade civil e de Estado prussianos. Entre 1845 e 1857 Marx formula o conceito de “ideologia” para demonstrar que a precariedade do desenvolvimento material e as contradições emergidas na vida prática, levariam os homens a criar e a projetar formas ideológicas de consciência. Formas espirituais e discursivas que ocultariam ou disfarçariam a existência e o caráter dessas contradições. E que concorreriam, nesta medida, para assegurar a reprodução das relações sociais, de forma a servir aos interesses dominantes (Bottomore, 1988, p. 184). A partir dos estudos das relações sociais capitalistas expressas nas obras Grundrisse e 23 O Capital, Marx chega a conclusão de que a “consciência invertida” é fruto da “realidade invertida”. Assim, a ideologia burguesa expressaria essa inversão quando apregoa que “(...) a igualdade e a liberdade são, assim, não apenas aperfeiçoadas na troca baseada em valores de troca, como também a troca dos valores de troca é a base produtiva real de toda igualdade e liberdade” (Marx, apud Bottomore, 1988, p. 185). Engels concorre também para a construção do conceito de “ideologia” por meio do estudo sobre a guerra camponesa da Alemanha. Demonstra que, sob a chama da guerra de religião no século XVI, encontram-se interesses materiais de classes e que (...) se as lutas de classes tinham, naquela época, um caráter religioso, se os interesses, as necessidades, as reivindicações das diferentes classes se dissimulavam sob a máscara da religião, isso nada altera a questão (Engels, apud Bourdé e Martin, 1983, p. 166). Encontra-se implícita nessa passagem a compreensão de que o fenômeno ideológico também poderia se expressar enquanto valores e concepções de resistência das classes dominadas. Engels demonstra, ainda, a exemplo da ação crítica de Marx sobre a ideologia burguesa,que o fenômeno ideológico não seria algo exterior às relações sociais quando explica que na Idade Média (...) os padres receberam o monopólio da cultura intelectual e a própria cultura tomou um caráter essencialmente teológico (...). Os dogmas da Igreja eram igualmente axiomas políticos e as passagens da Bíblia tinham força de lei perante os tribunais (...). Consequentemente, todas as doutrinas revolucionárias, sociais e políticas, deviam ser, ao mesmo tempo e principalmente, heresias teológicas (Engels, apud Bourdé e Martin, 1983, p. 167). O conceito de “ideologia” conserva em Marx uma conotação crítica e negativa porque foi utilizado para a compreensão das distorções relacionadas com o ocultamento de uma realidade contraditória e invertida. Não seria correto, portanto, atribuir ao conceito de “ideologia” o sentido de falsa consciência. Podemos chegar a três definições de ideologia em Marx e Engels: a) ideologia enquanto parte ou conjunto das superestruturas: as formas ideológicas enquanto a qualidade da consciência social possível dentro de uma determinada estrutura sócio- econômica; uma determinada visão de conjunto de uma sociedade, época ou classe determinada por suas condições materiais de existência; b) a ideologia enquanto ocultamento da realidade: ora como imposição das classes 24 dominantes para criar, legitimar e justificar as relações sociais dominantes (a exemplo das Cruzadas, do levante da Vendéia etc), ora como forma de expressão de lutas de resistência dos dominados enquanto conhecimento imperfeito (a exemplo da revolta camponesa da Alemanha); c) a ideologia enquanto um sistema de valores sociais impostos: seriam os valores sociais impostos, indiretamente, por meio das relações sociais de produção, e, diretamente, por meio dos instrumentos ideológicos públicos e privados O conceito Estado O conceito “Estado” ocupa grande importância no pensamento de Marx e Engels. O Estado é concebido como uma instituição acima de todas as outras, com a função de assegurar e conservar a dominação e a exploração de classe. Para Engels, o Estado é um instrumento (...) da classe mais poderosa, economicamente dominante, que, por meio dele, torna-se igualmente a classe politicamente dominante, adquirindo com isso novos meios de dominar e explorar a classe oprimida (Marx e Engels, 1983, Volume 3, p. 137 ). Essa conclusão não impede que o próprio Engels a relativizasse por meio do estudo de uma realidade concreta, a guerra civil na França e as lutas políticas subsequentes que resultam no golpe do 18 Brumário e no bonapartismo. Engels reconhece que (...) ocorrem períodos nos quais as classes em luta se equilibram tão bem que o poder do Estado, como mediador ostensivo, adquire, por momentos, uma certa margem de independência em relação a ambas (Marx e Engels, Volume 3, 1983, p. 137). Marx, também estudando a realidade que redunda no bonapartismo, chega mesmo a atribuir interesses “próprios” ao Estado por meio da sua burocracia civil e militar. Marx reconhece no Estado bonapartista francês uma máquina de Estado engenhosa, de amplas bases, com um “exército” de funcionários e soldados de 1 milhão de homens. Uma máquina com determinados interesses e objetivos próprios, que conforma (...) um corpo parasitário terrível que cerca o corpo da sociedade francesa como um casulo e sufoca todos os seus poros (Marx e Engels, Volume 1, 1983, p. 234 e 235). 25 De fato, Marx e Engels não encerram o conceito Estado em uma camisa de força dogmática. Lênin, Gramsci, a Escola de Frankfurt, entre outros pensadores e vertentes marxistas, dão continuidade ao estudo do Estado e ampliam o próprio conceito. Práxis e Política O conceito de “Práxis” representa um elemento central da filosofia marxista. Exprime o poder que o homem tem de transformar o ambiente externo, tanto natural como social. Marx define a práxis, primeiramente, como atividade prático-crítica. É a atividade humana por meio da qual se busca resolver o real concebido subjetivamente. O lugar da práxis é o processo histórico como resposta contínua à tirania das necessidades naturais e sociais. Para Marx a humanidade está em luta consigo mesma, isto é, com as condições sociais e naturais, por ela criadas e/ou modificadas. Segundo Bobbio, (...) práxis é a identificação da mudança ambiental com a atividade humana, ela surge como autotransformação ou como atividade que se modifica a si mesma ao modificar o ambiente. A terceira tese de Feuerbach oferece a este respeito algumas indicações claras: é verdade que os homens são condicionados pelo ambiente e pela educação, mas também é verdade que são justamente eles que modificam as próprias condições ambientais (Bobbio, 1992, p. 987 e 988). Para Marx não existe na realidade uma natureza pura, isto é, não modificada pela história humana. Não existe, também, um único campo de ação onde não se possa descobrir dinâmicas. A práxis é ação/investigação, fundamentada no movimento histórico. Marx define práxis como encontro entre razão e história, isto é, o lugar da construção da humanidade como obra de uma vontade expressa racionalmente. Construção suscitada por um pensamento historicamente determinado, acolhido pela grande maioria por responder às necessidades manifestadas em um contexto (natural e social) marcado pela intervenção do homem e que se transforma por isso em instrumento de ação. Nesta definição, o conceito de “Práxis” se aproxima do conceito “teoria”, sendo a primeira uma prática racional- transformadora e a segunda um pensamento historicizado e realístico. Marx também define práxis como luta de classes, isto é, um instrumento motor da história da humanidade. A concepção de práxis como ação do gênero humano indiferenciado socialmente e transformador das condições naturais e sociais ao longo da história da humanidade, conjuga-se também com a concepção de práxis como oriunda da humanidade como sujeito histórico diferenciado por meio das classes sociais em suas relações conflitantes, na qual 26 ocorre uma ação de supressão por parte de uma delas das formas de organização social que a outra instaura. Esses conflitos entre as classes se exprimem na tensão constante que existe entre as forças produtivas, tendentes ao desenvolvimento e as relações de produção, tendentes a conservação. O conceito de “práxis” recebe outras abordagens no âmbito da tradição marxista. Lukács define práxis como a eliminação da indiferença da forma em relação ao conteúdo. Para o autor Marx teria desmistificado a lógica idealista da idéia, isto é, desenraizado socialmente o idealismo, e demonstrado que as classes subalternas são os sujeitos da história, em especial o proletariado. Assim, teria-se estabelecido no pensamento uma nova lógica da totalidade, isto é, da unidade do objeto (realidade natural e social) que é posto e do sujeito (proletariado) que o põe. É a totalidade não como idéia que se faz espírito, mas como realidade do processo histórico (Bobbio, 1992, p. 989). Para Lukács a Práxis em Marx seria o ato que realiza a unidade entre o sujeito e o objeto, na medida em que traduz em nova estrutura social e econômica a consciência das relações estabelecidas entre os homens. Nela coincidiriam as determinações do pensamento e do desenvolvimento da história. Por isso, a Práxis seria a consciência da totalidade e sua realização. Todavia, a consciência não precederia a ação, mas fundaria-se no ato. O proletariado conheceria a própria situação enquanto luta contra o capitalismo e agiria enquanto conhece a própria situação (Bobbio, 1992, p. 989). Lukács faz, enfim, o uso de três temas: o pensamentosocialmente determinado; a realidade em sua dinâmica; e, o sujeito em sua ação. A Práxis seria o ato revolucionário que realiza o sujeito (o proletariado) como conhecedor e agente ao mesmo tempo e que, simultaneamente, fundamenta a identidade do pensamento e da história. Korsch define práxis como sendo a própria teoria marxista. Para Korsch “o marxismo é a teoria da transição da sociedade capitalista para a sociedade socialista e assume aspectos diversos, como, por exemplo, a social-democracia e o leninismo, destinados a sucederem-se um ao outro, segundo a evolução do movimento operário” (Bobbio, 1992, p. 989). A teoria marxista não seria apenas uma expressão das condições atuais das relações entre as classes sociais, mas também a alavanca de uma futura ação revolucionária. Deste modo, a teoria é Práxis, isto é, luta social de classes. Se, por um lado, ela é um aspecto da consciência social da situação vigente, até o ponto de se identificar com a consciência de classe, por outro, é apenas uma teoria, não uma teoria positiva mas crítica, que resolve as representações estáticas em processos dinâmicos e em conflitos sociais. “Os elementos nela envolvidos, conquanto 27 aparentemente neutros, assumem uma específica conotação de classe; o Estado é o Estado burguês; o direito é o direito burguês” (Bobbio, 1992, p. 990). Para korsch a teoria marxista seria Práxis, não só por estar intimamente relacionada com os conflitos sociais, dos quais é expressão, mas também por elaborar os meios de uma forma alternativa de sociedade. 2.3. O Pensamento Liberal de Max Weber O pensamento de Max Weber reconhece a realidade como inesgotável, fragmentada, caótica e arbitrária. Não haveria, por exemplo, um movimento estrutural lógico, nem uma totalidade construída a partir deste movimento estrutural. Os cientistas sociais podem apenas construir modelos explicativos ideais - “tipos ideais” - a partir de alguns aspectos da realidade. Uma abordagem científica seria apenas uma aproximação da verdade, do que decorre a inexistência de uma verdade científica e a relatividade do conhecimento. O que interessa mais é a busca da objetividade - neutralidade - científica e menos a pretensa verdade. A busca de uma neutralidade científica leva Weber a estabelecer uma rigorosa fronteira entre o cientista, o homem do saber, das análises frias e penetrantes, e o político, homem de ação e de decisão comprometido com as questões práticas da vida. O que a ciência tem a oferecer a este homem de ação, segundo Weber, é um entendimento claro de sua conduta, das motivações e das conseqüências de seus atos. As raízes do método de Weber O método sociológico de Weber é influenciado enormemente pelo contexto intelectual alemão de sua época. Incorpora em seus trabalhos algumas idéias de Kant, como o entendimento de que todo ser humano é dotado de capacidade e vontade para assumir uma posição consciente diante do mundo; de Nietzsche, como a visão pessimista e melancólica dos tempos modernos; de Sombart, como a preocupação de desvendar as origens do capitalismo; de Marx, como as teorias acerca do capitalismo ocidental nas perspectivas histórica, econômica, ideológica e social. A originalidade de Weber está na capacidade de refinamento de conceitos e de idéias debatidos na sua época e no seu modo de interpretar o desenvolvimento histórico ocidental como sendo fruto da racionalidade. Para Weber não haveria por que admitir o princípio de que a economia determinasse as demais esferas da realidade social como, segundo ele, teria afirmado 28 Marx por meio da sua obra. Para Weber, somente a realização de uma pesquisa detalhada sobre um determinado fato social poderia definir que dimensão (econômica, social, política, cultural) da realidade condicionaria mais profundamente as demais. Capitalismo e ética protestante Em uma das suas obras mais importantes, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, Weber coloca como uma de suas principais preocupações compreender quais foram as especificidades que levaram algumas sociedades ocidentais ao desenvolvimento do capitalismo. Para ele, o fator responsável pelo surgimento do capitalismo foi a razão humana ligada a certos valores calvinistas presentes na época. O protestantismo calvinista acreditava que por meio do trabalho o homem alcançaria Deus, e como o trabalho gerava lucros, a riqueza também era uma forma de alcançá-lo. Para Weber o moderno sistema de produção, eminentemente racional e capitalista, não se origina do avanço das forças produtivas, nem das novas relações de produção como teria afirmado Marx. Origina-se de um novo conjunto de normas sociais e morais, às quais denomina ética protestante: o trabalho duro e árduo, a poupança e o ascetismo. Este conjunto de normas sociais e morais teria proporcionado a reaplicação das rendas excedentes, em vez de seu dispêndio e consumo em símbolos materiais e improdutivos de vaidade e prestígio, a exemplo do que ocorria na Idade Média. Para Weber o capitalismo, a organização burocrática e a ciência moderna constituem três formas de racionalidade que surgiram a partir dessas mudanças religiosas ocorridas inicialmente em países protestantes, a exemplo da Inglaterra e da Holanda. Países católicos, sob um conjunto de normas sociais e morais impregnadas de aspectos cristãos - medievais, não teriam gerado esta racionalidade. Ação social e racionalidade Para Weber a “ação social” e o “racionalidade” seriam os fatores mais relevantes na análise de uma sociedade, isto porque a dimensão racional da ação humana seria a parte racional do ser humano – enquanto indivíduo – que iria produzir e criar as esferas e estruturas da sociedade, a exemplo da esfera econômica e da estrutura do Estado. Segundo ele, As condutas são tanto mais racionalizadas quanto menor for a submissão do agente aos costumes e afetos e 29 quanto mais ele se oriente por um planejamento adequado à situação. Pode-se dizer, portanto, que as ações serão tanto mais previsíveis quanto mais racionais (Weber apud Quintaneiro, 1998, p. 107). Caberia ao sociólogo captar intelectualmente as ações sociais de sentido racional. No entanto, essa tarefa encontraria limites quando fossem os valores e afetos os norteadores das ações dos indivíduos. A partir daí, Weber construiria quatro tipos de ação social: a) Ação social racional com relação a fins: quando o agente imprimisse uma ação para alcançar um objetivo previamente definido e lançasse mão dos meios necessários e adequados para tanto; b) Ação social racional com relação a valores: quando o agente imprimisse uma ação de acordo com suas próprias convicções e levasse em conta somente a sua fidelidade a certos valores, isto é, não levasse em conta os efeitos que poderiam advir de sua conduta e por isso, às vezes, agisse com certa irracionalidade; c) Ação social afetiva: quando o agente imprimisse uma ação inspirada em suas emoções imediatas e sem consideração aos meios ou fins a atingir; d) Ação social tradicional: quando o agente imprimisse uma ação em função de hábitos e costumes arraigados. Sendo assim, a ação social – base da sociologia de Weber – seria fruto da conduta humana. Essa ação social poderia ser de ato, omissão ou permissão, sendo operada no passado, presente ou futuro. Classe social e estamento Para Weber, existiria diferença entre classe social e estamento. As classes seriam formadas quando as ações sociais fossem orientadas para o mercado. Já os estamentos quando as ações sociais fossem orientadas com base em regras de grupos de status. Para Weber, segundo Quintaneiro, As classes se organizam segundoas relações de produção e aquisição de bens, os estamentos, segundo princípios de seu consumo de bens nas diversas formas específicas de sua maneira de viver (Quintaneiro, 1998, p. 118). Política e poder A concepção de ação social em Weber, cuja gênese encontra-se no indivíduo, tem uma importante implicação: a continuidade das relações sociais seria problemática, porque não 30 existiria relação social sem poder e dominação, isto é, sem uma dimensão conflitiva. Conforme Quintaneiro, Poder significa a probabilidade de impor a própria vontade dentro de uma relação social, mesmo contra toda a resistência e qualquer que seja o fundamento desta probabilidade (Quintaneiro, 1998, p. 121). No entanto, enquanto o poder não for limitado por nenhuma circunstância social – porque a vontade de alguém pode ocorrer em inúmeras situações – a dominação basear-se-ia na obediência a um certo mandato. Partindo do entendimento de que todas as relações sociais estariam mediadas pelo elemento domínio, isto é, que sempre ocorreria uma relação em que alguém manda e outro obedece, Weber procura compreender as formas de dominação política legítimas. Para Weber em qualquer sociedade ocorre, o dominação política. Esta dominação poderia ser de três tipos: a) A dominação legal: dominação que se caracterizaria por meio de convenções, isto é, quando normas, elaboradas em comum acordo, regulamentariam o exercício da dominação política. Nesta perspectiva, o Estado liberal moderno, cujas constituições seriam definidas por meio de assembléias nacionais constituintes, de representação indireta – deputados eleitos por sufrágio universal – de representação direta – delegados da sociedade civil organizada – ou de representação mista – deputados e delegados da sociedade civil – conformaria-se como exemplo desta forma de dominação. Assim, direitos e deveres seriam claramente definidos em face do poderes constituídos (executivo, legislativo e judiciário), da burocracia do Estado etc. b) A dominação tradicional: dominação que se caracterizaria por meio de crenças, isto é, de concepções sedimentadas e reproduzidas de geração para geração e que configuraria uma manifestação cultural tradicional. A tradição representaria, portanto, uma manifestação de arcaísmo político. c) A dominação carismática: dominação que se caracterizaria por meio do carisma do líder, isto é, a vontade e o poder de comando do líder refletiria os anseios dos seus seguidores. A dominação carismática poderia assumir a forma dos demagogos – construída sobre a capacidade de oratória e de convencimento do líder político - , dos heróis-guerreiros – construída sobre a capacidade de luta e das expectativas da guerra – e dos profetas – 31 construída sobre a capacidade de motivar espiritualmente e de assegurar a coerência dos fiéis aos mandamentos. Os tipos de dominação seriam “tipos ideais”, isto é, não se apresentariam de forma “pura” na realidade concreta. Constituiriam-se em recursos metodológicos, tendo em vista a análise das formas de dominação. Seriam, enfim, modelos explicativos que poderiam contribuir com a compreensão das formas de dominação sem, contudo, dar conta do fenômeno em toda a sua plenitude (Ridenti, 1992, p. 45-49). Para Weber não ocorreria, no âmbito das relações sociais, uma relação de determinação do econômico sobre o social em sentido amplo, isto é, nele incluído a política. As classes sociais, definidas em termos econômicos, estariam fragmentadas na forma de grupos de status (estamentos). A condição de subalternidade econômica de um grupo de status, enquanto parte de uma classe social, poderia contrastar com um imenso prestígio político, cultural etc. Para Weber, embora não ocorresse determinação, ocorreria interação e condicionamento entre classe social e grupos de status. Classe social e grupo de status poderiam interferir na ordem legal ou política da sociedade. Esta interferência tenderia a ser maior quando potencializada pela atuação de partidos políticos, isto é, de estruturas organizativas de caráter político voltadas para a disputa do poder, tendo em vista o exercício da dominação política, seja no âmbito da sociedade civil, seja no âmbito da sociedade política (Estado). Para Weber, o Estado, na medida em que representaria um aparelho político e administrativo utilizado por grupos de status com o objetivo de materializar determinados fins e valores destes mesmos grupos, converteria-se no objeto central da disputa política (e da dominação política). Weber caracteriza a política como sendo a participação no poder, ou a luta para influir na distribuição dele, com a finalidade de desfrutar a sensação de prestígio causada por ele. Assim, o homem não almejaria o poder somente para enriquecer economicamente, mas para desfrutar das honras sociais que ele produz. Quando se diz que uma questão é “política”, o que se entende é que o critério decisivo para sua resposta é o interesse na distribuição, manutenção ou transferência do poder. Dessa maneira, classes, estamentos, política, partidos etc., seriam fenômenos de distribuição do poder dentro da comunidade e manifestações organizadas da luta cotidiana que caracteriza a existência humana. 32 A burocracia Para Weber a burocracia seria uma forma de organização humana que se basearia na racionalidade, isto é, na adequação dos meios aos objetivos (fins) pretendidos, a fim de garantir a máxima eficiência possível no alcance desses objetivos. Segundo ele, as origens da burocracia – como forma de organização humana – remontariam à época da Antigüidade, quando o ser humano elabora e registra seus primeiros códigos de normatização das relações entre o Estado e as pessoas e entre as pessoas. Contudo, a burocracia – tal como existe hoje - teve sua origem nas mudanças religiosas verificadas após o Renascimento. Para Weber a burocracia não se limita à organização estatal. Weber nota a proliferação de organizações de grande porte no domínio religioso (a Igreja), no educacional (a universidade), no econômico (as grandes empresas), e assim por diante. Para tanto, teria concorrido o desenvolvimento de uma economia monetária, que facilita e racionaliza as transações econômicas; o crescimento quantitativo e qualitativo das tarefas administrativas do Estado Moderno, que reflete a enorme complexidade e dimensão das tarefas de organização da sociedade moderna; a superioridade técnica da administração burocrática, que permite uma força autônoma à própria burocracia; e o desenvolvimento tecnológico, que permite um progressivo aperfeiçoamento da administração burocrática Para Weber, a burocracia seria a organização eficiente por excelência. Ela perseguiria a racionalidade em relação ao alcance dos objetivos da organização; a precisão na definição dos cargos e na operação das tarefas; a rapidez nas decisões; a univocidade de interpretação garantida pela regulamentação específica e escrita; a uniformidade de rotinas e procedimentos; a continuidade da organização no contexto de renovação dos quadros; a redução do atrito entre as pessoas; a constância; a subordinação dos mais novos aos mais antigos; a confiabilidade; a existência de benefícios sob o prisma das pessoas na organização. Nessas condições, o trabalho seria profissionalizado, o nepotismo evitado e as condições de trabalho favoreceriam a moralidade econômica e dificultariam a corrupção. A eqüidade das normas burocráticas teria a virtude de assegurar cooperação entre grande número de pessoas sem que essas pessoas se sentissem necessariamente cooperadoras. O termo burocratização usado por Weber integraria, em alguma medida, com o conceito
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