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AS COMPETÊNCIAS LEGISLATIVAS NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 Aos meus pais, sempre e por tudo. AGRADECIMENTOS Este trabalho jamais poderia ir ao papel sem que registrasse os agradecimentos a todos aqueles que me ajudaram, direta ou indiretamente, a desenvolvê lo. Parece estranho que, depois de escrever mais de duzentas páginas, faltem palavras capazes de expressar toda a gratidão que sinto por pessoas tão importantes. Mas a verdade é que a linguagem é limitada e jamais conseguiria traduzir com fidelidade o carinho que gostaria de transmitir a todas essas pessoas maravilhosas. Segue, no entanto, uma modesta e sincera tentativa. A meus pais, Heliane e Sergio, devo absolutamente tudo. Exemplos de bondade, honestidade, caráter e amor incondicional, eles foram e serão sempre os melhores modelos que eu poderia seguir. Agradeço a vocês de todo o coração. Estendo a gratidão também aos meus segundos pais: meus avós, de sangue e de consideração, Arlette e Pedro, Therezinha, Hélio e Lucy. Foram, são e nunca deixarão de ser fontes inesgotáveis de afeto e carinho. O mesmo digo de minha tia, Hélida, e de minha madrinha, Tereza. Minha irmã Camille e meu sobrinho Matheus são mais queridos do que eu jamais poderia demonstrar. Ela, exemplo de professora e advogada, que me motivou a optar pelo Direito e pelo magistério. Ele, figura impagável, carinhoso e muito inteligente, que enche a casa de energia sempre que chega, e de bagunça, sempre que sai. Júlia Fernandes Moreira é muito mais do que eu poderia esperar. Agradeço todos os dias por têla na minha vida. Seu amor, seu apoio sempre presente e sua paciência com as inevitáveis restrições impostas pela elaboração deste trabalho foram elementos fundamentais para que eu chegasse até aqui. Gabriel Soares, Marisa Choeypant, Julia Ryfer, Eduardo Mendonça, Gabriel Accioly, Felipe Terra e Felipe Monnerat são pessoas a quem adoro e com quem tenho o prazer de conviver nos melhores momentos e o conforto de poder contar nas situações mais difíceis. A Gabriel Soares, Felipe Terra, Mariana Cunha e Melo, Gabriel Accioly e Henrique Melo, agradeço também por terem ajudado com as pesquisas e a revisão do trabalho. Somos todos vítimas da federação. Juliana Beaklini chegou agora, mas já ocupa, por direito, um lugar de destaque. Poucas pessoas me fazem rir tanto. Taís Guida, Fernanda Lopez, Maurine Morgan, Allyne Andrade, Lívia Baptista e Jovian Ferreira sabem que não há tempo ou distância que me faça esquecêlos, por mais difícil que seja marcar um almoço. Alice Voronoff, Clara Iglesias e Leonardo Carrilho atravessaram e dividiram comigo (e eu com eles) todas as dificuldades e angústias que o mestrado pode proporcionar. Para mim, foi tudo muito melhor do que poderia ter sido simplesmente porque estavam lá. Os debates e as discussões, por vezes tensos e acalorados, foram ainda mais interessantes com a presença de Cristiana Mello, Roberto Moreno, Jorge Munhós, Daniela Giacomet e Fabiano Gomes. Muito obrigado a vocês também. A Sonia Leitão devo um agradecimento especial por sua permanente disposição a nos ajudar. Luís Roberto Barroso é uma pessoa brilhante em tudo o que faz, a quem tenho o prazer de chamar de professor, chefe e orientador. Exemplo de caráter, de acadêmico e de profissional, é uma inspiração para todos aqueles que, como eu, tentam a sorte no Direito. Sua orientação se mostrou tão inestimável para este trabalho quanto para a vida. Estendo tudo o que disse a Ana Paula de Barcellos, sempre aberta a ouvir as dúvidas e as inquietações de um aspirante a professor e a advogado, e a respondêlas racional, sentimental ou espiritualmente – se é que há tanta diferença assim entre esses planos. Aos dois, muito, muito obrigado. A todos os meus professores, devo um agradecimento especial pela paixão contagiante com que exercem sua vocação. Em particular, agradeço a Iber Reis, Carmen Tiburcio, Guilherme Couto de Castro, Ricardo Lobo Torres, Daniel Sarmento, Patrícia Baptista, José Ricardo Cunha e Humberto Dalla. Estendo o obrigado, simetricamente, aos meus alunos, de ontem, de hoje e de amanhã, pelo carinho, pelo respeito e pelo incentivo constantes. Agradeço muito, ainda, aos professores e magistrados Enrique Ricardo Lewandowski e Jane Reis Gonçalves Pereira, componentes da banca que examinou a dissertação que resultou neste livro. Seus comentários e observações, todos muito pertinentes e interessantes, certamente contribuíram para aprimorar o texto final. A todos do Escritório Luís Roberto Barroso & Associados, advogados, funcionários e estagiários, agradeço na pessoa de Valéria Oliveira, amiga muito querida. O que sei fazer, aprendi com vocês. Mas não se preocupem (a paráfrase é inevitável): não têm qualquer culpa no resultado. Por fim, mas não menos importante, agradeço a Deus, infinitamente, eternamente. Não fosse por Ele, por sua bênção incessante e permanente, nada disso teria acontecido. Em especial, agradeçoLhe por me proporcionar a graça e a alegria de conviver com pessoas tão maravilhosas. Entre os vícios inerentes a todo sistema federal, o mais visível de todos é a complicação dos meios que emprega. Esse sistema põe necessariamente duas soberanias frente a frente. O legislador consegue tornar os movimentos dessas soberanias tão simples e tão iguais quanto possível, e pode encerrar os dois dentro de esferas de ação nitidamente traçadas. Não seria capaz de fazer, porém, que houvesse apenas uma, nem de impedir que se tocassem em algum lugar. (Alexis de Tocqueville) PREFÁCIO A FEDERAÇÃO QUE AINDA NÃO FOI AS COMPETÊNCIAS LEGISLATIVAS NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 Belo Horizonte, ano 1, n. 1, jan. 2015 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital I O autor e sua trajetória Embora a vida tenha me proporcionado, generosamente, algum sucesso no direito constitucional, minha verdadeira vocação sempre foi outra. Já disse isso alhures. Considero, pretensiosamente, ser um grande descobridor de talentos. Tenho sido capaz de identificar, no meio da multidão, os que serão grandes, os verdadeiros virtuoses. Gente que é capaz de pensar fora da caixa, fazer diferente e empurrar a História. Tenho sido espectador privilegiado de numerosas histórias de sucesso. Narro aqui uma a mais. Thiago Magalhães Pires foi meu aluno de graduação nos quatro períodos de direito constitucional que ministrei nos anos de 2004 e 2005 na Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Sua discrição e leveza mal disfarçavam o brilho intenso e o impulso permanente de conhecimento e avanço intelectual que nele se destacavam desde o primeiro momento. Em 2006, Thiago tornouse meu monitor, após ser aprovado em primeiro lugar no concurso respectivo. Já dali podia antecipar que nascia uma estrela. A partir de então, para sorte minha, Thiago passou a ser meu colaborador permanente, em projetos acadêmicos e profissionais. Juntouse, por seu talento, esforço pessoal e caráter exemplar, a um elenco de juristas extraordinários que os deuses do Direito colocaram em meu caminho, e que incluíram Gustavo Binenbojm, Ana Paula de Barcellos e Eduardo Mendonça, para citar apenas os que foram meus monitores e orientandos de mestrado e doutorado. Quando o destino me trouxe para o Supremo Tribunal Federal, não abri mão da presença de Thiago na minha equipe. Com o sacrifício temporário de seus outros projetos pessoais, continuei a contar com sua competência, aplicação e seriedade. Ao longo dos anos, portanto, torneime testemunha ocular de todo o processo de formação e consolidação acadêmica e profissional do autor do presente livro. Assisti, com orgulho e emoção, o jovem estudante se converter em um jurista sofisticado, de conhecimento sólido e postura modelar. Como meu assistente docente em turmas de graduação na UERJ, revelou grande senso didático e carisma, tendo se tornado um docente popular e admirado. O trabalho que ora apresentoconstitui sua dissertação de Mestrado, defendida em 2011, perante banca presidida por mim e integrada pelos eminentes professores Enrique Ricardo Lewandowski e Jane Reis. Foi aprovado merecidamente com distinção e louvor. Thiago não escolheu um tema banal para a sua primeira grande reflexão. A Federação, no Brasil, já foi objeto de incontáveis estudos, dissertações e teses. Ainda assim, tratase de uma ideia que não se tornou inteiramente vitoriosa e que apresenta vicissitudes diversas. No momento em que escrevo essas linhas, encontramse no centro do debate político nacional questões como guerra fiscal, distribuição de royalties do petróleo, endividamento com a União e, por certo, o intrincadíssimo tema da repartição de competências legislativas. Por isso mesmo, escrevi há um tempo que a Federação, entre nós, ainda era um tema à espera de um autor. Com o presente trabalho, ao menos no que diz respeito à questão das competências legislativas, a lacuna já ficou bem menor. II Algumas reflexões sobre a Federação brasileira Cumprindo o protocolo, apresento alguns comentários acerca do tema e do conteúdo da obra. A Federação é uma forma de Estado que se sustenta na aliança (fœdus) permanente entre seus membros. Esse compromisso é o pacto federativo, símbolo do maior objetivo de toda federação: construir a unidade do Estado sem destruir o pluralismo de seus componentes. Para os cidadãos, isso significa que o fato de pertencer a uma coletividade particular não afasta, nem diminui a lealdade política a uma sociedade mais ampla, que integra, mas não dissolve as demais. Em relação ao Estado, tratase de um arranjo que procura combinar esforços em prol de interesses comuns, sem impedir que as sociedades parciais vivam, no mais, segundo suas próprias convicções. Entre os esperados efeitos desse modelo, um dos melhores – nas palavras do Justice Brandeis, da Suprema Corte dos EUA – é “que um só Estado corajoso pode, se seus cidadãos assim decidirem, servir como um laboratório; e testar novos experimentos sociais e econômicos sem risco para o resto do país”.1 Se os resultados da experiência forem bons, podem ser replicados ou expandidos. Naturalmente, as coisas nem sempre funcionam conforme se espera, mas é inegável que se trata de uma bela aspiração. Aspiração que o Brasil incorporou em 1889 e nunca mais deixou de lado. Ou, pelo menos, é o que dizem os livros. A prática é um tanto diferente. A centralização – que parece uma constante no mundo todo – assumiu aqui proporções claramente exageradas. As duas grandes ditaduras do País (19371945 e 19641985) deixaram sua marca nessa trajetória. Mas a verdade mesmo é que nem nos seus períodos mais democráticos o Brasil soube (ou, talvez, quis) levar a sério o ideal federativo – de fato, a própria Carta de 1988 não fez muito para expandir as competências dos entes subnacionais. Por sua vez, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal vem mostrando uma irredutível relutância em admitir inovações, principalmente por parte dos Estados. Assim, além de terem poucos recursos, nossos “laboratórios” dificilmente têm permissão de concluir seus “experimentos”.2 O maior problema, contudo, não é o excesso de centralização. Os Estados federais divergem bastante nesta matéria e não há uma fórmula perfeita, universalmente adequada. Hoje, o principal obstáculo que a federação brasileira enfrenta é a ausência de critérios seguros para a aplicação das regras de competência. A jurisprudência é pouco sistemática nesta matéria e a doutrina se preocupa, em geral, apenas com o sentido e o alcance de normas específicas. Na prática, portanto, tudo se passa como se o mundo coubesse na simplicidade utópica do silogismo e da subsunção. A realidade, porém, é muito mais complexa. Como Thiago aponta, na introdução do livro: Muitas vezes, regras de competência que parecem bastante claras postulam incidência em um mesmo caso concreto, dificultando a afirmação da validade ou invalidade de certa lei. O fenômeno se torna ainda mais evidente no contexto do federalismo cooperativo, em que a atuação conjunta de diversos entes não é apenas admitida, mas esperada, gerando inevitáveis sobreposições. A falta de critérios minimamente adequados para lidar com essas situações conduz o sistema político a atuar permanentemente sobre terreno incerto, avançando sobre areia movediça, além de tornar quase impossível para os cidadãos a identificação dos verdadeiros responsáveis pela ação ou omissão estatal. Esse atraso é inexplicável, em particular diante do impressionante avanço da hermenêutica constitucional dos últimos anos. Por sorte, porém, o tema já deixou o relativo esquecimento em que se encontrava. E a retomada – devo dizer – veio em grande estilo. Esse é o objeto da obra que tenho o prazer de prefaciar. III As propostas do autor A grande inovação do livro foi sistematizar a interpretação das disposições de competência legislativa. Para tanto, ao examinar o processo de qualificação das leis – i.e., seu enquadramento nas regras de competência –, o autor registra, de forma bastante realista, que: nem sempre é possível afirmar um único aspecto saliente de uma lei. Em muitas ocasiões, seja pela complexidade do ato, seja pela abertura de seus termos, seja ainda porque os efeitos e o propósito de uma lei apontam em sentidos diferentes, o intérprete se verá diante de uma lei dotada de dois ou mais aspectos suficientemente relevantes a ponto de suscitar dúvida quanto à sua qualificação. É o caso do exemplo, já mencionado, de uma lei sanitária AS COMPETÊNCIAS LEGISLATIVAS NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 Belo Horizonte, ano 1, n. 1, jan. 2015 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital trabalhista [que poderia ser enquadrada em direito do trabalho e em saúde pública], e também de um ato normativo que regule o uso de cintos de segurança no transporte público de passageiros realizado dentro de um Município, e que remete a trânsito e a transporte coletivo local. Nessas situações, não é possível afastar um ou outro aspecto para afirmar, com mínima segurança, o “verdadeiro caráter” da lei. Por essa razão, o simples fato de um ente editar uma lei que pode se enquadrar na competência de outro não significa necessariamente que ela seja inválida. Em princípio, o ato será válido se sua produção for autorizada por uma das regras de competência daquela entidade (parâmetro geral de interpretação das disposições de competência). No entanto, se duas ou mais regras postularem incidência no mesmo caso, é possível que se esteja diante de um conflito de competências legislativas. Esse fenômeno – que é totalmente ignorado no Brasil – foi detalhadamente examinado na presente obra, que inova, mais uma vez, ao propor parâmetros para identificar e resolver esses conflitos. São eles: Primeiro parâmetro: Conflitos negativos. Se nenhuma das regras de competência, enumeradas ou genéricas positivas, postular incidência no caso concreto, devese aplicar, em geral, a regra de competência genérica negativa (CRFB, art. 25, § 1º). Segundo parâmetro: Conflitos positivos de primeiro grau. Se duas ou mais regras de competência postularem incidência no mesmo caso, e uma for compreendida como especial em relação à outra, devese aplicar o regime jurídico indicado pela regra especial (aplicação do critério tradicional da especialidade). Terceiro parâmetro: Se duas ou mais regras de competência, que não tenham relação de especialidade entre si, postularem incidência no mesmo caso, obrigando ao cumprimento de leis ou posturas diversas, emanadas de dois ou mais entes federativos, todos os regimes jurídicos indicados devem ser cumpridos simultaneamente, sem afastamento de qualquer um ou declaração de inconstitucionalidade, se eles: (i) apontarem a mesma solução para o caso; ou (ii) puderem ser harmonizados de alguma forma. Quarto parâmetro: Conflitos positivos de segundo grau passivos. Diante de uma omissão inconstitucional,se duas ou mais regras de competência, que não tenham relação de especialidade entre si, postularem incidência na mesma situação, mas nenhum dos entes pertinentes houver editado qualquer lei, será necessário definir qual das entidades políticas deve ser chamada a atuar. Quinto parâmetro: Conflitos positivos de segundo grau ativos. Se duas ou mais regras de competência, que não tenham relação de especialidade entre si, postularem incidência no mesmo caso, obrigando ao cumprimento de leis ou posturas diversas, contrárias ou contraditórias, emanadas de dois ou mais entes, será necessário resolver o conflito entre as regras de competência a fim de definir a qual dos regimes pretensamente aplicáveis estará sujeita a solução do caso concreto. O quarto e o quinto parâmetros são complementados por critérios adicionais, sendo dois de índole formal – prioridade das competências enumeradas sobre as genéricas e prioridade das competências privativas sobre as concorrentes – e um de natureza material – a predominância do interesse, largamente utilizada no Brasil. Caso os dois parâmetros formais sejam insuficientes ou ofereçam respostas diferentes, entra em cena o critério material. Em qualquer caso, a solução de um conflito positivo de segundo grau não resulta na invalidade da lei afastada, mas simplesmente na sua ineficácia: revogado o diploma que prevaleceu, volta a aplicarse o outro. Não é preciso concordar com as propostas do autor para reconhecer o grande valor da sua contribuição. Este livro é certamente a tentativa mais completa de sistematizar a compreensão do tema, trazendoo ao estado da arte do direito constitucional brasileiro. IV Conclusão Há muitos anos, pouco mais de três décadas atrás, tomei uma decisão importante na minha vida: a de ser um professor. Sobretudo, um professor. Jamais me arrependi da escolha que fiz. Colhi, ao longo das décadas, os prazeres e proveitos da minha opção: conviver com jovens brilhantes, ler em primeira mão trabalhos notáveis e beneficiarme afetiva e intelectualmente do que há de melhor na academia. Ter sido professor e orientador de Thiago Magalhães Pires é um exemplo emblemático do privilégio que a vida me proporcionou. Bem pensado, bem escrito e bem defendido, seu trabalho é uma combinação virtuosa entre a moderna interpretação constitucional e o enfrentamento de problemas antigos e persistentes, como os conflitos de competência em matéria legislativa. Com essas palavras, saio do caminho de leitor para que cada um possa constatar, por meio próprio, a veracidade do que venho dizer. Administradores, legisladores e, sobretudo, juristas e julgadores passam a ter uma bússola confiável para guiálos no equacionamento das questões associadas à repartição das competências legislativas no âmbito da Federação. Em nome da comunidade de constitucionalistas brasileiros, saúdo a chegada de Thiago Magalhães Pires como um pensador que, em breve, terá dimensão nacional. Minha convicção quanto ao seu destino de sucesso se deve à sua capacidade analítica, à pesquisa de qualidade que realiza e à sua seriedade científica, atributos que qualquer leitor atento identificará nesta obra. E, embora menos fácil de saber por quem vier a conhecêlo apenas por este belo livro, Thiago é, mais que tudo, uma pessoa íntegra, leal e adorável. Em tempos de agressividade e aspereza como os que vivemos, também essas características são um bom símbolo para o sucesso. Brasília, 15 de março de 2013. Luís Roberto Barroso Professor Titular de Direito Constitucional da UERJ. Ministro do Supremo Tribunal Federal. INTRODUÇÃO AS COMPETÊNCIAS LEGISLATIVAS NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 Belo Horizonte, ano 1, n. 1, jan. 2015 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital O federalismo3 parece ser uma marca indelével na tradição constitucional brasileira. Suas origens remontam à divisão da Colônia em Capitanias Hereditárias, que gozavam de ampla autonomia em relação à Corte portuguesa.4 Esse espírito localista se acentuou não apenas em razão da enorme extensão territorial do Brasil, mas também pela importação do modelo municipalista ibérico.5 Após a Independência, a oposição das oligarquias locais ao centralismo absolutista de D. Pedro I fez eclodir diversas rebeliões e, durante a Regência, levou até à ampliação do poder das Províncias com o Ato Adicional de 1834. Embora essas prerrogativas tenham sido restringidas pouco depois, o movimento federalista continuou se intensificando à medida que o eixo econômico brasileiro se deslocava do Nordeste e do Rio de Janeiro para o oeste de São Paulo.6 Não seria um exagero afirmar que não foi a República, mas a federação, que derrubou a monarquia brasileira.7 De forma condizente com sua importância, o pacto federativo foi a mais frequente das cláusulas pétreas no Brasil, tendo constado em praticamente todas as Cartas republicanas como limite material à reforma constitucional.8 Apesar disso, é questionável o sucesso dessa trajetória. Se o objetivo era assegurar maior parcela de competência aos Estados, a História parece ter seguido justamente o rumo inverso. O “ultrafederalismo” da Constituição de 18919 foi sendo progressivamente limitado ao longo do tempo, tendo sofrido duros reveses durante os períodos ditatoriais por que passou o País (19371945 e 19641985). Sob a atual Constituição, essa tendência parece terse exercido de forma particularmente intensa sobre os Estados. Mantida, ao longo dos anos, a regra de que a competência estadual seria remanescente, não é difícil perceber que, à ampliação do escopo da legislação federal, correspondeu uma drástica redução nas competências legislativas estaduais. Como consequência, foi sem surpresa que se recebeu o resultado de uma pesquisa do Iuperj que aponta a inutilidade prática de boa parte da legislação estadual.10 Nesse sentido, boa ou ruim, a centralização normativa está presente, de forma clara, na Constituição de 1988. Esse quadro foi mitigado com o reforço das competências legislativas concorrentes, que deixaram de ser apenas um pedaço das atribuições privativas da União para ganhar um estatuto próprio – apesar de a realidade mostrar que, também aqui, há certa primazia do legislador federal. A esse cenário, agregase ainda a elevação constitucional dos Municípios e do Distrito Federal, que passaram a ser dotados não apenas da prerrogativa de autoorganização, mas também de uma série de competências legislativas e políticoadministrativas expressas, começando pelo poder genérico de dispor sobre “assuntos de interesse local” e de “suplementar a legislação federal e a estadual no que couber” (art. 30, I e II, da CF88). Como resultado, temos hoje até três ordens jurídicas concomitantes, privativas e concorrentes, que devem ser harmonizadas a fim de formar um sistema minimamente coeso. Não é bem isso, porém, o que se vê na realidade. A prática vem sendo marcada por uma enorme confusão na delimitação das esferas de competência de cada ente federativo. Três exemplos ajudam a ilustrar a afirmação: Exemplo nº 1. Diante do número de furtos em estacionamentos privados (e.g., de shopping centers e supermercados), determinado município edita uma lei que obriga esses estabelecimentos a contratarem seguro para cobrir tais eventos. Em tese, é possível dizer que esse diploma: (i) trata de seguros e, por isso, só poderia ser editado pela União (CRFB/88, art. 22, VII); (ii) protege o consumidor, remetendo à competência concorrente da União e dos Estados membros (CRFB/88, art. 24, V); e também (iii) pretende atender ao interesse local relacionado à onda de furtos naquele Município, atraindo a competência municipal prevista no art. 30, I, da Constituição. Perguntase, então: é válida a lei mencionada? Difícil dizer. Exemplo nº 2. O Estatuto do Desarmamento (Lei Federal nº 10.826/2003) envolve matérias que poderiam ser enquadradas sob a rubrica segurança pública e, consequentemente,sujeitaremse à disciplina pelos Estados membros – a quem cabe a competência legislativa remanescente (CRFB, art. 25, §1º). Contudo, não se pode ignorar que o crime organizado e, especialmente, o tráfico de armas tomam proporções interestaduais e até internacionais – o que poderia atrair a competência legislativa da União, pelo critério da predominância do interesse. Exemplo nº 3. Lei do Distrito Federal impõe às instituições financeiras o dever de afixar, em sua entrada, uma tabela com as taxas de juros praticadas e de rendimentos das aplicações financeiras. A questão se conecta prima facie com a regulação das instituições financeiras – competência federal (CRFB, arts. 48, XIII, e 192) –, mas também com a competência concorrente para a proteção do consumidor (CRFB, art. 24, V), sendo razoável considerar que as normas gerais sobre o tema já estão reunidas no Código de Defesa do Consumidor (Lei Federal nº 8.078/90). Esses três casos apenas ilustram uma dificuldade que é mais frequente do que se pode imaginar: muitas vezes, a definição das competências federativas nem sempre depende de singelas subsunções. Tanto assim que nenhuma das hipóteses acima resultou de um exercício acadêmico: ainda que com pequenas alterações, as três já foram levadas à apreciação do Supremo Tribunal Federal, que decidiu, sintomática e curiosamente, pela competência da União em todas elas.11 Independentemente disso, o que se pretendia apontar aqui era simplesmente o seguinte: nem sempre é fácil saber qual é o ente competente para legislar sobre determinada matéria. Muitas vezes, regras de competência que parecem bastante claras postulam incidência em um mesmo caso concreto, dificultando a afirmação da validade ou invalidade de certa lei. O fenômeno se torna ainda mais evidente no contexto do federalismo cooperativo, em que a atuação conjunta de diversos entes não é apenas admitida, mas esperada, gerando inevitáveis oposições. A falta de critérios minimamente adequados para lidar com essas situações conduz o sistema político a atuar permanentemente sobre terreno incerto, avançando sobre areia movediça, além de tornar quase impossível para os cidadãos a identificação dos verdadeiros responsáveis pela ação ou omissão estatal. Pois é nesse campo pantanoso que pretende transitar o presente estudo. Em linhas gerais, esta é a proposta do trabalho: revitalizar a aplicação das competências federativas, procurando manejálas com o auxílio do instrumental metodológico mais moderno, já aplicado em outros setores do Direito Constitucional. Ao final, não se pretende favorecer um ente federativo ou outro, mas antes desenvolver uma maneira mais adequada de lidar com as competências legislativas atribuídas a todos. Buscase, assim, outra forma de compreendêlas e de trabalhar com elas, examinandose o federalismo como fonte não só de limites, mas também de possibilidades. Em esforço de síntese, podese dizer que a ideia central do estudo é transformar todas as regras de competência em veículos úteis, fontes de poderes reais, aptos a serem exercidos pelos órgãos políticos e pelo povo de cada entidade federativa. Pretendese fazêlo por meio da construção de standards capazes de auxiliar o intérprete a lidar com as espécies de competência existentes, bem como com os inevitáveis conflitos e vácuos verificados entre elas. Nesse sentido, a índole desta obra é teórica e dogmática. Sua construção se baseou fundamentalmente na leitura e na crítica de material bibliográfico, doutrinário, legislativo e jurisprudencial. Foi de grande valia também o material proveniente do direito comparado, tendo se revelado de suma importância as experiências observadas em países frequentemente negligenciados pela doutrina brasileira, como o Canadá e a Austrália. Como o tema é amplo por natureza, foi necessário efetuar um corte: o estudo abrange “apenas” as competências legislativas.12 Não se exclui, em tese, a possibilidade de que alguns dos elementos desenvolvidos aqui venham a subsidiar também a determinação das competências políticoadministrativas ou até jurisdicionais, mas o presente trabalho não se volta diretamente a elas. AS COMPETÊNCIAS LEGISLATIVAS NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 Belo Horizonte, ano 1, n. 1, jan. 2015 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital O desenvolvimento do estudo seguirá um roteiro. Sua Primeira Parte se dedicará a estabelecer algumas premissas teóricas. De início, serão identificados os elementos centrais que integram a noção de Estado federal e suas principais manifestações. Feito isso, o estudo enfocará a sindicabilidade judicial das competências federativas, questão bastante controvertida nos EUA. Por fim, será exposto o “estado da arte” da interpretação constitucional, com o objetivo de se destacar que, no contexto atual, em que se reconhece ao intérprete um razoável poder criativo, devese tomar um cuidado especial com a argumentação utilizada para justificar as decisões, desenvolvendose critérios que balizem a subjetividade envolvida no processo hermenêutico. A Segunda Parte do estudo se voltará especificamente à interpretação e aplicação das competências legislativas. Em um primeiro momento, será apresentado e discutido o esforço de qualificação das leis, que determinará a qual regra de competência elas remetem em cada situação. Será, então, esboçada uma teoria das competências legislativas, sendo examinados o seu objeto e a sua estrutura, e fixados standards para a sua interpretação. A partir de um panorama das competências legislativas previstas na Constituição de 1988, serão definidos parâmetros específicos para cada espécie de competência, além de um standard geral, do qual, de certa forma, todos os demais serão extraídos. Em sua Terceira Parte, e última, o estudo discutirá especificamente o tema dos conflitos entre as competências federativas. Particularmente, chamarseá a atenção para a circunstância de que, embora as colisões de normas constitucionais tenham sido absorvidas pela prática jurídica – em especial quanto aos direitos fundamentais –, o mesmo não se passou com os conflitos envolvendo as competências legislativas. Uma vez identificado o problema, serão passadas em revista algumas formas de se lidar com os conflitos de competências, sugeridas em doutrina e no direito comparado (como a supremacia do direito federal, a predominância do interesse, o critério in dubio pro natura e a técnica da ponderação). A partir dessa análise, o estudo procurará desenvolver alguns parâmetros para a solução desses conflitos normativos. Sem dúvida, o projeto é ambicioso, mas não precisa ser pretensioso. Longe de oferecer respostas prontas e definitivas aos problemas apontados, a ideia é lançar nova luz sobre um tema tão importante quanto pouco estudado. Pode ser que, para alguém, as teses aqui defendidas não sejam as melhores. Pode ser até que essa pessoa prefira as coisas tais como elas estão hoje. Mesmo assim, se o texto provocar nela o ânimo de trazer o tema ao debate público, já terá valido a pena. Como sempre, críticas e sugestões serão muito bemvindas. Primeira Parte PREMISSAS TEÓRICAS CAPÍTULO 1 O Estado Federal 1 Introdução As competências federativas são o coração do Estado federal. Nesse sentido, não se podem compreender as primeiras sem uma prévia percepção do que seja o segundo. O problema é que, no Brasil, acabou se tornando comum a impressão de que a “‘forma federativa de Estado’ – elevada a princípio intangível por todas as Constituições da República – não pode ser conceituada a partir de um modelo ideal e apriorístico de Federação, mas, sim, daquele que o constituinte originário concretamente adotou(...)”.13 Em outras palavras: a federação não corresponderia a uma categoria ideal, mas apenas à conformação concreta adotada em cada país e em cada momento. Embora correta em princípio, a afirmação deve ser lida com cautela. A federação é, sim, um fenômeno real – umfato, por assim dizer.14 Ela surgiu historicamente como a solução de compromisso que viabilizou a criação dos Estados Unidos a partir das Treze Colônias britânicas da América do Norte. Posteriormente, o modelo ganhou o mundo, incorporado por realidades profundamente distintas entre si. A maior consequência disso foi que a ideia de federação acabou sofrendo modificações em cada lugar para a qual foi importada. Mas essa circunstância, por si só, não é capaz de infirmar a existência de certos traços fundamentais que caracterizam a federação, onde quer que ela esteja. Até porque, sem eles, seria inviável sequer classificar os Estados como federais, já que a possibilidade de diferenciar a forma federativa das demais pressupõe o reconhecimento de um conjunto de caracteres distintivos que permitam reconhecêla em meio às outras.15 É precisamente a esse conjunto de caracteres que corresponde o conceito de federação – e aqui reside o contraponto necessário à assertiva transcrita acima: existe um conceito de federação que não se confunde com o modelo específico adotado em cada Estado. Tratandose de um fenômeno real, que varia concretamente de país a país, é na realidade política do mundo que se deve procurar o conceito de federação – e não na aceitação pura e simples de conceituações teóricas prêtsàporter, que elejam esse ou aquele modelo como o ideal de federação. O conceito que se busca não é, de fato, apriorístico ou ideal, mas – embora recolha empiricamente seus traços distintivos – tampouco se confunde com as diversas configurações adotadas ao redor do mundo. Tornase necessário, por isso, encontrar um caminho metodológico que leve em consideração todas essas questões, combinando os elementos fáticos disponíveis com uma reflexão a seu respeito, em uma espécie de raciocínio circular.16 Esse caminho passa pela definição das características peculiares ou exclusivas às federações, e daquelas necessárias à forma federativa, cuja ausência a desnaturaria em algo diverso. Ele pressupõe, portanto, a identificação de elementos que aproximem os diversos Estados tradicionalmente classificados como federais e os extremem de outras figuras. Ao longo da História, foram muitas e diversas as tentativas de chegar a esse fim. O ponto será desenvolvido no item que se segue. 2 As teorias sobre a federação A busca pelo conceito de federação foi turvada, de início, pela teoria de Bodin sobre a soberania, que ainda dominava o pensamento político ocidental quando promulgada a Carta dos EUA. Partindo dessa doutrina, os teóricos distinguiam apenas duas entidades políticas: o Estado soberano, caracterizado pela existência de um poder único, AS COMPETÊNCIAS LEGISLATIVAS NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 Belo Horizonte, ano 1, n. 1, jan. 2015 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital incontrastável e indivisível,17 e as confederações, assim compreendidas as associações permanentes entre os Estados. Diante desse quadro fechado, foram desenvolvidas diversas teorias incluindo a federação ora em uma das classes, ora na outra.18 Assim é que, para alguns, ela não seria mais que um Estado soberano: ao uniremse, os Estados renunciariam à sua soberania em favor do novo ente central – algumas competências permaneceriam a cargo das subunidades, mas o único soberano seria o ente central.19 Em sentido oposto, havia quem sustentasse que a soberania permanecia com os entes locais, tratandose, em verdade, de uma confederação.20 Negando a própria possibilidade de um Estado federal, essa última corrente ganhou o nome de teoria da nulificação, servindo de lastro teórico para a luta separatista do Sul na Guerra de Secessão dos EUA.21 Tributário dessa mesma tradição era o pensamento de Alexander Hamilton, exposto em O Federalista. Aqui, porém, já se vislumbrava a inadequação do Estado federal à bipartição inspirada em Bodin: segundo o autor, a federação decorreria de uma renúncia parcial da soberania pelos Estados membros, que teriam retido uma parte dela, cedendo outra ao novo Estado federal (teoria da dupla soberania ou cossoberania).22 Como se vê, a necessidade de conciliar a nova realidade da federação com a antiga doutrina da soberania não prescindiu de uma pequena ruptura: afinal, como aceitar a coexistência de duas potências soberanas (i.e., supremas) em um mesmo Estado?23 Ainda assim, é marcante o esforço até então observado para adequar a forma federativa à teoria de Bodin. Os autores partiam de uma identificação equivocada entre soberania e concentração do poder político – sinonímia própria de uma era que assistiu à consolidação dos Estados nacionais. Apontando esse problema, Paul Laband demonstrou que a circunstância de a federação implicar a perda da soberania pelos Estados membros não lhes retiraria seu caráter de Estado, garantido pelo exercício originário de autoridade (poder político).24 Desse modo, ao mesmo tempo em que se submeteriam ao ente central recémcriado (este, sim, soberano), os Estados membros subordinariam diretamente seus cidadãos.25 Desenvolvendo teoria semelhante, Verdross, Adamovich e Kunz deram um grande salto na compreensão científica do Estado Federal, distinguindo o Estado como fenômeno de Direito Internacional – dotado de soberania –, e de direito interno – dotado de autonomia constitucional.26 Apesar do desenvolvimento alcançado, remanesciam problemas, ainda relacionados às consequências de considerarse soberana a federação: seria o ente central, por isso, superior aos periféricos? Quanto aos atos destes, não seriam expressão de poder político soberano? A resposta de Kelsen a todas essas perguntas tornouse o grande marco teórico no tema, ainda empregado largamente no Brasil.27 Utilizandose da linguagem de sua teoria pura – que identifica Estado e direito28 – o autor austríaco encontrava a peculiaridade do Estado federal na coexistência de três ordens jurídicas: as ordens locais, constituídas pelos Estados membros; a ordem central, correspondente à União; e uma ordem total (ou global), da qual as demais extraem as suas competências.29 De todas, somente a última seria soberana – manifestação da competência suprema (Kompetenzhoheit)30 –, identificada com o Estado no plano internacional.31 Como consequência, o “Estado total” exerceria suas atribuições por intermédio da União ou dos Estados membros, nos termos de uma repartição constitucional de competências.32 Apesar de seus altos e baixos, essa viagem histórica levou à definição de algumas convenções básicas a respeito da federação. São elas: (i) o Estado federal (“global”) é dotado de soberania; (ii) os Estados membros não são soberanos, mas exercem poder político em caráter originário – i.e., a título próprio, sem se falar em delegação –; (iii) é a Constituição do Estado federal que delimita as esferas de atuação da União e dos Estados membros, atribuindolhes competência. Os pontos fixados acima são de relevância ímpar – o que será percebido com maior evidência à medida que o capítulo avançar. Contudo, eles não cobrem o espectro necessário à completa compreensão do Estado federal. O próximo tópico tem como objetivo preencher essas lacunas, elucidando progressivamente cada elemento da federação, conforme o método descrito anteriormente. 3 Elementos constitutivos das federações 3.1 Unidade soberana A primeira questão relevante está relacionada ao caráter estatal da formação política resultante do pacto federativo. Com efeito, a reunião de entes políticos em uma única entidade não é uma exclusividade das federações. Esse elemento é compartilhado, e.g., com as organizações internacionais – como a Organização das Nações Unidas (ONU) e a União Postal Universal (UPU). Entretanto, a união de entes em uma federação implica a formação de um Estado,33 o que não ocorre com as organizações internacionais – afinal, nenhuma delas dispõe, e.g., de um território ou povo, na acepção convencional dos termos. Estados e organizações internacionaiscompartilham da qualidade de sujeitos de direito internacional, mas nem por isso se confundem.34 Em verdade, aquelas últimas correspondem a associações de Estados,35 criadas por estes para desempenhar finalidades específicas,36 razão pela qual sua personalidade jurídica é derivada, já que gerada e conservada pela vontade dos Estados que as constituíram.37 Já o Estado federal não é criado para finalidades específicas e sua personalidade é originária, sendo oriunda da sua própria natureza de Estado – sujeito por excelência do direito internacional.38 O mesmo critério que diferencia as federações das organizações internacionais serve também para distinguir aquelas das confederações.39 Estas constituem uma forma clássica de associação de Estados, embora estivessem – ao menos até há pouco tempo – em franco declínio. Os exemplos se multiplicam ao longo da História, podendo ser lembrados, entre outros, o Sacro Império RomanoGermânico e as Províncias Unidas dos Países Baixos.40 Com efeito, a formação de uma confederação também implica a criação de uma nova entidade política, encarregada de decidir sobre matérias de interesse comum aos seus membros. Estes, porém, permanecem como Estados soberanos, podendo retirarse a qualquer tempo da relação (contratual) que os une aos demais.41 Os órgãos da confederação são formados por delegados (diplomatas) dos Estados membros e dependem financeiramente destes, não possuindo receitas próprias.42 A relação travada, portanto, permanece no plano internacional,43 de modo que a confederação não é – como muitas vezes se afirma – um Estado composto, mas um “composto de Estados”.44 A criação de um único Estado é o que diferencia a federação, também, das comunidades territoriais dependentes45 e dos Estados associados. Em ambos os casos, Estados menores se ligam a outros, maiores, para desfrutar dos benefícios de uma associação (e.g., segurança externa), sem serem incorporados e gozando de grande autonomia. A diferença entre as figuras está em que as primeiras se situam em um ponto intermediário entre a integração ao Estado maior e a completa independência, enquanto os segundos, para além de qualquer dúvida, constituem Estados independentes, ainda que vinculados a outros.46 São exemplos de comunidades territoriais dependentes as Crown dependencies, ligadas à Coroa britânica,47 e a Comunidade de Porto Rico, vinculada aos EUA;48 por sua vez, entre os Estados associados, está o Principado de Mônaco, vinculado à França.49 A constatação de que o pacto federal gera um único Estado não é útil apenas para diferenciálo das outras figuras apresentadas. Mais importante que isso, AS COMPETÊNCIAS LEGISLATIVAS NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 Belo Horizonte, ano 1, n. 1, jan. 2015 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital conduz também à conclusão de que a opção por uma federação e as decorrências desta são questões domésticas.50 Portanto, o pacto federativo é matéria disciplinada pelo direito interno do Estado, cabendo a este, por isso, disciplinar as relações entre suas partes integrantes. Por via de consequência, a própria existência de subunidades políticas é geralmente irrelevante no plano internacional.51 Tanto assim que a responsabilidade internacional por atos das subunidades é imputada diretamente ao Estado federal,52 sendo indiferente, ainda, a eventual atribuição de competências na esfera internacional às unidades de uma federação.53 Em suma: a primeira e mais importante característica da federação é constituir – não um vínculo de natureza internacional entre Estados – mas um Estado único, de modo que a repartição de competências e responsabilidades entre os diversos entes federativos é matéria típica do direito interno de cada país. 3.2 Repartição territorial do exercício do poder político Outro aspecto a ser ressaltado diz respeito à distribuição do exercício do poder político. O ponto é simples: corresponde ao senso comum (acertado) sobre a matéria a existência de diversos centros de poder político em um Estado federal, por oposição ao centro único existente nos Estados unitários centralizados.54 O que se deve observar, contudo, é que, em si, a repartição do exercício do poder político não é suficiente para isolar o Estado federal no quadro das instituições políticas existentes. Com efeito, também pela separação de poderes o exercício do poder público é repartido entre figuras distintas, que o fazem de maneira autônoma, i.e., sem ingerência da política externa.55 Tampouco é suficiente a correlação entre Estado federal e o fenômeno das “maiorias compostas”. Realmente, e ao contrário do que ocorre, em geral, nos Estados unitários, as maiorias nas federações não são o resultado de simples adições – quem tem mais, leva – mas da composição entre maiorias dispersas. Isso se comprova, e.g., com as circunscrições estaduais para a escolha de deputados, no Brasil, e a forma indireta de eleição do presidente dos EUA.56 Todavia, não apenas os Estados federais, mas também as chamadas consociações57 se caracterizam por exigirem maiorias complexas. A diferença entre essas figuras está em que a composição de maiorias, na federação, se dá em caráter territorial, enquanto na consociação se verifica entre grupos: ela enfatiza a existência de grupos permanentes, de caráter religioso, cultural, étnico ou social, em torno dos quais se organiza a formação social (é o que ocorre na Holanda com seus três “pilares”, e ocorria no Líbano, até a guerra civil dos anos 1970).58 Assim, o que distingue o arranjo federativo da separação dos poderes e das consociações é o fato de que, nele, a repartição de competências e a composição de maiorias ocorrem no plano territorial. Em vez de órgãos distintos (“Poderes”) ou grupos, o exercício do poder político é distribuído entre entidades territorialmente diferenciadas.59 E é das interrelações entre as maiorias de cada uma delas que resulta o caráter politicamente complexo do sistema federativo. A federação, portanto, é um fenômeno territorial.60 3.3 Descentralização política Neste ponto, cumpre recuperar a distinção – já tradicional no Direito Administrativo – entre as figuras da desconcentração e da descentralização: enquanto aquela envolve a distribuição de competências entre órgãos distintos de uma mesma estrutura organizacional, nesta a repartição se dá entre pessoas diversas, i.e., entre diferentes sujeitos de direito.61 A diferenciação entre as figuras é relevante na medida em que implica a existência ou não de um vínculo de hierarquia entre os órgãos/pessoas envolvidos.62 Tratandose de entidades abstratas – pessoas jurídicas –, os entes federativos expressam sua “vontade” por meio de seus órgãos.63 A desconcentração, portanto, multiplica os “portavozes” do Estado, mas não a vontade, que deve ser logicamente única para cada ente, sob pena de esquizofrenia funcional. Para garantir essa unicidade, ordenamse os diversos órgãos segundo uma hierarquia. Não é o que ocorre com a descentralização: aqui, aumenta o próprio número de vontades, razão por que não se há de falar em hierarquia. Como referido, o Estado federal pressupõe a convivência entre várias ordens jurídicas. Sendo assim, é fácil perceber que a noção de hierarquia não se adapta ao conceito de federação, configurado de forma não piramidal – mas policêntrica.64 Afinal, caso se pudesse falar em hierarquia, sequer haveria ordenamentos jurídicos parciais. Por essa razão, podese dizer que a distribuição de competências efetuada no âmbito de um Estado federal envolve descentralização e rejeita qualquer ideia de subordinação ou hierarquia entre os entes federativos.65 Na concisa definição de K. C. Wheare, em uma das obras mais importantes sobre o tema, o princípio federativo consiste em um “método de distribuir competências de tal forma que os governos central e regionais são, cada um, dentro de uma esfera, coordenados e independentes”.66 O que se afasta, portanto, é a subordinaçãoe a dependência – inadmissíveis, como já demonstrado, em um contexto de autonomia. A referência ao Direito Administrativo é importante, mas não pode levar à confusão entre os conceitos. Na descentralização administrativa, as entidades descentralizadas são criaturas de um ente político, tendo sido criadas para desempenhar tarefas que lhes caberiam em princípio. Por essa razão, mesmo elas se submetem ao chamado controle – poder atribuído ao Executivo central para influir sobre sua Administração indireta com o objetivo de garantir que cada entidade cumpra seus fins institucionais de forma coordenada com as demais e respeitando as políticas de governo globais e setoriais.67 Nada disso ocorre na descentralização federativa. Os entes periféricos não são criaturas do ente central, mas foram criados pela Constituição para atender a finalidades próprias. Ademais, como a repartição de competências federativas não se esgota no plano administrativo, o que se verifica é uma verdadeira descentralização política,68 que resulta na coexistência de diversas ordens jurídicas em um mesmo território.69 A própria ideia de federação é incompatível com a premissa subjacente ao controle, na medida em que a convivência de políticas diversas não é apenas admitida, mas celebrada nos Estados federais. A eventual necessidade de regimes jurídicos uniformes será atendida pela atribuição de competências ao ente central, não pela subordinação a ele das demais entidades federativas. 3.4 Autonomia constitucional A autonomia dos seus componentes é, seguramente, o pontochave do conceito de federação.70 Na definição de Luís Roberto Barroso, cuidase da “faculdade que possui determinado ente de traçar as normas de sua conduta, sem que sofra imposições restritivas de ordem estranha”.71 Desse modo, dizer que os entes federativos são autônomos significa que têm o poder de decidir livremente – i.e., sem a ingerência dos demais – no espaço em que lhes cabe agir. Sobre o tema, três pontos devem ser ressaltados. 3.4.1 Autonomia não é sinônimo de soberania Tradicionalmente, afirmase que a soberania comporta análise em dois aspectos: no plano interno, significa a incontrastabilidade do poder do Estado, que não reconhece autoridade superior à sua;72 já no plano externo, equivale à igualdade formal entre os Estados na esfera internacional.73 Pois bem: acima restou demonstrado que (i) há apenas um Estado na federação – o Estado federal, que não se confunde com qualquer dos entes federativos parciais –, e AS COMPETÊNCIAS LEGISLATIVAS NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 Belo Horizonte, ano 1, n. 1, jan. 2015 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital que (ii) entre estes últimos não pode haver relação de subordinação. Sendo assim, somente o Estado federal (ente global) pode ser soberano.74 Afinal, o contrário conduziria à identificação deste último com um dos entes parciais, ou à afirmação de que algum deles é superior aos outros, já que soberano – conclusões incompatíveis com as premissas fixadas anteriormente. Embora singela, essa constatação costuma passar despercebida pela doutrina, que comumente sustenta ser soberana a União75 – tomada, portanto, como o próprio Estado federal.76 O equívoco dessa abordagem foi apontado acima: a União, como os demais entes parciais, não exerce poder supremo, não titulariza a competência das competências. Em vez disso, atua ela própria em um espaço predeterminado, de modo que sua condição jurídica é idêntica à dos Estados membros. Basta lembrar que uma lei federal que regule matéria sujeita à competência estadual é tão inválida quanto seria a lei estadual que pretendesse disciplinar qualquer tema da alçada federal. Não à toa, a Constituição de 1988 explicitamente atribui à União a mesma estatura dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, ao caracterizar todos como autônomos (art. 18). A República exerce suas competências por meio da União, dos Estados membros e dos Municípios, que, por isso, compartilham da natureza estatal.77 Os entes federativos são manifestações domésticas, de direito interno, da soberania do Estado brasileiro. Assim como os três Poderes, as entidades federativas exercem o poder soberano da República no âmbito de suas respectivas atribuições, sem que isso fira a unidade do Estado do Brasil.78 Como poder de autodeterminação,79 a soberania se mostra, no plano interno das federações, na Constituição – ordem jurídica total, suprema, à qual todas as autoridades, de todos os Poderes e entidades políticas, devem obediência. Portanto, a Carta é, ela própria, expressão da competência das competências.80 3.4.2 A sede constitucional da autonomia federativa O que se viu acima conduz à segunda observação que se pretendia fazer, relativa à sede da autonomia dos entes federativos: cabe à Constituição Federal (i) proteger a autonomia dos entes federativos – que, por isso, não pode ser subtraída por vontade dos demais –; e (ii) delimitar ela própria os espaços legítimos de atuação dos entes federativos, os quais, por essa razão, não podem ultrapassálos validamente.81 Por isso mesmo, é quase impossível na prática que um Estado federal prescinda de uma Constituição escrita – nas palavras de Karl Loewenstein, “la encarnación del contrato sobre la ‘alianza eterna’”.82 Seja como for, a lei fundamental de uma federação deve ser, ainda, rígida83 (ao menos no que se refere à existência dos entes federativos e suas competências).84 Do contrário, os espaços de cada ente federativo estariam vulneráveis à mera legislação em contrário, sujeitando certos entes à vontade política de outros. Para garantir que as determinações constitucionais prevaleçam em face dessa vontade política, a Constituição deve, ainda, ser suprema – i.e., deve ser a fonte de validade de todas as ordens jurídicas parciais85 –, de modo que nenhuma manifestação de vontade possa subsistir validamente quando incompatível com ela.86 3.4.3 O conteúdo da autonomia federativa O terceiro ponto a ser destacado no presente tópico diz respeito ao conteúdo da autonomia dos componentes da federação. A doutrina costuma enxergar três atributos na autonomia federativa – autoorganização, autogoverno e autoadministração – que são assim definidos por Luís Roberto Barroso: Autoorganização significa que cada uma das entidades componentes do Estado federal pode elaborar sua própria Constituição dispondo sobre o mecanismo de seus órgãos de ação política. Autogoverno implica a garantia assegurada ao povo, nas unidades federadas, de exercer o direito de escolha de seus dirigentes, através de eleições, e de editar, por seus representantes, as leis reguladoras da gestão da coisa pública, no âmbito de seus poderes. Autoadministração é a capacidade assegurada aos estados de possuir administração própria, ou seja, a faculdade de dar execução própria às leis vigentes e de buscar, por meios próprios, realizar o bem comum.87 As palavras do autor são claras e não exigem maiores comentários. São apenas duas as observações que se devem fazer. A primeira delas diz respeito à autoorganização: ela significa apenas que a organização dos entes periféricos não pode ser objeto de controle ou definição por parte do ente central ou de outros entes periféricos. Em geral, isso se desdobra no poder de editar uma Constituição local, compreendida como um documento formal e rígido em relação ao direito ordinário editado pelo ente periférico. Mas isso nem sempre acontece: às vezes, a Constituição Federal – que é simultaneamente a Constituição da União – disciplina inteiramente ela mesma a organização local (como na Índia)88 e tornase, com isso, também a Constituição dos Estados. Outras vezes, a tradição de flexibilidade constitucional acaba sendo incorporada pelos entes locais, embora seja rígida a Constituição Federal (é o que acontece no Canadá).89 De todo modo, a atuação dos entes periféricos na definição de sua própria organização correspondeà manifestação de um verdadeiro poder constituinte,90 chamado de poder constituinte decorrente. Ainda que o resultado de sua obra não seja uma Constituição em sentido formal, será, ao menos, uma Constituição em sentido material. Em qualquer caso, cuidase de poder instituído e, por isso, derivado da Constituição Federal, que o subordina e condiciona o seu exercício.91 No Brasil, a transgressão a esses limites autoriza até o manejo da ação direta de inconstitucionalidade contra a norma constitucional local.92 Passando já à segunda observação, o que se deve registrar é que a autonomia dos entes federativos seria meramente nominal se dependesse integralmente de transferências voluntárias dos demais.93 Assim, é indispensável que todos contem com receitas próprias, decorrentes seja da exploração de seus próprios bens e serviços, seja da tributação ou da repartição obrigatória de receitas. Falase, aqui, em autonomia financeira.94 Em resumo, a autonomia dos entes federativos (parciais) – ponto nodal da federação – corresponde à parcela do exercício do poder político soberano que lhes cabe desempenhar sem ingerências externas. Essa autonomia se manifesta nas prerrogativas de autoorganização, autogoverno e autoadministração, e está necessariamente prevista, delimitada e garantida por uma Constituição escrita e rígida. Seu efetivo exercício tem como condição sine qua non a atribuição de receitas próprias aos diversos entes federativos. 3.5 Instância neutra de solução de conflitos Como visto, o pacto federativo é necessariamente previsto por um documento superior aos componentes da federação – a Constituição Federal –, que AS COMPETÊNCIAS LEGISLATIVAS NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 Belo Horizonte, ano 1, n. 1, jan. 2015 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital subordina todos, excluindo qualquer ideia de hierarquia entre eles. Todavia, como é possível que surjam controvérsias acerca do espaço próprio de atuação de cada ente federativo, é necessário que haja uma instituição competente para interpretar a Constituição, a fim de resolver as disputas e garantir o respeito à Carta pelas entidades políticas. O ponto será desenvolvido mais adiante (v. infra, Capítulo 2), mas já se pode adiantar que o árbitro do pacto federativo não pode ser ou estar subordinado a uma instituição políticopartidária de um dos entes federativos. Embora não se trate de uma regra, esse papel é assumido, em geral, pelo Poder Judiciário. 3.6 Duas questões controvertidas 3.6.1 Participação dos entes periféricos na formação da vontade do ente central Tendo em vista o modelo original dos EUA, diversos autores afirmam que seria essencial à federação a participação dos entes locais na formação da vontade do ente central. Isso se materializaria, principalmente, na representação dos entes periféricos em um órgão específico do Legislativo federal – em geral chamado de Senado. Para essa linha, portanto, o bicameralismo constituiria elemento fundamental das federações.95 A questão, porém, está longe de ser pacífica. Há diversas outras correntes nessa matéria. Um segundo grupo de autores sustenta que a participação seria uma característica comum, mas não essencial ao conceito de Estado federal.96 Por sua vez, uma terceira linha afirma que fundamental é apenas a garantia da representação regional no Legislativo federal, o que pode se dar ou não por meio de uma segunda câmara.97 Por último, há mesmo quem diga que a representação dos entes periféricos – longe de incrementar – reduziria a força do princípio federativo, pois a integração das entidades locais reduziria a autonomia do ente central.98 De fato, há, pelo menos, três problemas em enxergar a participação como um elemento indispensável dos Estados federais. Em primeiro lugar, nem o bicameralismo99 nem a representação regional100 são peculiaridades das federações. Naturalmente, isso não seria um obstáculo à inclusão da participação no conceito, desde que se cuidasse de um elemento universalmente adotado pelas federações. Contudo, e em segundo lugar, há uma variedade tão grande na seleção e na composição das Câmaras Altas que seu perfil e suas atribuições se alteram substancialmente em cada Estado.101 Em alguns casos, a repartição dos assentos é paritária (Brasil;102 EUA103); já em outros, não é assim (Alemanha,104 Áustria105 e Suíça106).107 Além disso, há Estados em que os senadores são nomeados pelos próprios entes periféricos (Alemanha,108 Áustria,109 África do Sul,110 Rússia111), enquanto, em outros, há eleição direta para os membros da Câmara Alta (Brasil,112 Argentina,113 México,114 Austrália,115 EUA116). Nem no primeiro nem no segundo grupo, o Canadá segue uma linha independente, inspirado na Câmara dos Lordes britânica:117 os senadores são nomeados pelo Governador Geral, representante do monarca.118 Por sua vez, no Paquistão119 e na Índia,120 adotouse um modelo híbrido, em que uma parte dos membros da Câmara Alta é composta por delegados dos Estados, enquanto a outra é eleita diretamente ou nomeada pelo Executivo. Diante de tamanha variedade, tornase difícil dizer que o Senado seja uma instituição compartilhada pelas federações. Apesar do nome, todos esses órgãos têm muito pouco em comum. Em terceiro lugar, boa parte da doutrina vem questionando a representatividade dos Estados pelo Senado:121 teriam saído de cena os interesses estaduais, dando lugar às orientações dos partidos políticos, muitas vezes organizados em plano nacional, como ocorre no Brasil.122 Além disso, como destaca Larry Kramer, ainda que o Senado servisse de veículo para os interesses dos Estados, o fato é que – como agentes políticos da União – os senadores não teriam qualquer incentivo para resguardar as competências estaduais. Como dependem do apoio da população local para se manterem no poder, eles prefeririam tomar para si a tarefa de prestar determinados serviços, por meio do governo federal, em vez de dividir o crédito com os governos locais.123 Se os próprios senadores puderem ser vistos como autores de decisões de grande apelo popular, por que optariam por abrir mão desse prestígio ou mesmo repartilo com agentes estaduais? Diante de tudo isso, se não há dúvida quanto à inserção da autonomia constitucional no núcleo do pacto federativo, o mesmo não se pode dizer quanto à participação dos entes periféricos na formação da vontade federal.124 A inclusão da participação entre os elementos do conceito de federação parece dever se mais à precedência histórica do modelo norteamericano que propriamente a uma avaliação crítica aprofundada. A criação de um órgão de representação de entidades locais no processo político central nada mais que é um vestígio do modelo confederativo – lembrança de um tempo em que consideravam os Estados membros sujeitos politicamente distintos de seus próprios povos. Como qualquer Estado, as federações são sociedades políticas de pessoas, não de entidades estatais. Suas subunidades – entes central e periféricos – são apenas fóruns de deliberação diferentes, nos quais as pessoas participam como integrantes simultâneos de comunidades distintas, dedicadas à resolução de questões de interesse local, regional e nacional. O que importa, portanto, é a representação do povo nos diversos centros de poder, sendo irrelevante a integração dos entes federativos nesse contexto. Não à toa, mesmo nos EUA, uma importante correção de rumo levou à instituição das eleições diretas para o Senado, demonstrando que, mais que representação estadual, o que se exige é representação popular. 3.6.2 Direito de secessão Uma das diferenças mais marcantes entre a federação e a confederação está no fato de que os componentes desta são livres para deixála quando bem entenderem. Há, portanto, um direito potestativo de secessão, que se funda tanto na soberania dos Estados partes quanto no caráter contratual do vínculo confederativo. Essa característica não se reproduz nos Estados federais.Ao contrário, diversos deles têm preceitos expressos no sentido de que o pacto federativo é indissolúvel.125 Nada obstante, essa indissolubilidade não constitui, por si, um elemento essencial das federações.126 É verdade que as entidades federativas não são soberanas, bem como que o vínculo que as une não tem natureza contratual. Ao contrário, todas se subordinam à Constituição Federal, que não está (nem poderia estar) à disposição de uma ou de algumas delas. Isso, porém, não impede que se efetive a secessão.127 Naturalmente, se a Constituição é suprema e não equivale a um contrato livremente denunciável pelos entes federativos, é evidente que uma tentativa unilateral de secessão pressuporia que o ente se arrogasse na condição de soberano, pois somente assim poderia considerarse apto a excluirse, sponte propria, da ordem global a que até então pertencera. Isto é: investirseia no poder constituinte originário, colocandose em paridade com a própria Constituição, para denunciála, instaurando sua ordem jurídica independente. Por óbvio, tratarseia de uma afronta à ordem constitucional e, consequentemente, de um ato ilícito, ensejando as sanções previstas para tanto (e.g., intervenção federal). Entretanto, situação diversa ocorre quando a secessão é operada por meio de reforma na Constituição Federal.128 Nesse caso, nada há no conceito de Estado federal que obste à separação. Aqui, a soberania da entidade retirante não é pressuposto da secessão, mas sua consequência, já que a independência somente se efetiva através do meio institucional adequado à alteração da lei fundamental.129 Observese que a retirada de um ou dois entes locais, quando outros permanecem, não desnatura o Estado, que não deixa de ser federal. Por isso, mesmo quando existente, a cláusula pétrea que garante AS COMPETÊNCIAS LEGISLATIVAS NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 Belo Horizonte, ano 1, n. 1, jan. 2015 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital a permanência do pacto federativo não é ofendida pela reforma que vise à independência dos entes em questão.130 Em síntese, portanto, o conceito de federação não abarca a proibição à secessão dos entes menores.131 Assim, não se pode dizer que é impossível a secessão – que em princípio pode ser realizada por via de reforma constitucional –, mas apenas que, na falta de autorização expressa, a separação não pode constituir direito potestativo atribuído aos entes federativos. 4 Conceito de federação A partir do que se apurou acima é possível dizer que a federação é um Estado soberano, descentralizado politicamente em bases territoriais, de tal modo que as atribuições estatais sejam repartidas entre um ente central e entes periféricos, todos autônomos entre si e subordinados a uma Constituição escrita e rígida, a qual delimita os espaços para a atuação legítima de cada um, cuja observância é fiscalizada por um órgão neutro. A presença ou ausência desses caracteres conduzirá à afirmação de que um determinado Estado é ou não uma federação. Por esse motivo, a tentativa de supressão de qualquer deles, no Brasil, restará vedada pela cláusula pétrea prevista no art. 60, §4º, I, da Constituição Federal. 5 Classificação, cooperação e caráter dinâmico das federações Como mencionado, varia bastante a conformação concreta dos Estados federais pelo mundo: há federações republicanas (EUA, Rússia) e monárquicas (Canadá, Malásia); desenvolvidas (Suíça, Alemanha) e em desenvolvimento (México, Argentina); presidencialistas (Brasil, Venezuela) e parlamentaristas (África do Sul, Austrália), dentre muitas outras classificações possíveis e imagináveis. De todo modo, a doutrina costuma diferenciálas segundo três critérios principais, especificamente voltados à análise da forma federal de Estado. Falase, em primeiro lugar, em federalismo por agregação ou por desagregação. Correspondem ao primeiro tipo as federações formadas pela união de diversos Estados até então soberanos. Esse foi o caso dos EUA, da Alemanha e da Suíça. Por sua vez, o segundo tipo designa as federações formadas pela transformação de um Estado regional ou unitário em federal ao atribuirse autonomia constitucional às subunidades territoriais.132 O Brasil é um exemplo de federação criada por desagregação: com o Decreto nº 1/1889 e a Constituição de 1891, as antigas províncias do Império tornaramse Estados membros, ganhando autonomia constitucional. Uma segunda classificação leva em conta a maior ou menor parcela de competências atribuídas aos entes periféricos.133 Nesse sentido, distinguemse, respectivamente, as federações mais descentralizadas das mais centralizadas.134 Esta classificação não se confunde com a anterior, mas é frequente a afirmação de que os Estados federais formados por agregação costumam ser mais descentralizados, enquanto aqueles que resultam de desagregação são, em geral, mais centralizados. Não se trata, porém, de uma regra. Em terceiro lugar, e por fim, a doutrina diferencia entre o federalismo dual e o cooperativo. O primeiro se caracterizaria por atribuir esferas estanques de competência para cada ente federativo. É um modelo baseado em competências privativas: como os âmbitos de competência não se cruzam, o que cabe ao ente A não cabe ao ente B e viceversa.135 Já no segundo caso, há algum grau de interpenetração entre as competências de duas ou mais esferas federativas que, por isso, compartilham algumas matérias.136 Essa classificação, no entanto, parece ter mais interesse didático que importância prática. Isso porque a intensificação da regulação estatal e a crescente complexidade da vida social demonstraram a completa inviabilidade prática de separaremse rigidamente, em compartimentos isolados, as competências dos entes federativos137 – “não é possível fazer um corte tão preciso entre as competências de vários Legislativos: elas inevitavelmente ficarão sobrepostas de tempos em tempos”.138 O que pode variar são a frequência e a extensão desse compartilhamento/conflito de competências.139 Uma boa demonstração do que se acaba de dizer é dada pela trajetória política dos EUA. Embora a Constituição de 1787 não empregasse técnicas como a concorrência legislativa, o tempo testemunhou não apenas o avanço da União sobre áreas até então reservadas aos Estados, como também sobre a posição de leis estaduais e federais, às vezes dispondo em sentidos diversos.140 Para lidar com isso, a Suprema Corte daquele país se valeu da chamada cláusula de supremacia para desenvolver a chamada preempção: a lei federal, validamente editada, prevalece sobre a lei estadual, ainda que igualmente válida. O tema será melhor examinado na Terceira Parte deste estudo. Por ora, vale observar apenas o seguinte: nesses casos, não se cogita de invalidade da lei estadual por usurpação de competência federal, já que a matéria, em princípio, estaria sujeita à legislação estadual. Dessa forma, se a lei federal prevalece, é porque se compreende que aquele ponto se colocava simultaneamente sob duas regras de competência. O mesmo se passa no Canadá,141 onde desde cedo se trabalhou com a figura dos conflitos de competências federativas, naquilo que se convencionou chamar de doutrina do duplo aspecto142 – e aqui se remete o leitor à Segunda Parte do estudo. Aqui o que interessa destacar é o seguinte: pouco importa a técnica legislativa adotada para a repartição de competências; em alguma medida, sempre haverá conflitos e sempre se exigirá a cooperação entre os entes federativos.143 Como consequência, exigese de todos eles certa boafé, uma postura de lealdade federativa, como pontuado pelo Tribunal Constitucional Federal alemão.144 145 Tudo isso lança nova luz sobre os exemplos apresentados na Introdução do estudo: quando a questão se coloca em termos de interesse local versus seguro e direito civil, por exemplo, faz sentido tratar cada um desses elementos como domínios estanques? Pior: em matéria de competências concorrentes– em que as hipóteses de conflito são previstas e disciplinadas –, faz sentido traçar uma rígida distinção entre normas gerais, a cargo da União, e normas específicas, a cargos dos Estados, como se fossem competências privativas? Como se verá, defendese aqui uma resposta negativa para ambas as questões. Mas há ainda outra conclusão a ser extraída desse cenário: o federalismo é dinâmico por natureza.146 O passar do tempo pode fazer com que matérias anteriormente disciplinadas pelos Estados venham depois a ser validamente reguladas pela União e viceversa. Isso pode ocorrer não só por alteração formal da Constituição, mas por imposição dos fatos: um fenômeno, até então restrito a um âmbito particular, localizado, pode assumir novas proporções.147 Um exemplo fácil é a regulação dos contratos nos EUA: como matéria de direito privado, se subordinava à disciplina estadual; com a Crise de 1929, que alcançou magnitude mundial, tornouse justificada – e até necessária – a atuação federal.148 Outro exemplo é o crime organizado: embora a segurança pública seja competência dos Estados membros no Brasil, a dinâmica dos fatos e a criação de quadrilhas interestaduais e internacionais justificou a edição do Estatuto do Desarmamento (Lei Federal nº 10.826/2003).149 Esse dinamismo já foi apontado como uma das causas para o sucesso do federalismo nos EUA.150 Em esforço de síntese, o que se tem hoje é um sistema interconectado e dinâmico de competências. Nesse contexto, não faz mais sentido discutir as competências legislativas dos entes políticos nos quadros de um federalismo dual. Algo pode recair, simultaneamente, sob a competência (privativa ou concorrente) federal, estadual e municipal, e a resposta dada, qualquer que seja ela, pode se alterar ao longo do tempo, à medida que os fatos seguem seu curso e mudam a interpretação do direito. Cabe à doutrina e à jurisprudência se adaptarem a essa nova realidade de cooperação, conflitos e mudanças. Nas AS COMPETÊNCIAS LEGISLATIVAS NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 Belo Horizonte, ano 1, n. 1, jan. 2015 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital palavras da Suprema Corte do Canadá, em um sistema federativo, é inevitável que, ao perseguir objetivos válidos, a legislação de cada nível de governo ocasionalmente atinja a esfera de competência do outro nível de governo; a posição de leis é algo a ser esperado e acomodado em um Estado federal. Assim, é apropriado [adotar] certo grau de contenção judicial ao propor testes estritos que venham a resultar na invalidação de tais leis.151 Será justamente essa a tônica do presente estudo. Uma vez que se admita que as matérias sujeitas às competências se conectam e até se alteram com o passar o tempo, os conflitos entre elas serão inevitáveis e cada vez mais frequentes. Como o federalismo dual não é mais um projeto a que se possa recorrer, devese definir, então: (i) quem deve solucionar esses choques de competências; e (ii) como esse agente deve fazêlo, i.e., com base em que critérios ou parâmetros. Esse segundo ponto será examinado, de forma mais aprofundada, na Terceira Parte do estudo. Já quanto ao primeiro, a resposta mais óbvia parece ser o Poder Judiciário – corpo independente de magistrados imparciais, plenamente habituados à solução de conflitos federativos. Mas as coisas não são tão simples assim. A invalidação de decisões majoritárias pelos juízes não é algo que se possa tomar como natural ou inevitável, mas – ainda que positiva e simpática aos olhos – deve ser criticada e justificada. Em outras palavras, devese perguntar: É necessária a intervenção judicial no contexto federativo? Quais são os seus limites? As possíveis respostas a essas questões serão abordadas no próximo capítulo. CAPÍTULO 2 A sindicabilidade judicial do pacto federativo 1 Introdução O compromisso político corresponde à causa e à alma do Estado federal. Histórica, filosófica e politicamente, a federação é a manifestação de um acordo permanente, em contínua manutenção e reconstrução, entre os diversos entes que a compõem. Pelo prisma da História, o Estado federal surgiu nos EUA como solução de compromisso para os problemas vividos pelas Treze excolônias britânicas que, premidas entre a total independência e a fusão integral, optaram pelo caminho do meio. Do ponto de vista filosófico, o federalismo é associado à teoria pactualista,152 justamente por fundarse em um ajuste: firmamse bases normativas que vinculam parceiros em prol de objetivos comuns, a cuja busca ambos se comprometem em condições de cooperação e de respeito mútuo, de modo que não se sacrifica a integridade individual de cada uma das partes.153 Já sob a óptica da política, a federação é a expressão da unidade na diversidade, a resultante da soma vetorial entre uma força centrípeta e uma força centrífuga de intensidades distintas, traduzida na posição de esferas autônomas de decisão.154 Sua convivência, coordenação e competição devem ser equacionadas no quadro de um esquema constitucional comum, que corresponde ele mesmo a um consenso, vivificado pela praxe política dos entes federativos. Com a superação do paradigma dual e a consagração do modelo cooperativo de federalismo, o compromisso político entre as unidades da federação tornou se uma realidade ainda mais acentuada e, a rigor, necessária. O compartilhamento de competências exige uma atuação concertada por parte das entidades envolvidas. Sem prejuízo disso, é certo que a multiplicação de estruturas políticas autônomas constitui terreno fértil para a ocorrência de conflitos entre elas. A capacidade de absorver e resolver institucionalmente as controvérsias – entre particulares, entre entidades políticas, ou entre uns e outras – é uma das marcas da maturidade de um Estado de Direito. De todo modo, por mais prosaicas que sejam suas causas, os conflitos intrafederativos são dotados de uma seriedade ímpar, na medida em que envolvem a própria estrutura do Estado e, quase invariavelmente, a definição dos limites e contornos de uma série de disposições constitucionais. Por essa razão, é absolutamente indispensável que haja um árbitro do pacto federativo, capaz de fiscalizar a atuação de todos os componentes da federação. No Brasil, boa parte dessa função é atribuída ao Supremo Tribunal Federal, a quem compete: (i) julgar ações diretas interventivas propostas pelo Procurador Geral da República, nos termos do art. 34, VII, c/c art. 36, III, da Constituição Federal; (ii) verificar a compatibilidade de leis e atos normativos federais, estaduais, distritais e municipais com a Carta da República, abstrata ou incidentalmente – nesse último caso, com destaque para o recurso extraordinário (CRFB, art. 102, I; III, d; e §1º); e (iii) julgar “as causas e os conflitos entre a União e os Estados, a União e o Distrito Federal, ou entre uns e outros, inclusive as respectivas entidades da administração indireta” (CRFB, art. 102, I, f). Mas nem todos concordam com a judicialização dessa matéria: há quem sustente que o processo político ordinário oferece proteção satisfatória aos entes federativos – são as chamadas “salvaguardas políticas do federalismo”. Nos EUA, por exemplo, existe um longo debate – que já chegou à Suprema Corte – sobre o caráter essencialmente político e, por isso, talvez até imune ao controle judicial, do exercício das competências federativas. Em linhas gerais, a questão posta pode ser assim resumida: se o sistema político é suficientemente aparelhado para proteger os interesses dos Estados membros, por que então poderia (ou deveria) o Judiciário impor a sua interpretação do pacto federativo sobre aquela que se sagrou vitoriosa na arena política? Pois é em responder a essa pergunta que se concentrará o presente capítulo. O desenvolvimento do tema obedecerá à seguinte ordem: primeiro, será exposta a doutrina das salvaguardas políticas do federalismo. Apesar de ter denominadores comuns, ela não
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