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Mulheres brasileiras e militância política durante a ditadura militar

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359ARTICULOS
R. interam. Psicol. 41(2), 2007
Revista Interamericana de Psicología/Interamerican Journal of Psychology - 2007, Vol. 41, Num. 3 pp. 359-370
Mulheres brasileiras e militância política durante
a ditadura militar:
A complexa dinâmica dos processos identitários
Ingrid Faria Gianordoli-Nascimento1
Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil
Zeidi Araújo Trindade
Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil
Maria de Fátima de Souza Santos
Universidade Federal de Pernambuco, Brasil
Resumo
O período da ditadura militar, instaurada no País em 1964 e que perdurou até 1985, marcado por uma sucessão
de mudanças políticas, econômicas e sociais, caracterizou-se também pela gradativa e intensa repressão político-
social aos seus opositores. Nesse cenário, destaca-se a militância política de mulheres opositoras ao regime.
Buscamos nessa investigação focalizar os aspectos psicossociais, principalmente aqueles relacionados aos
processos identitários, implicados na interconexão entre relações de gênero e campo político na militância de
mulheres contra a ditadura militar brasileira, entre os anos de 1964 e 1985. Com esse objetivo, foram realizadas
entrevistas individuais com 09 mulheres que participaram de organizações que possuíam uma clara posição de
resistência ao regime autoritário entre os anos de 1964 e 1973. A análise dos dados aponta que transformando o
contexto social e sendo por ele transformadas, essas mulheres, então, tanto no campo da política quanto no das
relações de gênero, romperam com códigos tradicionais de conduta e propuseram, em seus lugares, formas
alternativas de viver a condição feminina.
Palavras-Chave: Psicologia Social; identidade social; gênero; Ditadura militar; militância.
Brazilian women and political militancy during the military dictatorship:
The complex dynamics of the identity processes
Abstract
The military dictatorship period, which began in 1964 and lasted until 1985, marked by a succession of political,
economical, and social changes, also characterized itself by the gradual and intense politico-social repression
towards its antagonists. In this scenery, is remarkable the political activism of women antagonists to the regime.
We aimed in this investigation to focus the psychosocial aspects, mainly those related to the identity processes,
implied in the interconnection between gender relations and politics in women activism opposing against the
dictatorial regime, from 1964 until 1985, in Brazil. With this objective, individual interviews were conducted
with 09 women who participated of organizations which clearly stood as resistance against the military
dictatorship between 1964 and 1973. The data analysis shows that transforming the social context and being
transformed by it, these women, then, both within the political sphere and within gender relations, broke
traditional code of conduct and proposed, instead, alternative forms to live the feminine condition.
Keywords: social psychology; gender; social identity; military dictatorship; militancy.
Os dados aqui apresentados são parte de pesquisa desen-
volvida em curso de doutorado que buscou investigar a partici-
pação feminina na militância política durante a ditadura militar
brasileira (1964-1982). Sua relevância situa-se na necessidade,
sob nosso ponto de vista, de análise mais aprofundada, no
nível psicossocial, de questões vinculadas às relações de gêne-
ro em sua interconexão com o campo político na história recente
do Brasil. Esse nos parece ser o caso da militância política de
mulheres durante a ditadura militar brasileira, quando jovens
assumiram um papel inédito tanto no campo da política quanto
no das relações de gênero, rompendo com os códigos de sua
época. Investigar a participação da mulher nesse contexto pode
oferecer importantes informações que colaborem para um en-
tendimento mais geral da construção social da identidade femi-
nina, que a partir dessa época passa por intensas transforma-
ções.
A historiografia oficial de uma etapa importante para a
constituição da memória social brasileira contemporânea,
os anos da ditadura militar, só recentemente começou a as-
similar, de forma mais sistemática, os depoimentos de al-
guns dos principais envolvidos nos acontecimentos desse
período: os perseguidos por esse regime político de exce-
ção. Por mais de 20 anos, uma grande parcela desses sujei-
tos não pôde, por motivos diversos, assumir e contar suas
histórias, e a mulher, como categoria, tem poucos registros
históricos pertinentes. É valioso, portanto, o testemunho
daquelas que militaram contra o regime, pois através do
1
 Rua Bento Mendes Castanheira, n.222, apt.101. CEP 31-260-
270. Belo Horizonte/MG, Brasil. E-mail: fgian@uol.com.br
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R. interam. Psicol. 41(3), 2007
INGRID FARIA GIANORDOLI-NASCIMENTO, ZEIDI ARAÚJO TRINDADE & MARIA DE FÁTIMA DE SOUZA SANTOS
conteúdo de suas narrativas, com suas lembranças e con-
seqüente reconstrução de suas histórias de vida, haverá
possibilidade de se tentar resgatar parte do repertório
sociocultural daquele período no Brasil, contribuindo para
a construção de uma história pouco contada.
 Nesse sentido, buscamos com esse trabalho lidar com
alguns temas instigantes e importantes para a construção
da memória social, como identidade, geração e gênero2 , re-
fletindo sobre um conjunto de fatores que se revelaram muito
significativos para a avaliação das motivações que levaram
à participação política e seus reflexos na participação social
das mulheres entrevistadas.
O cenário político- social
Nos anos de 1962-1964 o movimento estudantil univer-
sitário começou a se inserir nas campanhas reformistas do
final do período populista nos dois maiores centros urba-
nos do Brasil (Rio de Janeiro e São Paulo) e em diversas
outras capitais (Belo Horizonte-MG, Salvador-BA, Recife-
PE, Porto Alegre-RS, Goiânia-GO e Vitória-ES) , gerando uma
mobilização que deu intenso vigor à vida estudantil. Logo
após, com o golpe militar de 1964, iniciou-se uma fase de
silêncio forçado aos movimentos de massa. A partir de en-
tão, lutas estudantis renasceriam em resistência ao projeto
de reforma educacional proposto pela ditadura e na luta
contra a repressão policial-militar, até chegarem aos gran-
des atos públicos de 1968, conhecido como o “ano dos
estudantes” 3 .
Ventura (1988) conta que o Governo Brasileiro parecia
temer a radicalização desse movimento. O “golpe dentro do
golpe”, o Ato Institucional nº 5, o AI-5, de 13 de Dezembro
de 1968, tornou-se o divisor de águas e deu início ao perío-
do que ficou conhecido como “os anos de chumbo”.
O AI-5 decretou a suspensão de todas as garantias
individuais e dos direitos políticos. A partir daí, o confronto
saía do campo das idéias e descia às ruas, com a luta arma-
da, e aos porões, com a tortura (Ventura,1988). O ideário de
libertação difundido por qualquer segmento intelectual, ar-
tístico, estudantil ou operário, ficava impossibilitado de ser
conjugado com a ideologia da Segurança Nacional imposta
pelo regime. Os anos 70, em conseqüência, foram marcados
por uma intensa perseguição a qualquer pessoa que os mi-
litares achassem que poderia levar a algum líder importante
desses movimentos considerados subversivos. A clandes-
tinidade deixou de ser opcional para muitos e tornou-se
obrigatória, na medida que as idéias que inspiravam o movi-
mento de reconstrução sócio-política do país, em conjun-
ção com a transformação de valores e costumes, tiveram
que encontrar novas formas de existência (Carmo, 2001;
Ferreira, 1996; Martins Filho, 1987; 1996).
Identidade feminina e militância
Segundo Abreu (1997), a juventude revolucionária era
formada por um conjunto de pessoas com idades que vari-
avam entre 14 e 24 anos (final dos anos 60 e início dos anos
70), que compartilharam e viveram a mesma conjuntura his-
tórica e o mesmo projeto: atravésda luta armada, derrubar o
regime militar. O que fica claro, conforme aponta Abreu, é
que junto com o projeto de derrubar o regime também esta-
va o de revolucionar os costumes, os valores e as relações
sociais e afetivas, que deveriam ser mais igualitárias. Tais
propostas eram partilhadas também com militantes que não
participaram da luta armada.
A participação feminina nas organizações de militância
política e luta armada, no Brasil dos anos 1960 e 1970, pode
ser tomada como um indicador das ‘rupturas iniciais’ que
estavam ocorrendo no que era designado, à época, como
próprio das mulheres, colocando em questão a tradicional
hierarquia de gênero. As ações femininas contestavam “as
relações de poder tanto no mundo naturalizado das rela-
ções entre homem e mulher, quanto em todos os âmbitos da
sociedade, articulando as relações de gênero à estrutura de
classes” (Sarti, 2004, p.37) . Tanto Ferreira (1996) quanto
Abreu (1997) apontam que denominar essas rupturas de
“iniciais” não se deve à participação minoritária ou inédita
das mulheres, mas principalmente pela indicação de uma
participação assimétrica: elas raramente ocupavam lugar de
comando nas organizações4 .
Ridenti (1990), ao discutir a participação da mulher nos
movimentos de guerrilha, aponta que a presença feminina
marca um processo de emancipação da mulher, na medida
em que tais grupos proporcionaram uma contestação à or-
dem estabelecida em todos os níveis, embora Ferreira (1996),
Colling (1997) e Sarti (2004) mostrem que em nenhum mo-
mento desse processo ficou evidente, para a maior parte
das mulheres militantes, uma discussão de caráter eminen-
2
 Permeia a temática a complexa problemática de identidade em
situação limite de ameaça física e psicológica como apontada por
Pollack (1992) e por outros que pesquisaram o tema (Ferreira, 1996;
Colling, 1997; Carvalho, 1998; Catela, 2001).
3
 Os interesses do movimento já não estavam mais voltados apenas
para as causas educacionais e, a partir de então se aproximaram dos
mais diversos grupos que também questionavam o regime militar A
partir de 1965, o teatro brasileiro, por exemplo, apresentou textos
desbravadores, engajando-se na denúncia de questões cruciais que
abalavam a realidade brasileira, tornando-se um dos meios de maior
resistência ao regime militar (Aguiar, 1994; Michalski, 1994; Ferreira,
1996; Abreu, 1997; Ventura, 1988; Simões, 1999).
4
 Abreu (1997) aponta que a maioria das militantes era formada por
estudantes, professoras ou tinham qualquer outra formação superior,
sendo assim integrantes das denominadas camadas médias
intelectualizadas, fazendo com que, possivelmente, tivessem
condições para desempenhar um papel mais destacado nas
formulações políticas. Portanto, embora as mulheres tivessem
condições intelectuais, faltava a elas ser do gênero “certo”.
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R. interam. Psicol. 41(3), 2007
MULHERES BRASILEIRAS E MILITÂNCIA POLÍTICA DURANTE A DITADURA MILITAR
temente feminista. Sarti (2004) reforça a idéia de que a
militância política nessa época foi um importante instrumen-
to para a emancipação feminina e reflete que, apesar da au-
sência de uma proposta feminista, as militantes assumiam
comportamentos considerados masculinos, tanto na vida
sexual como participando da luta armada, o que produzia
uma aparência de igualdade. Os depoimentos analisados
posteriormente mostram que “...a igualdade entre homens e
mulheres era apenas retórica, fazendo a questão de gênero
eclodir em suas contradições com o projeto de emancipa-
ção militante” (Sarti, 2004, p.37). Essa autora argumenta ain-
da que nos anos 1970, o feminismo se baseava “... na con-
vicção de que os problemas específicos da mulher não seri-
am resolvidos apenas pela mudança na estrutura social,
mas exigiam tratamento próprio” (Sarti, 2004, p. 40). Mas,
segundo Ferreira (1996), as questões próprias do feminismo
só foram absorvidas por algumas dessas mulheres em mea-
dos de 1970 (muitas vezes quando já se encontravam pre-
sas ou exiladas).
É mais prudente admitir que com a participação dessas
mulheres na militância política contra o Regime Militar mar-
ca um rompimento com “o estereótipo da mulher restrita ao
espaço privado e doméstico, enquanto mãe, esposa, irmã e
dona de casa, que vive em função do mundo masculino”
(Ridenti, 1990, p. 114), favorecendo assim, formas outras de
participação social.
 Mische (1997) indica a necessidade de instrumentos de
análise que sejam capazes de compreender a multiplicidade
das experiências e interações sociais, seu dinamismo e suas
contingências, permitindo considerar, sobretudo, “as trans-
formações (...) nas redes inter-pessoais e organizacionais
nas quais os jovens se encontram, e como as estruturas
diferenciadas dessas redes influenciam na articulação de
projetos sociais e pessoais” (Mische, 1997, p.138, grifos da
autora). É a partir dessa necessidade que gostaríamos de
enquadrar a discussão sobre a identidade social.
Segundo Velho (1994), na complexidade da vida urbana
contemporânea, o ator social participa de diferentes níveis
de realidade, experimentando constantemente os proces-
sos de fragmentação e de diferenciação que marcam essa
forma de vida social, em função do seu potencial de meta-
morfose, sem que com isso haja uma desestruturação de
sua identidade. O autor se refere a uma metamorfose que
falo possibilita:
Através do acionamento de códigos associados a contextos e
domínios específicos - portanto, a universos simbólicos dife-
renciados -, que os indivíduos estejam sendo permanentemen-
te reconstruídos. Assim, eles não se esgotam numa dimensão
biológica-psicologizante, mas se transformam não por voli-
ção, mas porque fazem parte, eles próprios, do processo de
construção social da realidade. (Velho, 1994, p.29)
Nesse ponto, gostaríamos de recuperar alguns dos sen-
tidos atribuídos ao conceito de identidade. Conforme defi-
nida por Pollack (1992), em “seu sentido mais superficial”,
identidade pode ser entendida como a “imagem de si, para
si e para os outros” (p.204). Para a constituição da identida-
de são necessários alguns elementos, como a noção de
pertencimento ao grupo, a percepção de continuidade do
indivíduo no tempo e no espaço e a noção de coerência, ou
seja, a noção de que diferentes elementos estão unificados
no indivíduo. Tais elementos também podem ser entendi-
dos como vinculados à identidade social, pois ninguém pode
construir uma auto-imagem isenta de transformações relaci-
onadas ao contexto no qual vivem o sujeito e o seu grupo.
É para essa interação que Iñiguez (2001) chama a aten-
ção. Embora a singularidade, a unicidade e até a exclusivida-
de pareçam ser características imprescindíveis do que cos-
tumamos chamar de identidade, que, sem dúvida, apresenta
certo caráter de continuidade e reconhecimento de si mes-
mo ao longo do tempo, por outro lado não podemos deixar
de admitir que a temporalidade identitária reproduz a tensão
dialética entre o igual e o diferente, a continuidade e a
descontinuidade, a unicidade e a multiplicidade. Portanto, à
identidade relacionam-se as vivências que se dão em meio
às múltiplas relações sociais na pluralidade dos grupos so-
ciais. Logo, “por oposição e complementaridade à identida-
de pessoal se fala comumente de identidade social” (Iñiguez,
2001, p. 210). A identidade social remete à experiência grupal,
ao nós, e, consequentemente, aos vínculos ou, segundo
esse autor, para nos expressarmos em uma linguagem mais
contemporânea, “às redes”.
Para Iñiguez (2001), a perspectiva de Tajfel foi capaz de
inserir, no contexto de uma Psicologia Social individualista
e de escassa relevância social, uma teorização que direciona
o entendimento de processos admitidos como estritamente
cognitivos, como a categorização e a diferenciação, rumo a
uma compreensão na qual a dinâmica é eminentemente só-
cio-cognitiva.
De acordo com Tajfel (1983), todosnós temos necessi-
dade de integridade e de respeito por nós mesmo e deriva-
mos tal respeito da nossa filiação a certos grupos que são
importantes para nós. Porém, segundo o autor, como os
grupos não existem no isolamento social, a única maneira
de atribuir valores positivos ao seu próprio grupo é através
da sua comparação com os outros, e que:
Os processos subjacentes às formas como ele (o grupo) se
compara a outros grupos são cruciais para a forma como os
seus membros o definem. Estas noções comparativas que os
indivíduos constróem sobre o grupo, ou grupos a que perten-
cem, contribuem, por sua vez, para alguns importantes aspec-
tos da definição de si próprios e da sua influência social. (Tajfel,
1983, p.189)
Nesse sentido, Tajfel (1983) discute a importância que
os grupos sociais apresentam quando concebidos como
imersos em uma complexa e ampla estrutura de várias cate-
gorias sociais, categorias essas que são percebidas pelos
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indivíduos como fronteiras dos grupos e em termos de uma
variedade de configurações, como as de poder, de prestí-
gio, de maioria-minoria, de mudança, de flexibilidade ou de
rigidez. Estabelece-se então uma relação entre o auto-con-
ceito do indivíduo e sua identidade social, que se dá através
de um processo de comparação social inter-grupal.
 Logo, Tajfel (1983) define a identidade social de um
indivíduo como composta por três fatores: [1] o conheci-
mento que ele [indivíduo] tem de que pertence a determina-
dos grupos sociais, juntamente com [2] o significado emo-
cional e [3] de valor que ele atribui a essa pertença (p. 294).
Portanto, para Tajfel, o sentimento de pertença a um
determinado grupo é um processo complexo no qual estão
envolvidos componentes cognitivos, avaliativos e emocio-
nais em interação mútua, podendo, conforme a situação,
prevalecer um desses componentes. Portanto, já que a in-
tensidade de seus componentes varia de acordo com o con-
texto das próprias relações inter-grupais, a pertença grupal
não pode, também por esse motivo, ser considerada estáti-
ca. Pertencer a um grupo implica compartilhar crenças, atitu-
des e, consequentemente, viver relações permeadas por uma
carga valorativa e por percepções sobre a diferenciação do
próprio grupo em relação aos demais, o que se dá em função
da categorização social. “A categorização social é o proces-
so através do qual se reúnem os objetos e acontecimentos
sociais em grupos que são equivalentes no que diz respeito
às ações, intenções e sistemas de crenças do indivíduo”
(Tajfel, 1983, p.289-290).
Ao se referir à inter-relação entre imagem de si e imagem
do grupo, Jodelet (2001) argumenta:
O engajamento e a implicação emocional com relação ao grupo
ao qual pertencemos conduzem a nele investir sua própria
identidade. A imagem que temos de nós próprios encontra-se,
assim, ligada àquela que temos de nosso grupo, o que nos
conduz a defendermos valores deles. A proteção do nós, inci-
taria, portanto, a diferenciar e, em seguida, a excluir aqueles
que não estão nele. (p. 61)
Entretanto, é importante considerar que os indivíduos es-
tão sempre inseridos em múltiplas e diferentes categorias soci-
ais (gênero, etnia, classe, profissão, p. ex.), o que indica que
vários grupos possuem limites imprecisos e a inclusão de um
indivíduo neles pode se dar, por exemplo, inclusive, pela seme-
lhança física entre esse indivíduo e os membros do grupo.
Tajfel (1983) também chama atenção para o fato de que o
sentimento de pertença a um determinado grupo está fortemen-
te relacionado à capacidade que esse grupo tem de promover e
manter a auto-estima positiva desse indivíduo, bem como ga-
rantir a satisfação das suas necessidades quando essas estão
vinculadas diretamente ao grupo. Entretanto, como apontou
Jodelet (2001), nenhum grupo é capaz de satisfazer totalmente
as necessidades de um indivíduo. Assim, integramos vários
grupos a fim de tentar alcançar o que consideramos relevante
para nossa auto-estima e para a realização das tarefas coti-
dianas.
A intensidade do sentimento de pertença vai estar dire-
tamente condicionada à existência de situações de conflito
inter-grupos:
As situações sociais que obrigam os indivíduos envolvidos a
agir segundo sua pertença de grupo também acentuam neles
certas identificações de grupos que antes não tinham grande
significado para eles, ou talvez criem mesmo ou despertem
pertenças de grupo antes adormecidas ou só potenciais. (Tajfel,
1983, p. 272)
Baseado na perspectiva de que o sentimento de pertença
não se dá somente em situações objetivas de pertencimento,
Souza (2004) argumenta que a identificação com grupos consi-
derados marginais, conduzindo assim à possibilidade de que
laços de solidariedade venham a ser estabelecidos, é fator fun-
damental para ações afirmativas que possam funcionar como
ações de “contra-poder, em defesa de grupos excluídos social-
mente e moralmente, e que nesse sentido, contribui para a
reafirmação de direitos e para o resgate da cidadania” (p. 67).
Portanto, os mesmos processos de categorização social e de
identificação podem estabelecer tanto formas de exclusão quanto
de inclusão, possibilitando a união de grupos em torno de for-
ças progressistas e afirmativas. Segundo o autor, “assim como
as identidades, a violência e a exclusão são metamorfoses, prin-
cipalmente nas culturas miscigenadas como a nossa, onde a
diversidade de interesses sociais é considerável” (Souza, 2005,
p. 03).
A possibilidade de se engajar em um projeto, seja coletivo
ou individual, orienta e confere sentido às práticas dos indiví-
duos, traçando suas trajetórias e organizando suas identidades
(Velho, 1994). Os jovens e os demais brasileiros que optaram
pelo engajamento no projeto revolucionário de esquerda, por
acreditarem estar a possibilidade de transformação da realidade
de seu país condicionada à derrocada do regime militar, tiveram
subitamente suas propostas estancadas. Com isso, encontra-
ram-se frente à necessidade de redefinição de suas identidades
e de suas auto-imagens: de agentes de transformação social
passaram a vítimas das estratégias da repressão militar, embora
essas condições fossem negadas por amplos segmentos da
sociedade pela negatividade do rótulo de “subversivos” atri-
buído aos militantes. Tal processo iniciou-se com os aconteci-
mentos repressivos do ano de 1968 e estendeu-se aos anos
setenta (Abreu, 1997; Valle, 1999).
Assim, através dos depoimentos das mulheres que entre-
vistamos, esperamos estar dando continuidade e expansão a
um processo singular de redefinição de identidades. Nesse pro-
cesso, as ex-militantes surgem como agentes históricos e soci-
ais que possuem como referência um dado grupo, participan-
do de um determinado projeto coletivo.
Método
São apresentadas nesse trabalho as experiências de vida
de nove mulheres que, através da participação em organiza-
ções de esquerda, se opuseram à ditadura militar brasileira.
A reconstituição das trajetórias de vida dessas ativistas
INGRID FARIA GIANORDOLI-NASCIMENTO, ZEIDI ARAÚJO TRINDADE & MARIA DE FÁTIMA DE SOUZA SANTOS
363ARTICULOS
R. interam. Psicol. 41(3), 2007
políticas se deu a partir da organização dos dados recolhi-
dos em entrevistas individuais. Portanto, consideramos con-
veniente fornecer algumas informações sobre aspectos re-
lacionados à realização dessas entrevistas.
Tendo em vista as dificuldades apontadas pela literatu-
ra para o contato com as participantes, nossa primeira preo-
cupação foi iniciar esse processo a fim de que pudéssemos
claramente afirmar a viabilidade de nossa proposta de traba-
lho. Procuramos as participantes seguindo uma orientação
apontada por Ferreira (1996) e também por Catela (2001): o
contato inicial com as ex-militantes foi realizado através da
intermediação de um conhecido comum dos sujeitos e da
pesquisadora.Para nossa surpresa, ficou evidente a vontade que as
mulheres tinham de colaborar, apesar do esforço que isso
exigiria e do sofrimento que suas recordações provocariam.
A motivação para buscarem reconstruir aquele período de
uma história tão pouco passada a limpo, segundo as própri-
as entrevistadas, esteve baseada em uma questão ética.
Consideraram que já não podiam mais continuar “escon-
dendo”, em si mesmas, aspectos relevantes para a consoli-
dação da democracia nesse país, furtando às gerações de
seus filhos e netos a certeza de que alguns acontecimentos
não podem se repetir. Todas se dispuseram a entrar em con-
tato com amigas que haviam sido presas na mesma época
ou militado no mesmo período, sendo que algumas dessas
mulheres não tinham contato pessoal há cerca de vinte anos.
A coleta foi realizada conforme a disponibilidade dos
sujeitos. As entrevistas foram realizadas entre novembro de
2002 e janeiro de 2004 e foram gravadas, após consentimento
por escrito assinado pelas entrevistadas. O tempo de
gravação das entrevistas, às vezes realizadas em várias
visitas, variou de quatro a doze horas, respeitando sempre
as decisões das participantes. No entanto, a participação
das entrevistadas em nosso trabalho começou antes mesmo
do momento de ligação do gravador. Para algumas, o tempo
que nos pediram para suas elaborações pessoais, entre o
convite e a realização da entrevista propriamente, chegou a
ser de um ano. Com algumas entrevistadas, conversamos
informalmente durante esse período, procurando criar
condições pessoais e emocionais que facilitassem o contato
com as lembranças.
As entrevistas individuais foram orientadas por um pro-
tocolo semi-estruturado que serviu de referência sobre as
temáticas que deveriam compor a entrevista, não havendo
compromisso em seguir uma ordem específica ou cronoló-
gica nos relatos. O principal objetivo da entrevista foi per-
mitir que as mulheres falassem de suas trajetórias de vida
até os dias atuais, enfatizando a socialização política que
tiveram da infância à vida universitária, quando em geral
atuaram como agentes político-sociais em uma militância
organizada. A Análise de Conteúdo à qual os dados foram
submetidos aponta como a identidade social na trajetória
de militância dessas mulheres está entrelaçada com as con-
dições de gênero do período.
De forma geral, o confronto do conteúdo das diferentes
entrevistas produziu um diálogo de outra ordem, que re-
criou a trajetória coletiva de um grupo historicamente data-
do, trajetória esta que pôde ser fortalecida e reconstruída
por cada uma das participantes e pelo próprio grupo das
mulheres. Foi na tensão entre as duas dimensões dos rela-
tos que o procedimento revelou o quanto essa experiência
tinha sido valiosa para essas mulheres na construção e na
elaboração de suas identidades, ao mesmo tempo em que
elas próprias, com suas lembranças, são valiosas para o
registro histórico.
As Participantes
Ainda que não tenha sido nossa intenção, as militantes
ficaram distribuídas em dois subgrupos baseados em perío-
dos diferentes de militância: a) Grupo 01: formado por 04
mulheres que militaram até 1968, sendo que 03 delas perten-
ceram à mesma organização e a quarta era filiada a um parti-
do clandestino. Todas estavam ligadas, na época da
militância, ao movimento estudantil universitário; b) Grupo
02: formado por 05 mulheres que iniciaram a militância em
1971, ao entrarem na universidade, e pertenceram ao mesmo
partido, partido que atuava no movimento estudantil.
Algumas características diferenciaram os dois grupos.
As mulheres do primeiro grupo, antes de iniciarem o curso
superior, se engajaram na militância política através de mo-
vimentos religiosos e estudantis secundaristas. Quando do
ingresso na militância, todas possuíam em média 17 anos.
Quando, em 1968, foram presas ou perseguidas pelo regime,
possuíam em média 20 anos de idade, o que indica um tem-
po de militância de quatro anos. Nesse segundo momento
duas já haviam terminado o curso superior, as outras duas
estavam no último ano. As mulheres do segundo grupo
explicitam que iniciaram a militância entre o primeiro e o
segundo anos de faculdade, em média com 19 anos, filiando-
se a um partido político clandestino via movimento estu-
dantil. Foram presas em 1972, aproximadamente 07 meses
após o início de sua militância. Tais características reafir-
mam os dados apontados pela literatura em relação ao acir-
ramento da repressão militar após o AI-5, de 13 de Dezem-
bro de 1968.
As origens das mulheres variaram: duas de origem ur-
bana de classe baixa; duas de origem urbana de classe mé-
dia; duas de origem rural de classe média; e três de origem
rural de classe baixa. Todas as mulheres que moravam no
interior migraram para a capital do Estado onde o trabalho
foi realizado5 , com o objetivo de darem continuidade aos
estudos.
Optamos por identificar as mulheres que militaram no
primeiro período com nomes iniciados pela letra S (Silvia,
5
 Para preservar o anonimato das participantes não identificaremos
o Estado brasileiro onde foi realizada a pesquisa.
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Solange, Suzana e Sônia). Para as mulheres que iniciaram a
militância no segundo período optamos pela letra R (Ra-
quel, Renata, Rosane, Regina, Rita). É importante observar
que esses nomes não guardam qualquer semelhança nem
com os nomes verdadeiros nem com os codinomes utiliza-
dos pelas entrevistadas durante a militância.
A tabela 1 apresenta mais algumas informações sobre
as entrevistadas.
Resultados
Gênero e Militância: os Processos Identitários
O movimento estudantil se constituiu e ainda se consti-
tui numa formidável agência de socialização política de ho-
mens e mulheres. Durante os anos de autoritarismo, aque-
les que conseguiram alcançar a Universidade tiveram me-
lhores oportunidades de conhecer e estudar novas teorias
políticas e econômicas, encontraram espaço para debates e
contestações e já não aceitavam passivamente a mistifica-
ção de progresso e de moralidade patriótica fomentada pelo
Tabela 1
Identificação e Filiação Partidária
Primeiro período
de militância (1964-
1968)
Segundo período
de militância
(1971-1972)
Nome Origem
Silvia Interior
Solange Interior
Sônia Capital
Suzana Capital
Raquel Interior
Rita Interior
Regina Capital
Renata Interior
Rosane Capital
Classe Duração da militância
Baixa 1961-1969
Média
Alta 1962-1968
Média
Alta 1964-1971
Média
Alta 1964-1968
Média Baixa 1971-1972
Baixa 1971-1972
Baixa 1971-1972
Média Alta 1971-1972
Baixa 1971-1972
Organização
Partido Comunista (PC)
Partido Comunista Brasileiro
(PC-Br)
Movimento Estudantil
Ação Popular (AP)
Movimento Estudantil
Ação Popular
Movimento Estudantil
Ação Popular
Movimento Estudantil
Partido Comunista do Brasil
(PC do B)
Movimento Estudantil
PC do B
Movimento Estudantil
PC do B
Movimento Estudantil
PC do B
Movimento Estudantil
PC do B
Movimento Estudantil
regime. Isso contribuiu para a elevada participação dos es-
tudantes nos movimentos políticos de oposição ao gover-
no militar, inclusive na ação armada visando a derrubada do
regime, ainda que os participantes desses movimentos pu-
dessem ser considerados como uma minoria da população.
Por outro lado, a entrada dessas mulheres na universi-
dade possibilitou a abertura para projetos pessoais que não
estavam colocados para a geração de suas mães. Para es-
sas jovens estudantes, a idéia de profissão formada na ado-
lescência, conjugou-se com a de identidade profissional. È
interessante observar que os modelos de mulher e de vida,
com o objetivo inescapável de casar e ter filhos, que se
apresentavam na época como algo próprio das mulheres,
puderam ser pensadossob uma nova configuração.
Não podemos deixar de frisar que as experiências objetivas
e subjetivas da ação contra o regime variaram amplamente de
1964 a 1985. É essa multiplicidade de posicionamentos que de-
marca a trajetória e a identidade social das mulheres entrevista-
das que se tornaram militantes frente àquelas que, também
INGRID FARIA GIANORDOLI-NASCIMENTO, ZEIDI ARAÚJO TRINDADE & MARIA DE FÁTIMA DE SOUZA SANTOS
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R. interam. Psicol. 41(3), 2007
estudantes, não optaram por essa trajetória. Nesse sentido, não
podemos também generalizar o “ser estudante e militante” para
todos os períodos da história do autoritarismo6 , visto que os
contextos ideológicos, interpessoais e políticos vividos pelos
jovens universitários concederam à identidade de “estudante”
múltiplos significados capazes de intercalar uma variedade de
projetos em formação (Mische, 1997).
Considerando o movimento sócio-cultural que ocorreu en-
tre o fim do primeiro período autoritário e o começo da década
de 70, é possível identificar a existência de duas gerações de
lideranças estudantis pós-64, que conduziram ações estudantis
também diversificadas, já que os movimentos de 1970 desen-
volveram uma multiplicidade de experiências locais, de alcance
também local, devido à inexistência de uma articulação nacional
(Almeida & Weis, 2002). A identificação de uma diferenciação
dentro do mesmo grupo etário é discutida por Mannheim (1982)
como fazendo parte do “fenômeno social da ‘geração’ ” que
nada mais representa “do que um tipo particular de identidade
de situação, abrangendo ‘grupos etários’ relacionados, incrus-
tados em um processo histórico-social” (p.73), observando-se
que o mesmo contexto não afeta igualmente todos os indivídu-
os de um grupo de vivência ou de idade. Verifica-se, assim, que
segmentos dessa geração podem assumir caminhos e posturas
diferentes ou, até mesmo, opostos. “É o caso de padrões ou de
movimentos culturais que se manifestam diversamente na mes-
ma época, ou de movimentos políticos, uns radicais outros con-
servadores, cada um reunindo indivíduos de idade aproximada
num cenário social semelhante” (Motta, 2004, p. 351).
Essa parece ser a situação de vivência da militância entre as
mulheres que entrevistamos e que, devido ao momento no qual
ingressaram na vida estudantil, tiveram trajetórias e experiênci-
as de participação, em alguns pontos, comuns, e em outros,
bastante diferentes. Um ponto de aproximação importante entre
elas é que todas se fizeram militantes de oposição nas faculda-
des, valendo lembrar que, entre as que aderiram a organizações
revolucionárias de luta armada pós 68, somente Sônia tinha
feito política no curso secundário e sido liderança estudantil no
Estado entre 67-68.
O cenário diferenciado do movimento estudantil em dois
momentos (1968 e 1970) estabelece uma dinâmica e configura-
ção de militância própria nos dois períodos (Gorender, 1987;
Reis Filho, 1990; Ridenti 1993). Embora não seja nosso objetivo
analisar a dinâmica interna do Movimento Estudantil, algumas
considerações a esse respeito merecem atenção para configurar
o cenário e as condições sócio-políticas que caracterizam as
diferenças e semelhanças na militância exercida pelas mulheres
que entrevistamos. Uma delas refere-se às articulações dos
movimentos com o cenário nacional. Sônia e Solange, que
militaram entre 1967 e 1968, enfatizam as articulações nacionais
das entidades estudantis que, mesmo clandestinas, promo-
viam encontros para definição de bandeiras nacionais em
um intenso jogo político entre as organizações militantes
para assumirem as lideranças das entidades tanto locais
quanto nacionais. Sônia comenta “Aí, começaram a me
fazer a cabeça pra eu me candidatar à UEE, que era União
Estadual dos Estudantes. (...) eu entrei como uma repre-
sentante do... do grupo que eles consideravam cristão”.
No que se refere ao período 1971-1972, Raquel relata o
caráter local do movimento em cada Faculdade, em cada
Diretório Acadêmico, sem articulações entre as reivindica-
ções estritamente estudantis, declarando assim o isolamen-
to dos cursos, o que não significa dizer que o movimento
não era percebido e vivenciado com entusiasmo e intensi-
dade dentro da faculdade: “O DCE já tava fechado. Foi
fechado em 68. Bom, aí você entra gostando dessas coisas,
do que tinha pra fazer participação política. Isso era do
diretório. Aí, com o diretório a gente tinha as brigas inter-
nas ali”.
Nesse sentido, para Sônia, em nível nacional, e para
Suzana, em nível local, em 1968 se destacam as disputas e
articulações de uma infinidade de organizações partidárias
e de esquerda que se mobilizavam em militâncias que não
eram mais exclusivas do movimento estudantil e que, por
fim, em 69, não estariam mais vinculadas ao movimento es-
tudantil: “Porque não havia essa unidade toda entre os...
entre os... esses grupos políticos. Nós chegamos a ter qua-
se uns cinqüenta partidos de grupos políticos.” (Sônia).
Suzana relata sua percepção das organizações políticas den-
tro do Movimento Estudantil estadual depois que assumiu
a presidência do Centro Acadêmico de seu curso: “E aí é
que eu começo a despertar pra essa questão, por exemplo,
de partidos políticos que já existiam e que estavam aí emer-
gindo com forças, como o PC do B, como o Partido Comu-
nista, o PCB mesmo, e... e a gente foi vendo essas coisas,
então, mais claramente”.
No cenário local, Suzana e Sônia deixam claro que as
relações entre os grupos sociais em 68 eram conflituosas e
discriminatórias em função da diversidade de origens ideo-
lógicas que se articulavam em um processo dialético de
exclusão/inclusão social7 , que, como conseqüência, em re-
lação ao grupo ao qual pertenciam, geravam ameaças vio-
6
 Do AI ao AI-5 (1964-1968); do AI-5 ao início da abertura (1969-
1974); a longa transição rumo ao governo civil (1975-1984)
(Almeida e Weis, 2002).
7
 Souza (2004) realiza um amplo debate sobre a complexidade e
ambigüidade dos conceitos de exclusão e violência, incluindo a
referência dialética presente nas práticas sociais de exclusão/inclusão,
seja nos regimes políticos de exceção ou nas práticas democráticas
que visam à cidadania. Destacamos aqui que fazem parte dessa
discussão as práticas de “restrições invisíveis, mediadas
ideologicamente, naturalizadas e materializadas nos costumes, como
a limitação de acesso a determinadas profissões para mulheres, ainda
hoje” (p.61).
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lentas e discriminatórias associadas ao gênero, nos basti-
dores das disputas políticas: “Os eruditos, os muito... che-
gados somente às grandes obras ...esses discriminavam
muito. E nós, inclusive, perante esse grupo... éramos as
pequenas burguesas. (...) Sempre as mulheres eram mais
discriminadas e rotuladas assim (...). Sempre teve uma dis-
criminação, porque nós nos originamos de um movimento
cristão (...). Aqueles que eram mais ligados ao PC do B
sempre olhava a gente de banda, como as igrejeiras, as
cristãzinhas, uma coisa assim”. As afirmações de Sônia
sobre os bastidores das disputas políticas e ideológicas
complementam a análise das formas de exclusão e ações
violentas: “... a gente defendia uma posição, o cara defen-
dia outra. E, às vezes, assim... diante do povo, da assem-
bléia, tava tudo bem (...). Mas, por trás, às vezes, os caras
tavam se comendo. Brigando mesmo. (...) Dizia assim: ‘va-
mos dar uma porrada nessas... A Ação Popular tá cheia de
menininhas. Essas menininhas filhinhas de papai, aí’”.
Esse exemplo de disputa interna no Movimento Estu-
dantil local em 1968 vai ao encontro da análise de Souza
(2004), em relação ao processo de exclusão e, portanto, de
violência, já que podemos observar a presença de grupos
“reguladores das relações políticas” que lutavam “para se
imporcomo interesses dominantes” (p.64). Portanto, esta-
beleciam um processo de categorização que implicava dife-
renciações grupais (tanto positivas quanto negativas) ba-
seadas em posições ideológicas e comportamentais, que
permitiam identificar o outro como diferente, logo, não per-
tencente ao grupo.
Segundo Souza (2004), a violência articulada com inclu-
são/exclusão não se dirige a qualquer ser social, é um pro-
cesso contra categorias sociais específicas construídas his-
toricamente, como, por exemplo, “comunistas”, “de esquer-
da”, “subversivos”8 . Portanto, essa é uma dinâmica que
pode ser percebida entre os mais diversos grupos sociais
mencionados pelas mulheres. Podemos citar como exemplo
a categorização social mais ampla, que abarca a comparação
entre um Nós (comunistas/militantes) e um Eles (não comu-
nistas), entre um Nós (mulheres militantes) e Elas (“o gru-
po, por exemplo, de mulheres que seguiam o modelo tradi-
cional”) ou, ainda, entre um Nós “de esquerda” e um Eles
“de direita”, e vice-versa, consideradas aqui como relações
intergrupos. Por outro lado, há também a dinâmica interna
do grupo “da esquerda”, que vai se dar na interação entre
os subgrupos e organizações de esquerda. Como exemplo,
podemos citar: “A Esquerda” e a “esquerda festiva”; as
militantes originadas “de um movimento cristão” e as mili-
tantes “de grupos mais radicais”; “os simpatizantes” e os
militantes; entre tantas outras categorizações de organiza-
ções de esquerda citadas. Vamos chamar, portanto, essas
relações de relações intragrupo, considerando as organiza-
ções como sub-grupos da categoria maior, a esquerda.
Para exemplificar categorizações e diferenciações, po-
demos recorrer aos “apelidos” mencionados pelas militan-
tes para diferenciar os grupos: “os eruditos”, “os teóricos”,
“os radicais”, “as igrejeiras”, “as cristãzinhas”, “filhinhas
de papai”, “pequenos burgueses” ou “burguesas”, entre
outros. Essas expressões se referem sempre a aspectos con-
siderados pejorativos, ou melhor, socialmente desvaloriza-
dos dentro da categoria social mais ampla “estudantes de
esquerda”, identidade social que abarcava a todos e que,
em certo sentido, os igualava nas diferenças. “Essa identi-
dade funciona como uma marca que permite identificar quem
faz parte e quem não faz parte do grupo” (Souza, 2004, p.64.).
Por outro lado, entre as categorizações de esquerda havia
aquelas destinadas aos considerados menos engajados: a
esquerda que não poderia “ser levada a sério”, “a esquer-
da festiva”, a que Sônia e Solange se referem, porém com
perspectivas diferenciadas. Solange se remete à referência
que os grupos militantes de fora do estado (outgroup) ti-
nham sobre as atividades da militância estadual (ingroup),
que geralmente aconteciam em festas e eventos vinculados
à Universidade. No entanto, ela protege a Identidade social
de esquerda do seu grupo ao mencionar a importância que
esses eventos tinham para as articulações internas do mo-
vimento, funcionando, também, como uma espécie de fa-
chada: “Se dançava, se brincava, mas ali era facílimo cha-
mar o conselho do DCE. Com certeza, tavam os represen-
tantes de todas as faculdades”. Sônia, ao falar de esquerda
festiva (outgroup), refere-se ao grupo de militantes e simpa-
tizantes que se detinham em discussões sobre as mudanças
dos costumes afetivo-sexuais ligadas às discussões sobre
oposição ideológica (“Ficar discutindo política em barzi-
nho, tomando cerveja e comendo pizza. Só a parte boa”),
em contraposição aos outros militantes (ingroup) que pla-
nejavam e executavam ações.
Segundo Tajfel (1983), é exatamente esta perspectiva
comparativa que estabelece a ligação entre categorização
social e identidade social, ocorrendo uma tendência à valo-
rização do ingroup e à desvalorização do outgroup, e, por-
tanto, das possibilidades de inclusão/exclusão a partir das
identificações sociais, exemplificadas por Velho (1997):
Em todo e qualquer grupo tribal, tradicional ou moderno, de-
finem-se e classificam-se categorias sociais (...). O fato de um
indivíduo ser judeu, católico, cigano, índio, negro, umbandista,
japonês etc. coloca-o como parte de uma categoria social que,
dependendo do contexto, poderá ser valorizada ou ser objeto
de estigmatização (...). Podem-se, como sabemos, estabelecer
n diferenciações e subdivisões dependendo do palco e dos
atores envolvidos. As categorias podem ser reconhecidas pe-
los seus membros como autênticas ou poderão ser tomadas
como acusações ou rótulos estigmatizantes. (p.44-45)
8
 Para a análise do modo como a categoria “subversivo” se inseriu no
cotidiano nacional, ver: Velho (1997).
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Portanto, ao chamarem o grupo de Sônia, Suzana e So-
lange de “igrejeiras”, associavam a ele atributos ideológi-
cos considerados negativos pela esquerda9 , considerando
a participação política para a qual a mulher não estaria habi-
litada e estabelecendo, assim, um processo de exclusão moral
e social. Dessa forma, desqualificando a ação política e
ideológica, de suposta origem burguesa e de gênero, do
grupo local da Ação Popular, composto por lideranças basi-
camente femininas, estavam fazendo um movimento de va-
lorização e proteção positiva do próprio grupo e das suas
lideranças masculinas.
Essa produção de um distanciamento do outro grupo,
que acarretava a valorização dos participantes do próprio
grupo e o fortalecimento das convicções internas, promo-
via e justificava a penalização do outro através da exclusão
moral e social, justificando, inclusive, como vimos acima, o
uso de ameaças de violência física contra as mulheres. “A
contrapartida da exclusão, face perniciosa e cínica das rela-
ções intergrupais e categorizações, é a promoção de solida-
riedade e identidade, portanto de inclusão e pertencimento”
(Souza, 2004, p.67) 10 .
Tajfel (1983), ao discutir a relação entre categorização
social e sentimento de pertença de um indivíduo a um gru-
po, não se refere apenas a uma pertença objetiva, mas a um
sentimento de pertença que associa representações, senso
de justiça, valores éticos e morais e conhecimento sócio-
histórico que promovem “aspectos e conseqüências psico-
lógicas da pertença”, fazendo com que a identidade social
de um indivíduo seja concebida por meio do “conhecimen-
to que ele tem de que pertence a determinados grupos soci-
ais, juntamente com o significado emocional e de valor que
ele atribui a essa pertença”. Tais aspectos “só podem ser
definidos através dos efeitos das categorizações sociais
que dividem o meio social do indivíduo no seu próprio gru-
po e em outros” (p.161). Temos, então, uma elaboração de
pertencimento múltiplo, que promove um caráter múltiplo
também à identidade, posicionada no cruzamento de vários
contextos sociais nos quais o sujeito pode se reconhecer e
se diferenciar em diversas interações grupais, inclusive com
os considerados “marginais”. Portanto, um grupo só pode
existir enquanto tal na medida em que há um outro grupo
através do qual ele pode se reconhecer e ser reconhecido. É
através desse mesmo circulo de reconhecimento que as iden-
tidades se tornam visíveis, sendo reconhecidas por outros
dentro de locais específicos de interação (Mische, 1997).
Um exemplo dessa interação nos parece ser a reflexão
que Sônia faz a respeito do posicionamento de Silvia frente
ao processo de exclusão social que sofriam. Tal reflexão
indica que a identidade de gênero promovia tipos distintos
de pertença que poderiam ser apontados nos dois grupos,
favorecendo uma outra forma de interação entre os mes-
mos: “a Silvia ficava pra morrer quando faziam essas coi-
sas. Porque ela não participava disso. Mas eu acho que
mulher era maioria do nosso lado, da Ação Popular, aqui
da cidade”.
O relato de Suzana sobre os conflitos grupais,no que
diz respeito à identidade de gênero das mulheres militantes,
aponta outra interação, que, a nosso ver, deixa clara a rela-
ção entre categorização social, pertencimento múltiplo e
identidade como reconhecimento. Sua afirmação indica a
percepção de que seu grupo (o in-group neste caso são as
mulheres militantes) é valorizado negativamente pelas mu-
lheres não militantes: “havia um certo preconceito em re-
lação a nós, era... o grupo, por exemplo, de mulheres que
seguiam o modelo tradicional. Elas percebiam que nós
éramos diferentes (...)”. A fim de proteger o seu grupo e,
logo, a identidade grupal, ela desvaloriza o repertório de
reconhecimento das “mulheres tradicionais” e assimila a
representação de que, em contraposição, as mulheres mili-
tantes são mais “avançadas” ou mais cosmopolitas: “a gente
achava que era coisa de cidade pequena, (...) como se
fosse uma mentalidade provinciana”. Por outro lado, nas
relações internas da esquerda, ela sente que seu grupo de
militância (o in-group passa a ser formado pelas mulheres
que militavam na mesma organização) também é alvo de
preconceito, sendo identificadas com as mulheres “tradici-
onais”: “Agora, por outro lado, esse grupo mais radical
achava que nós éramos, ainda, como aquelas”. Para valo-
rizar a identidade grupal nessa rede social, seu grupo valo-
riza negativamente o comportamento das mulheres que per-
tencem ao grupo “dos radicais”: “esse outro grupo já era
um grupo muito mais avançado, mais livre. Então, eram
outros valores do ponto de vista, é... da sexualidade”. Ao
mesmo tempo, o comportamento do seu grupo é enfatizado
como o mais adequado para “meninas direitas”: “Então,
nós éramos meninas direitas. A gente passava a noite, por
exemplo, fora de casa, mas trabalhando, ali. Mas ninguém
saía dali pra fazer um programa, pra dormir com um cara,
pra isso e aquilo”. Entretanto, ao fazerem isso, se identifi-
cam com alguns elementos que caracterizam o grupo das
“mulheres que seguiam o modelo tradicional” e utilizam o
mesmo repertório desse grupo para desvalorizar as outras
integrantes da esquerda: “Então, essa coisa de virginda-
9
 Historicamente, a religiosidade está vinculada à representação de
gênero feminino.
10Análise baseada nas colocações do autor, que chama atenção para
o fato de que “grupos ou categorias podem ser excluídos não apenas
por sua condição econômica degradada, mas também em função do
sexo, do gênero, da raça, do local de moradia, da filiação a escolas
filosóficas ou científicas, da sexualidade e de limitações físicas ou
mentais, entre tantas outras possibilidades” (Souza, 2004, p. 67).
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de, essas coisas, ainda era um valor preservado, né? Mas
isso era relativamente mal visto”. Essa reflexão indica que,
em um mesmo grupo, está presente a dialética out-group/in-
group em suas múltiplas interações, dependendo das cir-
cunstâncias nas quais seus reconhecimento e pertença são
acionados, e reage valorizando positivamente as ações e a
identidade do próprio grupo, desvalorizando o outro gru-
po, ainda que, para isso, utilize elementos do repertório de
reconhecimento pelo qual também já foi desvalorizado.
Portanto, a identidade social é múltipla, uma vez que
está relacionada, no contexto das interações sociais, a per-
tenças também múltiplas: faz parte “da competência normal
de um agente social” mover-se entre planos e níveis distin-
tos da realidade socialmente construída sem que isso cause
choques traumáticos, caracterizando, assim, o “potencial
de metamorfose” da identidade, que, segundo Velho (1994),
se caracteriza por estar:
Vinculada a grupos de referência e [ser] implementada atra-
vés de mecanismos socializadores básicos contrastivos,
como família, etnia, região, vizinhança, religião etc. A ten-
dência à fragmentação não anula totalmente certas âncoras
fundamentais que podem ser acionadas em momentos es-
tratégicos. Por outro lado, a fragmentação não deve ser
entendida como um estraçalhamento literal do indivíduo
psicológico. O trânsito entre os diferentes mundos, planos
(...) é possível, justamente, graças à natureza simbólica da
construção social da realidade. (p. 29)
A identidade como reconhecimento e experimentação
também está presente na relação intergrupo das mulheres
que militaram em 1971, embora não tenha sido mencionada a
interação intragrupos da esquerda. Exemplo é o “potencial
de metamorfose” que podemos perceber no processo
identitário de Rosane frente à militância. Em suas falas, ela
destaca a relação conflituosa que estabelece com a militância,
à medida que aponta elementos que configuram a identida-
de feminina, compondo um repertório mais ou menos deli-
mitado de reconhecimento coletivo sobre moça “direita” ou
de família. Tal repertório não era aplicável às moças militan-
tes, pois seus comportamentos rompiam com algumas re-
gras de recato que deveriam ser seguidas. “Não podia ir no
barzinho, era proibido porque era mulher”(Sônia). “Eu já
era chamada de subversiva, era uma pessoa que questio-
nava...” (Suzana). “Porque mulher, naquela época, não
podia andar em bar, né, (...) Não podia ficar assim... solta
na rua, tinha que ser acompanhada e, no máximo, até 10,
11 horas da noite” (Rosane).
Rosane partilhava desses códigos e se aproximou da
militância temendo sofrer, pelo risco de poder vir a ser
identificada como “mulher comunista”, uma exclusão moral
e social. Esse foi um dos motivos pelos quais resistiu em se
reconhecer como pertencendo ao grupo de militantes com o
qual estava envolvida: “Então, outra coisa também que eu
não gostava (...) era que as mulheres eram muito liberais.
Pra mim, eram muito galinhas, muito piranhas. (...)”. Por
outro lado, à medida que interage na militância e convive
com as outras mulheres, vai se identificando, reconhecen-
do e sendo reconhecida, criando, assim, um impacto crítico
em relação às opções que estavam disponíveis: “tanto que
tinha uma grande amiga minha, que (...) quando ela sou-
be que eu era, né, que depois eu contei, ela falou assim:
‘mas elas não são galinhas, são piranhas?’ Eu disse: ‘não,
não são não!’”.
Refletindo sobre o cotidiano dessas mulheres na
militância, pode-se admitir que no processo de
conscientização política pelo qual passaram não foram in-
cluídas de modo objetivo reflexões sobre a trajetória, pre-
sença e a importância específica das mulheres no projeto de
esquerda ou na luta armada. Mesmo que tenham agido com
autonomia e se considerado, na maioria das vezes, com os
mesmos direitos e condições que os companheiros de luta,
não perceberam na época, de modo geral, o alcance dessa
participação em termos históricos. Acreditaram estar agin-
do “naturalmente” e se dispuseram a um novo papel histó-
rico que, até o momento de nossa entrevista, não estava
claro para todas elas. Algumas, inclusive, afirmaram que
poderiam falar sobre o que viveram, ainda que não perce-
bessem, em suas trajetórias, algo que indicasse uma atua-
ção de gênero diferenciada. Entretanto, outras indicaram ter
total compreensão do significado de suas ações políticas,
admitindo que o comportamento das mulheres dessa gera-
ção abriu espaço para a inserção das mulheres na vida pú-
blica, mesmo que nenhuma delas tenha se dedicado poste-
riormente à vida político-partidária, nesse caso mais por
escolha do que por falta de oportunidade. Como exemplifica
Sônia: “eu acho que eu construí outra identidade,né?. Tan-
to que você vê que eu fiz questão de não me ligar a nenhum
grupo [referindo-se ao desligamento da militância de es-
querda] Ora, teria sido muito cômodo pra mim me ligar...
Num instante eu iria virar uma vereadora, tranqüilo, se eu
tivesse optado pela esquerda. Acontece que eu não me
identifiquei mais com aquelas posições políticas. Então,
não tinha o menor cabimento fazer isso”.Com base nos dados pode-se observar que, indepen-
dentemente da idade das militantes, experiências comuns
foram compartilhadas, o que, para Abreu (1997), caracteriza
uma geração. Militantes mais novas e mais velhas
vivenciaram acontecimentos que estruturaram uma época,
e que favoreceram, aos que nela viveram, representações
que orientaram práticas sociais, inclusive nas questões de
gênero. Embora compartilhados, os fatos também são vivi-
dos diferentemente e, por isso, as intensidades desses mes-
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369ARTICULOS
mos fatos marcam de forma desigual os sujeitos, conforme
valores e crenças dos grupos aos quais esses sujeitos per-
tenciam11 .
Sejam quais forem as conseqüências que as ações em
busca da realização de um projeto social puderam alcançar e
alcançaram (clandestinidade, prisão, tortura), o que se viu
foi uma nova forma de vida que exigiu das mulheres militan-
tes ajustes extraordinários à sua realidade. Na reconstrução
de suas trajetórias, as entrevistadas revelam a interação
complexa entre motivações, escolhas e experiências cotidi-
anas e incomuns, por vezes duras, que delas resultaram. A
complexidade dessa interação, por sua vez, contribui, e, de
forma evidente, continua contribuindo, para a constituição
de suas identidades.
Entendemos que o estudo dos processos identitários
revela uma faceta importante das relações sociais, contribu-
indo para a compreensão da diversidade de pertenças e
identificações presentes em todas as trajetórias de vida, a
partir de uma perspectiva que ultrapassa visões individua-
listas e deterministas, visões essas que costumam funda-
mentar as análises essencialistas.. Ao transitarmos pela tra-
jetória de vida dessas mulheres, identificamos que estável
permanece, por enquanto, somente a certeza de que os pro-
cessos identitários são exatamente isso: processos.
Considerações finais
Através do conteúdo das narrativas dessas mulheres,
com suas lembranças e conseqüente reconstrução de suas
histórias de vida, haverá possibilidade de se tentar resgatar
parte do repertório sociocultural daquele período no Brasil,
contribuindo para a construção de uma história pouco con-
tada. Os dados são compatíveis com a literatura sobre dita-
duras, mostrando que em qualquer dos países submetidos
a um período de ditadura militar, ainda se tem pouca visibili-
dade sobre os acontecimentos, prevalecendo uma outra di-
tadura: a do silêncio dos que viveram e contribuíram para a
construção desse período histórico. Tal processo esteve
próximo ao que foi vivido socialmente no Chile (Lira, 1998),
onde também os ex-militantes, com o fim da ditadura naque-
le país, ao encontrarem a possibilidade de se confrontarem
com reações emocionais incontroláveis e violência política,
valorizaram os consensos, evitaram o risco da instabilidade
política e se calaram, temendo o retorno do terror vivido.
Essa situação favorece a despolitização da memória do pe-
ríodo, uma vez que as ameaças e experiências traumáticas
originadas na repressão política acabam por ser socialmen-
te validadas. Sendo assim, sem o reconhecimento social do
sofrimento e das perdas vivenciados, as experiências trau-
máticas são relegadas ao âmbito da esfera privada pessoal,
não permitindo que sejam confrontadas (Lira, 1998).
Estes são, portanto, alguns aspectos que este trabalho dis-
cute, tentando acompanhar a construção de uma parcela desse
passado através de histórias de vida que se entrelaçam em
tantas outras, mostrando a complexidade das relações, e for-
mando uma trama cujos significados possíveis abrem espaço
para outros a serem hoje recuperados, dentro de uma perspec-
tiva que só o distanciamento no tempo produz.
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de se contextualizar a “vertente geracional” do grupo que se pretende
estudar. Estariam, segundo eles, em inter-relação influências de dois
níveis: a dos grupos mais imediatos e a de um conjunto maior
denominado geração.
R. interam. Psicol. 41(3), 2007
MULHERES BRASILEIRAS E MILITÂNCIA POLÍTICA DURANTE A DITADURA MILITAR
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Ingrid Faria Gianordoli-Nascimento. Professora Adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade
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dade Federal do Espírito Santo. Pesquisadora na área de Psicologia Social, desenvolvendo estudos relacionados
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Zeidi Araujo Trindade. Professora associada do Departamento de Psicologia Social e do desenvolvimento e do
Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo. Pesquisadora na área de
Psicologia Social, desenvolvendo estudos sobre gênero, com ênfase nos temas parentalidade e masculinidades.
Maria de Fátima de Souza Santos. Professora associada da Universidade Federal de Pernambuco. Doutora
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Received 06/12/2006
 Accepted 27/01/2007
R. interam. Psicol. 41(3), 2007
INGRID FARIA GIANORDOLI-NASCIMENTO, ZEIDI ARAÚJO TRINDADE & MARIA DE FÁTIMA DE SOUZA SANTOS

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