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A Problemática da Eficácia das Normas Constitucionais Programáticas

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A PROBLEMÁTICA DA EFICÁCIA DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS PROGRAMÁTICAS
Revista de Direito Constitucional e Internacional | vol. 31 | p. 170 | Abr / 2000 | DTR\2000\212
Sandro Nahmias Melo 
Sumário: 
1. Introdução - 2. Eficácia - problema terminológico - 3. Eficácia - conceito - 4. Classificação quanto à eficácia - 5. Normas programáticas - conceito e características - 6. "Excesso" de Constituição - 7. Instrumentos constitucionais de supressão de omissão legislativa - 8. Conclusões - Bibliografia
 
1. Introdução
Poucos são os temas, em direito constitucional, que suscitam opiniões tão antagônicas como o da classificação das normas constitucionais quanto à eficácia, não sendo sequer unívoco o uso do termo eficácia (vigência ou aplicabilidade para alguns doutrinadores). Diversos, portanto, poderiam ser os enfoques a serem adotados no presente trabalho em face da complexidade e amplitude que a questão apresenta. 
No intuito de delimitar o objeto desta análise, para que seja alcançado o espírito de um trabalho que se propõe científico, imperiosa é a escolha de um enfoque que possibilite visualizar com clareza a dimensão da temática a ser abordada. Nesse sentido, fixamos, como proposta de estudo, a análise da eficácia das normas constitucionais programáticas, considerando-se que tal tema desponta com significativa relevância, dado o número expressivo de tais normas em nossa Carta Magna (LGL\1988\3); considerou-se, ainda, a importância das normas constitucionais programáticas como sendo aquelas que veiculam programas constitucionais de ação dos poderes públicos, programas a serem desenvolvidos mediante providências integrativas da vontade do constituinte, visando a consecução dos fins sociais pelo Estado, disciplinando não só o presente mas também o futuro previsível, o que implica diretamente na longevidade de uma Constituição.
 
2. Eficácia - problema terminológico
A problemática atinente à eficácia das normas constitucionais tem relação estreita com a imprecisão terminológica que se manifesta em muitos trabalhos doutrinários sobre o tema, o que dificulta sobremaneira a compreensão do problema e, principalmente, a resolução do mesmo. Temos então o chamado "problema terminológico" (assim reconhecido por Meirelles Teixeira e José Afonso da Silva) quanto à acepção utilizada para os vocábulos vigência, validez, validade, eficácia e aplicabilidade. Conceitos estes que dividem a doutrina, ora sendo usados como sinônimos, ora utilizados com significados totalmente opostos. 
Carlos Cossio 1reconhece, inclusive, que tais discrepâncias doutrinárias não são privativas do direito constitucional, mas ínsitas à ciência jurídica em geral. O ilustre doutrinador recorda que, para aludir à existência do Direito, os juristas recorrem a diversos termos, como positividade, vigência, eficácia, observância, facticidade e efetividade do Direito. Nesse particular, fica evidente a importância de uma prévia fixação do sentido próprio de cada termo para o alcance da técnica científica que pauta o presente trabalho. 
Como exemplo das dificuldades geradas por essa incerteza terminológica, tomemos o estudo feito por Raul Machado Horta, 2sobre a natureza e expansividade das normas constitucionais, no qual assevera que a fixação das características da norma jurídica é tema introdutório ao conhecimento da norma constitucional. 
Machado Horta, seguindo a Teoria Egológica 3de Cossio, defende que a norma jurídica distingue-se por duas propriedades fundamentais: a validez e a vigência. Correspondendo aquela à exigibilidade da norma e esta à efetiva obediência dispensada à norma jurídica. Nesse sentido, alega ainda que Hans Kelsen teria utilizado o termo eficácia como sinônimo de vigência. Com a devia vênia, tal afirmação não encontra guarida na teoria pura kelseniana, o que deixa, mais uma vez, evidente a dificuldade em se solucionar, de maneira concludente, o já referido problema terminológico. Se não, vejamos. 
O próprio Kelsen rechaça a idéia de utilizar-se o vocábulo vigência como eficácia, alertando que "como a vigência da norma pertence à ordem do dever-ser, e não à ordem do ser, deve também distinguir-se a vigência da norma de sua eficácia, isto é, do fato real de ela ser efetivamente aplicada e observada, da circunstância de uma conduta humana conforme à norma se verificar na ordem dos fatos. Dizer que uma norma vale (é vigente) traduz algo diferente do que se diz quando se afirma que ela é efetivamente aplicada e respeitada, se bem que entre vigência e eficácia possa existir certa conexão". 4Nesse particular, a idéia de contradição deflui uma vez mais, na medida em que, apesar de Kelsen distinguir vigência de eficácia, o ilustre jurista alemão defende que para que uma norma possua validade a mesma deve estar provida de um mínimo de eficácia. 
Por fim, para endossar suas considerações, Machado Horta utiliza-se da teoria tridimensional de Miguel Reale, tendo este ilustre jurista demonstrado que não é possível separar vigência de eficácia. "A vigência é problema complexo e profundo, que não se restringe ao seu aspecto técnico-jurídico. A vigência põe e exige certeza do Direito, enquanto a eficácia projeta a norma no grupo humano a que ela se destina". 5 
Todavia, apesar das embasadas razões de Machado Horta, passaremos a utilizar, como base para o presente estudo, a definição de eficácia adotada por José Horácio Meirelles Teixeira, ao asseverar que: "por eficácia da norma jurídica devemos entender a sua efetiva aceitação e observância pela comunidade, que poderá dar-se em maior ou menor medida, de acordo com a maior ou a menor adequação da norma às necessidades, às aspirações, aos costumes, à cultura do grupo social". 6Enfim, entender-se-á por norma eficaz aquela efetivamente aplicada e respeitada. 
Definido o que se entende por eficácia, imperioso é o registro, desde logo, do afastamento, hodiernamente, da teoria sustentada por autores italianos, como Caetano Azaratti, 7no sentido de algumas normas constitucionais serem desprovidas de eficácia. Apesar dessa questão ser matéria de análise detida no item 5 deste trabalho, deve-se esclarecer, por oportuno, que todas as normas constitucionais, em grau maior ou menor, são providas de eficácia. Ou seja, nenhum dispositivo constitucional é completamente destituído de eficácia jurídica, pois nada de inútil existe na Constituição. 
 
3. Eficácia - conceito
Outros ilustres juristas também adotam linha similar à esposada por Meirelles Teixeira no que concerne ao conceito de eficácia da norma:
Segundo Tércio Sampaio Ferraz Jr., eficácia "é uma qualidade da norma que se refere à sua adequação em vista da produção concreta de efeitos, diz respeito às condições fáticas e técnicas de atuação da norma jurídica, ao seu sucesso, ou seja, à possibilidade da consecução dos objetivos". 8 
Para Maria Helena Diniz, "a eficácia diz respeito ao fato de saber se os destinatários da norma ajustam, ou não, seu comportamento em maior ou menor grau, às prescrições normativas, ou seja, se cumprem ou não os comandos jurídicos, se os aplicam ou não". 9 
José Afonso da Silva, por sua vez, distingue o conceito de eficácia social e eficácia jurídica, designando esta como "a qualidade da norma de produzir, em maior ou menor grau, efeitos jurídicos, ao regular desde logo as situações, relações e comportamentos de que cogita; nesse sentido, a eficácia diz respeito à aplicabilidade, exigibilidade ou executoriedade da norma, como possibilidade de sua aplicação jurídica". 10Para o ilustre professor, o alcance dos objetivos da norma constitui a efetividade. Sob esse prisma é que se fala em eficácia social em relação à efetividade, ou seja, quando o ditame contido na norma encontra resposta no corpo social. A norma só é aplicável, efetiva, se for eficaz, desse modo a eficácia jurídica é encarada no sentido de potencialidade e a aplicabilidade como realizabilidade. 
 
4. Classificação quanto à eficácia
Como esclarecemLuiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior, considerando o tema de eficácia das normas constitucionais, "antes de qualquer apresentação, é conveniente estabelecer a correta acepção do que se chama eficácia jurídica". 11Nesse particular, como já enfrentada essa questão em itens anteriores, passamos a apontar algumas das diversas classificações das normas constitucionais quanto à eficácia jurídica: 
a) Classificação de José Afonso da Silva: 12 
Normas de eficácia plena. São aquelas que não necessitam de qualquer integração legislativa infraconstitucional. Produzem todos os seus efeitos de imediato. "Aquelas que, desde a entrada em vigor da Constituição, produzem, ou têm possibilidade de produzir, todos os efeitos essenciais, relativamente aos interesses, comportamentos e situações que o legislador constituinte, direta e normativamente, quis regular". 13 
Normas de eficácia contida. São as dotadas de eficácia prospectiva ou, em outras palavras, as que à míngua de legislação infraconstitucional integradora, possuem eficácia total e imediata, porém o advento legislativo faz com que o seu campo de abrangência fique restrito, contido. 
Normas de eficácia limitada. São aquelas que não produzem todos os seus efeitos de imediato, necessitando de um comportamento legislativo infraconstitucional ou da ação dos administradores para o seu integral cumprimento. Dividem-se, ainda, para José Afonso da Silva, estas normas em dois grupos: normas constitucionais de princípio institutivo e normas constitucionais de princípio programático. 
b) Classificação de Celso Ribeiro Bastos e Carlos Ayres Britto: 14 
- Normas de aplicação. São aquelas que estão aptas a produzir todos os seus efeitos. Dividem-se em: 
• normas irregulamentáveis - são as que incidem diretamente sobre os fatos regulados, impedindo qualquer regramento intercalar. São normas cuja matéria é insuscetível de tratamento, senão ao nível constitucional. 
• normas regulamentáveis - os autores apontam determinadas normas que permitem apenas regulamentação, sem restrição do conteúdo constitucional. Tais normas receberiam da legislação infraconstitucional uma mais adequada regra de cumprimento. 
- Normas de integração. Têm por traço distintivo a abertura de espaço entre o seu desiderato e o efetivo desencadear de seus efeitos. No seu interior, existe uma permanente tensão entre a predisposição para incidir e a efetiva concreção. Padecem de visceral imprecisão, ou deficiência instrumental, e se tornam, por si mesmas, inexeqüíveis, em toda a sua potencialidade. Daí por que se coloca, entre elas e a sua real aplicação, outra norma integradora de sentido, de modo a surgir uma unidade de conteúdo entre as duas espécies normativas. Dividindo por fim, as normas de integração em dois grupos: normas completáveis e restringíveis. 
c) Classificação de Maria Helena Diniz: 15 
- Normas supereficazes ou com eficácia absoluta. São dotadas de efeito paralisante de todas as legislações com elas incompatíveis, constituídas pelas chamadas norma pétreas. 
- Normas com eficácia plena. São aquelas que, por reunirem todos os predicados necessários à produção imediata dos efeitos previstos, não demandam legislação integradora para a sua eficácia. 
- Normas com eficácia restringível. Correspondem às normas de eficácia contida, na classificação proposta por José Afonso da Silva. 
- Normas com eficácia relativa complementável ou dependentes de complementação legislativa. São aquelas cuja capacidade de produção de efeitos reclama a intermediação e ato infra-ordenado. Podem revestir a forma de normas de princípio programático. 
Após a imprescindível referência a todos esses ilustres doutrinadores, ousamos formular algumas considerações de conteúdo prático. Ultrapassado o problema terminológico envolvendo os vocábulos utilizados para referência aos efeitos das normas constitucionais, constatamos a existência de diversos tipos de classificações tendo como cerne o nível de eficácia das referidas normas. Sobre esse aspecto, apesar dos ponderosos e jurídicos argumentos que embasam tais classificações, cumpre notar que tal elenco classificatório, por vezes excessivamente detalhista, torna trabalhosa a compreensão do tema, afastando a possibilidade de um entendimento unívoco e culminando, data venia, em um preciosismo totalmente despiciendo. 
Mais clara e objetiva entendemos ser a classificação de Meirelles Teixeira ao dividir as normas constitucionais, quanto à eficácia, em "normas de eficácia plena" e "normas de eficácia limitada ou reduzida". 16Sucintamente, ou o dispositivo constitucional produz, desde a sua promulgação, todos os seus efeitos essenciais (eficácia plena) ou deixa de produzi-los, integralmente, porque não se estabeleceu sobre a matéria uma normatividade para isso suficiente, deixando total ou parcialmente essa tarefa ao legislador ordinário (eficácia limitada). 
 
5. Normas programáticas - conceito e características
Uma das primeiras doutrinas que classificaram as normas constitucionais, tendo em vista a sua eficácia, foi a doutrina norte-americana encabeçada por Cooley e acolhida no Brasil pelo insigne Ruy Barbosa. Essa teoria distingue as normas constitucionais em normas auto-executáveis (self-executing provisions) e normas não auto-executáveis (not self-executing provisions). Enquanto aquelas constituem preceitos constitucionais que apresentam aplicação imediata, estas são normas indicadoras de princípios, sem que apresentem, contudo, eficácia imediata. As normas não auto-executáveis requerem providências ulteriores para a sua efetivação. 
As normas programáticas, objeto do presente estudo, dentro do contexto acima referido, são conceituadas por Pontes de Miranda como "aquelas em que o legislador, constituinte ou não, em vez de editar uma norma de aplicação concreta, apenas traça linhas ditadoras, pelas quais se hão de orientar os poderes públicos". 17 
A doutrina alemã classifica as normas programáticas como "normas de promessa" 18( Versprechungsnormen), uma vez que contêm uma promessa de legislação, de regulamentação. 
Assim sendo, inicialmente os doutrinadores atribuíram às normas programáticas frágil consistência jurídica, na medida em que esvaziavam sua força vinculante, convertendo-as em meras exortações morais. Entendendo alguns que as normas programáticas eram preceitos desprovidos de qualquer eficácia, que poderiam ser violados, inclusive por norma infraconstitucional, sem que isso resultasse em inconstitucionalidade. Retirada estava a própria juridicidade da norma programática. 
Como já exposto, não se sustenta a teoria de falta de eficácia das normas constitucionais programáticas pois seria o mesmo que defender a inutilidade de parte da Constituição. Reitere-se: nada de inútil existe na Constituição. 
Rechaçando a citada teoria, vem a doutrina defendida pelo italiano Crisafulli, 19dividindo as normas constitucionais em normas de eficácia plena, dotadas de imediata aplicação, e de normas eficácia limitada, que abrangeriam as normas programáticas. 
Para essa teoria as normas programáticas constituem verdadeiras normas jurídicas que detêm "eficácia negativa", posto que obstam atividade legislativa que lhe seja contrária. Nesse momento, avanço significativo é registrado, já que ineditamente se confere às normas programáticas certa eficácia, embora em sentido negativo.
Tomemos o exemplo da norma insculpida no art. 37, VII, da CF/1988 (LGL\1988\3). Nela fica garantido o exercício do direito de greve, nos termos e nos limites da lei, ao servidor público civil. Ora, como já decidido pelo C. STF (Mandado de Injunção 438-2-GO), trata-se de uma norma programática. Todavia, apesar de limitada, é evidente a eficácia do referido dispositivo na medida em que retira a eficácia das normas que configurem a greve como preceito negativo, afastando, inclusive, a possibilidade de legislar-se, ordinariamente, contra o exercício do direito de greve.A título ilustrativo, constata-se que a Carta de 1937 dispunha: "A greve e o lock-out são declarados recursos anti-sociais, nocivos ao trabalho e ao capital e incompatíveis com os superiores interesses da produção nacional" (grifamos). Naquele momento, portanto, estava autorizado o legislador ordinário a produzir normas, inclusive, que punissem qualquer movimento grevista. Com o advento das Constituições posteriores, notadamente a de 1988, a possibilidade de vedação ao exercício do direito de greve está afastada em função da inegável eficácia do inc. VII, art. 37 da novel Carta Política. 
Por fim, Meirelles Teixeira define a norma constitucional programática como sendo aquela que "ao invés de disciplinar diretamente a matéria a que se refere, para a imediata obtenção daqueles fins essenciais, o legislador constituinte preferiu regular, com eficácia imediata, apenas os comportamentos estatais destinados à obtenção final daqueles efeitos, dentro das diretrizes e no sentido nela expresso". 20 
 
6. "Excesso" de Constituição
É expressivo o número de doutrinadores que critica a natureza analítica de nossa Constituição. Para tanto, apontam a quantidade de normas programáticas que, após dez anos da promulgação da Carta Magna (LGL\1988\3), ainda permanecem sem regulamentação. Ressalte-se, a título de exemplo, que 27 dos 77 incisos do art. 5.º carecem de regulação pelo legislador infraconstitucional. 
Ao ventilar-se a discussão quanto à eficácia das normas programáticas e, principalmente, após constatar-se o número expressivo desse tipo de normas na Constituição de 1988 ainda sem qualquer regulamentação, forçoso é o registro da crítica de inúmeros juristas quanto ao "excesso" de Constituição. Para os integrantes dessa corrente, integrada por Anna Cândida da Cunha Ferraz, a "Constituição em vigor é analítica, desce a minúcias próprias da lei comum e que rigorosamente não são essenciais para assegurar os direitos fundamentais que aborda". 21 
Defende, ainda, Anna Cândida, a adoção de uma Constituição reduzida, apontando, para tanto as seguintes vantagens: 22 
a) Evitar-se-iam constantes reformas constitucionais, que desacreditam as instituições pela freqüência com que ocorrem e que levam à atribuir-se à Lei Fundamental do País o rótulo (pejorativo) de "Constituição provisória";
b) Suprimir-se-ia a necessidade de tantos "acordos" para facilitar a votação de projetos de lei;
c) Evitar-se-iam os "expedientes" legislativos e normativos que alteram a Constituição de modo inconstitucional, provocando a ocorrência de verdadeiros "processos informais de mudança da Constituição" ou de "fraudes constitucionais", conforme aponta a doutrina. Exemplificando: a edição de Emendas Constitucionais de Revisão, que nada tiveram de "revisão constitucional", mas simplesmente vieram introduzir exceções provisórias a dispositivos permanentes da Constituição; a edição de reformas constitucionais relacionadas às necessidades momentâneas das políticas públicas e adotadas independentemente de sua integração a sistemas ou princípios constitucionais mais amplos, sediados na constituição ordinária, etc.
d) Evitar-se-ia a "paralisação" da aplicação das normas constitucionais e sua constante não observância;
e) Facilitar-se-ia a própria ação governamental, ou a governabilidade, com menores riscos de conflitos entre poderes, por exemplo.
Ressalte-se que não estamos, de forma alguma, ao elencar os benefícios enumerados pela citada autora, a abalizar o entendimento esposado por alguns doutrinadores, que têm como expoente Manuel Gonçalves Ferreira Filho, no sentido de atribuir-se à sobrecarga da Constituição de 1988 a responsabilidade pela ingovernabilidade do País, defendendo, inclusive, que se "rasgue" a atual e faça-se outra. Para tanto, o eminente jurista assim justifica a necessidade de uma nova Constituição:
"A superação da crise de ingovernabilidade não prescinde, ao invés, reclama uma nova Constituição.
A de 1988 nasceu fora de época, ainda inspirada em um marxismo vulgar intitulado de socialismo "real", que logo se esboroou. É necessário jogar no arquivo essa obra do copismo de esquerda.
Para estabelecer nova Constituição, não é indispensável nem uma revolução, nem mesmo um golpe de Estado. Deixe-se de lado a teoria do Poder Constituinte, utópica e metafísica, que aponta apenas um paradigma (rarissimamente seguido).
Pode o Congresso Nacional fazer agora o que fez em 1985: adotar uma Emenda que, alterando o processo de mudança formal da Constituição, permita o estabelecimento de uma outra". 23 
No mais, com relação às críticas direcionadas ao número expressivo de normas constitucionais programáticas, preferimos adotar o entendimento defendido por Raul Machado Horta, denominando o que alguns chamam de Constituição analítica de Constituição plástica e defendendo que "a numerosa matéria que ficou entregue à legislação ordinária, seja na via da lei complementar ou da lei federal, poderá impressionar pela sensação que ela transmite de uma Constituição incompleta e inacabada. Considerando a natureza obrigatória da norma constitucional, o preenchimento da normas constitucionais pela legislação ordinária demonstra, entretanto, que a Constituição dispõe de plasticidade. A plasticidade permitirá a permanente projeção da Constituição na realidade social e econômica, afastando o risco da imobilidade que a rigidez constitucional sempre acarreta. A Constituição plástica estará em condições de acompanhar, através do legislador ordinário, as oscilações da opinião pública e da vontade do corpo eleitoral. A norma constitucional não se distanciará da realidade social e política. A Constituição normativa não conflitará com a Constituição real. A coincidência entre norma e a realidade assegurará a duração da Constituição no tempo". 24 
 
7. Instrumentos constitucionais de supressão de omissão legislativa
Talvez até em função do número de normas constitucionais programáticas em nosso ordenamento jurídico é que a nossa Lei Fundamental previu dois instrumentos para suprimir a omissão legislativa: a declaração de inconstitucionalidade por omissão, prevista no art. 103, § 2.º, da CF/1988 (LGL\1988\3) e o mandado de injunção no art. 5.º, LXXI, da CF/1988 (LGL\1988\3). Infelizmente, em função da tímida interpretação dada pelo Judiciário, representado pelo STF, figuram, até o presente momento, como mecanismos de pouca efetividade.
Quanto à inconstitucionalidade por omissão, nossa Constituição determina que "será dada ciência ao Poder competente", percebendo-se de imediato, que "dar ciência" é ato de pouco efeito prático, na medida em que não cria nenhum vínculo, não contém sanção. Nesse sentido, defende Regina Nery Ferrari 25que o constituinte poderia ter conferido maior robustez ao instituto para que, por exemplo, reconhecida a inércia como inconstitucional, determinasse o Judiciário um prazo para discussão e votação dos projetos que tenham por fim regulamentar de modo integrativo os dispositivos constitucionais cujos efeitos estejam paralisados, por falta dessa regulamentação, incluindo-o, obrigatoriamente, na pauta do dia, por um tempo determinado, findo o qual sem nenhuma aprovação ou apreciação, sustaria a apreciação de todo e qualquer projeto, até que fosse deliberado e votado. 
O mandado de injunção, por sua vez, tem sido convertido pelo órgãos do Judiciário, com raríssimas exceções, em mera ciência ao Poder competente, após o reconhecimento da omissão, tornando-se praticamente uma repetição da ação de inconstitucionalidade por omissão.
 
8. Conclusões - Bibliografia
De tudo quanto se expôs parece autorizado concluir-se que:
1. O estudo da natureza das normas constitucionais tem como questão preliminar o chamado "problema terminológico" quanto à acepção utilizada para os vocábulos vigência, validez, validade, eficácia e aplicabilidade. Expressões que, apesar do sentido conexo, possuem significado próprio. 
2. Sempre que se falar em regulamentarum dispositivo constitucional, estar-se-á realizando uma operação destinada a completar ou complementar o seu sentido, de forma a ordenar ou regrar as condições necessárias à sua execução. Porém, isso não quer dizer que sem essa complementação o dispositivo esteja desprovido de eficácia; a norma constitucional tem eficácia, ainda que em sentido negativo, ou seja, não permitindo a existência de outra norma infraconstitucional que a contrarie.
3. Ultrapassado o problema terminológico envolvendo os vocábulos utilizados para referência aos efeitos das normas constitucionais, constatamos a existência de diversos tipos de classificações tendo como cerne o nível de eficácia das referidas normas. Sobre esse aspecto, apesar dos jurídicos argumentos que embasam tais classificações, cumpre notar que tal elenco classificatório, por vezes excessivamente detalhista, torna trabalhosa a compreensão do tema, afastando a possibilidade de um entendimento unívoco e culminando, data venia, em um preciosismo totalmente despiciendo. 
4. A Constituição é uma lei para disciplinar não apenas o presente, mas também o futuro previsível. Assim sendo, clara é a importância das normas constitucionais programáticas, na medida em que veiculam programas constitucionais de ação dos poderes públicos, programas a serem desenvolvidos mediante providências integrativas da vontade do constituinte, visando à consecução dos fins sociais pelo Estado, o que implica diretamente a longevidade de uma Constituição.
5. A natureza "analítica" da Carta Magna (LGL\1988\3) de 1988 não nos autoriza, em hipótese alguma, atribuir-lhe a responsabilidade pela "ingovernabilidade" do País, não sendo razoável a busca por "nova" Constituição.
6. Até o presente momento têm se mostrado pouco eficazes os instrumentos criados pela Constituição de 1988 para impedir que as normas constitucionais deixem de ser observadas pela inércia, inconstitucional, dos órgãos dos poderes constituídos, notadamente o Legislativo. Ressalte-se, todavia, a importância da presença de tais instrumentos na Carta Magna (LGL\1988\3) na medida em que concedem espaço para uma futura evolução jurisprudencial.
Bibliografia
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DINIZ, Maria Helena. Norma constitucional e seus efeitos. 3. ed. São Paulo : Saraiva, 1997. 
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FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. "Necessidade da regulamentação constitucional". Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política. São Paulo, n. 18, p. 59-76, jan.-mar. 1997. 
FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. "Necessidade da regulamentação constitucional". Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política. São Paulo, n. 18, p. 47-50, jan.-mar. 1997. 
FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito. São Paulo : Atlas, 1988. 
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HORTA, Raul Machado. Estrutura, natureza e expansividade das normas constitucionais. Revista Trimestral do Direito Público, São Paulo, p. 219-240. 
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SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3. ed. São Paulo : Malheiros, 1998. 
TEIXEIRA, José Horácio Meirelles. Texto revisto e atualizado por Maria Garcia. Curso de direito constitucional. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 1991. 
(1) Cf. José Afonso da Silva, Aplicabilidade das normas constitucionais, 1998, p. 63. 
(2) Horta, "Estrutura, natureza e expansividade das normas constitucionais". Revista Trimestral do Direito Público, 1993, p. 219. 
(3) "Para a Teoria Egológica a Ciência Jurídica deve ter por objetivo o conhecimento do Direito, que seria o conhecimento da conduta humana em sua interferência intersubjetiva e dos valores que a informam". Maria Helena Diniz, A ciência jurídica na teoria pura..., 1975, p. 35. 
(4) Kelsen, Teoria pura do Direito. Trad. João Batista Machado, 5. ed. São Paulo : Martins Fontes, 1996. p. 11-12. 
(5) Reale, apud Raul Machado Horta, op. cit., p. 220. 
(6) Meirelles Teixeira, Curso de direito constitucional. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 1991. p. 289. 
(7) Azaratti, Problemi attuali di diritto constituzionale. Milano, 1951, p. 58, cf. Maria Helena Diniz, Norma constitucional e seus efeitos. 3. ed. São Paulo : Saraiva, 1997, p. 92. 
(8) Ferraz Júnior, Introdução ao estudo do Direito. São Paulo : Atlas, 1988. 
(9) Diniz, op., cit., p. 30.
(10) Silva, op., cit., p. 66.
(11) Araújo, Curso de direito constitucional, 1998, p. 18. 
(12) Silva, op. cit., p. 82-87.
(13) Idem, ibidem, p. 101.
(14) Bastos, Interpretação e aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo : Saraiva, 1982, p. 48. 
(15) Diniz, op. cit., p. 107-112.
(16) Teixeira, op. cit., p. 316-317.
(17) Miranda, apud Flávia C. Piovesan, "Constituição e transformação social". Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, jun. 1992, p. 67. 
(18) Cf. Meirelles Teixeira, op. cit., p. 324.
(19) Vezio Crizafulli, La constituzione e le sue disposizione de principio, cf. Maria Helena Diniz, op. cit., p. 93. 
(20) Teixeira, op. cit., p. 324.
(21) Ferraz, "Necessidade da regulamentação constitucional". Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, jan.-mar. 1997, p. 47. 
(22) Idem, ibidem, p. 49.
(23) Ferreira Filho, Constituição e governabilidade: ensaio sobre a (in)governabilidade brasileira, 1995, p. 142. Tal visão é inclusive adotada pelo Ministro do Tribunal Superior do Trabalho Almir Pazzianotto, atual vice-presidente daquela Corte, tendo defendido, em entrevista concedida ao jornal Gazeta Mercantil, de 31 de agosto de 1998, que a Constituição, dentro de uma visão distorcida de tutela, embutiu uma verdadeira "mini-CLT (LGL\1943\5)" em seu artigo sétimo. Segundo ele, " uma CLT (LGL\1943\5) mal-escrita que complica ainda mais as coisas". E prosseguindo em sua crítica ao referido texto constitucional, aponta uma solução em caráter peremptório: "Extirpar o artigo por inteiro". 
(24) Horta, op. cit., p. 240.
(25) Ferrari, "Necessidade da regulamentação constitucional". Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, jan.-mar. 1997, p. 73-74.

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