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Anna Caroline Klamas de Lucas Estado, Poder e Gestao INSTlTUTO FEDERAL Estado, Poder e Gestão Anna Caroline Klamas de Lucas © 2012 INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA - PARANÁ - EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA Lucas, Anna Caroline Klamas de. Estado, poder e gestão / Anna Caroline Klamas de Lucas. – Curitiba: Instituto Federal do Paraná, 2012. 144 p. : il. color. ISBN: 978-8564614-37-6 Inclui bibliografia 1. Ciência política. 2. Poder (Ciências sociais). 3. Sistemas políticos. 4. Estado (Poder). 5. Terceiro setor. I. Título. CDD 320 Eutália Cristina do Nascimento Moreto CRB 9/947 Irineu Mario Colombo Reitor Ezequiel Westphal Pró-Reitoria de Ensino – PROENS Gilmar José Ferreira dos Santos Pró-Reitoria de Administração – PROAD Silvestre Labiak Pró-Reitoria de Extensão, Pesquisa e Inovação – PROEPI Neide Alves Pró-Reitoria de Gestão de Pessoas e Assuntos Estudantis – PROGEPE Bruno Pereira Faraco Pró-Reitoria de Planejamento e Desenvolvimento Institucional – PROPLAN José Carlos Ciccarino Diretor Geral do Câmpus EaD Marcelo Camilo Pedra Diretor de Planejamento e Administração do Câmpus EaD Mércia Freire Rocha Cordeiro Machado Diretora de Ensino, Pesquisa e Extensão – DEPE/EaD Cristina Maria Ayroza Assessora de Ensino, Pesquisa e Extensão – DEPE/EaD Sandra Terezinha Urbanetz Coordenação de Ensino Superior e Pós-Graduação do Câmpus EaD Adriano Stadler Coordenador do Curso de Pós-Graduação em Gestão Pública Elaine Mandelli Arns Coordenadora de e-learning Ester dos Santos Oliveira Coordenação de Design Instrucional Franciane Heiden Rios Loureni Reis Michele Simonian Designer Instrucional Helena Sobral Arcoverde Ana Luísa Pereira Revisão Editorial Flávia Terezinha Vianna da Silva Capa Paula Bonardi Projeto Gráfico e Diagramação Imagens da capa: © VLADGRIN/Shutterstock; JelleS/Creative commons; © Dmitriy Shironosov/Shutterstock; visaointerativa/Creative commons; © Robert Kneschke/Shutterstock; © NAN728/Shutterstock; gracey/morgueFile; dbking/Wikimedia commons; © Robert Proksa/Stock.XCHNG; © Yuri Arcurs/Shutterstock; © jeff vergara/Stock.XCHNG; © Andresr/Shutterstock. Sumário Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7 Capítulo 1 ‒ Estado: conceitos e diferentes acepções históricas – uma introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9 1.1 A origem da ideia de Estado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 1.2 Pensamento clássico aristotélico sobre o Estado . . . . . . . . . 12 1.3 O Estado na concepção dos pensadores contratualistas . . . 17 1.4 Ideário dos autores contratualistas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20 Capítulo 2 ‒ Poder, dominação e democracia . . . . . . . . . . . . . . . . 31 2.1 Aristóteles e as três formas de governo: uma visão clássica e tradicional da democracia e da distribuição do poder . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32 2.2 A democracia e o sistema representativo moderno . . . . . . . 34 2.3 O processo de democratização sob a perspectiva da conquista de direitos . . . . . . . . . . . . . . 36 2.4 Críticas à democracia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39 Bibliografia comentada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42 Capítulo 3 ‒ O Estado e as formas de governo na Era Moderna . 43 3.1 Estado monárquico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45 3.2 O processo de transição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48 3.3 República . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48 3.4 O Estado Moderno e as novas formas de organização dos poderes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51 3.5 Elementos do Estado Moderno e a separação dos poderes . 52 3.6 Os sistemas presidencialista e parlamentarista . . . . . . . . . . 54 Capítulo 4 ‒ O regime federativo: a organização do poder no Estado Moderno . . . . . . 59 4.1 Desenvolvimento histórico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61 4.2 Características do regime federativo . . . . . . . . . . . . . . . . . . 62 Es ta do , P od er e G es tã o 4.3 O pacto federativo brasileiro promulgado pela Constituição Federal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .63 4.4 A Administração Pública brasileira e o sistema de repartição de competências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .65 4.5 Princípios constitucionais da Administração Pública . . . . . . . .70 Capítulo 5 ‒ O Estado de Direito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .73 5.1 Nasce o Estado de Direito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .74 5.2 Constituição Federal de 1988 – perspectivas para a sociedade brasileira . . . . . . . . . . . . . . . . . . .77 5.3 Objetivos da República Federativa do Brasil . . . . . . . . . . . . . .82 5.4 Algumas considerações sobre os direitos e deveres fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988 . . . . .85 5.5 Remédios constitucionais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .87 Bibliografia comentada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .91 Capítulo 6 ‒ O Estado do Bem-Estar Social: a dimensão social do papel e da atuação do Estado ao longo do século XX . . .93 6.1 Conceito e origens históricas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .93 6.2 Princípios fundamentais do Estado do Bem-Estar Social . . . .97 6.3 O Estado do Bem-Estar Social no Brasil . . . . . . . . . . . . . . . . .97 6.4 Críticas ao Estado do Bem-Estar Social . . . . . . . . . . . . . . . . .101 6.5 A crise e o fim do Estado do Bem-Estar Social . . . . . . . . . . . .102 Capítulo 7 ‒ Estado liberal e neoliberalismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .107 7.1 Consequências positivas e negativas do Estado liberal não intervencionista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .110 7.2 O Estado Moderno e a questão do neoliberalismo . . . . . . . . .113 7.3 A questão do neoliberalismo no Brasil . . . . . . . . . . . . . . . . . . .116 Bibliografia comentada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .122 Capítulo 8 ‒ Políticas públicas e gestão democrática: a relação Estado / empresas / sociedade civil / terceiro setor e a conquista e ampliação de direitos . . . . . . . . . . . . . . . . . .123 8.1 O terceiro setor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .124 8.2 Atores e breve histórico do terceiro setor . . . . . . . . . . . . . . . . .127 8.3 Parcerias do Estado brasileiro com o terceiro setor . . . . . . . . . .130 8.3.1 O terceiro setor sob uma perspectiva crítica . . . . . . . . . . .134 Bibliografia comentada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .137 Considerações finais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .139 Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .143 Apresentação Neste livro estudaremos as formas de organização do poder do Estado em uma perspectiva histórica, político-sociológica e jurídica, com o intuito de compreendermos como esta instituição soberana faz a gestão da esfera pública, que tem por finalidade atender aos interesses coletivos. No Capítulo 1 abordaremos o conceito de Estado e o seu papel na formação das sociedades politicamente organizadas, em diferentes momentos históricos e a partir de pensadores clássicos e modernos, no intuito de refletir sobre a divisão, organização e controle do poder no interior da sociedade. Tratamos ainda da instituição e formação do Estado como uma instituiçãosoberana e como expressão da vontade geral, da vontade do povo. Em seguida, no Capítulo 2, apresentaremos a democracia sob a ótica do pensamento clássico aristotélico, evidenciando-a como uma das formas de governo, ou seja, como uma das formas de organização, titularidade e exercício do poder soberano, ou estatal. Tais afirmações, conceituadas e esclarecidas, nos permitirão refletir sobre a importância da democracia para a organização do poder político na sociedade moderna. As características e os elementos do Estado Moderno e suas distintas formas de governo, a República e a Monarquia, bem como suas principais diferenças, serão abordadas no Capítulo 3. Este capítulo trará também suporte teórico sobre os sistemas de governo do ponto de vista da organização dos poderes entre Legislativo, Executivo e Judiciário, e as diferenças entre Presidencialismo e Parlamentarismo. No Capítulo 4 a forma federativa de Estado e suas diferenças fundamentais com o regime confederativo serão apresentadas. Ainda neste capítulo veremos como se desenvolve a soberania, a autonomia e a interdependência dos Estados-membros no caso do Estado brasileiro, ou seja, como funciona a sua organização político-administrativa. 8 Es ta do , P od er e G es tã o Questões acerca da soberania, legitimidade e legalidade, presentes na dimensão jurídico-administrativa do Estado de Direito e seu desenvolvimento ao longo da história, serão trabalhadas no Capítulo 5. Estudaremos também, neste capítulo, sobre a Constituição Federal de 1988 e suas perspectivas para a sociedade brasileira. O conceito do Estado de Bem-Estar Social, suas origens históricas e o papel específico do Estado no processo de intervenção e atuação na vida social moderna serão contemplados no Capítulo 6, o qual trará também as características desse modelo no Brasil. No Capítulo 7, intitulado Estado Liberal e Neoliberalismo, estudaremos as principais características do Estado Liberal, enfatizando os princípios e ideais do pensamento liberal moderno, a questão do desenvolvimento da ideia do “Estado mínimo” e, por fim, a questão do neoliberalismo no Estado brasileiro. As relações entre o Estado e a sociedade civil organizada, com base no princípio da subsidiariedade serão conceituadas no Capítulo 8. Nesse ponto analisaremos as relações entre Estado e sociedade na constituição de parcerias para atender as demandas sociais, e ampliar assim o exercício dos direitos sociais previstos na Constituição Federal. Esperamos que com todos esses elementos, você, aluno e aluna, internalize conhecimentos introdutórios sobre a questão do Estado enquanto instituição soberana, seu papel e suas formas de organização política no interior da sociedade moderna. Sabemos que refletir sobre tais questões contribui para a formação do pensamento crítico, e este, quando estabelecido, nos possibilita defendermos uma postura cidadã, responsável e legalista, do ponto de vista da Gestão Pública que, em última instância, trata da gestão da esfera pública, do bem comum e dos interesses de toda uma coletividade, administrada por um Estado de Direito. 1 CapítuloEstado: conceitos e diferentes acepções históricas – uma introdução Neste capítulo serão apresentadas e esclarecidas as principais teorias sobre o conceito de Estado e o seu papel na formação das sociedades politicamente organizadas, em diferentes momentos históricos. Essa conceituação inicial se faz necessária, pois a ideia que fazemos do Estado hoje nem sempre foi a mesma ao longo dos tempos. As concepções sobre o Estado e seu papel podem ser divididas em dois grupos de pensadores: o pensamento dos autores clássicos e o pensamento dos autores modernos. Como toda produção humana, que é influenciada diretamente pelo modo de vida dos sujeitos, cada grupo caracterizou o poder do Estado segundo a organização social e cultural do seu tempo, e refletiram sobre como deveria ser a divisão, organização e controle do poder no interior do modelo social em que estavam inseridos. Assim, neste capítulo serão definidas questões pontuais: qual é o papel do Estado na sociedade, a partir de quando ele foi instituído e formado, por que assumiu o papel de uma instituição soberana (que está acima dos indivíduos), por que possui o poder de dirigir os homens e impor sua vontade, mesmo sendo a expressão da vontade geral, da vontade do povo. ESTADO POVO SAÚDE EDUCAÇÃO SEGURANÇA ? © Li viu Io nu t P an tel im on / Sh utt ers toc k. 10 Es ta do , P od er e G es tã o Por que existe o Estado? Já parou para pensar a respeito? Quem o revestiu de tanto poder e prestígio? Por que o Estado representa a Lei e todos obedecemos? Por que recorremos ao Estado para dirimir conflitos? Por que responsabilizamos o Estado pelas demandas sociais não atendidas? Qual é o papel e a razão de ser da própria administração pública estatal? As sociedades humanas, ao longo do tempo, sempre suscitaram a reflexão sobre a divisão do poder, da propriedade, sobre a forma de dispor os indivíduos hierarquicamente, sobre a conquista e defesa do território, sobre a produção e distribuição de riquezas. Observe a nossa organização social: vivemos no interior de um território demarcado e administrado pelo Estado, que detém o poder superior e define toda a ordem hierárquica possível. Mas ninguém está acima da lei que, representada pelo Estado institui que somos todos iguais. Definir qual seria o papel do indivíduo em relação ao coletivo e acordar qual seria o rol de direitos e deveres que lhe caberia proteger e reproduzir sempre fez parte dos agrupamentos humanos e foi objeto de discussão entre os homens comuns e eruditos. A questão do Estado e do Poder insere-se nessas questões fundamentais e, nesse contexto, o Estado aparece como um organismo potencialmente capaz de gerenciar tais questões no âmbito do espaço coletivo das relações sociais, capaz de garantir que tais interesses humanos se efetivem em nome de todos, em nome do bem comum. Assim, o Estado tal como o concebemos hoje, é uma instituição criada pelos homens a fim de garantir a sobrevivência, o bem comum, os valores tidos como fundamentais e a manutenção da vida em sociedade. Esses princípios são estabelecidos e definidos pela Constituição Federal. Você já parou para pensar quais são os valores fundamentais protegidos pela nossa sociedade e que o Estado, por sua vez, tem o dever de garantir? Eles figuram no Título I Dos Princípios Fundamentais parágrafos 1º, 2º, 3º e seus incisos, na Constituição Federal Brasileira de 1988. Ou seja, o Estado brasileiro se compromete a proteger os valores ali descritos e criar formas de 11Capítulo 1 – Estado: conceitos e diferentes acepções históricas – uma introdução garantir que os direitos e deveres dos cidadãos brasileiros sejam efetivados1. Mas será que sempre foi assim? Sempre houve uma Constituição como Lei suprema garantida pelo Estado e que deve ser obedecida por todos? Não. Nem sempre foi assim. A partir de agora, vamos descobrir como essa ideia de Estado formou-se ao longo da história. Vamos descobrir se foi intencional, se foi devido a uma necessidade particular de alguns indivíduos, se foi fruto da imposição de alguém, ou se surgiu naturalmente como fruto da interação entre os indivíduos ao longo do tempo. 1.1 A origem da ideia de Estado Ao longo da história da humanidade, a ideia ou o conceito de Estado foi por vezes formulado e reformulado por filósofos, pensadores e intelectuais, adquirindo diferentes conotações e papéis em função das características particulares e específicas de cada momento histórico. De toda forma, o Estado constitui-se em uma das instituições mais importantes das sociedades, pois sempre esteverelacionado à distribuição, consolidação e manutenção da ideia de um poder soberano2, ou seja, o poder que se sobrepõe ao homem comum e atua pelo bem de todos. Essa noção de Estado como detentor de uma posição privilegiada em relação ao indivíduo comum foi alvo de diferentes leituras filosóficas do pensamento social clássico e moderno. Pensamento esse iniciado com as reflexões de Aristóteles (384 a.C. a 322 a.C.), filósofo grego, cujas ideias sobre política, ética e moral3 influenciaram todo o pensamento intelectual medieval ocidental até o pensamento atual. Tal influência configurou esse pensador como um expoente da Filosofia clássica. 1 Texto da Constituição Federal na íntegra. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/legislacao/ const/con1988/CON1988_05.10.1988/CON1988.pdf>. Acesso em: 15 jul. 2012. 2 Soberania: “é o necessário poder de autodeterminação do Estado. Expressa o poder de livre administração de seus negócios. É a maior força do Estado pela qual dispõe sobre a organização política, social e jurídica, aplicável em seu território. No plano externo a soberania significa a independência do Estado em relação aos demais”. (NADER, 2008, p. 132). 3 “Os juízos éticos de valor são também normativos, isto é, enunciam normas que determinam o dever ser de nossos sentimentos, nossos atos, nossos comportamentos. São juízos que enunciam obrigações e avaliam intenções e ações segundo o critério do correto e do incorreto. Os juízos éticos de valor nos dizem o que são o bem, o mal, a felicidade. Os juízos éticos normativos nos dizem que sentimentos, intenções, atos e comportamentos devemos ter ou fazer para alcançarmos o bem e a felicidade. Enunciam também que atos, sentimentos, intenções e comportamentos são condenáveis ou incorretos do ponto de vista moral.” (CHAUÍ, 2000, p. 431). 12 Es ta do , P od er e G es tã o Outra vertente conceitual do Estado, trabalhada adiante, é a originada do pensamento moderno, que referencia os contratualistas – principais pensadores políticos modernos, que viveram entre os séculos XVI e XVIII. Quanto à origem da palavra Estado, sua primeira menção literária é relativamente recente, se levarmos em consideração sua origem enquanto instituição na literatura filosófica clássica. Sobre esse “nascimento” histórico da palavra Estado, elucida Dallari (2011, p. 59) “é certo que o nome, Estado, indicando uma sociedade política, só aparece no século XVI (...) em O Príncipe de Maquiavel4, escrito em (1513)”. Portanto, há pouco mais de quinhentos anos, apenas, é possível refletir sobre essa soberana instituição. É uma denominação recente e historicamente relacionada ao período moderno. 1.2 Pensamento clássico aristotélico sobre o Estado Antes de tornar-se objeto de estudo das Ciências Sociais, mais precisamente da ciência política moderna, os estudos sobre política, poder e Estado remontam à Filosofia clássica, na qual podemos citar como expoente o filósofo grego Aristóteles. Aristóteles nos fornece elementos para compreendermos o que é uma sociedade politicamente organizada. Foi a partir de suas ideias que se passou a pensar em um modelo de civilização cuja organização política seria baseada na cidade política grega, conhecida por polis e por civita em Roma. A polis seria uma cidade autônoma5 e soberana6, ou seja, com capacidade para estabelecer suas próprias leis, instituindo assim a noção de cidadania7, 4 Nicolau Maquiavel (1469 – 1527) foi historiador, escritor e pensador político renascentista italiano e sua célebre obra O Príncipe é considerada um tratado sobre o Estado, sobre o pensamento político moderno. No livro, trata das formas eficazes de como conquistar e manter o poder soberano. É sem dúvida um clássico, um ícone bibliográfico do pensamento político moderno. 5 Autonomia: faculdade de se governar por si mesmo; direito ou faculdade de se reger por leis próprias; emancipação; independência. Ferreira (1999). E também conforme Araújo; Bridi; Motim (2009, p. 153) a autonomia também refere-se à plena soberania do Estado, que faz sua autoridade não depender de outra autoridade. 6 Soberania: ver nota supracitada - nota n. 1. 7 A cidadania decorre da pertença a um Estado-nação e é a afirmação de igualdade entre os indivíduos, equilibrando direitos e deveres. (ARAÚJO; BRIDI; MOTIM, 2009, p. 165). 13Capítulo 1 – Estado: conceitos e diferentes acepções históricas – uma introdução destinando aos homens direitos e deveres organizados sob uma determinada hierarquia de poder, possibilitando a sua participação nas decisões políticas do Estado8. rob lis am ee ha n / C rea tiv e C om mo ns . Antiga Pólis Grega - Atenas. Na leitura de Aristóteles, a polis seria a constituição perfeita da cidade- Estado na ordem de uma evolução natural da associação entre os homens, que começaria com uma fase pré-política, a família, evoluindo para a aldeia até chegar no modelo de sociedade autossuficiente, a polis. Norberto Bobbio (1909-2004) filósofo e historiador do pensamento político, também senador vitalício italiano, discorreu a respeito desta evolução “natural” do poder concebida por Aristóteles: São surpreendentes a duração, a continuidade, a estabilidade, a vitalidade de que deu prova esse modo de descrever a origem do Estado. À medida que apresenta a evolução da sociedade humana como uma passagem gradual de uma sociedade menor para uma mais ampla, resultante da união de várias sociedades imediatamente inferiores, pôde fácil e docilmente ser estendido a outras situações, à medida que as dimensões do Estado, ou seja, da sociedade autossuficiente e como tal perfeita, cresciam, passando da cidade à província, da província ao reino, do reino ao império. (BOBBIO; BOVERO,1996, p. 41). 8 Os gregos inventaram a política (palavra que vem de polis, que, em grego, significa cidade organizada por leis e instituições) porque instituíram práticas pelas quais as decisões eram tomadas a partir de discussões e debates públicos e eram adotadas ou revogadas por voto em assembleias públicas; porque estabeleceram instituições públicas (tribunais, assembleias, separação entre autoridade do chefe da família e autoridade pública, entre autoridade político – militar e autoridade religiosa) e, sobretudo porque criaram a ideia da lei e da justiça como expressões da vontade coletiva pública e não como imposição da vontade de um só ou de um grupo, em nome de divindades. Os gregos criaram a política porque separaram o poder político e duas outras formas tradicionais de autoridade: a do chefe de família e a do sacerdote ou mago (CHAUÍ, 2000, p. 31). 14 Es ta do , P od er e G es tã o Para Aristóteles o homem é um animal político: organizado socialmente com vistas à sobrevivência e ao desenvolvimento. É dessa concepção que nasce a ideia do Estado como instituição que evoluiu por meio do desenvolvimento natural do homem e da sua capacidade de associação voltada para o bem comum. Essa atividade associativa se expandiu gradativamente ao longo do tempo e da história, em função das necessidades de sobrevivência, organização e defesa dos indivíduos. Notemos que a origem da instituição Estado, na filosofia aristotélica, é concebida como natural, entendendo portanto que, para Aristóteles, a família é a forma primitiva de organização social natural do homem, e o Estado sua forma evoluída. O primeiro poder era o do pai, depois do chefe da aldeia, da cidade, do Rei e do Imperador. Aristóteles considerava o Estado como uma instituição suprema, que refletia não as ambições e os desígnios de poucos, mas as necessidades comuns aos homens, que se reuniam por instinto, por possuírem a razão capaz de distinguir o bem do mal, o justo do injusto. O filósofo defendia a ideia de que a vida civilizada seria impossível sema figura do Estado. Ainda é importante frisar que apenas uma parcela restrita da população detinha o direito de participar das decisões políticas na Grécia e Roma antigas. Os critérios para tal divisão do poder baseavam-se em princípios hierárquicos de propriedade de terras e hereditariedade. Um termo correspondente ao da polis grega, na concepção romana, era o civitas, formado inicialmente por membros das famílias patrícias romanas. Assim como no Estado grego, o romano fundava-se na participação direta do povo nas decisões políticas, lembrando sempre que as decisões políticas estavam nas mãos de uma pequena elite, responsável pelos assuntos gerais e pelos interesses da população como um todo. O poder estava associado à ideia de hereditariedade, nacionalidade e propriedade de terras. Era um momento histórico constituído basicamente por sociedades agrárias, escravistas e patriarcais, ou seja, mulheres e escravos não podiam participar das decisões. Na Grécia, por exemplo, quem nascia em uma das unidades sociopolíticas, denominadas demos (centros de poder político separados segundo divisões territoriais), podia participar das decisões. Daí a expressão democracia9, conceito que analisaremos em um capítulo oportuno. 9 Na concepção aristotélica, democracia é a forma de governo do povo, de todos os cidadãos, ou seja, 15Capítulo 1 – Estado: conceitos e diferentes acepções históricas – uma introdução Em Roma, aqueles que não tinham terras, os pobres, formavam a plebe e tinham o direito de eleger um representante para garantir que seus interesses fossem assegurados junto aos que detinham o poder, ou seja, os patrícios, membros das famílias ricas romanas detentoras de grandes propriedades de terras. ht tp: //o bv iou sm ag .or g/a rch ive s/2 00 9/0 2/a _re pu bli ca_ de _p lat ao _u ma _a lte rn ati va _ pa ra_ a_ org an .ht ml . Classe Econômica Proprietários de terra, artesãos e comerciantes Garante a sobrevivência material da sociedade Guerreiros Responsável pela defesa da cidade Classe Militar Sábios, legisladores Garante o governo da cidade sob as leis Classe dos Magistrados Esquema de organização social na República de Platão É importante destacar que aqui referimo-nos a uma época anterior à formação dos impérios, por exemplo, o império de Alexandre, “O Grande” (356 a.C.) na Grécia, e os impérios dos césares em Roma, cujo precursor foi Caio Julio Cesar (100 a.C.). Portanto, a noção de uma origem da organização política de uma sociedade remonta a pelo menos 350 a 400 anos antes da Era Cristã, com o surgimento de conceitos como democracia, República, formas de governo e de divisão do poder com participação popular, e a separação entre a ordem pública da privada. Esse período anterior aos impérios é que inspirou o pensamento filosófico clássico sobre a organização do poder e o papel do Estado na sociedade. Depois disso, como explica Chauí10 (2000), quando Grécia e Roma sucumbiram à Era dos Impérios, iniciou-se um período de decadência daqueles que gozam dos direitos de cidadania. (BOBBIO; MATTEUCI; PASQUINO, 1995). 10 Marilena Chauí, filósofa e historiadora de filosofia brasileira. 16 Es ta do , P od er e G es tã o da política com o desaparecimento da polis e da res publica (expressão latina para coisa pública, em contraposição à ideia de propriedade privada), ou seja, república11, retrocedendo a um regime político despótico12 e sem participação popular, característico dos imperadores. A noção de Estado como síntese sofisticada da organização política dos homens reflete as ideias de Aristóteles e deve ser entendida como uma espécie de resultado da predisposição associativa natural dos homens, com vistas ao bem comum, à sua sobrevivência e desenvolvimento. Essa noção acima mencionada trata-se de uma concepção naturalista da gênese do Estado, que evoluiu do poder familiar para as formas mais sofisticadas da organização social ao longo da história. Vemos claramente nesta concepção a relação direta do Estado – organização política do poder – objetivando o bem comum e a defesa do coletivo como necessidades primárias do homem, e, portanto, natural, imprescindível. Essa visão foi, de certa forma, modificada pelos pensadores modernos, como veremos a seguir. Para os pensadores modernos, o Estado continua sendo uma instituição a serviço do bem comum, mas sua constituição não é considerada natural por parte dos autores contratualistas. Ao contrário, é uma construção humana racionalizada, calculada e acordada pelos indivíduos, ou seja, é como pensar a construção histórica da sociedade, os indivíduos optam por determinados regimes políticos, e esses regimes não são resultado de um desenvolvimento natural e evolutivo das sociedades, são resultado de uma escolha. Ao dizermos que se trata de uma escolha, podemos perceber a importância da participação da sociedade no processo de tomada de decisão política de seu país, escola, comunidade, empresa, e assim por diante. 11 Modernamente refere-se a um sistema democrático de governo. Falaremos exaustivamente sobre a República como tal, em um capítulo oportuno. 12 Despotismo: forma de governo em que o detentor do poder o exerce de maneira absoluta, sem limites e arbitrária, conforme sua própria vontade. (BOBBIO; MATTEUCI; PASQUINO, 1995). Para um maior aprofundamento das questões de que tratam as notas 11 e 12, consultar as seguintes Referências: BOBBIO; MATTEUCI; PASQUINO (1995) “Dicionário de Política” da Editora UNB. BOTTOMORE; OUTHWAITE, (1996) “Dicionário do Pensamento Social do Século XX” da Editora Jorge Zahar. E ainda DALLARI (2011) “Elementos de Teoria Geral do Estado” da Editora Saraiva. 17Capítulo 1 – Estado: conceitos e diferentes acepções históricas – uma introdução 1.3 O Estado na concepção dos pensadores contratualistas No pensamento formulado pelos autores contratualistas, o Estado é um produto da vontade humana, consensual e pactuada entre os homens. Estes autores defendem a associação humana como estritamente racional e não natural, e o Estado, portanto, produto de uma escolha. As origens históricas das ideias contratualistas podem ser encontradas no período compreendido entre o final do século XVI e o século XVIII, na obra de autores considerados como expoentes desta escola de pensamento. São eles: Thomas Hobbes (1588-1679), John Locke (1632-1704), Montesquieu (1689-1755) e Jean Jacques Rousseau (1712-1778). Thomas Hobbes (1588-1679) Do mí nio P úb lic o Biografia Matemático, teórico político e filósofo inglês. Viveu em uma época em que a Inglaterra passava por muitas guerras, o que pode ter influenciado suas ideias marcantemente pessimistas sobre o homem e a sociedade. Nasce no ano em que a Inglaterra estava prestes a ser invadida pelos espanhóis em uma batalha que seria conhecida como a “Invencível Armada”, tentativa frustrada por parte dos espanhóis, que sequer desembarcaram em terra. Precisou exilar-se em Paris devido à Guerra Civil Inglesa (entre 1642 a 1649). Principais Obras Leviatã (1651): o nome da obra seria uma referência ao “monstro marinho” citado na bíblia em Jó. Na obra de Hobbes, o Leviatã é mencionado como metáfora de um poder central que a todos alcança com seus “braços ou tentáculos”. Síntese das Ideias O soberano, na figura do Príncipe ou do Monarca, possui poderes ilimitados e o Estado é o único capaz de garantir a ordem e a paz social. O homem no “estado de natureza” é uma ameaça constante ao seu semelhante, e por isso, precisa ser dirigido por um poder soberano. O Estado é uma evolução de um mundo caótico para um mundo organizado politicamente. Não era contrário ao regime da Monarquia absolutista.18 Es ta do , P od er e G es tã o Do mí nio P úb lic o Síntese das Ideias Defesa dos direitos naturais dos homens, ou seja, aqueles com os quais já nascemos e que fazem parte do rol de direitos fundamentais (jusnaturalismo), dos direitos políticos e dos direitos individuais. O homem no “estado de natureza” vive sem a regulação de normas jurídicas, o que considerava como irracional e primitivo em relação à sociedade politicamente organizada. O Estado representaria o tratamento isonômico a todos os indivíduos, considerados iguais perante a lei. Seria, portanto, um Estado justo. John Locke (1632-1704) Biografia Filósofo inglês e defensor do liberalismo, ou seja, das ideias liberais de defesa das liberdades individuais e da propriedade privada. Seus estudos influenciaram as Revoluções Francesa, Inglesa e Estadunidense. Principais Obras Ficou conhecido por sua obra Dois Tratados sobre o Governo (1689). Do mí nio P úb lic o Síntese das Ideias Famoso pela ideia da separação dos Poderes: Legislativo; Executivo e Judiciário. O homem possui um desejo universal pela paz, portanto no “estado de natureza” o homem não é vil. O Estado deve ser dividido para que o poder não volte a concentrar-se nas mãos de um único homem, e estes poderes devem ser limitados e vigiados em sua atuação um em relação ao outro. Charles de Montesquieu (1689-1755) Biografia Político, filósofo e escritor francês. Aristocrata e filho de nobres, recebeu uma educação jurídica e humanista. Criticou severamente a Monarquia absolutista. Principais Obras Sua célebre obra: O Espírito das Leis (1748). 19Capítulo 1 – Estado: conceitos e diferentes acepções históricas – uma introdução Do mí nio P úb lic o Síntese das Ideias Rousseau acreditava que todos os homens eram bons por natureza e que a vida em sociedade é que os corrompia. O estado de natureza é o estado de pura liberdade; não o concebe como primitivo ou caótico em relação ao “estado de sociedade”, sua transição é um fato, fruto de um “acordo fictício” realizado, ou pactuado entre os homens. O Estado politicamente organizado deve garantir a soberania popular e a liberdade individual. Principal defensor da democracia. Jean Jacques Rousseau (1712-1778) Biografia Filósofo, pensador político e compositor autodidata. Suíço, nasceu em Genebra, foi criado pelo pai até os dez anos de idade e posteriormente foi viver no campo, onde recebeu educação cristã e humanista. Suas ideias influenciaram diretamente os ideais da Revolução Francesa. Também criticou severamente o regime monárquico absolutista. Questionou o fato de a democracia representativa constituir a melhor forma de governo por temer que o político eleito representante, uma vez no poder, passasse a representar seus próprios interesses. Acreditava no autogoverno do povo. Principais Obras Sua principal obra é intitulada: Do Contrato Social (1762). Esses pensadores, embora tenham desenvolvido premissas diferentes sobre o poder soberano13, concordam que a associação dos homens por meio do “contrato social”14 é um movimento civilizatório que estabelece a vida em sociedade, organizada por meio de regras capazes de garantir a sobrevivência dos homens e seu desenvolvimento mútuo. Esta forma de organização social se contrapõe ao “estado de natureza”15. No “estado de natureza” os homens viveriam supostamente em estado de solidão, originariamente isolados uns dos outros. Tal hipótese serve como parâmetro para a concepção de que, fora da sociedade, não há condições razoáveis de vida para os homens. 13 Poder soberano: aquele que está acima dos indivíduos e que visa à manutenção do bem comum. 14 O contrato social é um termo utilizado para designar a associação voluntária dos homens à vida social, à sociedade, no sentido comunitário e politicamente organizada. É uma construção da vontade e da razão humana em prol da sobrevivência e da preservação dos valores sociais fundamentais. 15 O estado de natureza é uma metáfora utilizada pelos contratualistas para designar a vida fora da sociedade politicamente organizada. Remete à ideia do homem em seu estado animal original ou de uma sociedade sem regras ou leis. 20 Es ta do , P od er e G es tã o É importante percebermos aqui que esse modelo civilizatório foi fruto da organização social europeia do período, e que, devido à sua precedência histórica filosófica e mais tarde, tecnológica, científica, material e militar sobre outras nações e civilizações, tornou-se modelo para os países ocidentais e não ocidentais. Nosso modelo de civilização e organização foi por este influenciado. E esses pensadores contribuíram para a formação da nossa concepção ocidental de Estado, contribuíram com a ideia de que sem o Estado a vida social ficaria comprometida. Era um momento histórico em que estava vigente o poder monárquico absolutista, que estudaremos em capítulo próprio. Alguns desses pensadores se posicionaram a favor da monarquia e outros, contra. Independentemente do regime de governo, vamos pensar: seria possível imaginar a nossa vida sem a presença reguladora do Estado? Seria possível imaginar que pela simples associação todos os indivíduos simplesmente viveriam em harmonia e de acordo com os valores sociais, sem a interferência do Estado como ordem normativa e jurídica, ou seja, como Lei? De qualquer forma o que é importante perceber é que, a partir deste período, o Estado passou a ser visto como uma instituição central, diferente do pensamento clássico e dos povos antigos (gregos e romanos antes dos imperadores) que concebiam o poder como algo experienciado em coletividade, em público. A partir dos contratualistas será o Estado a instituição que fará a administração do poder entre os homens, concepção que se estende até os dias hoje em nossa própria sociedade. Mas não podemos nos esquecer de que isto foi produto de uma escolha, de um contrato, um acordo entre os homens. 1.4 Ideário dos autores contratualistas É a partir do ideário contratualista que se torna possível entender a concepção atual de Estado. Para tanto, é necessário conhecer as ideias desses autores, as localizando em suas épocas, em seus contextos. Thomas Hobbes acreditava que antes da constituição de uma sociedade baseada no Estado, enquanto poder soberano, os homens viviam em uma espécie de estado de natureza que significava os estágios mais primitivos da história dos homens. Hobbes também invoca a noção de estado de natureza para se referir à ideia de caos generalizado em que vivem os indivíduos quando não estão sob o direcionamento de um poder que lhes seja superior, capaz de conter suas paixões, egoísmos e impulsos à agressividade. 21Capítulo 1 – Estado: conceitos e diferentes acepções históricas – uma introdução Hobbes acreditava que os homens precisavam ser controlados em seus desejos ilimitados porque, em seu estado natural, são egoístas e violentos. No estado de natureza, que é uma ficção – contrária à noção de sociedade politicamente organizada – prevalece um estado de guerra de todos contra todos16, no qual o homem não é senão uma ameaça para si mesmo e para os outros, um estado em que predominam as paixões humanas (misérias, egoísmos, violência, o homem na sua condição animalesca) e não a razão. Como no estado de natureza todos os homens são iguais e potencialmente perigosos, vive-se o temor de que uns agridam ou roubem os outros, e, desta forma, seus atos são também potencialmente agressivos, como defesa prévia, à possibilidade de agressão do outro. Atualmente serviria como exemplo aquele ditado popular que diz: “é a lei da selva, o mais forte sobrevive”, ou até mesmo a frase do próprio Hobbes “O Homem é o lobo do homem”17. Nestecaso, o mais forte domina o mais fraco. Vamos imaginar uma situação diária com a qual convivemos quase todos os dias, como por exemplo o comportamento potencialmente perigoso dos indivíduos no trânsito: como seria a vida se não houvesse leis que regulassem nossa convivência diária neste espaço público? É por isso que o poder do Estado é soberano, superior aos homens, porque no âmbito da igualdade os homens são potencialmente perigosos. Isso exige, na concepção de Hobbes, um poder que se coloque acima de todos. Observe que Hobbes chama a atenção para o fato de que os indivíduos não poderiam governar a si mesmos e defender seus interesses, sem um governo que os dirigisse e garantisse a ordem. É neste momento que, pela interposição da razão humana, os homens optam por celebrar o contrato social, em que renunciam a seus desejos e aos seus direitos naturais de autopreservação e os transferem ao Estado, uma espécie de corpo artificial, um poder superior, capaz de garantir a preservação de todos e a paz social. O Estado será, portanto, o guardião do estado de sociedade. 16 HOBBES, Leviatã, Parte I, Cap. XVIII. In: Dallari, 2011, p. 24 . 17 Essa máxima aparece na obra Sobre o Cidadão, de Hobbes, em que, juntamente com outras obras do autor refere-se ao “estado de natureza”, ou seja, aquele que caracteriza o homem antes do seu ingresso no estado social. In: HOBBES, Thomas (1983), Coleção Os Pensadores, Abril Cultural. 22 Es ta do , P od er e G es tã o Para Hobbes, o estado de natureza está ligado à ideia de barbárie, e o estado de sociedade está ligado à ideia de civilização, de ordem, de autopreservação. Porém, o estado de natureza não se refere apenas ao homem primitivo; segundo o autor, a qualquer momento da história podemos retroceder a este estado, a esta condição particular, caso o Estado falhe no seu papel de soberano de manter a ordem e o controle social. Imaginemos uma cidade acometida de uma catástrofe ambiental, uma enchente que torne tudo um caos. Quais são as primeiras notícias que a mídia costuma veicular passados alguns dias? “Saques a comércio, residências, os cidadãos com medo e inseguros”18. E por que isso ocorre? Geralmente porque o Estado não consegue garantir a segurança pública e a ordem de maneira efetiva, e porque os homens encontram-se circunscritos a necessidades básicas de sobrevivência, à sua condição natural. Voltamos à lei da selva. E como o Estado mantém a ordem e o controle social? Para tanto, o Estado possui o “monopólio da violência”, segundo Cavalcante (1991), ou conforme Max Weber (1982, p. 98), “pretende, com êxito, o monopólio do uso legítimo da força física, dentro de um determinado território”. Ou seja, podemos dizer que o Estado detém a prerrogativa do uso da força física e deve fazer uso desta, nos limites do seu dever e compromisso de manter a ordem, em nome de todos e do bem comum. Esse contrato retirou do indivíduo comum a possibilidade de fazer justiça com suas próprias mãos e transferiu ao Estado este dever. O Estado pode fazer uso da força física, dentro dos limites estabelecidos por lei. Se o Estado perder de vista estes objetivos, ocorre abuso de poder e desvio de finalidade, questões que atualmente têm estado presentes na mídia brasileira, com diversas denúncias sobre abusos cometidos pelo Estado, representado por seus agentes, pelos policiais. Quando isso ocorre, a sociedade entra em um estado de alerta e insegurança, e é imprescindível a participação dos cidadãos, comunidades, escolas e instituições sociais nesse debate. Um policial também é um servidor público, que tem o dever de assegurar a vida, a ordem e a paz, porque age em nome do Estado e não pode desviar-se dessa finalidade e agir conforme seus próprios impulsos e de acordo com a sua própria vontade, pois isso é intolerável em uma sociedade civilizada, racional e regida por leis. 18 Disponível em: <http://oglobo.globo.com/pais/apos-enchente-moradores-de-cidades-de-santa- catarina-temem-saques-2700290>. Acesso em: 26 fev. 2012. 23Capítulo 1 – Estado: conceitos e diferentes acepções históricas – uma introdução Hobbes ainda tratou da questão do controle social. Neste ponto acreditava que o poder do governante não deveria sofrer limitações e que deveria ser respeitado com obediência, pois mesmo tornando-se um tirano, um mau governo ainda seria melhor do que o estado de natureza. Uma interpretação possível do pensamento de Hobbes seria a de que o soberano é aquele que detém o poder de todos para agir ilimitadamente em nome de todos. É importante contextualizar o momento em que Hobbes viveu: um período de governo monárquico absoluto e com muitas guerras. Hobbes não defendia necessariamente a tirania, mas sim o poder soberano, porque acreditava que os indivíduos não eram capazes de viver em ordem por si mesmos e temia o constante horror das guerras. Atualmente, sabemos que governos cuja concentração do poder está nas mãos de uma única pessoa podem tornar-se tiranos e até mesmo uma ameaça para os cidadãos. Temos exemplos atuais das revoltas do mundo árabe contra governos ditatoriais, mas temos exemplos no próprio Brasil, que viveu um período ditatorial entre as décadas de 1964 e 1985. Temos também exemplos de regimes autoritários dentre os vizinhos latino-americanos, como Cuba, governada por Fidel Castro de 1976 a 2008, e Venezuela, por Hugo Chávez. Outro exemplo universalmente marcante do perigo de um governo autoritário foi a ditadura instaurada na Alemanha nazista entre os anos de 1933 e 1945 por Adolf Hitler. Outro importante autor da corrente contratualista foi John Locke, considerado um defensor do liberalismo19, doutrina político-filosófica que mais tarde, no século XIX, defenderá o livre-comércio, a democracia e a autodeterminação nacional. Vamos estudar o liberalismo nos capítulos subsequentes. Porém, é necessário que se faça um parênteses nesse ponto, foi 19 Doutrina político-filosófica moderna com desdobramentos econômicos e sociais, que defende, sobretudo a liberdade individual e a autorrealização dos indivíduos, que pretende autonomizar a livre-competição dos indivíduos na esfera social e econômica, e defende o Estado como garantidor da lei comum e propulsor do desenvolvimento e das iniciativas autônomas da sociedade civil da maneira menos interventora possível. (BOTTOMORE; OUTHWAITE, 1996). 24 Es ta do , P od er e G es tã o o liberalismo a inspiração para a retomada das ideias acerca da democracia20 na era moderna, e também da demarcação da separação da sociedade civil enquanto esfera econômica e privada do Estado, entendido como esfera política pública, burocrática e regradora da vida social. Locke entende o Estado moderno como público. Essa separação entre as instâncias públicas e privadas da organização social é uma construção do pensamento político moderno. Locke acreditava na coesão social21, ou seja, na ausência de conflitos, como condição necessária para a acumulação do capital22. A coesão social, aqui entendida como integração social, seria possibilitada pelo Estado. Diferente de Hobbes, Locke defendeu a divisibilidade do poder, para quem o ser humano é por natureza racional, livre e autônomo. O “estado de natureza” em Locke representava a irracionalidade e a ausência de regras jurídicas, que são as únicas capazes de garantir essa liberdade inata aos homens. A ordem jurídica23 deveria garantir a boa convivência social, e o contrato social seria um acordo entre os homens, que se concretizaria não pela renúncia dos direitos individuais, como defendia Hobbes, mas pelo consentimento mútuo entre os homens, em que ninguém estaria acima ou representaria sozinho a lei. Era contrário às tendências absolutistas do poder defendidas por Hobbes, acreditava que o Direito e a justiçase estabelecem de forma igualitária a todos, como forma de se preservar a liberdade individual, os direitos, a propriedade24 e a liberdade econômica. 20 Ver nota supracitada, nota n. 8. 21 A ideia de coesão social refere-se a um conceito sociológico elaborado por Émile Durkheim (1858 – 1917), autor considerado um dos fundadores da Sociologia. Neste texto utilizaremos a expressão coesão social ligada mais precisamente à ideia de integração social de um modo geral, embora o conceito seja mais amplo: refere-se à integração dos indivíduos no interior de uma sociedade por meio da divisão social do trabalho, das tarefas que contribuem para o bem social coletivo. Para melhor aprofundamento sobre o conceito, sugerimos a obra Sociologia, um olhar crítico, de Araújo, Bridi, Motim, 2009. 22 O sistema capitalista já era vigente neste período, mas os estudos relacionados ao processo de acumulação do capital ganharam destaque mais tarde na obra de Karl Marx (1818 a 1883), economista e cientista social alemão. 23 A ordem jurídica é característica da sociedade organizada segundo a lei. 24 “Propriedade, para esses fins, inclui vida, a liberdade e as posses” de um indivíduo (BOTTOMORE; OUTHWAITE, 1996, p. 421). 25Capítulo 1 – Estado: conceitos e diferentes acepções históricas – uma introdução Locke acreditava que mesmo no estado de natureza os homens eram seres morais, e que ao abandonarem esse estado por meio de um acordo concederam poderes limitados de coerção ao Estado, que não poderia ultrapassar tais limites, porque a ordem decorre da legalidade, do direito e da justiça e não da força violenta e suprema do aparelho estatal. A lei e os princípios e valores sociais nela expressos não deveriam ser violados nem pelos homens e nem mesmo pelo próprio Estado. O acordo, o pacto social realizado pelos indivíduos, é o movimento gerador do direito, da justiça, que deveria ser observado, protegido e promovido pelo Estado. Observemos por um momento a evolução do conceito de Estado e poder em relação à Hobbes e Locke. Enquanto Hobbes defendia o poder todo concentrado nas mãos de um único soberano, Locke entendia o Estado como uma instituição a serviço da sociedade e amparada nos limites da legalidade, ou seja, da Lei. O Estado continua soberano, mas o poder aqui sai da esfera individual e retorna para a perspectiva coletiva, o Estado deve soberanamente regular e controlar a sociedade, mas de maneira isonômica, ou seja, de maneira igualitária e justa. Locke falou em um governo civil à semelhança da polis grega, referia-se ao domínio da sociedade civil, do cidadão politicamente ativo, compreendia a ideia de uma sociedade civilizada, baseada no princípio da legalidade, em um sistema de leis. Ressurge aí os delineamentos de uma concepção de Estado Democrático, baseado na garantia de direitos, na justiça e na igualdade, tal como o concebemos atualmente. 26 Es ta do , P od er e G es tã o Um exemplo atual desta concepção de Estado de John Locke é o inciso III, Parágrafo Único, do art. 2º da Lei n. 9.784/1999 (Lei que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal) que diz: Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de: I - atuação conforme a lei e o Direito; III - objetividade no atendimento do interesse público, vedada a promoção pessoal de agentes ou autoridades; O que significam estes incisos e que princípios a lei está defendendo no âmbito da atuação do Estado? Defendem o princípio da legalidade e da supremacia do interesse público, bem como os princípios da impessoalidade e da isonomia. Significa que o Estado e seus agentes, ou seja, os servidores públicos, não podem desviar-se do que manda a lei, não podem desviar-se de suas finalidades, devem atuar dentro da lei com fins a atingir o interesse público e não podem utilizar-se de seus cargos a fim de obterem vantagens sobre os cidadãos comuns. A partir de John Locke e dessa concepção de separação da esfera pública e privada da institucionalização das relações políticas, Montesquieu, nosso terceiro autor contratualista, ocupou-se de pensar qual seria então a estrutura ideal das bases legalistas do Estado e suas formas de atuação. No contexto do pensamento contratualista também defendeu a tese de que a sociedade não existiria sem um governo. Aqui seria apropriado mais uma vez nos perguntarmos: a sociedade não existiria sem um governo? Após aprender as concepções de Hobbes e John Locke acerca do Estado, um defendendo o poder concentrado e outro o poder institucionalizado e legalista, poderíamos nos questionar se seria possível que nossa sociedade fosse capaz de se organizar sem um poder dirigente. Lembremo-nos que para os contratualistas a organização social e política da sociedade, em torno de um poder soberano, não ocorreu por obra do acaso, mas como fruto de um contrato social, de uma vontade, de um acordo entre os homens, portanto, de uma escolha. Essas reflexões nos levariam ainda a outra questão: qual seria a forma ideal de atuação deste Estado? A importância de Montesquieu para o pensamento político moderno se deu devido à defesa que realizou, da separação dos poderes do Estado entre Legislativo, Executivo e Judiciário25, para que houvesse uma limitação das 25 A separação dos poderes é típica do Estado democrático de direito. O Poder Legislativo encerra as funções de legislar, prescrever e fiscalizar as leis. O Poder Executivo tem por função fazê-las cumprirem-se no interior da sociedade, além de efetuar a prática dos atos de chefia do Estado, 27Capítulo 1 – Estado: conceitos e diferentes acepções históricas – uma introdução atuações de cada um no cumprimento de seus papéis, e da mesma maneira, um autocontrole da máquina estatal de si mesma, no sentido de evitar qualquer abuso de poder por parte do soberano, a fim de impedir qualquer tipo de tirania. ht tp: //p t.s cri bd .co m/ do c/2 39 86 83 2/D ire ito -C on sti tuc ion al- Po de r-E xe cu tiv o- Lo Divisão de poderes 3 Poderes Legislativa – Poder Legislativo Função Administrativa – Poder Executivo Função Judicial – Poder Judiciário Estado Poder Função Outro pensador político contratualista e igualmente importante, foi Jean Jacques Rousseau. Em sua principal obra intitulada Do Contrato Social (1762), o autor adotou uma posição muito distinta da de Hobbes quanto ao homem no estado de natureza e quanto ao estabelecimento do poder político soberano. As ideias de Rousseau influenciaram a Revolução Francesa (1789)26 e a defesa dos direitos inalienáveis dos homens; inalienáveis porque eram por ele concebidos como naturais e, portanto, universais e invioláveis. Rousseau acreditava que o homem em sua essência era bom, a corrupção do homem se dá na vida em sociedade. Para Rousseau os homens nascem livres e iguais. de governo e de administração. O Poder Judiciário, além de administrar a justiça, é considerado o “guardião da lei”. In: Moraes (2009). 26 A Revolução Francesa alterou profundamente o quadro político da França em 1789, o povo revoltado contra os privilégios do Clero e da Monarquia derrubou o regime monárquico e proclamou a defesa dos direitos dos homens sob princípios que seriam universalmente reconhecidos nos regimes democráticos subsequentes: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Para conhecer mais sobre a Revolução Francesa acesse: <http://www.infoescola.com/historia/revolucao-francesa/>. Acesso em: 22 out. 2011. Podemos também citar, para maior aprofundamento do tema, a obra A Era das Revoluções, de autoria de Eric Hobsbawn, publicada em São Paulo pela Paz e Terra em 2003. 28 Es ta do , P od er e G es tã o A liberdade em Rousseau é vista como um bem supremo,e a associação dos homens por meio do contrato social configurou uma espécie de limitação social à liberdade suprema e inata dos indivíduos. Essa associação livre e consensual dos homens por meio de um contrato constituirá o “estado de sociedade” que, em detrimento da liberdade individual, vai instituir a liberdade civil, mediante certos limites da atuação dos homens e do Estado, impostos por uma ordem jurídica. Para Rousseau, o povo é o único titular da soberania e o interesse do Estado deve corresponder ao interesse e à vontade geral, ao interesse comum. Está presente nas ideias de Rousseau a defesa de alguns princípios da democracia, em que a vontade da maioria obriga o todo, partindo-se do pressuposto de que todos os homens são iguais perante a lei. As leis devem, portanto, garantir a liberdade e a igualdade de todos. Rousseau destaca-se dentre os autores contratualistas no sentido de conceber a igualdade total dos indivíduos, e a lei como um mecanismo garantidor desta igualdade. Locke e Montesquieu defenderam a institucionalização legal do poder e da atividade estatal, mas Rousseau é o autor que deixou claro que o poder emana do povo, é apenas administrado pelo Estado: se um Estado deixar de atender aos interesses comuns, perde sua razão de ser. Por que é importante conhecer as ideias desses autores? Porque hoje seus ideais se transformaram em lei e foram sendo progressivamente incorporados pela nossa Constituição Federal. Há instituições internacionalmente reconhecidas que tratam também de garantir que a igualdade, a liberdade e a dignidade da pessoa humana não sejam tolhidas por abusos de poder e desvios de finalidade por parte dos Estados-nação ao redor do mundo. Como exemplo é possível citar a ONU (Organização das Nações Unidas), mas também podemos observar esses exemplos no nosso dia a dia, principalmente no âmbito da administração pública. A administração pública é regida por princípios legais que garantem aos servidores públicos o tratamento respeitoso por parte dos seus superiores, proíbe os abusos de poder e protege os servidores no âmbito do exercício de suas atribuições, ao mesmo tempo em que também limita a atuação desses mesmos servidores quando agem em nome do Estado. A lei também garante proteção aos cidadãos contra os abusos do Estado, que deve agir dentro dos limites por ela estabelecidos, sob pena de infringir princípios constitucionais assegurados em nosso país desde 1988. 29Capítulo 1 – Estado: conceitos e diferentes acepções históricas – uma introdução A concepção atual de Estado como instituição política central e fundamental da vida social é uma construção histórica e uma opção dos homens que acordaram pela institucionalização de um poder soberano. Vimos ao longo deste capítulo que o poder do Estado esteve, por vezes, concentrado nas mãos de poucos, nas mãos de um único indivíduo e que, com o passar do tempo, verificou-se que tal poder deveria ser posto a serviço de todos, do bem comum e dos interesses da coletividade. A sociedade politicamente organizada é fruto da construção de um modelo civilizatório europeu moderno em que a paz e a ordem social configuram-se como uma condição da vida em sociedade e é o Estado a instituição escolhida pelos indivíduos para administrar seus interesses e garantir o bem comum, mas que, embora soberano, deve agir em conformidade com a lei, afastando qualquer concepção totalitária e autoritária de poder. Trabalhamos o conceito de Estado como instituição soberana e o seu papel na constituição política da sociedade, desde as concepções clássicas até o pensamento moderno e seus principais pensadores. Estudaremos no próximo capítulo, de maneira mais específica e detalhada, a questão da democracia na sociedade moderna e seu papel na formação do Estado. Síntese 2 CapítuloPoder, dominação e democracia Como vimos no capítulo anterior, as sociedades humanas estabeleceram e institucionalizaram o poder politicamente, organizaram-se para garantir a manutenção da vida e das condições de desenvolvimento dos homens, de suas potencialidades e de seus esforços, direcionados a objetivos mais ou menos comuns a todos os indivíduos. Esse poder político foi organizado de maneira hierarquizada, com regras que devem ser por todos obedecidas visando ao bem comum. É preciso lembrar que quando falamos em poder institucionalizado, queremos dizer que é um poder soberano que se sobrepõe a todos os indivíduos. Esse é o poder estatal, analisado no capítulo anterior. Estudaremos neste capítulo a democracia segundo o pensamento clássico aristotélico, como uma das formas de governo, ou seja, como uma das formas de organização, titularidade e exercício do poder soberano ou estatal. Também estudaremos a concepção moderna da palavra democracia e poderemos refletir sobre seu real significado e importância para a história das sociedades humanas. Sabemos que a democracia, nos dias de hoje, é vista como a perspectiva concreta de conquista e ampliação de direitos no interior da nossa sociedade, a sociedade moderna. Mas já parou para pensar como foi que se chegou a essa concepção de democracia? Ou por que todas as vezes em que alguém reclama pelos direitos conquistados coletivamente, a palavra democracia surge quase como uma palavra de ordem? Neste capítulo veremos que existem critérios teóricos que norteiam a discussão sobre as formas de organização do poder na sociedade, sua distribuição e o nível de sujeição dos homens em relação ao poder institucionalizado. Esses critérios estão presentes em uma dada classificação tradicional, elaborada por Aristóteles, que leva em consideração o número de titulares no poder. Porém, o número de pessoas no poder não é um 32 Es ta do , P od er e G es tã o critério exclusivo quando se trata de discutir as formas de governo. Para além da questão quantitativa, a discussão em torno das formas de governo também leva em consideração um critério qualitativo que corresponderia ao questionamento sobre qual seria a forma ideal de governo já estabelecida ao longo da história. A questão que a Filosofia e a Ciência Política, tanto clássica quanto moderna, nos faz refletir é a seguinte: qual seria o governo ideal, aquele que melhor traduziu os anseios dos homens que buscam a melhor forma de viver em sociedade, e, por conseguinte, a melhor sociedade para se viver? 2.1 Aristóteles e as três formas de governo: uma visão clássica e tradicional da democracia e da distribuição do poder Conforme a tradicional classificação de Aristóteles, são três as formas de governo possíveis que se diferem entre si de acordo com o número ou a quantidade de titulares no poder. São elas: a Monarquia, a Aristocracia e a Democracia1. A Monarquia é uma forma de governo caracterizada pelo poder e domínio de um só indivíduo. O monarca é, portanto, o soberano absoluto, e representa a lei de maneira individualizada. O monarca é o soberano e ao mesmo tempo é a lei. A Aristocracia configura o governo de poucos, dos melhores, dos considerados mais bem preparados e capazes, configura um governo composto por algum tipo de elite. A Democracia, terceira forma de governo, configura o governo de todos, e neste sentido a ideia de democracia é atribuída à noção de liberdade e igualdade. Trata-se da participação dos cidadãos nas decisões políticas, reunidos em assembleia. Aristóteles, ao discorrer sobre as formas de governo, também estabeleceu uma distinção entre o que denominou de formas de governo puro e as formas de governo impuro. As formas de governo puro corresponderiam àquelas em que o titular ou titulares do poder soberano exercem tal poder tendo como norte de suas ações o interesse comum, enquanto que nas formas de governo 1 Aristóteles trata das formas de governo naobra A Política, livros III e IV. 33Capítulo 2 – Poder, Dominação e Democracia impuro, prevaleceria o interesse pessoal e particular dos governantes sobre o interesse de todos, ou seja, sobre o interesse comum e geral da coletividade. As formas de governo impuro corresponderiam à degeneração do poder pelo Estado, em que, no lugar de realizar a manutenção do interesse coletivo na gestão dos negócios públicos, o governante usurpa o poder em prol de interesses próprios. Neste sentido, a monarquia, na qual o soberano não respeitasse as leis, degeneraria em tirania, a aristocracia degeneraria em oligarquia usurária2 e a democracia em demagogia3. No pensamento clássico, a democracia deve ser entendida como uma forma de governo em que o titular do poder político e soberano é o povo. Significa o poder de todos, o poder da maioria, em oposição à ideia do poder de poucos (aristocracia), ou do “poder de um” (monarquia). Essa concepção, elaborada por Aristóteles, traduz a titularidade e o exercício do poder por todos, lembrando que a ideia de todos estava ligada à questão da polis grega, ou seja, traduz o governo de todos aqueles que gozavam dos direitos de cidadãos. Não se estendia, portanto, aos escravos, mulheres e estrangeiros. Os cidadãos gregos das cidades-Estado, ou polis, como titulares de direitos, tomavam decisões coletivas de maneira direta, reunidos na Ágora (praça pública), local destinado à reunião para discussão das questões políticas e de deliberação das questões coletivas, por meio do voto direto. 2 Oligarquia: governo de poucos em benefício próprio. Um exemplo da oligarquia no Brasil foram os coronéis, que se revezaram no comando do Brasil entre os anos de 1889-1930, na política denominada “política café-com-leite”. Para ler mais sobre o assunto acesse: <http://www.infoescola. com/politica/oligarquia/>. Acesso em: 23 out. 2011. 3 Corrupção e manipulação da maioria. Rousseau, por exemplo, via o sistema representativo moderno com muito pessimismo, já que considerava o parlamento e seus membros representantes e mandatários do povo como passíveis de corrupção, o que significava, portanto, risco à violação da liberdade como direito inalienável e valor supremo da sociedade. O ideal de democracia rousseauniano era, portanto, a figura da democracia direta exercida pelo povo em assembleia. In: Jean Jacques Rousseau, Coleção Os Pensadores (1983), Editora Abril Cultural. 34 Es ta do , P od er e G es tã o Compreende-se daí que o processo democrático de constituição e organização do poder político, na visão clássica, se dá pela reunião e expressão da vontade de todos, por meio do debate livre e público, em um espaço igualmente de todos. As leis nascem, portanto, da confrontação de ideias, da convenção direta dos cidadãos livres em praça pública. Isso mudou um pouco no período moderno, pois o poder político, como um corpo artificial, foi separado da sociedade, conforme os intelectuais e pensadores contratualistas; já no pensamento clássico, esse poder foi exercido por todos, em um espaço público. No pensamento contratualista moderno, visto no capítulo anterior, o Estado esteve separado dos indivíduos, embora representasse seus interesses, diferentemente da noção clássica de democracia direta (assembleia de cidadãos). Na Era moderna, portanto, a noção de representação política, ou de democracia representativa, só aparecerá no processo de formação do Estado Moderno (século XVI em diante), sendo ensejada pelos anseios liberais de garantia de direitos, igualdade e liberdade dos indivíduos e será pautada na construção de um Estado mandatário do poder dos cidadãos. O Estado se tornará o gestor dos interesses públicos e o povo participará indiretamente dessa gerência. 2.2 A democracia e o sistema representativo moderno O sufrágio, ou voto popular, caracteriza a forma de exercício democrático da soberania popular nos Estados Modernos, ou seja, o povo participa da vida política de seu país em maior ou menor grau, por meio de eleições de seus governantes (democracia representativa), e da consulta direta realizada à população por parte do Estado (democracia participativa ou semidireta). Ao longo dos séculos XIX e XX, pensadores políticos liberais defenderam a ideia de que a democracia representativa, ou o parlamento4, seria a única forma de democracia possível de ser estabelecida em conformidade com o Estado liberal5. 4 Sistema de governo em que o chefe de Estado não é escolhido por voto popular e não acumula as funções de chefe de governo, assumida pelo primeiro-ministro. É o sistema vigente na Inglaterra. Estudaremos este sistema de maneira pormenorizada no próximo capítulo deste livro. 5 O Estado liberal será o objeto de estudo dos Capítulos 3 e 7. 35Capítulo 2 – Poder, Dominação e Democracia Na democracia representativa, os cidadãos podem escolher seus representantes mediante o voto, como também serem eleitos, em conformidade com os ordenamentos jurídicos de cada nação. Essa liberdade de votar e ser eleito consiste na atribuição de uma capacidade jurídica própria dos regimes democráticos modernos, que vai além da mera liberdade de expressão, reunião e associação de indivíduos livres, para a efetiva participação na vida política do país. Há também outra espécie de participação popular, ou democracia participativa, consagrada sob as formas de plebiscitos e referendos, em que a população é consultada pelo Estado quanto a questões consideradas prementes e que afetam diretamente suas vidas. Embora plebiscitos e referendos populares constituam formas de consulta direta à população, são considerados institutos da democracia semidireta e possuem diferenças entre si. Vejamos: no plebiscito, o Estado consulta a população antes de uma lei ser sancionada, sendo o povo quem vai aprovar ou não a criação da norma no lugar do Estado. Já o referendo consiste em uma consulta popular direta sobre uma norma que já foi criada. Seu objetivo é buscar a confirmação ou não do povo desta norma. Percebe a democracia em prática? A busca, por parte do Estado, da vontade geral? Por exemplo, o primeiro referendo realizado no Brasil foi em outubro de 2005, sobre a proibição da venda ou comercialização de armas de fogo e munição no país6. Esse referendo foi realizado para consultar a população sobre o que dispõe o Art. 35 da Lei n. 10.826/2003, também conhecida como Estatuto do Desarmamento. Quanto a exemplos de plebiscitos, temos dois no Brasil, o primeiro quando o presidente João Goulart (governo vigente entre 1961 a 1964) consultou a população brasileira para deliberar se mantinha ou não o sistema parlamentarista ou se optava por retornar ao presidencialista. Realizado o plebiscito em 1963, o povo decidiu pelo presidencialismo. E em 1993 a população foi novamente consultada para decidir a forma de governo no Brasil, entre monarquia constitucional ou república e entre parlamentarismo ou presidencialismo. O povo decidiu por manter a forma republicana e o sistema presidencialista. 6 Para mais informações sobre o referendo acesse: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/especial/2005/ referendododesarmamento/ >. Acesso em: 12 nov. 2011. 36 Es ta do , P od er e G es tã o A Constituição brasileira de 1988, no Artigo 14, caput e incisos I, II e III, ainda prevê como forma de expressão da soberania popular, além do voto, plebiscito e do referendo, a iniciativa popular, em que o povo pode propor projetos de lei, mediante alguns critérios descritos na própria Constituição. 2.3 O processo de democratização sob a perspectiva da conquista de direitos Sob uma perspectiva histórica, o processo de democratização que visa cumprir o exercício da titularidade do poder soberano por parte do povo foi longo e assumiu contornos específicos e diferenciadosem diferentes países, principalmente no que se refere ao Ocidente moderno. As restrições quanto ao direito ao voto foram diminuindo até que se chegasse à ideia de sufrágio universal, em que esse direito foi ampliado a todos os cidadãos indistintamente7. Porém, até os dias atuais o mundo ainda comporta a existência de formas de governos autoritários, ditatoriais e teocráticos8, regimes em que os direitos fundamentais dos indivíduos são constantemente violados, nas mais variadas formas, por seus governantes. A Revolução Francesa de 1789, que consagrou por meio da Assembleia Nacional Francesa a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão9, configura um marco na luta pela democracia contra os regimes autoritários, e desde então a ideia de direitos fundamentais, políticos, 7 Conforme a Constituição Federal de 1988, em seu Capítulo IV – Dos Direitos Políticos, art. 14, parágrafo 1º e seus incisos, ora transcritos: § 1º - O alistamento eleitoral e o voto são: I - obrigatórios para os maiores de dezoito anos; II - facultativos para: a) os analfabetos; b) os maiores de setenta anos; c) os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos. 8 O termo teocrático significa associação da religião com o poder político. 9 É um documento célebre que indicamos a consulta. Disponível em: <http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/ atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/direitos-humanos/declar_dir_homem_cidadao.pdf>. Acesso em: 22 nov. 2011. Serviu de base para a posterior Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela ONU em 1948. Disponível em: <http://www.oas.org/dil/port/1948%20 Declara%C3%A7%C3%A3o%20Universal%20dos%20Direitos%20Humanos.pdf>. Acesso em: 22 nov. 2011. 37Capítulo 2 – Poder, Dominação e Democracia civis e sociais foi amplamente discutida e influenciou diversos Estados- nação e suas Constituições, tanto no Ocidente quanto no Oriente, devido ao seu caráter universal e à defesa que faz aos valores fundamentais da pessoa humana. Jacques-Louis David: Le Serment du Jeu de paume, 1791. 101,2 cm × 66 cm. Musée national du Château de Versailles. Parlamento Francês. É a partir da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão que o indivíduo passou a ser valorizado enquanto ser humano, conquistando os direitos fundamentais de liberdade individual, de propriedade, de segurança, de resistência à opressão, de respeito à dignidade da pessoa humana. Esses princípios passaram a nortear as Cartas Constitucionais dos Estados, que incorporaram o papel de fornecer a garantia desses direitos. Sabemos que os direitos não foram todos conquistados de uma só vez, e que atualmente considera-se pelo menos quatro gerações de direitos fundamentais. Em relação a essas variações conceituais, Moraes (2009) insere 38 Es ta do , P od er e G es tã o o termo dimensões de direitos10, que busca explicar a expressão: a geração de direitos não se reduz à ideia de evolução de diretos, no qual o mais recentemente conquistado exclui os anteriores. Ou seja, trata-se de um rol de direitos conquistados pela sociedade moderna, ao longo dos anos, no qual o conjunto de direitos foi sendo alargado e conquistado em diferentes momentos históricos, segundo as especificidades próprias da história de cada país. No quadro Direitos Fundamentais comparamos as quatro dimensões em seu tempo histórico. Direitos Fundamentais Os direitos fundamentais de primeira dimensão – Séc. XIX Os direitos fundamentais de segunda dimensão – Séc. XX Os direitos fundamentais de terceira dimensão – Séc. XX Os direitos fundamentais de quarta dimensão – Séc. XXI Características: São direitos de caráter civil e políticos, que visam à proteção do indivíduo contra o Estado. Características: São direitos de caráter social, cultural e econômico, tratados em uma perspectiva coletivista. Características: São geralmente concebidos como direitos de solidariedade e fraternidade. Características: Referem-se à proteção e garantias por parte dos Estados daqueles direitos já adquiridos por muitas nações, porém se apresentam a partir de uma perspectiva da sua reafirmação. Exemplos: Proteção ao direito: - à vida; - à intimidade; - à inviolabilidade de domicílio; - à propriedade privada; - de igualdade perante a lei. Exemplos: Visam garantir aos indivíduos mínimas condições de dignidade, proteção aos mais fracos e a busca pela diminuição das desigualdades sociais. Exemplos: Estão relacionados ao direito ao meio ambiente equilibrado, à paz, à proteção ao que é considerado patrimônio comum da humanidade, ao direito de autodeterminação dos povos. Exemplos: O direito à democracia, o direito à informação, o direito ao pluralismo. Apresenta também a discussão acerca do biodireito, ou da bioética no Direito. Fonte: a autora (2011). Queremos aqui chamar a atenção aos direitos de quarta dimensão apresentado no quadro Direitos Fundamentais. Observe que este rol de direitos leva em consideração o quadro de desenvolvimento tecnológico global, que prescreve a necessidade de pensarmos o futuro da sociedade, ou de pensarmos em termos de uma sociedade aberta para o futuro11. Por exemplo, atualmente retomou-se a discussão sobre a questão da proteção à vida, mas agora, tendo como norte o desenvolvimento das pesquisas relacionadas à biogenética, que levantam questões sobre o patrimônio genético dos 10 Conforme TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2002. 11 Para um maior aprofundamento do tema sugerimos a leitura do artigo de Adriano dos Santos Lurconvite sobre as dimensões de direitos intitulado: “Os direitos fundamentais: suas dimensões e sua incidência na Constituição”. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index. php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=4528>. Acesso em: 22 nov. 2011. 39Capítulo 2 – Poder, Dominação e Democracia indivíduos e até onde a Ciência deve ir, sem violar a dignidade da pessoa humana, dos animais, além da preocupação com o meio ambiente como uma forma de preservação da vida. Desta forma, a ideia da construção de rol de direitos de quarta dimensão se impõe diante de um mundo globalizado, em franco desenvolvimento tecnológico, e convida a sociedade a pensar o seu provir e o seu futuro, tendo como norte os princípios fundamentais da democracia, da proteção à vida e à dignidade da pessoa humana. 2.4 Críticas à democracia Observe que a discussão em torno da democracia enseja a questão da reivindicação de direitos e do justo posicionamento da titularidade do poder no interior na sociedade, seu exercício e suas formas de organização. Em Rousseau, quem tem legitimidade de administração do poder é o soberano, e o governo é uma espécie corpo intermediário que atua entre o povo e o soberano. O governo é encarregado do poder executivo, capaz de fazer cumprir as leis, de realizar a manutenção da liberdade civil, política e individual, mas a titularidade do poder soberano, daquele que institui e revoga as leis gerais que alcançarão a todos na sociedade, é sempre do povo, e o Estado não pode abusar do poder que lhe foi conferido como simples mandatário da vontade do povo. Mas a democracia também é alvo de inúmeras críticas. O próprio Rousseau, um expoente defensor da liberdade, levantou o problema da corrupção que os regimes democráticos enfrentam. Conforme Bobbio, Matteucci e Pasquino (1995, p. 320), Platão considerou a democracia como a menos boa das formas boas de governo e a menos má das formas más de governo, isso devido ao processo de pulverização do poder em pequenas frações distribuídas entre muitos, mas se comparada às formas de governo autoritários que violam as leis, ela é a melhor. 12 Neste caso estamos
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