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Equipe Técnica Editoração : Revisão: Lúcio Dias Leite Reiner Manuel A. Carlos M. L. da Cruz Maria Riza Baptista Dutra Maria Rosa Magalhães Antonio Carlos Ayres Maranhão José Reis Monica Fernandes Guimarães Patrícia Maria Silva de Assis Supervisão Gráfica: Elmano Rodrigues Pinheiro Isaiah Berlin Quatro Ensaios sobre a liberdade Pensamento Político Tradução de Wamberto Hudson Ferreira · BE:J Editora Unive15idade de Brasíh"a Gom o apoio FUNDAÇÃO ROBERTO MARINHO 132 Isaiah Berlin (23) Mal precisarei acrescentar que a respon abilldade por isso (se ainda {>Osso aventurar-me a usar esse termo) não pode ser_ po_sta à porta dos grondes pensadO(CS que fundaram a ~oderna so- ciologia _Marx, Durkheim, Weber, não os adeptos e c.tfücos rac.ionais e escrupulosos cuJa obra eles inspiraram. (24) E uma coleção de insights e aperçus isolados, como o dúbio "todo poder conompe ou into- xica" ou "o homem é um animal político" ou "Der Mensch ist was er isst". (25) Não quero dizer com isso que outras "ciências" - como, por ex~mplo, a "ciência polític~" ou a antropologia social - teve muito mais sucesso em estabelecer leis, mas suas pretensões sao mais modestas. (26) Assim como novos métodos para testar a validade de antigas conclusões. (27) Vide Introdução. Dois Conceitos de Liberdade 1 Se os homens nunca discordassem a respeito das finalidades da vida, se nossos ancestrais tivesse permanecido tranqüilamente no Jardim do Éden, dificilmente se poderiam conceber os estudos a que se dedica a Cadeira de Teoria Política e Social de Chichele, pois é na discórdia que têm raízes e vicejam esses estudos. Pode-se pôr em dúvida tal afirmativa com base no fato de que, mesmo em uma sociedade de anarquis- tas convictos - onde não pode haver qualquer conflito sobre proósito final - talvez ainda surgissem problemas políticos, como, por exemplo, questões de natureza consti- tucional ou legislativa. Mas essa objeção parte de um enfoque errôneo. Quando há consenso sobre as finalidades, as únicas indagações que restam são aquelas relativas a meios e estes não são políticos, mas técnicos, isto é, podem ser resolvidos por especia· listas ou por máquinas, como se fossem discussões entre engenheiros ou médicos. Por isso, os que confiam em que algum fenômeno descomunal, como o triunfo definitivo da razão ou a revolução do proletariado, poderá transformar o mundo, precisam acre- ditar que todos os problemas políticos e morais podem, por conseguinte, ser trans- formados em problemas tecnológicos. É isso o que quer dizer a famosa expressão de Saint-Simon "substituir o governo de pessoas pela administração de coisas", da mesma forma que as profecias marxistas a respeito do desmoronamento do Estado e do início da verdadeira história da humanidade. Esse ponto de vista é chamado de utópico por aqueles para quem a especulação sobre essa condição de harmonia social perfeita constitui a representação de uma fantasia ideal. No entanto, um habitante de Marte que visitasse qualquer universidade britânica - ou americana - de hoje em dia talvez fosse perdoado por demonstrar a impressão de que os membros da instituição vivem em um estado bastante próximo da inocéncia e do id11io, em virtude de toda a atenção e seriedade com que os filósofos tratam dos problemas fundamentais de polí- tica. Mas existe nisso tanto um aspecto de surpresa quanto de perigo . De surpresa, porque talvez não haja outra ocasião, na história moderna, em que um número tão 134 Isaiah Berlin grande de pessoas, tanto no Ocidente quanto no Oriente, tenham tido suas opiniões - e mesmo suas vidas - tão profundamente alteradas e, em alguns casos, violentamente perturbadas por doutrinas sociais e políticas defendidas com fanatismo. De perigo, porque, quando são deixadas de lado por aqueles que deveriam dedicar-se a elas - ou seja, aqueles que são treinados para pensá-las de maneira crítica - as idéias às vezes atingem um momentum descontrolado e uma força irresistível sobre multidões que podem tornar-se demasiado violentas para se darem conta de alguma crítica racional. Há mais de cem anos, o poeta alemão Heine advertiu os franceses a não subestimarem o poder das idéias: os conceitos filosóficos alimentados na tranqüilidade do gabinete de wn professor poderiam destruir uma civilização. Citou ele a Crítica da Razão Pura, de Kant, como a espada com que fora decapitado o teísmo europeu, e descreveu as obras de Rousseau como a arma ensangüentada que, em mãos de Robespierre, destruíra o antigo regime; e profetizou que a crença romântica de Fichte e Schelling um dia - e com terríveis conseqüências - se voltaria, através de seus fanáticos adeptos alemães, contra a cultura liberal do Ocidente. Os fatos não têm ocultado inteiramente essa predição; mas, se os professores podem realmente dispor do controle desse poder fatal, não seria provável que apenas outros professores ou, pelo menos, outros pensadores (e não Governos ou comissões legislativas) pudessem, sozinhos, desarmá-los? Nossos filósofos estranhamente parecem não ter consciência desses devastadores efeitos de suas atividades. Pode ser que, enlevados por suas formidáveis descobertas nos reinos mais abstratos, os melhores dentre eles desdenhem um campo em que há meno- res probabilidades de se fazerem descobertas radicais e onde há menores probabilidades de recompensar-se o esforço intelectual dedicado a análises minuciosas. No entanto, a despeito de qualquer tentativa em contrário originada em algum pedantismo escolás- tico desprovido de visão, a política permanece indissoluvelmente ligada a qualquer outra forma de indagação filosófica. Negligenciar o campo do pensamento político pelo fato de seu tema básico - instável e pleno de arestas - não se enquadrar em conceitos fixos, em modelos abstratos e de não poder ser manobrado por delicados instrumentos adaptáveis à análise lingüística ou lógica - para exigir uma unidade de método em filosofia e rejeitar qualquer outra coisa que tal método não possa solucio- nar - é simplesmente entregar-se a crenças políticas primárias e desprovidas de críticas. Somente um materialismo histórico muito vulgar é que nega o poder das idéias e afirma que os ideais representam meros interesses materiais disfarçados. Pode ser que, sem a pressão de forças sociais, as idéias políticas morram no nascedouro: o que é certo é que essas forças, a não ser que se revistam de idéias, permanecem destituídas de visão e de orientação. Essa verdade não escapa a qualquer professor de Oxford, mesmo em nossa pró- pria época. Pelo fato de ter captado a importância das idéias políticas na teoria e na prática e de ter dedicado sua vida à análise e difusão dessas idéias é que o primeiro detentor desta Cadeira exerceu um impacto tão grande no mundo em que viveu. O nome de Douglas Cole é conhecido onde quer que os homens tenham questões polí- ticas ou sociais como centro de suas preocupações. Seu renome se estende além dos confins desta universidade e deste país. Pensador político de total independência, honestidade e coragem, autor e orador de extraordinárias lucidez e eloqüência, poeta e Quatro Ensaios sobre a Liberdade 135 romancista, professor peculiarmente bem dotado e animateur des idées, Douglas Cole é, em primeiro lugar, um homem que tem dedicado a vida ao destemido apoio a princípios nem sempre populares e à firme e apaixonada defesa da justiça e da verdade, quase sempre em circunstâncias altamente difíceis e desestimulantes. São estas as qualidades graças às quais esse socialista inglês extremament- generoso e imaginativo é hoje conhecido em todo o mundo. O fato não menos notável e talvez o mais caracte- rístico a respeito de sua figura é que ele atingiu essa posição pública sem sacrificar seu tônus humano natural, sua espontaneidade de sentimentos, sua inexaurívelbondade pessoal e, acima de tudo, sua profunda e escrupulosa devoção - devoç:ro reforçada por um aprendizado eclético e por uma memória fabulosa - à vocação de professor de qualquer um que deseje aprender. É para mim motivo de enorme_ prazer e orgulho tentar registrar o que eu e muitos outros sentimos a respeito dessa grande figura de Oxford cujo caráter moral e intelectual é um patrimônio para este país e para a causa da justiça e da igualdade humana onde quer que seja. Foi com ele,. pelo menos tanto quanto com suas obras, que muitos membros de minha geração em Oxford aprenderam que a teoria política é um ramo da filosofia moral, um ramo que se inicia com a descoberta - ou aplicação - de conceitos morais na esfera das relações políticas. Não quero dizer, como julgo que alguns filósofos idealistas tenham acreditado, que todos os conflitos ou movimentos fuistóricos entre seres humanos possam reduzir-se a movimentos ou conflitos de idéias ou de forças espirituais, nem mesmo que sejam conseqüências (ou aspectos) desses movimentos ou conflitos. O que quero dizer (e nã'o creio que o Professor Cole discorde) é que entender esses movimentos ou conflitos significa, acima de tudo, entender as idéiàs ou atitudes relacionadas com a vida neles implícita, e que, sozinhas, fazem de tais movimentos parte da história humana e nã'o simples eventos naturais. As palavras, conceitos e atos ,, políticos só se fazem inteligíveis quando no contexto dos problemas que dividem os homens, que deles fazem uso. Em conseqüência, nossas próprias atitudes e nossas ~ ,; próprias ações provavelmente permanecem obscuras para nós mesmos, a não ser que ,, compreendamos as questões predominantes em nosso mundo. A mais importante <:> '2, dessas questões é a guerra aberta que está sendo travada entre dois sistemas de idéias -4, ~ que fornecem r_espostas diferentes e conflitantes àquilo que há muito vem sendo a ,!J ,~ questão central da política - a questão da obediência e da coerção. "Por que devo (eu --;'.; ~ ou qualquer pessoa) obedecer a alguém? " "Por que não devo viver como me agrada? " ~ " "Preciso obedecer? " "Seu eu desobedecer, poderei ser coagido? " ''Por quem e até cs- que ponto e em nome de quê e em favor de quê? " No mundo de hoje sustentam-se opiniões contraditórias sobre as respostas à questão sobre os limites permissíveis da coerção, cada uma delas reivindicando para si a fiel adesão de grande número de pessoas. Por conseguinte, parece-me que qualque1 aspecto desse problema é digno de exame. Coagir um homem é despojá-lo de liberdade - liberdade de quê? Quase todos os moralistas na história humana têm entoado loas à liberdade. Como felicidade e bondade, como natureza e realidade, o significado daquele termo é tão poroso, que parece haver poucas interpretações a que ele seja capaz de resistir. Não proponho discutir a história ou os mais de duzentos sentidos dessa palavra protéica registrada 136 Isaiah Berlin pelos historiadores de idéias. Proponho examinar apenas dois desses sentidos - mas aqueles sentidos capitais, com significativa parcela da história humana por detrás deles e, eu poderia mesmo dizer, ainda pela frente. O primeiro desses sentidos políticos de liberdade individual ou Liberdade institucional (farei uso de ambas as expressões para dizer a mesma coisa), o qual (com base em muitos precedentes) chamarei de sentido "negativo", vem incorporado na resposta à pergunta ''Qual é a área em que o sujeito - uma pessoa ou um grupo de pessoas - deve ter ou receber para fazer o que pode fazer, ou ser o que pode ser, sem que outras pessoas interfiram? "O segundo, que chamarei de sentido positivo, vem incorporado na resposta à pergunta ''O que ou quem é a fonte de controle ou de interferência que pode determinar que alguém faça ou seja tal coisa e não outra? " As duas perguntas são nitidamente distintas, mesmo que possam sobrepor-se as respostas a ambas. 1 O CONCEITO DE LIBERDADE "NEGATIVA" Diz-se normalmente que alguém é livre na medida em que nenhum outro homem ou nenhum grupo de homens interfere nas atividades desse alguém. A liberdade política nesse sentido é simplesmente a área em que um homem pode agir sem sofrer a obstrução de outros. Se sou impedido por outros de fazer o que, de outro modo, poderia fazer, deixo de ser livre nessa medida; e se essa área é limitada por outros . . homens além de um certo mínimo, podem dizer que estou sendo coagido ou, prova- :.-~· .·} velmente, escravizado. Coação, entretanto, nã'o é termo que englobe todas as formas de \· 31 ; : -::- incapacidade. Se digo que sou incapaz de dar um pulo de mais de três metros ou que \ '<f não posso ler porque sou cego ou não posso entender as páginas mais obscuras de ' Hegel, seria estranho dizer que. estou sendo escravizado ou coagido até esse limite. Coerção implica a deliberada interferência de outros seres humanos na área em que eu poderia atuar. Um homem não possui liberdade política, individual ou institucional, apenas se estiver sendo impedido de atingir uma determinada meta por outros seres humanos2 • A simples incapacidade de atingir essa meta nlío constitui falta de liber- dade política3 . Isto é trazido à tona pelo uso de expressões modernas como "li- berdade econômica" e sua contrapartida, "escravidão econômica". Sustenta-se, muito plausivelmente, que, se um homem é muito pobre para poder dispor de algo sobre o qual não há proibição legal - uma fatia de pão, uma viagem em volta do mundo, um recurso aos tribunais -, ele é tão pouco livre para ter uma dessas coisas quanto o seria se fosse proibidio por lei. Se minha pobreza fosse uma espécie de doença que me impedisse de comprar pão ou de pagar pela viagem ao redor do mundo ou de ter minha apelaçã'o ouvida, da mesma forma que a incapacidade física me impede de correr, essa incapacidade não seria naturalmente descrita como uma falta de liberdade, menos ainda de liberdade política. Apenas porque acredito que minha incapacidade de conseguir determinada coisa se deva ao fato de que outros seres humanos criaram condições pelas quais sou, enquanto que outras pessoas não o são, Quatro Ensaios sobre a Liberdade 137 impedido de ter dinheiro suficiente para pagar por essa coisa, é que me julgo vítima de coerção ou de escravidão. Em outras palavras, esse emprego do termo depende de uma teoria social e econômica específica a respeito das causas de minha pobreza ou de '.' ~nha fraqueza. Se a falta de meios materiais se deve a minha falta de capacidade física y.5." ou mental então começo a dizer que estou sendo privado de liberdade (e não sim- , 4 alé d" plesmente a respeito de pobreza) somente se aceitar a teoria . Se, m isso, acreditar que estou sendo mantido em estado de carência por algum arranjo específico que considero ilegal ou injusto, falo de opres~ão ou ~e e~r~~dão. econômica. "A natureza das coisas não nos põe loucos, o desejo doent10, sim - disse Rousseau. O critério de opressão é o papel que acredito estar sendo representado por outros seres humanos, direta ou indiretamente, com ou sem a intenção de fazê-lo, quando fr.ustram meus desejos. Ser livre neste sentido, em minha opin~ão, signifi~a não. sofrer mt~rfe rências dos outros. Quanto mais ampla a área de nlio-mterferência, mais ampla minha liberdade. Isso é o que os filósofos políticos clássicos da Inglaterra queriam dizer quando usavam essa palavra5 • Não se colocavam de acordo quanto à extenslio que poderia ou deveria ter essa determinada área. Supunham que, nas condições então predomi- nantes, não poderia ser ilimitada, porque, se assim fosse, acarretaria uma situação em que todos os homens podiam ilimitadamente interferir na atuação de todos os outros; e esse tipo de liberdade "natural" levaria ao caos social, onde as necessidades mínimas dos homens podiam não ser satisfeitas ou, então, as liberdades dos fracospodiam ser suprimidas pelos fortes. Pelo fato de perceberem que os fms e as atividades ~o homem não se harmonizam automaticamente um com o outro, e pelo fato de (quaisquer que fossem suas doutrinas oficiais) atribuírem alto valor a outras fmalidades, como justiça, felicidade, cultura, segurança, ou graus variados de igualdade, eles estavam preparados • 111 )para restringir a liberdade em favor de outros valores e mesmo da própria liberdade . .-. 1 )'' . 1 ·;: Pois, sem isso, era impossível criar o tipo de associaçlio que julgavam desejável. Em · ' / · conseqüência, aqueles pensadores presumem que a área de livre ação dos homens deve · ser limitada pela lei. Mas também presumem, sobretudo os partidários do livre arbítrio, como Locke e Mill na Inglaterra, e Constant e Tocqueville na França, que deveria haver uma certa área mínima de liberdade pessoal que não deve ser absolutàmente violada, pois, se seus limites forem invadidos, o indivíduo passará a dispor de uma área dem~- :)' siado estreita mesmo para aquele desenvolvimento mínimo de suas faculdades naturais ~ 1 J J.; que, por si só, torna possível perseguir, e mesmo conceber, os vários fins que os .~ homens consideram bons, corretos ou sagrados. Segue-se daí a necessidade de traçar-se , .·: ' uma fronteira entre a área da vida privada e a da autoridade pública. Onde deve ser traçada essa fronteira é questão de discutir o mesmo regatear. Os homens em grande parte são interdependentes e a atividade de nenhum homem é tão completame?~e privada, que nunca venha a obstruir as vidas dos outros de uma forma ou de outra. . A liberdade do tubarão é a morte para as sardinhas" - a liberdade de alguns precisa depender da limitação de outros. "Liberdade, para um diplomado de Oxford - como se sabe que já foi dito por alguns -, é algo muito distinto do que é liberdade para um camponês egípcio". . _ Essa proposição tem sua força originada em algo que é verdadeuo e importante, 138 Isaiah Berlin mas a expressão em si mesma permanece como um artifício pllítico para conquistar adeptos. É um fato que propiciar direitos ou salvaguardas políticas contra a inter- venção por parte do Estado no que diz respeito a homens que mal têm o que vestir, que são analfabetos, subnutridos e doentes, é o mesmo que caçoar de sua condição: esses homens precisam de instrução ou de cuidados médicos antes de poderem entender ou utilizar uma liberdade mais ampla. O que é a liberdade para aqueles que não podem dela fazer uso? Sem as condições adequadas para o uso da liberdade, qual é o valor da liberdade? As primeiras coisas devem vir em primeiro lugar: há situações, como declarou um autor russo radical do século XIX, em que um par de sapatos vale mais do que as obras de Shakespeare; a liberdade individual não é necessidade primária para todo mundo. Pois liberdade não é a mera ausência de qualquer tipo de frustração: isso modificaria o sentido da palavra até o ponto em que ela passasse a significar muito mais ou muito menos. O camponês egípcio antes precisa muito mais de roupas ou de remédios do que de liberdade pessoal, mas o mínimo de liberdade de que ele precisa hoje - e o maior grau de liberdade de que pode vir a precisar amanhã - não é de uma espécie de liberdade que lhe é peculiar, mas idêntica àquela de professores, artistas e milionários. O que desnorteia as consciências dos liberais do Ocidente, a meu ver, não é a crença de que a liberdade buscada pelos homens difira segundo as condições sociais e econômicas de cada um, mas de que a minoria que a possui chegou a ganhá-la através da exploração da vasta maioria que não a possui, ou pelo menos escapando à visão dessa maioria. Acreditam eles, e com bons motivos, que, se a liberdade individual é um fim conclusivo para os seres humanos, nenhum deles deveria dela ser despojado por ação de outros, e muito menos que alguns deveriam usufruir da liberdade individual a expensas de outros. Liberdade institucional para todos, não tratar os outros como eu não gostaria de ser tratado, saldai: minha dívida para com aqueles que, sozinhos, possibilitaram minha liberdade, minha prosperidade, minha formação, e justiça, no sentido mais simples e mais universal do termo - são essas as bases da moralidade liberal. A liberdade institucional não é o único objetivo do homem. Da mesma forma que o crítico russo Belinsky, posso dizer que, se outros são despojados dela - se meus irmãos devem permanecer na pobreza, na miséria e na servidão - então, não a desejarei para mim mesmo, rejeito-a com todas as minhas forças e com toda a certeza preferiria compartilhar do destino deles. Mas nada se ganha mediante uma confusão de termos. Para evitar a desigualdade patente ou a miséria disseminada, estou pronto a sacrificar parte de minhâ liberdade ou toda minha liberdade: posso fazê-lo de bom grado e livremente; mas é da liberdade individual que estarei abrindo mlro em favor da jus- tiça, da igualdade ou do amor em relação a meu próximo. Minha consciência fica- ria pesada - e com justa razão - se, em determinadas circunstâncias, eu não esti- vesse preparado para fazer tal sacrifício. Mas um sacrifício não representa um acréscimo naquilo que está sendo sacrificado, ou seja, a liberdade indivi- du;tl, por maior que seja a necessidade moral de fazê-lo ou a compensação dele advinda. Cada coisa é o que é: liberdade é liberdade, e nlro igualdade, impar- cialidade, justiça, cultura, felicidade humana ou uma consciência tranqüila. Se a liberdade de mim mesmo, de minha classe ou de meu país depende da infelicidade de t-, ,~' Quatro Ensaios sobre a Liberdade ,,)" ; 139 r]· ( "-1.i;i•l '~ ,. ~ grande número de outros seres humanos, ent~o o si~tema qu: p~o~ove _tal situação _-! '' é injusto e imoral. Mas se eu mutilo ou perco mtnha liberdade ~d1v1dual, ~e forma a '' · \ reduzir 0 opróbrio de tal desigualdade e, desse modo, não amplio substancialmente a liberdade individual de outros, ocorre uma perda absoluta de liberdade. Tal situação pode ser compensada mediante um proveito para a justiça, para a ~elicidade ou para a paz, mas a perda permanecerá, e é confundir valores o fato. de dizer-se que, e~bora minha liberdade "liberal" e individual possa ir por água abaixo, algum outro tipo de liberdade _ "social" ou "econômica" - se ampliará. No entanto, continua sendo verdadeiro 0 fato de que a liberdade de alguns, em determinadas ocasiões, pre~isa_ s~r restringida, para que possa assegurar-se a de outros. Mas, com base ~m q~e pnn:1p10 se deveria agir dessa forma? Se a liberdade é um valor sagrado e m~oc~v~l, nao s~ concebe a existência de tal princípio. Um destes dois preceitos ou pnncip1os confli- tantes - pelo menos na prática - deverá ceder e nem sempre por mo~ivos que po~sam ser claramente identificados e menos ainda generalizados em preceitos ou rnáxlillas universais. Não obstante, é preciso que se chegue a um compromisso prát~co. Alguns filósofos dotados de visão otimista a respeito da natu~eza humana e da crença na possibilidade de harmonização dos interesses humanos, tais corno Locke o_u Adam Smith e, sob certos aspectos, Mill, acreditavam que o progresso e ~ har~oma social podiam existir lado a lado com a manutenção de ampla área para a Vlda pnvada além de cujos limites nem o Estado nem qualquer outra autoridade deveriam ter permissão de passar . Hobbes e aqueles que concordavam com ele, sobretudo pensa- dores de tendência conservadora ou reacionária, argumentavam que, se os homens quisessem evitar destruir-se uns aos outros e evitar transformar_ a vida social em uma selva ou em um deserto, seria necessário que se instituíssem maiores salvaguard~s para mantê-los em seus lugares. Desejavam, assim, ampliar a área de controle centralizado e reduzir a do indivíduo. Mas ambas as partes estão de acordo quanto ao fato de que uma parcela da existência humana precisacontinuar sendo indep_en~~nte da e~fera do controle social. Invadir essa reserva, por menor que seja ela, constltuma despotismo. O mais eloqüente de todos os defensores da liberdade e da priva~i~de, ~enjamin Constant, que não esquecera a ditadura jacobina, declarou que no mimmo a liberdade de religião, de opinião, de expressão ·e de propriedade deveria ser garantida contra a invasão arbitrária. Jefferson Burke, Paine e Mill compilaram diferentes catálogos de liberdades individuais, mas o argumento para manter a autoridade em xeque é sempre e substancialmente o mesmo. Temos de preservar uma área mínima de liberdade pessoal se não quisermos "degradar ou negar_ nossa natureza". Não podemos perma- necer livres em termos absolutos e precisamos deixar de lado uma parcela da nossa liberdade para preservar o restante. Mas a submissão total constitui autoderrota. Qual, então, deverá ser esse mínimo? Deverá ser aquele que um homem não pode abandonar sem causar prejuízos à essência de sua natureza humana. O que constitui essa essência? Quais são os padrões que ela origina? São questões que sempre representaram - e provavelmente sempre representarão - ilimitado campo de discussõ~s. Mas~ q~alqu:r que seja o princípio segundo o qual deve ser traçada a área de não-~terfer~~cia, seja ele 0 do direito objetivo natural ou o dos direitos subjetivos naturais, da utl~idade ou cíos termos de um imperativo categórico, da sacralidade do contrato social ou de 140 Isaiah Berlin qualquer outro conceito com o qual os homens têm procurado esclarecer e justificar suas convicções, a liberdade nesse sentido significa liberdade de: nenhuma interferência além da fronteira móvel, mas sempre identificável. "A única liberdade que merece tal nome é a de perseguir nosso próprio bem a nosso próprio modo" - disse o mais celebrado de seus defensores . Se é isso o que ocorre, poder-se-á justificar a compulsão? Mill não tinha dúvida de que sim. Desde que a justiça exige que todos os indivíduos tenham direito a um mínimo de liberdade, todos os outros indivíduos necessariamente teriam de sofrer restrições, até por meio da força, se necessário fosse, para que não despojassem ninguém da liberdade. O fato é que a função integral do direito era evitar exatamente tais conflitos: o Estado ficava reduzido ao que Lassalle desdenhosamente descrevia como as funções de um vigia noturno ou de um guarda de trânsito. O que tornou tão sagrada para Mill a proteção da liberdade individual? Em seu famoso ensaio, ele declara que a civilização não poderá progredir, a não ser que se permita aos homens viver como desejam "no caminho que simplesmente interessa apenas a eles mesmos"; por falta de um mercado livre de idéias, a verdade não virá à tona, não haverá escopo para a espontaneidade, para a originalidade, para o gênio, para a energia mental, para a coragem moral. A sociedade será esmagada pelo fardo da "mediocridade coletiva". Qualquer coisa que for rica e diversificada será esmagada pelo fardo do hábito, pela tendência constante do homem ao conformismo, que gera apenas "capacidades estioladas", seres humanos "angustiados e limitados", "acanhados e deformados". "A auto-afirmação pagã é tão digna quanto a auto negação cristã" , "Todos os erros que um homem é passível de cometer, apesar de conselhos e adver- . ' . ) 'tências, são em muito sobrepujados pelo malefício de permitir que outros o cons- . · . ./ tranjam a fazer o que consideram bom". A defesa da liberdade consiste na meta ._/ "negativa" de oontrapor-se à interferência. Ameaçar um homem com perseguição, a , não ser que ele se submeta a um tipo de vida em que não exerce qualquer escolha de suas metas, d~ixar-lhe aberta apenas uma porta, fechando todas as outras , qualquer que seja a perspectiva nobre que tal porta lhe ofereça ou por mais benevolentes que sejam os motivos daqueles que se encarregam disso, é pecar contra a verdade segundo a qual ele é um homem, um ser com uma vida própria a ser vivida. Eis aí a liberdade no sentido em que tem sido concebida pelos liberais do mundo moderno desde a época de Erasmo (alguns diriam de Occam) até os nossos dias. Todo apelo em favor de liber- dades civis e de direitos individuais, todo protesto contra a exploração e a humilhação, contra o abuso da autoridade pública ou a hipnose em massa dos costumes ou a propaganda organizada, tem suas origens nesta concepção do homem - concepção individualista e bastante questionada. J2 Podem observar três fatos a respeito dessa posição. Em primeiro lugar, Mil! confunde dois conceitos distintos. O primeiro é aquele segundo o qual a coerção, na medida em que frustra desejos humanos, é má, embora às vezes tenha de ser aplicada para evitar outros males maiores; enquanto que a não interferência, que é o oposto da coerção, é boa, embora não seja o único bem. Essa é a concepção "negativa" de liberdade em sua forma clássica. A outra é que os homens devem procurar descobrir a verdade ou aperfeiçoar um certo tipo de caráter que Mill aprovava - crítico, original, imaginativo , independente, não conformista até o nível da excentricidade, etc. - e que Quatro Ensaios sobre a Liberdade 141 a verdade só pode ser achada e tal caráter só pode ser aperfeiçoado em condições de liberdade. As duas opiniões são liberais, mas não são idênticas e a conexão entre elas é, na melhor das hipóteses, empírica. Ninguém poria em dúvida que a verdade ou a liberdade de auto-ex}kessão poderia florescer onde o dogma esmaga todo pensamento. Mas a história tende a demonstrar (como, de fato, foi o argumento utilizado por James Stephen em sua implacável crítica a Mill em Liberty, Equality, Fraternity) que a integridade, o amor à verdade e o individualismo apaixonado se intensificam com a mesma freqüência em comunidades rigidamente disciplinadas, como, por exemplo, o~ calvinistas puritanos da Escócia ou da Nova Inglaterra, ou sob a disciplina militar, quanto em sociedades mais tolerantes ou indiferentes; e se isso ocorre, cai por terra o argumento de Mill em favor da liberdade como condição necessária para o aperfei- çoamento do gênio humano. Se seus dois objetivos fossem comprovadamente incom- patíveis, a Mill se depararia um cruel dilema, bastante distanciado das outras difi- culdades criadas pela incoerência entre suas doutrinas e o utilitarismo mesmo em sua própria versão humanitária de tal concepção filosófica.6 C) Em segundo lugar, a doutrina é relativamente moderna. Parece ter havido muito pouca discussão a respeito da liberdade individual como um ideal político consciente (em oposiçã'o a sua existência real) no mundo antigo. Condorcet já tinha observado que o conceito de direitos individuais não existia nas concepções legais dos romanos e dos gregos; o mesmo parece ocorrer com os judeus, os chineses e todas as outras civilizações antigas que têm vindo à luz desde então 7 • A predominância desse ideal te~ sido mais uma exceção do que uma regra, mesmo na história recente do Ocidente. Tampouco a liberdade nesse sentido chegou a constituir um apelo à união para as grandes massas humanas. O desejo de não sofrer imposições, de ser deixado a sós, tem uma característica de alta civilização, tanto por parte de indivíduos quanto por parte de comunidades. O próprio sentido de privacidade, pertencente à área de relacio- namento pessoais como algo sagrado em seu próprio direito, deriva de uma concepção de liberdade que, em razão de todas as suas origens religiosas, é p~u~ mais antiga, ~o seu estado aperfeiçoado, do que a Renascença ou a Reforma . Mas seu declíruo caracterizaria a morte de uma civilização, de todo um posicionamento moral. ( ~ A terceira característica desse conceito de liberdade é de maior importância. ~ o co;ceito de que liberdade neste sentido não é compatível com alguns tipos de autocracia ou, pelo menos, com a ausência de autogoverno. Liberdadeneste sentido tem relação principalmente com a área de controle, não com sua fonte. Da mesma forma que uma democracia pode, na realidade, despojar o cidadão de muitas liberdades que ele poderia ter em alguma outra forma de sociedade, também é perfeitamente concebível que um déspota de tendências liberais permitisse a seus súditos um alto nível de liberdade pessoal. O déspota que deixa a seus súditos uma ampla área de liberdade pode ser injusto ou pode estimular desigualdades, preocupar-se pouco com a ordem, virtude ou conhecimento; mas, desde que não limite a liberdade dos súditos ou pelo menos a limite menos do que muitos outros regimes, enquadra-se ele na especi- ficação de Mill9 • A liberdade neste sentido, pelo menos do ponto de vista da lógica, não está relacionada com democracia ou com autogoverno. O autogoverno pode, em conjunto, propiciar melhor garantia da preservação das liberdades civis do que outros 142 Isaiah Berlin regimes, e tem sido defendido como tal pelos adeptos da teoria do livre arbítrio. Mas não há nenhuma conexão necessária entre a liberdade individual e a norma democrá- tica. A resposta à pergunta "Quem me governa? " , do ponto de vista da lógica, é distinta da pergunta "Até que ponto o governo interfere comigo? "~nesta diferença que consiste, no final , o grande contraste entre os dois conceitos de liberdade positiva e liberdade negativa10 • Pois o sentido "positivo" de liberdade vem à luz se tentar- mos responder à pergunta não "Estou livre para fazer o quê ou para ser o quê? ", mas a "Por quem sou governado? " ou "O que significa dizer o que sou e o que não sou, o que ser ou o que fazer? " A relação entre democracia e liberdade individual é bem mais tênue do que pareceu a muitos defensores de ambas. O desejo de ser governado por mim mesmo ou, pelo menos, de participar do processo através do qual minha vida deve ser controlada, pode ser um desejo tão profundo quanto o de uma área livre para ação, e talvez historicamente mais antigo. Mas não é um desejo relativo à mesma coisa. Na realidade, é tão diferente, que levou , em última instância, ao grande conflito de ideologias que domina nosso mundo . Pois é isto - a concepção "positiva" de liber- dade: não liberdade de , mas liberdade para - de levar uma fo rma de vida prescrita - que os adeptos do conceito de liberdade " negativa" imaginam seja, algumas vezes, nada mais do que um ilusório disfarce para a tirania brutal. II O CONCEITO DE LIBERDADE POSITIVA O sentido "positivo" da palavra" liberdade" tem origem no desejo do indivíduo de ser seu próprio amo e senhor. Quero que minha vida e minhas decisões dependam de mim mesmo e não de forças externas de qualquer tipo. Quero ser instrumento de mim mesmo e não dos atos de vontade de outros homens. Quero ser sujeito e não objeto, ser movido por razões, por propósitos conscientes que sejam meus, não por causas que me afetem, por assim dizer, a partir de fora . Quero se r alguém e não ninguém, alguém capaz de fazer - decidindo, sem que decidam por mim auto- conduzido e não sofrendo influências de natureza. externa ou de outros homens como se eu fosse uma coisa, um animal, um escravo incapaz de interpretar um papel humano, isto é, de conceber metas e'diretrizes inteiramente minhas, e de concretizá-las. Eis aí pelo menos parte do que quero expressar quando digo que sou racional e que é minha razão que me distingue, por ser humano, de todo o resto do mundo! Quero, acima de tudo, ser cônscio de mim mesmo, como um ser que pensa, deseja e age, assumindo a responsabilidade por minhas opções e capaz de explicá-las mediante referências a minhas próprias idéias e a meus próprios objetivos. Sinto-me livre na medida em que creio na verdade disso e sinto-me escravizado na medida em que me forçam a reco- nhecer que não existe tal verdade. A liberdade que consiste em ser-se amo e senhor de si mesmo e a liberdade que consiste em não se ser impedido por outros homens de escolher o que quero , pode, se a encararmos de frente, parecer um conjunto de conceitos que não se acham muito separados um do outro - apenas maneiras negativas e positivas de dizer a mesma coisa. Quatro Ensaios sobre a Liberdade 143 No entanto, os conceitos "positivo" e "negativo" de liberdade desenvolveram-se his- toricamente em sentidos divergentes nem sempre através de passos reputáveis do ponto de vista da lógica, até que, no final do caminho, entraram em choque direto um com o outro. · 'uma das formas de esclarecer isso é o momentum independente adquirido pela metáfura do autodomínio adquirido, talvez, de início praticamente inofensiva. "Sou dono de mim mesmo", "Não sou escravo de ninguém", mas não poderia ser (como tendem a dizer os adeptos de Platão e de Hegel) escravo da natureza? Ou de minhas próprias paixões "irrefreadas"? Estas paixões não seriam tantas subespécies da espécie idêntica "escravo" - algumas sendo políticas ou legais, outras sendo morais ou espi- rituais? Será que os homens tiveram a experiência de se libertarem a si mesmos da escravidão espiritual ou da escravidão à natureza, e será que, no decorrer dessa liber- tação, não se tornaram conscientes, por um lado, de um ego que domina e, por outro, se algo interior que é dominado? Esse ego dominante seria, então, identificado d~ formas diversas com a razão, com minha "natureza superior", com o ego que constrói mentalmente aquilo que o satisfará a longo prazo e sai a sua procura, com o meu ego "real" "ideal" ou "autônomo" ou com o meu ego "no seu auge". Tudo isso, então, contr~ta com o impulso irracional, co os desejos incontroláveis, com minha nature.la "inferior", com a busca de prazeres imediatos, com meu ego "empírico" ou "hete- rônomo", arrebatado por cada laivo de desejo e de paixão, precisando ser rigid~ente disciplinado se tiver de atingir a plenitude de sua natureza "real". Depois, os do_is egos podem ser representados como se estivessem divididos por um fosso mais largo amda: o ego verdadeiro pode ser concebido como algo mais amplo que o indivíduo (conforme se emprega normalmente tal termo), como um "todo" social do qual o indivíduo constitui um elemento ou um aspecto: uma tribo, uma raça, uma igreja, um Estado, a grande sociedade dos vivos e dos mortos e dos que ainda estão por nascer. Essa entidade é então identificada como sendo o ego "verdadeiro" que, impondo sua própria vontade coletiva ou "orgânica" sobre os "membros" recalcitrantes, consegue a sua (e, em conseqüência, deles) própria liberdade "superior". Já se salientaram freqüentemente os perigos de usar metáforas orgânicas para justificar a coerção de alguns homens por parte de outros a fün de alçá-los a um nível de liberdade "su- perior". Mas o que propicia a esse tipo de linguagem a plausibilidade que ela tem é que reconhecemos que é possível e algumas vezes justificável coagir os homens em nome de algum objetivo (digamos, justiça ou bem-estar público) que eles mesmos perseguiriam se fossem mais esclarecidos, mas não o fazem pelo fato de serem cegos, ignorantes ou corruptos. Isso faz com que para mim seja fácil conceber-me co~o coagindo o_utros e~ seu próprio benefício, em seu próprio interesse, e não em meu mteresse. Entao_ estarei eu afirmando saber, mais do que eles próprios, aquilo de que realmente necessitam. O que isso virá a acarretar, na melhor das hipóteses, é que eles não oporiam resistência a mim se fossem racionais e tão sábios quanto eu e se identificassem seus próprios interesses tanto quanto eu os identifico. Mas poderei ir adiante e afirmar ainda mais do que isso. Poderei declarar que, na verdade, eles estão visando àquilo a que eles, em seu estado inculto, conscientemente opõem resistência, porque existe dentro deles uma entidade oculta - seu desejo racional latente ou seu propósito "verdadeiro" - e que 144 Isaiah Berlin essa entidade, embora todos neguem queabertamente sentem, dizem e fazem, é o seu ego "verdadeiro", a respeito do qual o pobre ego empírico talvez não saiba nada ou saiba muito pouco no espaço e no tempo; e que esse espírito interno é o único ego que merece ter seus des~jos levados em consideração 11 • Uma vez que eu tenha adotado tal ponto de vista, estou em posição de ignorar os verdadeiros desejos dos homens ou das sociedades, para oprimir, maltratar e torturar a eles em nome de seus egos ''ver· dadeiros", com a fiane certeza de que, qualquer que seja a verdadeira meta do homem (felicidade, cumprimento do dever, sabedoria, uma sociedade justa, realização pessoal) precisará ser idêntica a sua liberdade - a livre escolha de seu ego ''verdadeiro" embora quase sempre sufocado e desarticulado. Esse paradoxo tem sido apresentado com bastante freqüência. Uma coisa é dizer que sei o que é bom para x, enquanto o próprio x não o. sabe, e mesmo ignorar seus desejos em seu próprio benefício; outra coisa muito diferente é dizer que x eo ipso escollleu aquilo, na realidade, sem estar consciente, não como ele, x, parece em sua vida quotidiana, mas em seu papel de ego racional que talvez seu próprio ego empírico desconheça - o ego ''verdadeiro" que discerne o bem e não pode evi.tar escolhê-lo uma vez que tenha sido revelado. Essa monstruosa personificação, que consiste em igualar o que x escollleria se fosse algo que não é, ou pelo menos ainda não é, com o que x realmente busca e escolhe, é o centro das preocupações de todas as teorias políticas de auto-realização. Uma coisa é dizer que posso ser coagido em meu próprio benefício e que sou cego demais para percebê-lo: isso poderá, naquele momento, ser bom para mim; na realidade, pocjerá ampliar o escopo de minha liberdade. Outra coisa é dizer que, se é para o meu bem, então não estou sendo coagido, pois eu o desejei, esteja ou não consciente disso, e que sou livre (ou "verdadeiramente" livre) mesmo quando meu pobre corpo e minha ingênua mente o recusem com firmeza e lutem contra aqueles que, por mais beneficamente que seja, procuram impô-lo, com o maior desespero. Essa transformação mágica ou escamoteação (em virtude da qual William James tão merecidamente escarn~cia dos hegelianos) sem dúvida alguma pode ser perpetrada tão facilmente com o conceito "negativo" de liberdade, onde o ego que não deveria sofrer interferências já não é o indivíduo com seus desejos e suas necessidades reais como são normalmente concebidos, mas o homem "verdadeiro" em seu íntimo, identificado com a busca de algum propósito ideal não sonhado por seu ego empírico. E, como no caso do ego "positivamente" livre, essa entidade pode ser alçada ao nível de alguma entidade superpessoal - um Estado, uma classe, uma nação ou a própria marcha da história, considerada como um sujeito de atributos mais "verdadeiros" do que o ego empírico. Mas a concepção "positiva" de liberdade como autodoÍnínio, com sua sugestão de um homem dividido contra si mesmo, na realidade, e como uma questão de história, tem-se prestado mais facilmente a essa divisão da personalidade em dois: o controlador transcendente e dominante e o feixe de desejos e paixões a serem discipJinados e dominados. Esse fato histórico é ctue tem exercido grande influência o que demonstra (se é que se faz necessária a demonstração de uma verdade tão evi· dente) que concepções de Liberdade se originam diretamente de opiniões sobre o que constitui um ego, uma pessoa, um homem. Podem-se fazer manipulações com a definição de homem e de liberdade com o objetivo de que venha a sig!Jificar aquilo que Quatro Ensaios sobre a Liberdade 145 o manipulador deseja. A história recente tem evidenciado que não se trata de questão puramente acadêmica. As conseqüências da distinção entre dois egos se tornarão ainda mais nítidas se considerarmos as duas formas mais importantes que tem tomado o desejo que deve ser autogovernado - governado pelo nosso próprio ego "verdadeiro": a primeira, a da auto-abnegação com vistas a atingir a independência; a segunda, a da auto-realização, ou total auto-identificação com um princípio ou um ideal específicos com vistas a atingir o mesmíssimo fim. III A RETIRADA PARA A CIDADELA INTERIOR Sou o possuidor da razão e da vontade; concebo fins e desejo atingi-los, mas se sou impedido, não me sinto mais dono da situação. Posso ser impedido pelas leis da natureza, por acidentes, por atividades dos homens ou pelo efeito muitas vezes nem esboçado de instituições humanas. Essas forças podem ser demasiado para mim. Que devo fazer para evitar ser esmagado por elas? Devo libertar-me de desejos que sei não poder realizar. Quero ser o dono de meu reino, mas minhas fronteiras são extensas e inseguras, por isso eu as contraio para reduzir ou eliminar a área vulnerável. Começo por desejar a felicidade, o poder, o conhecimento ou a consecução de algum objetivo específico. Mas não posso comandá-los. Escolho evitar a derrota e o desperdício, e assim decido lutar por nada que não possa estar seguro de obter. Tomo a determinação de não desejar o que é inatingível. O tirano ameaça-me com a destruição de minha propriedade, com a prisão, ext1io ou morte daqueles a quem amo. Mas, se não me sinto mais ligado à propriedade, se não mais me preocupo com estar ou não na prisão, se matei dentro de mim as minhas afeições naturais, então o tirano n:to me pode dobrar a sua vontade, pois o que restou de mim não é mais sujeito a medos ou desejos empíricos. É como se eu tivesse realizado uma retirada estratégica para uma cidadela interior - minha razão, minha alma, meu ego "numênico" - que, não importa o que os outros façam, nenhuma força externa cega, nem nenhuma malícia humana podem tocar. Retirei-me para dentro de mim mesmo: lá e só lá estarei em segurança. É como seu eu dissesse o seguinte: "Tenho um ferimento em minha perna. Há duas maneiras de livrar-me da dor. Uma é curar a ferida. Mas se a cura é muito difícil ou incerta, há outro método. Posso livrar-me da dor cortando a perna. Se eu acostumar-me a não desejar nada para o que a posse de minha perna seja necessária, então não sentirei a sua falta". Esta é a tradicional auto-emancipação dos ascetas e contemplativos, de estóicos ou monges budistas, de homens de várias formações religiosas ou de nenhuma formação religiosa, que se evolararn do mundo, que escaparam ao jugo da sociedade ou , da opinião pública por algum processo de deliberada autotransformação que os habilita a não mais se preocuparem com aqueles valores, a permanecerem isolados e inde- pendentes, nas suas posições críticas, não mais vulneráveis às armas da sociedade ou da opinião pública12 • Todo isolacionismo político, toda autarquia econômica, toda forma de autonomia traz em si algum elemento dessa atitude. Elimino os obstáculos de 146 Isaiah Berlin meu caminho abandonando o caminho, retiro-me para minha própria seita, para minha própria economia planificada, para meu próprio território deliberadamente insulado onde não é necessário ouvir as vozes do exterior e onde as forças externas nã~ produzem efeitos. É uma forma de busca de segurança, mas também tem sido chamada de busca de liberdade ou independência pessoal ou nacional. Não há muita distância entre essa doutrina, como se aplica aos indivíduos, e as concepçôes daqueles que, como Kant, identificam a liberdade não exatamente com a eliminação dos desejos, mas com a resistência a eles e com o controle sobre eles. Identifico-me com o controlador e escapo à escravidão do controlado. Sou livre porque (ou enquanto) sou autônomo. Obedeço às leis, mas eu as impus ou as crio em meu próprio ego incoercível. A liberdade é obediência, mas "obediência a uma lei que prescrevemos para nós mesmos", e nenhum homem pode escravizar-se a si mesmo. Heteronomia é dependência em relação a fatores externos, é a possibilidade de serum brinquedo do mundo exterior que não posso controlar completamente, e que, pro tanto, me controla e me "escraviza". Sou livre apenas até o grau em que minha pessoa é "agrilhoada" por algo que obedeça a forças além de meu controle; não posso con- trolar as leis da natureza, minha livre atividade, portanto, deve ser alçada acima do mundo empírico da causalidade. Não é este o momento para discutir a validade dessa antiga e famosa doutrina; desejo apenas observar que os conceitos correlatos de liberdade, como resistência - ou fuga - ao desejo irrealizável, e como independência da esfera da causalidade, têm desempenhado importante papel na política e na ética. Pois se a essência dos homens é serem eles seres autônomos - autores de valores de fins em si mesmos, dos quais a última autoridade consiste exatamente no fato d: serem desejados livremente - então, nada é pior do que tratá-los como se não fossem autônomos, mas sim objetos naturais, criaturas à disposição de estímulos externos, cujas opções podem ser manipuladas por seus dirigentes, por ameaças de força ou ofertas de recompensas. Tratar os homens dessa maneira é tratá-los como se não fossem autodeterminados. "Ninguém pode obrigar-me a ser feliz à maneira dos outros", disse Kant. "O paternalismo é o maior despotismo imaginável". Isso, porque é o mesmo que tratar os homens como se não fossem livres, mas sim materiais humanos para que eu, o reformulador benevolente, possa moldá-los segundo as minhas próprias finalidades livremente adotadas, e não segundo as deles. Essa é, naturalmente, a política que os primeiros utilitaristas recomendavam. Helvétius e Bentham acreditavam não em rejeitar, mas em utilizar a tendência dos homens de serem escravos de suas paixões; desejavam acenar com recompensas e punições diante deles - a mais aguda forma de heteronomia possível - se, por esse meio, os "escravos" pudessem tornar-se mais felizes. 13 Mas manipular os homens, empurrá-los para finalidades que você, o reformador social, vê, mas eles talvez não vejam, é negar a essência humana dos próprios homens é tratá-los como objetos sem vontade própria e, assim, degradá-los. Por isso que mentir para os homens ou enganá-los, ou seja, usá-los como meios para os meus - não para os deles - objetivos elaborados independentemente, mesmo que em seu benefício, é o mesmo que tratá-los como sub-humanos, proceder como se os objetivos desses homens fossem menos finais e menos sagrados que os meus. Em nome de que poderei ter justificativas para forçar os homens a fazerem o que não pretendiam Quatro Ensaios sobre a Liberdade 147 ou com que não tenham concordado? Somente em nome de algum valor mais elevado que eles próprios. Mas se, como bem afirmou Kant, todos os valores tornam-se valores pelos atos livres dos homens, e são desse modo chamados enquanto assim permanecem, não há valor mais elevado que o indivíduo. Portanto, fazer isso é coagir os homens em nome de algo menos final do que eles mesmos - é curvá-los à minha vontade ou a alguma ânsia particular de outrem, em favor de sua felicidade, benefício, segurança ou conveniência. Viso a algo desejado (por qualquer motivo, não importa quão nobre) por mim ou por meu grupo, para o qual estou usando outros homens como meio. Mas isto é uma contradição do meu conhecimento dos homens, isto é, dos fins em si mesmos. Todas as formas de adulterar os seres humanos, de pegá-los e moldá-los aos nossos padrões, contra a sua própria vontade, todos os controles e condicionamentos do pensamento 14 , tudo isso é uma negaçã'o do que há de homem no homem e em seus valores finais. O indivíduo livre de Kant é um ser transcendente, além da esfera da causalidade natural. Mas, em sua forma empírica - na qual a noção de homem é a da vida comum - essa doutrina constituiu o cerne do humanismo liberal, tanto moral como político, que foi profundamente influenciado por Kant e por Rousseau no século XVIII. Em sua versão a priori, é uma forma de individualismo protestante secularizado, na qual o lugar de Deus é tomado pela concepção da vida racional, e o lugar da alma individual, que se esforça pela união com Ele, é substituído pela concepção do indivíduo, dotado de razão, esforçando-se para ser governado pela razão, e só pela razão, e para não depender de nada que possa diminui-lo ou iludi-lo por engajar sua natureza irracional. Autonomia e não heteronomia : agir e não sofrer a ação. O conceito de escravização às paixões é - para os que pensam nesses termos - mais que uma metáfora. Livrar-me do medo, do amor ou do desejo de conformar-me é libertar-me do despotismo de algo que não posso controlar . Sófocles, que Platão cita como tendo dito que só a velhice o libertara da paixão do amor - o jugo de um mestre cruel -, relata uma experiência tão real como a libertação de um tirano humano ou dono de escravos. A experiência psicológica de observar-me a mim mesmo a condescender com algum impulso "mais baixo", agindo com um motivo que desprezo, ou a fazer algo que, no mesmo momento da ação, eu possa destar, e refletindo mais tarde que "não era eu mesmo" ou "não estava tendo controle de mim mesmo" ao fazê-lo, pertence a essa forma de pensar e de falar. Identifico-me com meus momentos críticos e racionais. As conseqüências de meus atos podem não importar, pois não estão sob meu controle, apenas minhas motivações estão. Este é o credo do pensador solitário, que desafiou o mundo e emancipou-se dos grilhões dos homens e das coisas. Dessa forma, a doutrina pode parecer primariamente um credo ético, e provavelmente nada político; no entanto, suas implicações políticas são claras - e ela penetra na tradição do individualismo liberal, no mínimo de forma tão profunda como o conceito "negativo" de liberdade. Talvez seja válido notar que, em sua forma individualista, o conceito do sábio racional que se trancou na fortaleza interior de seu eu verdadeiro parece ressurgir quando o mundo exterior comprova ser extraordinariamente árido, cruel ou injusto. "É verdadeiramente livre" - disse Rousseau, - "aquele que deseja o que pode realizar e realiza o que deseja". Em um mundo em que um homem em busca da felicidade, da 148 Isaiah Berlin justiça ou da liberdade (em qualqur sentido) pouco pode fazer, porque há muitas vias de ação bloqueadas, a tentação de refugiar-se em si mesmo pode tornar-se irresistível. Talvez tenha sido o que ocorreu na Grécia, onde o ideal estóico não pode ser intei- ramente desvinculado da queda das democracias independentes diante da autocracia macedônica centralizada. Foi o que aconteceu em Roma, por motivos análogos, após o fim da República. 15 Surgiu na Alemanha do século XVII, durante o período da maior degradação nacional dos estados germânicos que se seguiu à Guerra dos Trinta Anos, quando o caráter da vida pública, principalmente nos pequenos principados, forçou aqueles que prezavam a dignidade da vida humana (não pela primeira ou última vez) a uma espécie de emigração interior. A doutrina que afirma que o que eu não posso ter devo ensinar a mim mesmo a não desejar; que um desejo eliminado ou bem contido é tão bom quanto um desejo satisfeito, é uma forma sublime, mas, a meu ver, inquestionável, da doutrina das uvas verdes: não posso verdadeiramente querer aquilo que não estou muito seguro de conseguir. Isto torna claro por que a definição da liberdade negativa como a habilidade de fazer o que se deseja - que é, com efeito, a definição adotada por Mill - não funciona. Se descubro que posso pouco ou nada daquilo que desejo, preciso apenas contrair ou extinguir meus desejos, tornando-me, então, livre. Se o tirano (ou o "persuasor oculto") consegue condicionar seus súditos (ou clientes) a abandonarem seus desejos originais e a abraçarem ("interiorizarem") a forma de vida que inventou para eles, terá conseguido, nesse sentido, liberá-los. Terácertamente conseguido fazê-los sentirem-se livres - como Epiteto se sente mais livre que seu dono (como se imagina o proverbial homem bom sentir-se feliz mesmo no sofrimento). Mas o que ele criou é a própria antítese da liberdade política. A autonegação ascética pode ser fonte de integridade, de serenidade e de força espiritual, mas é difícil imaginar como pode ser chamada de expansão da liberdade. Se me salvo de um adversário entrando em casa e trancando todas as portas, talvez eu continue mais livre do que se tivesse sido capturado por ele; mas, serei mais livre do que se o tivesse derrotado e subjugado? Se me excedo, se me contraio em um espaço reduzido, sufocarei e morrerei. O ápice lógico do processo de destruir tudo o que me possa ferir é o suicídio. Enquanto eu existir no :nundo natural, nunca poderei estar totalmente seguro. A libertação total, nesse sentido (como Shopenhauer percebeu cor- retamente), só é concedida pela morte16 • Estou em um mundo onde enfrento obstáculos a minha vontade. Os que compar- tilham do conceito "negativo" da liberdade talvez possam ser perdoados se julgarem que a auto-abnegação não é o único método de superar os obstáculos e que também é possível fazê-lo através de sua remoção: no caso de objetos não-humanos, pela ação física, no caso de resistência humana, pela força ou persuasão, como quando induzo alguém a dar-me lugar em seu carro - ou quando conquisto um país que ameaça os interesses do meu. Tais atos podem ser injustos, podem implicar violência, crueldade, escravização de outros, mas não se pode negar que, assim, o agente está apto, no sen- tido mais literal do termo, a aumentar sua própria liberdade. É uma ironia da história que esta verdade seja repudiada por alguns dos que a praticam mais acirradamente, homens que, mesmo ao conquistarem poder e liberdade de ação, rejeitam o seu concei- Quatro Ensaios sobre a Liberdade 149 to "negativo" em favor da contrapartida "positiva". Seus pontos de vista regem a me- tade de nosso mundo; assim, vamos ver em que base metafísica se apóiam. N AUTO-REALIZAÇÃO O único método verdadeiro para se atingir a liberdade, conforme nos ensinam, é o uso da razão crítica, a compreensão do que é necessário e do que é contingente. Se sou um estudante, as mais simples verdades da matemática embaralham-se como obstá- culos ao livre funcionamento da minha mente, como teoremas cuja necessidade não compreendo; são enunciados como verdadeiros por alguma autoridade externa e apre- sentam-se a mim como corpos estranhos que se espera que eu absorva mecanicamente em meu sistema, os axiomas, as regras de formação e transformação - a lógica pela qual se obtêm as conclusões - e capto que as coisas não podem ser diferentes, pois pa- recem redundar das leis que governam os processos de minha própria raz[o 17 , ent!l'o as verdades matemáticas não mais se embaralham como entidades externas que me são forçadas e que devo reter, quer queira, quer não, mas como algo que agora desejo livre- mente no curso do funcionamento natural de minha própria atividade racional. Para o matemático, a demonstração desses teoremas é parte do livre exercício de sua capaci- dade natural de raciocinar. Para o músico, uma vez assimilado o modelo da criação do compositor e uma vez tornado o objetivo do compositor o seu próprio, a execução da música não é obediência a leis externas, compulsão ou barreira à liberdade, mas um exercício livre e desimpedido. O executante não está ligado à pauta, como um boi ao arado, um operário à máquina. Ele absorveu a pauta em seu próprio sistema; compre- endendo-a, identificou-se com ela, transformou-a de um impedimento à livre atividade em um elemento da própria atividade. O que se aplica à música ou à matemática, deve- se aplicar, dizem-nos, em princípio, a todos os outros obstáculos que se apresentam como tantas massas informes de matéria exterior que bloqueiam o livre auto-desenvol- vimento. Este é o programa do racionalismo esclarecido desde Spinoza até os últimos (algumas vezes inconscientes) discípulos de Hegel. Sapere aude. O que você conhece, aquilo cuja necessidade compreende - a necessidade racional - você não pode, en- quanto racional, querer que seja de outra maneira. Pois querer que algo seja diferente daquilo que deve ser, é, dadas as premissas - as necessidades que governam o mundo - ser pro tanto ignorante ou irracional. Paixões, preconceitos, medos e neuroses jorram da ignorância e tomam a forma de mitos e ilusões. Ser governado por mitos, quer sur- jam eles da imaginação viva de charlatães inescrupulosos que nos enganam para nos ex- plorar, quer surjam de causas psicológicas ou sociológicas, é uma forma de heterono- mia, de ser dominado por fatores externos em um sentido não necessariamente deseja- do pelo agente. Os deterministas científicos do século XVIII supunham que o estudo das ciências da natureza e a criação das ciências da sociedade com o mesmo modelo tornariam a execução de tais causas transparentemente clara, capacitando os indiví- duos dessa forma a reconhecerem seu papel no desempenho de um mundo racional, frustrante apenas se não devidamente compreendido. O conhecimento liberta, como há muito ensinou Epicuro, eliminando automaticamente medos e desejos irracionais. 150 Isaiah Berlin Herder, Hegel e Marx substituíram seus próprios modelos vitalistas da vida social por outros antigos, mecânicos, mas acreditavam, não menos que seus adversários, que compreender o mundo é libertar-se. Diferiam dos outros apenas por enfatizarem a parte representada pela mudança e pela expansão do que tomava humanos os seres humanos. A vida social não podia ser compreendida por uma analogia com a ma- temática ou a física. Deve-se também compreender a história, isto é, as leis peculiares ao crescimento contínuo, quer por conflito "dialético", quer de outro modo, que governa indivíduos e grupos, em sua interação uns com os outros ou com a natureza. Não captar isto é, segundo aqueles pensadores, cair em um tipo particular de erro, exatamente a crença de que a natureza humana é estática, que suas propriedades essenciais são as mesmas sempre e em qualquer lugar, que é governada por leis naturais invariáveis, sejam elas concebidas em termos teológicos ou materialistas, o que acarreta o corolário falacio8o de que um legislador sábio pode, em princípio, criar uma sociedade perfeita e harmoniosa a qualquer momento, através de educação e legislação apropriadas, porque os homens racionais, em todas as épocas e países, sempre exigirão a mesma e inalterável satisfação das mesmas e inalteráveis necessidades básicas. Hegel achava que seus contemporâneos (e, na verdade, todos os seus antecessores) se haviam enganado sobre a natureza das instituições, porque não compreendiam as leis - as leis racionalmente inteligíveis, já que elas surgem da operação da razão - que criam e alteram instituições e transformam o caráter humano e a ação humana. Marx e seus discípulos afirmavam que o caminho dos seres humanos era obstruído não só por forças naturais ou pelas imperfeiçoes de seu próprio caráter, mas, ainda mais, pelo funcionamento de suas próprias instituições sociais, que eles mesmos tinham criado originalmente (nem sempre conscientemente) para determinados propósitos, mas cujo funcionamento vieram sistematicamente a interpretar de maneira errônea18 e que, por isso, se tornaram obstáculos ao progresso de seus criadores. Ele apresenta hipóteses sociais e econômicas como responsáveis pela inevitabilidade de tal equívoco, parti- cularmente quanto à ilusão de que tais arranjos artificiais fossem forças independentes, tão inevitáveis quanto as leis da natureza. Como exemplo dessas forças pseudo- objetivas, ele destacava as leis da oferta e da procura, da instituição da propriedade, da eterna divisão da sociedade em ricos e pobres, de patrões e empregados, da mesmaforma que tantas categorias humanas inalteráveis. Até o momento em que tínhamos atingido um estágio em que se podiam desfazer as névoas dessas ilusões, isto é, até que um número suficiente de homens tivessem atingido um estágio social que, por si só, os capacitasse a compreender que essas leis e essas instituições eram em si mesmas obras de mentes e mãos humanas, eram historicamente necessárias em seu tempo e, mais tarde, foram erroneamente consideradas como forças inexoráveis e objetivas, somente até esse momento é que o mundo poderia ser destruído e se poderia substituí-lo por uma engrenagem social mais aperfeiçoada e mais liberalizante. Somos escravizados por déspotas - instituições, crenças ou neuroses - que só podem ser elininados ao passarem por um processo de análise e de entendimento. Somos prisioneiros de espíritos malignos que nós mesmos - embora sem ter cons- ciência disso - criamos, e só podemos exorcisá-los no momento em que nos tornamos conscientes e passamos a agir da maneira mais adequada: com efeito, para Marx o Quatro Ensaios sobre a Liberdade 151 e~tende~ constitui a ação mais adequada. Serei livre se eu, e somente eu, planejar nunha VIda de acordo com minha própria vontade; os planos incluem normas e uma norma não me oprimirá nem me escravizará se eu a impuser a mim mesmo de forma consciente, ou se a aceitar livremente, tendo-a entendido, seja ela inventada por mim ou por outros, mas desde que seja racional, isto é, desde que se conforme às neces- sidades. das co~sas. Entender ?ºr que as coisas devem ser como devem ser é querer que elas SeJam assim. O conhecimento liberta não por oferecer-nos possibilidades mais amplas entr~ as qu~is podemos fazer nossa escolha, mas por preservar-nos da frustração de tentar o imposs1vel. Querer que as leis necessárias sejam o que não são é tornar-se presa de um desejo irracional - um desejo de que o que precisa ser x deva também ser não x. Ir mais adiante e acreditar que essas leis sejam outras que não as que neces- sariamente são, é uma atitude insana. Esse é o cerne metafísico do racionalismo. A noção de liberdade aí contida não é a concepção "negativa" de um campo (ideal- mente) sem obstáculos, de um vácuo onde nada me estorva, apenas a noção de auto- governo o~ de autocontrole. Posso fazer o que quiser e por minha própria vontade. Sou um ser racional e, sendo racional, não posso desejar afastar de meu caminho 0 que quer que eu possa demonstrar a mim mesmo como sendo necessário , como não podendo ser senão o q~e é .em uma sociedade racional - isto é, em uma sociedade dirigida por mentes racionais, na busca de metas tais como aquelas que um ser racional gostaria de ter. Assimil~ isso a ~~a essência, da mesma maneira como assimilo as leis da lógica, da matemática, da ftsica, as regras da arte, os princ1p10s que governam todas as coisas cujo propósito racional eu compreendo e, portanto, desejo, propósito pelo qual nunca me sentirei frustrado, visto que não posso querer que seja senão o que é. Essa é a doutrina positiva da libertação através da razão. Existem formas socia- liza~as de tal doutrina díspares que sejam e opostas umas às outras, no cerne de mmtos dos credos nacionalistas, comunistas, autori~ários e totalitaristas de nossa época. No curso de sua evolução, essa doutrina pode ter-se extraviado de suas bases r~cionalistas. No entanto, é por essa liberdade que, em democracias e em ditaduras, se d~scut~ e se lut~ ~~ muitas p~tes do mundo de hoje. Sem procurar traçar a evolução histónca dessa ideia, eu gostana de tecer alguns comentários a respeito de algumas de suas vicissitudes. V O TEMPLO DE SARASTRO Aqueles que acreditavam na liberdade como um autogoverno racional mais cedo ?u .ma~s tar~e com certeza iriam refletir a respeito de como isso se aplicaria não apenas a vida mtenor de um homem, mas também ao relacionamento com outros membros de sua sociedade. Mesmo os mais individualistas dentre eles - E Rousseau, Kant e Fichte ~rtamente c~meçaram como individualistas - chegaram a um ponto em que se ~nd~g~ram a s1 mesmos se era possível existir uma vida racional ntro apenas para o mdIVIduo, mas também para a sociedade, e, em caso positivo, de que forma poderia ela ser conseguida. Desejo ser livre para viver conforme minha vontade (ou meu "eu real") 152 Isaiah Berlin ordena, mas outros também o desejam. Como evitar conflitos com as vontades dos outros? Onde se localiza a fronteira entre os meus direitos (racionalmente deter- minados) e os direitos (também racionalmente determinados) dos outros? Pois, se sou racional, não posso negar que o que é certo para mim deverá, pelas mesmas razões, ser certo para outros que são racionais como eu. Um Estado racional (ou livre) seria um Estado governado por leis que todos os homens racionais acatariam livremente; isto corresponde a dizer, leis que eles mesmos teriam promulgado se llies tivessem per- guntado quais, já que se trataria de seres racionais, eram as suas vontades; assim, as fronteiras seriam tais, que todos os homens racionais as considerariam como as fron- teiras ideais para seres racionais. Mas quem, na realidade, determinaria quais são essas fronteiras? Pensadores dessa mesma linha argumentavam que, se os problemas morais e políticos fossem genuínos - como certamente seriam - deviam, em princípio, admitir uma solução, quer dizer, precisaria haver uma única e verdadeira solução para qualquer problema. Todas as verdades, em tese, poderiam ser discernidas por qualquer pensador racional e demonstradas de modo tão claro, que a única coisa que todos os homens racionais poderiam fazer seria aceitá-las; na verdade, em grande extensão, já era esse o caso que ocorria quanto às novas ciências naturais. Nessa hipótese, o problema da liberdade política só poderia ser solucionado ao estabelecer-se uma ordem justa que desse a cada homem toda a liberdade a que um ser racional tivesse direito. Minha defesa da liberdade irrestrita pode algumas vezes, prima facie, não harmonizar-se com a defesa da liberdade irrestrita feita por outra pessoa; mas a solução racional de um problema não pode colidir com a solução igualmente verdadeira de um outro pro- blema, pois duas verdades não podem ser incompatíveis do ponto de vista da lógica; portanto, uma ordem justa precisa, em tese, ser discernível - uma ordem cujas normas possibilitem soluções corretas para todos os problemas que possam surgir em seu âmbito . Esse ideal, esse harmônico estado de coisas às vezes era imaginado como o Jardim do Éden antes da queda do homem, jardim do qual fomos expulsos, mas pelo qual ainda suspiramos cheios de esperanças; ou como uma idade do ouro ainda por vir, na qual os homens, tendo-se tornado racionais, já não serão "governados por outros", nem se "alienarão" ou se frustrarão uns aos outros. Nas sociedades existentes, a justiça e a igualdade são ideais que ainda exigem uma certa medida de coerção, porque a prematura eliminação de controles sociais poderia levar à opressão dos mais fracos física e mentalmente pelos mais fortes, pelos mais hábeis ou pelos mais enérgicos e mais inescrupulosos. Mas é apenas a irracionalidade por parte dos homens (segundo essa doutrina) que os leva ao desejo de oprimir, explorar ou humilhar uns aos outros. Os homens racionais respeitarão o princípio da razão em cada outro homem, e não sentirão o desejo de lutar entre si ou de dominarem-se uns aos outros. O desejo de dominar é, em si mesmo, um sintoma de irracionalidade e pode ser explicado e curado por métodos racionais. Spinoza fornece uma espécie de explicação e de remédio, Hegel oferece outra e Marx, uma terceira. Algumas dessas teorias talvez possam, até deter- minado nível, suplementar-se umas às outras; outras, porém, não podem ser combi- nadas. Mas todas pressupõem que, numa sociedade de seres humanos perfeitamente racionais, a ânsia de exercerum domínio sobre os homens será inexistente ou não acarretará conseqüências. A existência ou a ânsia de opressão será o primeiro sintoma Quatro Ensaios sobre a Liberdade 153 de que a verdadeira solução para os problemas da vida social ainda não foi alcançada. Isso pode ser dito em outros termos. A liberdade é o autodomínio, a eliminação de obstáculos a minha vontade, quaisquer que sejam esses obstáculos - como, por exemplo, a resistência da natureza, de minhas paixões não controladas, de instituições irracionais, das vontades ou comportamentos contrários de outras pessoas. A natureza, em tese, eu posso sempre moldar mediante artifícios técnicos; e conformá-la a minha vontade. Mas, como vou tratar os seres humanos recalcitrantes? Devo, se puder, impor minha vontade também a eles, "moldá-los" a meu paradigma, determinar os papéis que vão representar em minha peça. Mas isso nã'o significará que apenas eu disponho de liberdade e que eles são escravos? Eles serão realmente escravos se meu plano não tiver nada a ver com seus desejos ou com seus valores, somente com os meus. Mas, se meu plano for plenamente racional, permitirá o desenvolvimento integral das "verdadeiras" naturezas desses outros homens, a realização de suas potencialidades para decisões racionais "para que eles se transformem no melhor que possam" - como parte da realização de meu próprio "eu" verdadeiro . Todas as soluções verdadeiras para todos os problemas genuínos devem ser compatíveis: mais do que isso, devem enquadrar-se em um único todo, pois isso é o que significa denominá-los, a todos, de racionais e ao universo, de harmônico. Cada homem possui seus caráter, potencialidades, aspirações e fins específicos. Se compreendo o que são tanto esses fins quanto essas naturezas e como se relacionam entre si, poderei, pelo menos em princípio, se tiver o conhe- cimento e a força, satisfazê-los a todos, desde que as naturezas e os fins em questão sejam racionais. Racionalidade é conhecer as coisas e as pessoas pelo que elas são: não devo utilizar pedras para fabricar violinos, nem tentar fazer que violinistas natos toquem flauta. Se o universo é governado pela razão, não há necessidade de coerçlío; uma vida planejada corretamente para todos coincidirá com a liberdade plena para todos, isto é, a liberdade do autogoverno racional. Assim será se (e somente se) o plano for o plano verdadeiro - aquele único modelo que, sozinho, preenche os reclamos da razão. Suas leis serão as regras que a razão prescreve: só parecerão estranhas para aqueles cuja razão está adormecida, para aqueles que não compreendem as verdadeiras "necessidades" de seus próprios eus "reais". Desde que cada ator reconheça e repre- sente o papel que lhe foi destinado pela razão - a faculdade que compreende sua verdadeira natureza e àiscerne seus verdadeiros fins - não poderá haver conflito. Cada homem será um ator liberado e autodirigido no drama cósmico. Assim, Spinoza nos diz que "as crianças, embora sejam coagidas, não são escravos'', porque "obedecem a ordens dadas em seu próprio interesse", e que "o súdito de uma Commonwealth não é escravo, porque os interesses comuns devem incluir o seu próprio interesse". De modo semelhante, Locke diz que "onde não há lei, não há liberdade", porque as leis racionais são guias para "interesses próprios" de um homem, ou para o "bem geral"; e acres- centa que, desde que essas leis são o que "nos protege de pântanos e precipícios", elas "mal merecem ser chamadas de limitação", e afirma-se que o desejo de escapar a essas leis é irracional, é uma forma de "indisciplina", de "insanidade", e assim por diante. Montesquieu, esquecendo seus momentos liberais, fala de liberdade política como sendo não a permissão de fazer o que se quer, ou ·mesmo o que a lei permite, mas apenas "o poder de fazer o que devemos desejar"; o que Kant praticamente repete. 154 Isaiah Berlin Burke proclama o "direito" do indivíduo de se limitar em seu próprio interesse, porque "o consentimento presumido de toda criatura racional está em uníssono com a ordem predisposta das coisas". O pressuposto comum desses pensadores (e de muitos escolásticos anteriores e de jacobinos e comunistas posteriores) é que os fins racionais de nossas "verdadeiras" naturezas devem coincidir, ou devem ser levados a coincidir, não importa quanto possam esbravejar contra esse processo nossos pobres, ignorantes, ansiosos e apaixonados eus empíricos. Liberdade não é a liberdade de fazer o que é irracional, obtuso ou errado. Forçar os eus empíricos a se adaptarem ao padrão certo não é tirania e, sim, liberação19 . Rousseau me diz que, se entrego livremente todas as partes de minha vida à sociedade, crio uma entidade que, por ter sido construída mediante sacrifícios iguais de todos os seus membros, não pode desejar magoar nenhum deles; em tal sociedade, ao que nos informam, não pode ser do interesse de ninguém prejudicar a outro. "Dando-me a todos, dou-me a ninguém" e recebo de volta tanto quanto perdi, com força nova e suficiente para preservar meus novos ganhos. Kant nos diz que, quando "o indivíduo abandonou totalmente sua liberdade selvagem e sem lei, reencontrá-la inteira, em um estado de dependência à lei'', isto já é a verda- deira liberdade, porque essa dependência é obra de minha própria vontade agindo como legisladora". A liberdade, longe de ser incompatível com a autoridade, torna-se praticamente idêntica a ela. Esse é o pensamento e a linguagem de todas as declarações dos direitos do homem no século XVIII, e de todos os que consideram a sociedade como um projeto elaborado conforme as leis racionais do legislador sábio, ou da natureza, ou da história, ou do ser Supremo. Bentham, quase sozinho, humildemente continuou repetindo que o objetivo das leis era, não liberar, mas restringir: "Toda lei é uma infração da liberdade" - mesmo que tal "infração" leve a um aumento da liber- dade. Se as proposições subjacentes estiverem corretas - se o método de resolver problemas sociais se parecesse com o modo como são encontradas as soluções dos problemas das ciências naturais, e se a razão fosse o que os racionalistas diziam ser, tudo isso talvez fosse verdade. No caso ideal, a liberdade coincide com a lei: a autonomia com a autoridade. Uma lei que me proi'be de fazer o que eu compreen- sivelmente não poderia, como um ser sadio, desejar fazer não é uma limitação a minha liberdade. Na sociedade ideal, composta de seres totalmente responsáveis, pelo fato de eu não estar muito consciente delas, as regras definhariam gradativamente. Apenas um movimento social foi bastante corajoso para tornar essa hipótese bem explícita e aceitar as conseqüências - o dos anarquistas. Mas todas as formas de liberalismo fundadas em uma metafísica racionalista são versões mais ou menos atenuadas desse credo. _No devido tempo, aos pensadores que devotavam suas energias à solução do problema com base nessas diretrizes deparou-se a questão de como, na prática, os homens poderiam ser tornados racionais desse modo. Nitidamente, eles deveriam receber educação. Pois os não-educados são irracionais, heterônomos e precisam ser coagidos, no mínimo para fazer a vida mais tolerável para os racionais, se é que devem viver na mesma sociedade e não ser induzidos a se retirarem para um deserto ou para algum Olimpo. Mas dos não-educados não se pode esperar que compreendam os Quatro Ensaios sobre a Liberdade 155 propósitos de seus educadores ou que com eles cooperem. A educação, segundo Fichte, deve inevitavelmente agir de tal modo, que "você mais tarde reconhecerá os motivos do que eu estou fazendo agora". Não se pode esperar das crianças que compreendam por que são obrigadas a ir à escola, nem dos ignorantes - isto é, atualmente, a maioria da humanidade - por que devem obedecer às leis que os tor- narão racionais. "A compulsão é também
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