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ENSAIO 6 6 • C I Ê N C I A H O J E • v o l . 3 4 • n º 203 ENSAIO Como os precursores do néctar estão normalmente presentes nos vasos condutores, essa secreção é ba- rata e pode ser produzida continuamente. Isso é es- pecialmente importante quando as flores exigem mais de uma visita para que a polinização ocorra. Comparativamente, a produção de pólen é muito mais cara que a de néctar, sobretudo porque requer nitrogênio. Além disso, o número de grãos de pólen é limitado, pois a quantidade de células-mães des- ses grãos é fixa. Acrescentando-se a isso a tendência para a redução do número de estames nas flores das angiospermas (grupo de plantas superiores, uma subdivisão do reino vegetal), cada grão de pólen co- letado por uma abelha (figura 1) irá fazer falta na polinização de uma espécie. Como o néctar não participa diretamente da po- linização, não há problema se ele estiver escondido. Em muitas flores ele se acumula em tubos ou espo- rões longos, exigindo que o visitante tenha língua comprida e se posicione de tal forma que estigma e pólen sempre tocam o mesmo ponto do corpo do animal. Isso garante uma polinização mais segura. Já o pólen não pode ficar escondido. Ele deve es- tar exposto e apresentar-se na mesma altura do es- não podem sair em busca de parceiros. Por isso ne- cessitam de um ‘alcoviteiro’ móvel e confiável que transporte os grãos de pólen de uma flor para o es- tigma de outra flor da mesma espécie, a fim de efe- tuar a polinização (pré-requisito para a fecundação). Com esse objetivo, utilizam animais de diferentes grupos – de besouros a pássaros, de moscas a ratos. A maioria das plantas com flores estabeleceu com as abelhas uma relação íntima, considerada essen- cialmente positiva: a planta oferece néctar e/ou pó- len, e a abelha cuida da polinização. Por isso se diz que a abelha é paga com néctar ou pólen para polinizar. Embora vista como de igual valor, essa ‘troca de favores’ não é assim tão simples, seja na perspectiva da flor ou na da abelha. Para entender melhor o papel do pólen na relação flor-abelha, é preciso antes compará-lo com o néctar. Do ponto de vista da planta, no princípio o néctar era uma excreção. Durante seu crescimento, a plan- ta extraía alguns componentes da seiva e excretava os demais. Com o passar do tem- po, as flores (bem como outros órgãos) conseguiram aproveitar ecologicamente essa substância para atrair, por exemplo, abe- lhas para a polinização ou for- migas para a defesa contra her- bívoros. Assim, o que era excre- ção tornou-se secreção. Já o pó- len – elemento fundamental da flor e da reprodução sexuada da planta – funciona como reci- piente para os gametas mascu- linos, transportando com segu- rança a informação genética para a geração seguinte. s plantas enfrentam sério problema quando se reproduzem sexuadamente: enraizadas, elasA EN SA IO Flores e abelhas na disputa ECOLOGIA Competição por pólen gerou adaptações no aparelho reprodutor de certas plantas Flores e abelhas na disputa Christian Westerkamp Departamento de Biologia, Universidade Federal do Ceará Figura 1. Apis mellifera extrai pólen de Echium wildpretii FO TO S C ED ID A S P ELO A U TO R Estigma Antera Néctar Cálice Corola Estame Pistilo ENSAIO a b r i l d e 2 0 0 4 • C I Ê N C I A H O J E • 6 7 ENSAIO tigma, para que ambos toquem a mesma área do corpo do visitante (pré-requisito para que ele seja considerado polinizador). Como o estigma geralmen- te está exposto fora da flor, isso significa que a po- sição do pólen deve acompanhá-lo. Uma exceção a essa regra ocorre quando pólen e estigma utilizam o mesmo esconderijo, como a quilha da flor das fabáceas (figura 2). Na perspectiva das abelhas, o néctar é primeira- mente fonte de açúcares – de energia, portanto – e de água, enquanto o pólen é fonte de proteínas, em- bora contenha também substâncias energéticas. Assim, néctar e pólen têm funções diferentes no ci- clo de vida das abelhas: o néctar serve de combustí- vel para os indivíduos adultos, e o pólen é indispen- sável para a produção da prole. Este último não se presta apenas como alimento para as larvas, facili- tando também a maturação dos ovos. Conseqüentemente, o método de consumo do pó- len é diferente daquele do néctar. Na maioria das abelhas, este é sorvido pelos visitantes; raramente é ‘coletado’, como fazem, por exemplo, as abelhas so- ciais que produzem mel, como Apis mellifera ou as abelhas sem ferrão. O pólen, por outro lado, é pri- mariamente coletado como alimento para a geração seguinte. Néctar e pólen não são, pois, recursos com- paráveis nem substituíveis. Como as abelhas adultas não consomem pólen diretamente, elas não conseguem perceber sua qua- lidade, podendo, assim, ser enganadas pelas flores. Algumas tiram partido dessa situação e oferecem às abelhas pequenas esferas vazias em vez de pólen. Figura 2. Colutea orientalis, típica flor com quilha. A quilha (embaixo) esconde os órgãos reprodutores; o estandarte (em cima) oferece sinalização e apoio para a abertura da quilha Figura 3. Para abrir a quilha de Spartium junceum, a abelha Megachile ericetorum introduz a cabeça sob o estandarte (A). Quando aplica força suficiente, a quilha se abre e expõe o pólen (B) ta. Tais substâncias, no entanto, ainda não foram detectadas no néctar. Com efeito, o uso de flores que oferecem néctar requer pouca especialização, sendo limitado apenas pelo comprimento da probóscide (‘língua’). Dessa for- ma, observa-se certa promiscui- dade no uso de plantas com néc- tar; o mesmo, no entanto, não ocorre em relação ao pólen. A partir dessas informações, é possível estu- dar as relações entre flores e abelhas no que diz respeito ao consumo de pólen. Competição Para a flor, o pólen é o recipiente dos gametas mas- culinos, essencial à reprodução sexuada da planta. Para a abelha também é importante na reprodução, já que é um alimento fundamental na produção da prole. Tem-se assim um impasse: a flor necessita dos grãos de pólen para a polinização, e a abelha os deseja para alimentar seus descendentes. Conse- qüentemente, abelhas e flores competem pelos mes- mos (poucos) grãos de pólen. Além disso, a maioria das abelhas não se dão conta da quantidade de pólen coletado, pois o trans- portam fora do corpo (em corbí- culas ou escopas) e do seu campo de visão. Muitas vezes elas reali- zam ágeis movimentos de coleta mesmo quando as flores já não têm mais pólen. Por outro lado, a qualidade do néctar (sinalizada por sua doçura) e sua quantidade (indicada pelo grau de enchimen- to do papo) são perceptíveis. Uma última diferença dis- tingue néctar e pólen. Este é en- volvido por polenkitt (que cola os grãos entre si e ao corpo do vi- sitante), rico em substâncias vo- láteis que ajudam a abelha a re- conhecer o pólen em que é es- pecializada. Isso auxilia não só a formação de ligações mútuas abe- lha-flor, mas também provoca o interesse da abelha por ‘sua’ plan- Mas essa concorrência é desi- gual. As abelhas são os seres ati- vos da interação, e as flores po- dem apenas (re)agir passivamen- te. Além disso, as abelhas são for- temente atraídas pelo pólen, ao passo que as flores não o utilizam como elemento de atração. Assim, as flores melitófilas, especializa- das no emprego de abelhas como polinizadores, precisam impedir que elas coletem seu pólen. E isso, de fato, se observa. Di- versas flores especializadas na polinização por abelhas revelam mecanismos eficientes para es- conder o pólen desses insetos. Umtipo bem-sucedido são as cha- madas flores com quilha – como as do feijão, da vagem e da ervi- lha –, que escondem o pólen jun- to com o estigma dentro de um recipiente chamado carena ou quilha (figura 3). � B A ENSAIO 6 8 • C I Ê N C I A H O J E • v o l . 3 4 • n º 203 ENSAIO Para alcançar o néctar dessas flores, a abelha pre- cisa abaixar a quilha, o que exige força e conheci- mento da cinética da flor. Para obter tal força (e con- seguir um ponto de apoio), ela insere as partes bu- cais sob o estandarte, outra pétala especial da flor, e usa as pernas para empurrar a quilha para baixo. Aberto o caminho para o néctar, a flor deposita um pouco de pólen no corpo da abelha, normalmente fora do seu campo de visão. Quando a abelha tenta retirar mais pólen da flor, levantando para isso ape- nas uma perna, a quilha se fecha automaticamente e torna a escon- der o pólen. Esse tipo de flor é tão eficiente que evoluiu em famí- lias não aparentadas de angios- permas. Há também uma versão invertida desse tipo floral, que esconde o pólen dentro de um lá- bio superior. Trata-se das flores labiadas. Outro tipo floral esconde o pó- len dentro das próprias anteras (figuras 4, 5 e 6). Nesse caso, as anteras se abrem em pequenos poros apicais (figura 5) e precisam de certa vibração para ejetar o pólen (figura 4b). Por isso o acesso a Figura 4: O tomate Lycopersicum esculentum esconde o pólen dentro de um cone de anteras (A); após vibração (obtida artificialmente com o auxílio de um diapasão modificado, no caso desta imagem), o pólen deixa os poros das anteras de Solanum sisymbriifolium (B) Figura 5. Senna macranthera: quatro anteras pequenas para as abelhas e três maiores para a polinização Figura 6. As anteras vistosas e contrastantes de Solanum citrullifolium atraem abelhas; a de cor semelhante à da corola esconde pólen para a polinização revista britânica Nature a solução encontrada por muitas flores desse tipo para solucionar o problema: a divisão de trabalho entre anteras para polinização e anteras para coleta de pólen, como se observa, por exemplo, nos gêneros Cassia, Senna (figura 5) e Solanum (figura 6). Nessas plantas se observam anteras de diferentes cores e tamanhos, que ejetam pólen em partes sepa- radas do corpo da abelha. Enquanto as anteras para polinização têm, às vezes, a mesma cor da corola, as que são utilizadas para coleta de pólen costumam ser muito colori- das (figura 6). Assim, as anteras se tornam alvo das abelhas, que ne- las se agarram com as pernas ou mandíbulas. Quando as abelhas vibram as anteras para coletar pó- len, o jato de grãos alcança a parte inferior de seu corpo. Na altura das pernas, o pólen pode ser facilmen- te manipulado e coletado. Já o pó- len das anteras maiores cai no dor- so das abelhas, mesmo local de contato com o estigma. Tem-se aqui uma espécie de divisão do trabalho: o pólen para coleta acumula-se nas pernas da abelha, e o que será utilizado para polinização se esconde no seu dorso – em local mais seguro, portanto, já que fica pouco acessível e fora do campo visual da abelha. Essas são algumas soluções encontradas pela na- tureza para poupar ao menos parte do pólen para a polinização. Mas para as plantas há sempre o risco de que as abelhas encontrem novos meios de explo- rar também esse pólen. Cabe, a propósito, observar que não são a fartura e as relações amorosas que garantem progresso na evolução, mas a escassez e a concorrência por recursos limitados. No que diz respeito ao pólen, o lema das flores deve ser: “Ame seus inimigos” – pois esses concorrentes são indis- pensáveis à polinização. ■ esse pólen é restrito às abelhas que conseguem produzir tais vibra- ções com a ajuda dos músculos de vôo. Só alguns grupos de abe- lhas sabem vibrar as anteras e, com isso, extrair pólen. As abe- lhas melíferas (com ou sem fer- rão), por exemplo, não conse- guem produzir tais vibrações. Embora especializadas, essas flores correm o risco de perder todo o pólen para as abelhas vibradoras, ficando, assim, sem polinização. Em 1882, o biólogo alemão-brasileiro Fritz Müller (1822-1897), primeiro habitante de Blumenau (SC), descrevia na A B
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