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Em busca da liberdade – traços das lutas escravas no Brasil

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Prévia do material em texto

Emilio Gennari 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Em busca da liberdade – traços 
das lutas escravas no Brasil. 
 
 
O conteúdo desse estudo foi publicado em livro com o mesmo 
título pela Editora Expressão Popular, em julho de 2008. 
 
Ao reproduzir, total ou parcialmente, cite a fonte. 
 
 
 
 2 
 
 
 Índice 
 
 
 
 
 
 Apresentação 03 
 
 
 
 Introdução 04 
 
 
 
 1. A escravidão negra no Brasil 05 
 
 
 
 2. O quilombo de Palmares 13 
 
 
 
 3. Os quilombos em Minas Gerais e Mato Grosso 22 
 
 
 
 4. A Balaiada e a insurreição dos escravos no Maranhão 31 
 
 
 
 5. A Bahia do século XIX e a Revolta dos Malês 38 
 
 
 
 6. Os tortuosos caminhos da abolição 45 
 
 
 
 7. Do quilombo do Jabaquara à liberdade das elites 52 
 
 
 
 Bibliografia 56 
 
 
 
 
 
 
 3 
 
 
Apresentação. 
 
 
 
 Reconstruir as lutas que marcaram séculos da nossa história pode não passar de uma perda de 
tempo para quem vive buscando garantir os meios de sua sobrevivência e realização pessoal. 
 
 Mas, para os homens e as mulheres que dedicam seus esforços à construção de um mundo onde 
haja tudo para todos, o passado é muito mais do que um momento distante. Sua preocupação de resgatar o 
ambiente em que já foi desafiada a ordem dos dominadores é um passo indispensável para entender 
profundamente a realidade atual. Guiados por ele, ponderam as razões das derrotas sofridas pelos 
movimentos e aprimoram o estudo das artimanhas com as quais os poderosos vêm colocando a serviço de 
uma minoria a riqueza produzida pela imensa maioria. 
 
É assim que, para superar a indiferença, a resignação, a frustração e a sensação de impotência do 
presente, quem luta sente a necessidade de olhar para trás, de recuperar etapas de caminhos já percorridos, 
de compreender as possibilidades e os limites de cada momento para afiar nas oficinas da história as 
ferramentas que permitem moldar novas escolhas. 
 
Consciente desta possibilidade e dos riscos que ela envolve, a elite trabalha incansavelmente para 
veicular uma visão do passado que reafirme seus interesses de classe como elementos motivadores de 
toda a sociedade. Nos debates e conferências, nas escolas e nos meios de comunicação, nos locais de 
trabalho e nos bairros seus intelectuais atuam em diversos níveis para alterar o sentido dos fatos, apagar 
da memória do povo o que pode dar alento às suas lutas e até mesmo culpar as vítimas da opressão pela 
violência com a qual foi esmagada a busca de uma vida melhor para todos. 
 
 Contada pelo vencedor, a história alimenta as feições enganadoras da preocupação com o bem 
comum. O quotidiano é apresentado como a viabilização do melhor dos mundos possíveis e o amanhã 
vem recheado de promessas que têm na sorte e na aceitação das regras do sistema a trilha de uma incerta 
afirmação individual. 
 
 Neste embate, a reconstrução de alguns momentos marcantes das lutas dos negros contra a 
escravidão busca levar os oprimidos a perceberem dois aspectos fundamentais. O primeiro é que o 
presente não é fruto do acaso e, nele, nem o sofrimento, nem a falta de meios materiais impossibilitam a 
luta pela liberdade. O segundo, tão importante quanto o anterior, é que uma sociedade da qual seja banida 
toda exploração do homem pelo homem não cairá do céu, mas será sim o resultado de sua participação 
ativa nas batalhas que, longe de terminar, estão apenas começando. 
 
 Sabendo da importância desta tarefa e da necessidade de fazer com que o estudo que aqui 
começamos se torne acessível a um maior número de pessoas, não hesitamos em pedir ajuda à coruja 
Nádia. Assim como reconstruiu a Questão Palestina, o levante do Exército Zapatista de Libertação 
Nacional do México e a situação do Iraque, ela vai nos acompanhar neste novo desafio. 
 
Por isso, cedemos a palavra a esta sábia representante do mundo das aves para que suas pesquisas 
e reflexões nos levem a conhecer melhor a realidade que queremos transformar. 
 
 
 
 
 
 
 4 
 
 Introdução. 
 
 
 Tarde de novembro. Barrado pela cortina de nuvens, o sol não consegue impedir que uma fria 
garoa tome conta da cidade. Por toda parte, há pedestres apressando o passo, indiferentes ao que está ao 
seu redor. O trânsito se torna nervoso e a disputa por cada palmo de rua congestionada transforma o 
dirigir numa luta encarniçada de todos contra todos. 
 Deitado, o corpo se regozija no conforto do sofá. Entre o sonho e a realidade, o cérebro cede à 
tentação de se entregar a alguns instantes de inesperado descanso. Tudo parece embalar este doce 
momento de torpor em que os problemas são esquecidos e a consciência se desliga do mundo real. 
 De repente, uma úmida brisa investe teimosa contra o rosto relaxado. Alertada do perigo, a cabeça 
se agita, os músculos se contraem e levam as mãos a removerem as pequenas gotas que atingem a face. 
Arregalados, os olhos constatam a presença que o sexto sentido havia preanunciado... 
- “Ah! É você?!?”, investem os lábios ao demonstrar indiferença e total falta de ânimo. 
- “Viva e pronta para a próxima empreitada!”, responde Nádia, a coruja, enquanto bate as asas na 
altura do rosto do seu secretário com movimentos que revelam manchas de poeira e ferrugem 
impregnadas na plumagem. 
 - “Em que galinheiro ficou dormindo para sair emporcalhada desse jeito?”, provoca a língua entre 
a ironia e a maldade. 
- “Em primeiro lugar – retruca Nádia ao pousar na cabeceira do sofá –, fique sabendo que as 
minhas plumas e penas ganharam este tom avermelhado não por suas supostas visitas a ninhos alheios, 
mas pelo fato de eu ficar horas fuçando na sala do museu que reúne grilhões, correntes, chicotes, imagens, 
relatos e demais testemunhos da época da escravidão”. 
- “Sinceramente... Não acho graça nenhuma em gastar tempo com velharias enferrujadas e 
inúteis...”, comenta a boca entre um bocejo e outro. 
 Em silêncio, a ave apóia a ponta das asas na cintura e assume uma expressão de reprovação nada 
agradável. Um suspiro... Um rápido piscar de olhos... E...: 
- Que eu saiba, velha é a preguiça que faz seus neurônios ganharem espessas camadas de ferrugem 
por total falta de uso a ponto daquela que costumam chamar de massa cinzenta servir só para encher o 
espaço oco do crânio. 
Ao contrário da maioria dos bípedes da sua espécie que se acomoda à espera de dias melhores, nós 
corujas procuramos ouvir as lutas e os sofrimentos que aquelas peças trazem do passado para o presente. 
Cada uma delas revela uma seqüência interminável de formas silenciosas de resistência, de fugas, de 
quilombos e de levantes que deixam no solo do tempo as marcas de centenas de rebeliões escravas. 
Resgatar estes acontecimentos é reavivar a memória de algo que os poderosos procuram fazer cair no 
esquecimento, cientes de que um povo sem história é como um homem sem memória, que não sabe de 
onde vem e nem para onde vai. 
 Apagado o passado, o que sobra é um presente de resignação e um futuro de incertezas nos quais 
os de cima vão introduzir, sem grandes dificuldades, novas e mais aprimoradas formas de dominação. 
Assim, enquanto a maioria parece começar suas lutas sempre do zero e a ausência de uma identidade 
própria faz com que assuma como seus os valores e a visão de mundo das elites, a minoria, que faz 
acontecer, mantém bem aberto o túmulo do esquecimento. Nele trata de enterrar tudo o que pode dar vida 
a um projeto de mudança capaz de concretizar aquelas que hoje são simples esperanças”, conclui a ave 
enquanto acompanha de rabo de olho as reaçõesdo secretário. 
 Entendido o recado, os pés enveredam pelo caminho do trabalho. Com gestos precisos, as mãos 
retiram da pasta as folhas de rascunho nas quais a caneta vai dar forma e cor às palavras da coruja. 
 Certa de dominar a situação, Nádia voa até os livros desordenadamente empilhados num canto da 
mesa. Alguns instantes de concentração... O costumeiro “Muito bem... Vejamos...” que escapa por entre o 
bico, e, do alto de sua posição, ordena: 
- “Escreva! Capítulo 1º......” 
 
 
 5 
1. A escravidão negra no Brasil. 
 
- “Para início de conversa – diz a coruja ao limpar a garganta – é necessário resgatar as razões que 
levam Portugal a realizar longas viagens marítimas. Como os demais reinos da Europa, o governo de 
Lisboa tem grande interesse em ampliar o comércio que, no século XV, é uma poderosa fonte de 
enriquecimento. A busca de matérias-primas e de metais preciosos em terras distantes visa garantir ao rei 
novos domínios e recursos suficientes para fortalecer seu poder bélico, assegurar o controle dos mercados 
recém-conquistados e possibilitar a acumulação de riquezas ainda maiores. Em outras palavras, longe de 
se preocupar com o bem-estar e o futuro das populações, nobres e comerciantes lusitanos estão 
interessados em saquear tudo o que pode vir a engordar seus tesouros. 
 Decepcionado pela ausência das fabulosas minas de ouro e prata que os espanhóis estão 
explorando em outros países, Portugal põe as mãos no único produto visível e abundante, o pau-brasil, de 
cuja madeira vermelha se extrai um corante usado na Europa sobretudo para tingir tecidos. Por cerca de 
30 anos, as companhias de navegação se beneficiam com uma troca vantajosa. Suas embarcações saem 
carregadas de pedaços de pano colorido, espelhos, facas, canivetes, serras, machados e outras bugigangas 
e voltam abarrotadas com as toras que os índios extraem das florestas. 
 Mas, a partir de 1530, outras nações estão de olho nestas terras. Pressionada, a coroa portuguesa se 
vê diante da necessidade de colonizar rapidamente o seu pedaço do chamado novo mundo onde, graças ao 
clima quente e às características do solo, é possível implementar com sucesso o cultivo da cana. 
Esta escolha, obviamente, não tem como preocupação central o desenvolvimento local, mesmo 
porque a sua viabilização exige a devastação pura e simples de amplas áreas de floresta, mas sim a busca 
das altas margens de lucro propiciadas pelo açúcar, vendido a caríssimo preço nos mercados europeus. O 
problema é que, para ser rentável, o canavial deve ocupar grandes extensões de terra e uma quantidade 
considerável de força de trabalho”. 
- “Então, para resolver esta pendenga, o passo mais lógico é trazer da Europa parte dos 
camponeses sem terra!”, prorrompem os lábios sem pesar as palavras. 
Ouvido o comentário, a coruja desenha no ar um cifrão com a ponta da asa direita e diz: 
- “O que a sua cabecinha de humano não consegue entender é que, num sistema econômico 
baseado na exploração do homem pelo homem, não há como conciliar o atendimento das necessidades 
das pessoas com a lógica do mercado. Nela não há espaço para os sentimentos, mas só para o frio cálculo 
das perdas e ganhos. A preocupação com as camadas mais pobres do povo, alardeada pela elite, se dá 
somente na medida em que a reação destas pode vir a ameaçar a manutenção da ordem social que garante 
a fortuna de poucos. 
Se as coisas fossem como você sugere, o camponês vindo do outro lado do oceano para um país 
onde há abundância de terras incultas e sem dono acabaria se instalando num lugar qualquer, se tornaria 
um produtor independente, dedicado a garantir o próprio sustento e não o enriquecimento dos senhores 
dos dois lados do oceano. Ainda que se dispusesse a trabalhar para eles em troca de um salário, a escassez 
de braços elevaria o ordenado a um patamar tão alto que os lucros obtidos com o açúcar não seriam 
compensatórios. 
Além do mais, por ser um homem livre, os grandes proprietários locais não poderiam obrigá-lo a 
um trabalho forçado em suas terras e nem conseguiriam impedir que este se instalasse em outras 
transformando-as numa espécie de propriedade privada cuja produção seria quase integralmente voltada à 
auto-sustentação. Resumindo, um trabalhador agrícola que pudesse ser obrigado a ficar na terra e a 
desempenhar suas funções nas condições impostas pelo dono da plantação só poderia ser um escravo. 
Por isso, uma vez tomada a decisão de colonizar o território, a coroa portuguesa muda 
radicalmente a sua relação com os povos indígenas. A guerra e o extermínio estão entre as primeiras 
medidas para expulsar os nativos de grandes extensões de terra e para submetê-los à escravidão. 
Poucos sabem que, de 1530 a 1600, a exploração escrava dos índios vai ser a força motora da 
produção da colônia. É ela que vai estar na base do cultivo de cereais, algodão, açúcar e café de São Paulo 
até por volta de 1820. No Maranhão, a escravidão indígena só acaba no século XVIII, ao passo que a 
economia do Pará vai se aproveitar dela até 1755 quando, com a proibição do Marquês de Pombal, 
assume uma forma de dependência que se distancia muito pouco das relações de trabalho anteriores. A 
própria extração do ouro nas regiões que hoje pertencem aos estados de Minas Gerais, Goiás e Mato 
Grosso, dá o pontapé inicial tendo como base o trabalho escravo dos índios e até mesmo na Bahia e 
 6 
Pernambuco estes entram em cena toda vez que, por alguma razão, o número de negros trazidos pelo 
tráfico diminui sem possibilidade de pronta recuperação”. 
- “Mas, Nádia, eu sempre ouço dizer que os indígenas são substituídos por não gostarem de 
trabalhar, não se adaptarem á escravidão, não terem um físico que resiste às doenças trazidas pelos 
europeus ou por fugirem mais facilmente do cativeiro na medida em que conhecem a mata e podem 
encontrar abrigo sem dificuldade... Confesso que suas colocações me deixam confuso...”. 
Questionada, a ave desce da pilha de livros e emite um longo suspiro. Reunidas as idéias, aponta a 
asa para a caneta com um “vamos pegar um bicho de cada vez!” que sinaliza a necessidade de responder 
detalhadamente às afirmações do secretário. E continua: 
- “No que diz respeito às fugas, é verdade que os indígenas levam certa vantagem na medida em 
que se defrontam com os colonizadores organizados em sociedades tribais, conhecem as matas e podem 
facilmente encontrar abrigo. Mas, por outro lado, não podemos dizer que a submissão do negro à 
escravidão é maior pelo simples fato deste já ter conhecido situações parecidas em sua terra natal. 
Introduzidos nas plantações após terem sido arrancados à força do seu meio social, os africanos 
das senzalas têm apenas maiores dificuldades em levar adiante uma resposta coletiva na medida em que 
se deparam com pessoas de diversas etnias, línguas, tradições e costumes. Apesar disso, a longa lista de 
insurreições, fugas, assassinatos de feitores e demais formas de resistência mostra que a hipótese de uma 
maior submissão dos negros não tem fundamento. 
Do mesmo modo, não é convincente o argumento que atribui a substituição do escravo indígena 
pelo negro à capacidade deste último de resistir às doenças. Os defensores desta idéia esquecem que a 
maior parte das mortes entre os índios não se deve aos problemas de saúde trazidos pelos europeus, mas 
sim ao esgotamento físico provocado pelo excesso de trabalho e pelas condições subumanas a que são 
submetidos. 
Contrariando a crença de que o escravo, enquanto propriedade do senhor, representa um bem a ser 
preservado, o sistema escravista vê na sua máxima rentabilidade o elemento que define a velocidade do 
seu esgotamento físico. Quanto maior o volume de trabalho que o cativo pode dar hoje, tanto mais 
vantajoso é estafá-lo para extrair,no menor tempo possível, o valor investido na compra do africano e a 
margem de lucro que pode oferecer. Agir no sentido de prolongar a vida útil do escravo significa 
aumentar os gastos com o seu sustento diário e correr o risco de obter porcentagens menores de trabalho 
excedente na medida em que as doenças e a morte podem interromper, repentinamente, a sua exploração. 
E se isso vale para os negros, vale ainda mais para os índios cujo preço de compra é de, 
aproximadamente, um quinto da quantia paga por um cativo africano. Ou seja, por se tratar de uma força 
de trabalho muito barata, os indígenas reduzidos à escravidão são obrigados a dar conta de uma 
quantidade absurda de tarefas sem que seus donos se preocupem minimamente com eles. 
Por sua vez, o crescente e ininterrupto fluxo de escravos trazidos pelo tráfico é, por si só, uma 
prova de que, também entre os negros da senzala, a mortalidade não é tão baixa como pretendem nos 
fazer crer. Vivendo em condições extremamente precárias e submetidos a um regime de trabalho 
extenuante, os escravos empregados nos canaviais e nos engenhos têm uma vida útil reduzida. Em outras 
palavras, o período de tempo em que eles têm a capacidade de desempenhar a quantidade de trabalho 
exigida costuma girar, em média, em torno de 8 anos. 
Na medida em que não consegue dar conta da carga imposta pelos feitores e passa a ser 
considerado um peso morto no orçamento do proprietário, o negro escravo pode vir a ser alforriado, 
ganhando com esta suposta liberdade a igualmente dura tarefa de mendigar os meios de subsistência. Esta 
situação mais corriqueira é acompanhada de duas variantes: de um lado, encontramos senhores que 
confiam tarefas leves (como a criação de aves) aos cativos tornados inválidos para o trabalho e, de outro, 
não são poucos os que resolvem esta questão assassinando pura e simplesmente aqueles que já não 
rendem o esperado. 
No que diz respeito ao nível técnico, não há dúvidas de que os negros superam os índios na 
agropecuária, no artesanato e na forja dos metais, mas este saber não é aproveitado na labuta primitiva das 
plantações que, para muitos africanos, representa um verdadeiro retrocesso. 
Agora, uma coisa é dizer isso e outra, bem diferente, é afirmar que o indígena não gosta de 
trabalhar ou não se adapta ao trabalho sedentário. As missões dos jesuítas provam exatamente o contrário. 
Nelas, os índios desempenham excelentemente todos os trabalhos agrícolas, pastoris, extrativistas e 
artesanais. Este aprendizado grupal deita raízes no fato dos religiosos terem criado uma organização 
 7 
econômica e social inspirada na propriedade coletiva, no trabalho comunitário e na igualdade, ou seja, 
em elementos familiares ao mundo indígena. 
Por outro lado, não podemos esquecer que, além da campanha contra a escravização dos índios, a 
substituição destes pelos cativos africanos conta com as crescentes pressões da coroa portuguesa e dos 
traficantes. Ao veicular a idéia de que os indígenas são preguiçosos, incapazes e menos resistentes ao 
esforço físico, buscam abrir caminhos à elevação dos gordos lucros obtidos com o tráfico de escravos 
graças à troca destes pelas mercadorias destinadas à exportação”. 
- “Quer dizer, então, que a coisa é pior do que se imagina?”, pergunta a boca ao deixar 
transparecer toda a perplexidade gerada por esta descoberta. 
Nádia balança a cabeça em sinal de afirmação e, piscando os olhos, acrescenta: 
- “Como acabo de dizer, quando analisamos a substituição do cativo indígena pelo africano, 
percebemos que esta se dá de forma rápida e irreversível nas regiões onde a economia é integrada ao 
comércio internacional. Esta situação, em geral, não se manifesta nas áreas onde predominam atividades 
de subsistência ou a produção se destina ao mercado interno. A razão de ser deste processo deve ser 
buscada no triângulo comercial que une Europa, África e Brasil”. 
- “Triângulo comercial?!? Que diabo é isso?!?” 
- “Calma, eu já vou explicar – diz a coruja ao levantar as asas. Nos primeiros séculos da 
escravidão, as grandes companhias de navegação levam panos, ferragens, trigo, sal, cavalos, aguardente, 
tabaco, açúcar, armas de fogo, munição e até búzios (usados como moeda em várias regiões) nos porões 
dos navios que se dirigem aos portos africanos. Nestes, os portugueses contam com verdadeiras fortalezas 
e entrepostos fartamente abastecidos de escravos pelos pumbeiros, ou seja, por agentes que se dirigem até 
os pumbos, como são chamados os mercados do interior onde as tribos locais trocam gente por 
bugigangas. Acorrentadas, as vítimas são privadas de alimentação adequada, têm o corpo exposto às 
intempéries, sofrem inúmeros maus tratos e começam uma jornada que, até o momento do embarque para 
o Brasil, pode durar meses. 
A maior parte dos produtos usados nesta primeira fase é de origem européia e sua troca por cativos 
é muito vantajosa. A contas feitas, podemos dizer que o valor dos escravos embarcados na África supera 
em sete a dez vezes o das mercadorias usadas para a sua compra.
1
 
Batizados e marcados a fogo com uma cruz no peito, os negros são colocados em navios que 
deixam o continente africano abarrotados de gente. A depender da distância entre o porto de partida e o de 
chegada no litoral brasileiro, de eventuais epidemias ou acidentes que podem prolongar o tempo de 
viagem, os traficantes perdem até 20% da carga humana que transportam. Mas esta mortalidade é 
amplamente compensada pela diferença entre o preço de compra na África e o de venda no Brasil. Como 
os custos com a tripulação, o navio e a alimentação dos escravos (a base de farinha e água) não sofre 
grandes alterações, é mais vantajoso transportar 200 cativos, mesmo sabendo da possibilidade de perder 
40 deles, do que embarcar só uma centena e não perder nenhum. 
Além disso, os interesses das companhias de navegação coincidem com os dos funcionários da 
coroa encarregados de regulamentar o tráfico. Tanto na saída da África, como na chegada em terras 
brasileiras, os impostos são cobrados sobre o volume transportado. Quanto mais escravos são carregados 
e descarregados, maiores são as rendas que afluem para os cofres reais. Em nome desta dupla 
possibilidade de ganho, as autoridades não titubeiam em esquecer os decretos que determinam a 
quantidade de comida, água e negros que pode ser legalmente transportada em cada navio. 
Ao chegar nos portos, os esqueletos ambulantes dos africanos que conseguem sobreviver à viagem 
são trocados pelo açúcar e demais produtos a serem levados para a Europa. O escravo, vendido a caro 
preço, é a moeda que, neste momento, substitui o ouro e as demais formas de pagamento usadas nas 
relações comerciais do velho mundo. Lotadas e reabastecidas, as embarcações atravessam o oceano rumo 
ao continente europeu onde sua preciosa carga é vendida por uma quantia bem maior. 
No balanço final, o lucro líquido das companhias de navegação que atuam nestas rotas varia de 
300% a 600% do total investido. Além de abastecer a Europa de matérias-primas e garantir um mercado 
para suas manufaturas, os ganhos oriundos da escravização dos índios, que antes acabavam nas mãos dos 
colonos, são agora apropriados em dose bem mais abundante pelos comerciantes das metrópoles que 
passam a ter no tráfico de escravos negros uma parte essencial dos seus negócios”. 
 
1
 Dados publicados em Goulart Maurício (31), pg. 26. 
 8 
Atordoado pelas inesperadas revelações da coruja, o secretário apóia a testa na palma da mão 
esquerda enquanto a direita termina de traçar no papel as últimas linhas do relato. Um profundo silêncio 
se estabelece entre os dois, até que a língua expressa uma conclusão tão esperada quanto assustadora: 
- “Pelo quevocê acaba de dizer, se a lógica do mercado transforma a vida dos escravos num 
inferno antes mesmo de sair da África, a submissão a estas mesmas regras no Brasil só vai prolongar e 
aprofundar seus sofrimentos...” 
- “Sua afirmação faz sentido – comenta a ave ao andar de um lado para outro da mesa. Mesmo 
assim, nossas reflexões não podem se limitar a gerar sentimentos de compaixão, mas devem dar ao leitor 
uma noção clara do que é a vida na época da escravidão e de como a elite busca justificar até mesmo suas 
manifestações mais cruéis. 
Desembarcado do navio e levado ao mercado, o escravo recebe uma alimentação a base de farinha 
de mandioca, angu de fubá, toucinho, carne-seca, feijão e algumas frutas a fim de combater as doenças 
contraídas durante a viagem. Mas você não ache que com tudo isso ele vai engordar, pois as porções 
diárias de comida são extremamente reduzidas. 
O vestuário é quase inexistente até mesmo nos meses frios do ano, e, durante a visita dos possíveis 
compradores, homens e mulheres são expostos completamente nus para que estes possam realizar uma 
inspeção completa das peças nas quais estão interessados. 
Para não mostrar sinais de apatia e depressão, os escravos recebem estimulantes (pimenta, 
gengibre e tabaco) ou, como costuma ocorrer no Rio de Janeiro, são obrigados a dançar alegremente 
durante o exame físico a fim de convencer os interessados de sua saúde excelente, elevando assim o preço 
de venda. Caso isso venha a falhar, socos, tapas, pontapés e ameaças de serem chicoteados são fartamente 
distribuídos aos que não atendem às ordens recebidas. 
Ao chegar na senzala, os cativos são novamente marcados a fogo com as iniciais do nome e 
sobrenome do seu dono para que, ao gravar na carne o vínculo de propriedade, se facilite o 
reconhecimento e a reapropriação de cada fugitivo. Entre os que se destinam às plantações, não são 
poucos os casos em que se registra a prática da primeira hospedagem, uma surra inicial com açoites 
ministrada ao recém-chegado com a finalidade de baixar a crista dos possíveis rebeldes. 
A relação dos senhores com a massa escrava se baseia no princípio do use e abuse. A duração da 
jornada de trabalho não conhece limites e, sobretudo nas épocas de corte e moagem da cana, passa das 15 
horas diárias. Em geral, a labuta vai de segunda a segunda com cinco dias de descanso por ano: Natal, 
Epifania, Páscoa, Ascensão e Pentecostes. 
Sendo o escravo batizado e cristão, o fato de não respeitar os domingos e demais dias santos chega 
a suscitar escrúpulos entre os religiosos. Mas a autoridade eclesiástica liquida a questão argumentando 
que as necessidades da produção justificam o não cumprimento dos preceitos da igreja. 
A alimentação dos moradores da senzala é resolvida de três maneiras. Alguns senhores não 
fornecem nenhuma ração, mas permitem que seus cativos trabalhem aos domingos num pedacinho de 
terra de onde devem tirar o sustento e só fornecem pequenas porções de mel grosseiro na época da 
colheita. Outros não concedem dias livres, mas proporcionam uma escassa quantia de farinha e carne-
seca. Os mais humanos, acrescentam à comida um dia livre por semana. Porém, mesmo nas situações 
mais favoráveis, a produção do escravo destinada a si próprio está sempre sujeita ao arbítrio e às 
conveniências do senhor, razão pela qual, na senzala, a fome não é exceção, mas regra. 
Como mercadoria, o cativo pode ser vendido, alugado, penhorado e morto. Apesar da legislação 
não admitir o direito de vida e morte, senhores e feitores assassinos de escravos não são incomodados 
pela justiça cujas autoridades estão preocupadas na manutenção da ordem escravista e não na preservação 
da incolumidade dos africanos. Até mesmo no século XIX, as denúncias de crime que chegam nos 
tribunais são freqüentemente respondidas por investigações e sentenças que atribuem a morte do cativo a 
um acidente ou ao suicídio”. 
- “Esta situação vale para todos os escravos ou há diferenças entre uma região e outra?” 
- “Grosso modo, podemos dizer – responde a coruja ao espetar o ar com a ponta da asa – que, de 
início, a maior parte dos africanos que chega no Brasil é destinada aos canaviais, mas, nas cidades, já a 
partir do século XVII, assistimos à introdução dos chamados negros-de-ganho. 
Trata-se de homens e mulheres escravos que prestam serviços ou executam algum ofício nos 
centros urbanos. Neste grupo encontramos barqueiros, carregadores, mascates, oleiros, marinheiros, 
carpinteiros, ferreiros, serradores, sapateiros etc. que, diária ou semanalmente, entregam ao seu dono uma 
 9 
quantia combinada ficando com o pouco que sobra para a sua própria manutenção. Mesmo ruins, suas 
condições de vida são um pouco menos duras em relação às que encontramos no ambiente rural. Apesar 
disso, a jornada de, no mínimo, 12 horas somada à precariedade da moradia e da alimentação levam a 
vida útil da maioria destes escravos a não superar a marca dos dez anos. 
As escravas, além de servirem de amas-de-leite, parceiras sexuais de seus senhores e dar conta dos 
trabalhos domésticos, situação corriqueira em todas as plantações, nas cidades são forçadas a se dedicar 
ao comércio de rua e, no caso das mais atraentes, a se prostituir em tempo parcial ou integral. 
Cativos doentes, cegos ou inválidos são forçados à mendicância tanto para juntar dinheiro para 
seus senhores como para obter o próprio sustento. Em caso de doença terminal, incapacidade total ou 
morte, são jogados porta afora para evitar que seus amos tenham que arcar com os gastos do funeral. No 
Rio de Janeiro, por exemplo, é comum encontrar o cadáver de algum escravo pelas ruas da cidade. 
Quando isso acontece, um soldado se posiciona sobre ele com uma caixa na qual recolhe a contribuição 
dos passantes e o corpo só é removido do local quando nela já se encontra a quantia suficiente para 
custear as despesas do enterro. 
- “Nádia, agora fiquei curioso – intervém o secretário ao parar de escrever. Se há homens e 
mulheres escravos, significa que podem procriar e que, pouco a pouco, o tráfico poderia ser substituído 
pelo aumento da população nascida no cativeiro! Certo?!?” 
- “Errado! – responde a coruja sem pestanejar. Se você refletir sobre o que acabo de dizer, não só 
vai perceber facilmente que a exploração colonial do Brasil precisa de um constante e crescente fluxo de 
escravos como a reposição destes é praticamente inviável com a procriação que ocorre nas senzalas. Além 
da mortalidade que atinge 80 em cada 100 crianças nascidas vivas, a chance de uma das 20 restantes 
chegar à idade adulta é muito reduzida na medida em que o recém-nascido é submetido às mesmas 
condições adversas dos pais e a possibilidade de contrair doenças que o levem à morte é realmente muito 
grande. Isso não só explica o baixo preço de uma criança escrava, como a falta de interesse dos senhores 
de engenho investirem recursos em seu crescimento na medida em que os riscos e os custos são bem 
maiores daqueles com os quais se deparam na compra de um africano adulto. 
Ao que tudo indica, só as ordens religiosas cuidam da reprodução de seus escravos. Silva Lisboa 
escreve que os Jesuítas deixam seus engenhos e fazendas cheios de numerosos cativos entre os quais é 
raro encontrar alguém da costa da África. Koster, por sua vez, observa que, em Pernambuco, o plantel dos 
Beneditinos já é totalmente crioulo, sendo que o mesmo acontece com o dos Carmelitas. Os frades 
incentivam a procriação nas senzalas a ponto de permitir o 
casamento de homens livres com escravas, mas não o 
contrário, isto é de escravos com mulheres livres, pois, neste 
caso, pelas regras da época, os filhos não poderiam ser 
forçados ao cativeiro”.2 
- “Diante desta realidade, como é possível manter 
submissa a massa escrava sabendo que,com o tempo, ela 
passa a ser numericamente maior dos brancos tanto na cidade 
como no campo?” 
- “Para este propósito, as elites criam o que podemos 
chamar de um verdadeiro sistema de terror que se apóia não 
só na violência efetivamente praticada, como na ameaça 
permanente de que esta vai desatar o seu rigor contra 
qualquer expressão de rebeldia. 
Por exemplo, quando incorre em faltas leves, o cativo é 
colocado no tronco (dois grandes pedaços de madeira retangular que imobilizam pés, mãos e pescoço) ou 
no vira-mundo (um pesado grilhão de ferro que prende pés e mãos e obriga o sentenciado a uma posição 
incômoda e, não raro, deformante). 
Em caso de fuga, após a aplicação de até 100 açoites nos pelourinhos das cidades ou na presença 
dos demais colegas de sofrimento da fazenda, o corpo do supliciado, já em carne viva, é banhado com 
vinagre, água salgada ou pimenta e jogado numa cela. Se conseguir sobreviver, vai passar o resto da vida 
 
2
 As citações completas podem ser encontradas em Jacob Gorender (28), pg. 350. 
O pelourinho 
 10 
no libambo (uma argola de ferro ao redor do seu pescoço com uma haste à qual é fixado um chocalho 
ou uma placa com dizeres aviltantes) ou preso a um sistema de correntes que dificultam seus movimentos. 
Para extrair confissões, se usam os anjinhos, dois anéis de ferro que vão comprimindo os 
polegares da vítima na medida em que cada aperto de um pequeno parafuso diminui progressivamente o 
seu diâmetro, provocando dores horríveis. 
Outro castigo bastante comum consiste na aplicação de uma máscara de folhas de flandre sobre o 
rosto do escravo. A este devemos acrescentar a castração, a destruição dos dentes a marteladas, a 
amputação dos seios, o vazamento dos olhos, as marcas no rosto com ferro em brasa, as queimaduras 
provocadas pelas fagulhas das caldeiras quando o cativo é acorrentado com o corpo nu bem próximo de 
suas chamas. 
A lista dos horrores se completa com os casos menos freqüentes de africanos emparedados vivos, 
afogados, estrangulados, arremessados ao fogo ou esmagados na moenda de cana. Se a isso somamos o 
suplício das longas jornadas de trabalho, não vamos ter nenhuma dificuldade em entender o que significa 
viver o inferno das senzalas”. 
- “Confesso que fiquei horrorizado... Parece mesmo que a maldade humana não tem limites...”, diz 
a boca ao externar sentimentos de compaixão. 
A coruja permanece silenciosa. O piscar de seus olhos parece indicar que reações de espanto, 
aparentemente tão acertadas, não bastam para compreender a profundidade de séculos de história e, muito 
menos, para entender os limites da luta pela liberdade que vão se manifestar nas mais variadas formas de 
resistência e rebeldia dos escravos. Ciente da necessidade de colocar cada coisa em seu lugar, a ave se 
aproxima, apóia a asa no ombro do secretário e com voz pausada sussurra: 
- “Não assuste. Esta é apenas parte da realidade de um período no qual, como em tantos outros, o 
lucro ocupa o centro das preocupações da sociedade e faz girar ao seu redor os elementos que o justificam 
e o tornam racional. 
Pra início de conversa, as investidas de Portugal na África e no Brasil são saudadas e apóiadas 
pelos próprios papas como uma forma de levar o cristianismo pelo mundo. Entendidas como uma 
verdadeira cruzada da fé, a serviço de Deus e do rei, as expedições que vão alimentar a colonização e o 
tráfico de escravos têm os abusos e as culpas de seus integrantes e patrocinadores automaticamente 
perdoadas pelas bulas papais. 
Por sua vez, os escravos são considerados eleitos de Deus e escolhidos, à semelhança de Cristo, 
para salvar a humanidade através do sacrifício. Em 1633, o Padre Antonio Vieira, expressa esta 
compreensão da igreja católica ao falar aos escravos de um engenho da Bahia: Cristo despido e vós 
despidos; Cristo sem comer e vós famintos; Cristo em tudo maltratado e vós maltratados em tudo. Os 
ferros, as prisões, os açoites, as chagas, os nomes afrontosos, de tudo isto se compõe a vossa imitação, 
que se for acompanhada de paciência também terá merecimento de martírio. 
3
 Enquanto aos cativos se 
recomenda a submissão com a promessa de um futuro glorioso nos céus, os senhores são ameaçados com 
os castigos divinos e terrestres (a rebelião e a sedição) caso não diminuam os maus-tratos. Ou seja, de 
acordo com esta lógica, a escravidão não é condenada pela igreja desde que moderada, justa, racional, 
rentável e equilibrada. 
Ao mesmo tempo, as elites alimentam preconceitos pelos quais o cativeiro passa a ser justificado, 
assimilado e aceitado com naturalidade. O ato de arrancar o negro de sua terra natal é apresentado como 
um benefício para ele próprio enquanto caminho para afastá-lo da barbárie e levá-lo à civilização. Além 
disso, atribuem ao africano más qualidades, como a preguiça, a libidinagem, a malícia, a vadiagem, o 
caráter traiçoeiro e maldoso, invocadas para justificar tanto o peso do trabalho como os castigos 
corporais. 
O cimento da estrutura racista da sociedade ganha consistência na medida em que se inculcam nos 
africanos sentimentos de inferioridade, uma péssima idéia de si mesmos e de suas etnias, além de 
estigmas associados á cor negra. As diferenças de pigmentação da pele se tornam assim um elemento 
distintivo que dá origem a uma hierarquia pela qual o mulato é melhor que o negro, o moreno melhor que 
o mulato e assim por diante. Some a esta realidade as propriedades negativas atribuídas ao trabalho 
manual, considerado digno de seres inferiores, e terá uma idéia do ambiente criado pela classe dominante 
colonial para promover a destruição das culturas africanas e desqualificar seus valores. 
 
3
 Texto citado em João José Reis e Flávio dos Santos Jonas (53), pg. 71. 
 11 
A prova da eficácia do conjunto destas medidas está no isolamento social com o qual vai se 
defrontar a massa escrava. Por mais de três séculos, não há nenhum setor da sociedade vitalmente 
interessado em abolir o sistema escravista, pois, bem ou mal, todos acabam vivendo à custa do trabalho 
escravo”. 
- “Então, pelo visto, na senzala e fora dela não há nada que ajude a organização dos cativos...” 
- “Exatamente! – confirma a coruja com uma frieza assustadora. A simples identidade de cor não 
basta para gerar a solidariedade entre os negros. Além das pressões externas e da violenta repressão a que 
estão submetidos, há outros elementos que dificultam a possibilidade de uma resposta capaz de destruir a 
ordem existente. 
Vale a pena lembrar, por exemplo, que nem todos os cativos se encontram na mesma situação. 
Quando analisamos os mais de três séculos de escravidão, nos deparamos com negros livres e escravos; 
cativos submetidos ao terrível trabalho das plantações ou das minas ao lado de outros que sofrem uma 
exploração mais branda; libertos e alforriados que passam fome convivem com outros que já são donos de 
um certo número de escravos; negros expropriados de todo o fruto do seu trabalho se deparam com os que 
têm acesso a uma remuneração da sua labuta; cativos que se rebelam ou insurgem acabam esmagados por 
regimentos formados por negros e pardos que buscam no recrutamento militar a possibilidade de deixar 
para trás a condição de escravos. Enfim, do mesmo modo em que, na África, a identidade de cor não 
consegue impedir que as tribos desenvolvam formas de escravidão e alimentem o próprio tráfico, no 
Brasil, esta não evita que, em graus diferentes, muitos cativos colaborem com os brancos para subjugar os 
negros. 
O simples fato de todos serem vítimas da escravidão não basta para que teçam entre eles ações 
capazes de destruí-la. No próprio ambiente rural, as diferenças entreos escravos empregados na produção 
e os que se dedicam aos serviços domésticos da casa-grande confere aos últimos uma posição 
ligeiramente mais elevada em relação aos demais, o que lhes permite minorar seus próprios sofrimentos. 
Escolhidos por sua beleza, inteligência, seus hábitos de asseio ou de higiene, sua aceitação aumenta na 
medida em que assimilam os valores dominantes. Isso faz com que a perda da identidade africana seja 
vista como um meio para ocupar os postos que proporcionam um maior grau de liberdade, segurança e 
prestígio. 
A todos estes fatores devemos acrescentar as hostilidades e os conflitos que se instalam nas 
senzalas em função das diferenças étnicas aí presentes. Os membros de várias nações africanas não 
esquecem as rixas de suas tribos no país de origem e as rivalidades que delas nascem acabam se somando 
às diferenças de língua, cultura e crença religiosa fazendo com que, muitas vezes, a divisão prevaleça 
sobre a união. 
As coisas se tornam difíceis também em função da constante renovação do contingente de 
escravos que ocorre ora para expandir as atividades produtivas, ora para substituir os que já não rendem o 
desejado pelos senhores. O fato de não ter vínculos com os que se encontram no plantel e, às vezes, de 
não falar, a mesma língua acaba dificultando as relações, emperrando o desenvolvimento de ações 
coletivas e a transmissão da experiência de luta acumulada. 
Para entender o conjunto de obstáculos que se impõe à organização dos escravos, há um último 
elemento que nem sempre é levado em consideração. Estou me referindo á dispersão geográfica, ou seja, 
às distâncias consideráveis que separam uma plantação da outra e que, associadas ao rígido controle dos 
feitores, impedem a comunicação entre os cativos dos vários engenhos”. 
- “Puxa, mas, desse jeito, parece impossível esboçar uma reação...”, concluem os lábios perplexos. 
- “Eu não diria isso – afirma Nádia ao sublinhar sua fala com o movimento ritmado da asa. De um 
lado, é preciso reconhecer que a grande maioria dos escravos não foge, não participa de levantes, nem 
atenta contra a vida de seus feitores ou senhores. À exceção da geração que chega à abolição, a maior 
parte dos cativos vive a escravidão até a morte. Isso não significa que aceitam pura e simplesmente este 
amargo destino, mas tão somente que estes homens e mulheres se comportam como todos os seres 
humanos em circunstâncias extremamente desfavoráveis, ou seja, tendem a se adaptar para tentar 
sobreviver. Para eles, resistir à escravidão, via de regra, é sinônimo de resistir ao trabalho. O cativo 
precisa ser mau trabalhador para não ser um bom escravo. Daí o relaxamento, a incúria, a subserviência 
fingida, o trato ruinoso dos animais e das ferramentas, a sabotagem, enfim, um processo que leva quem 
está submetido à escravidão a estabelecer limites de tolerância que não deixam de ser percebidos. 
 12 
Outra forma de resistência amplamente relatada pelos historiadores é o banzo. Definido como 
profunda saudade da África, descreve a situação em que o negro cai em depressão, se recusa a trabalhar e 
a comer, definhando muitas vezes até a morte. Mais do que expressão de um sentimento para com a terra 
natal, esta situação se configura como uma forte rejeição da condição estranha e hostil na qual o africano 
é mergulhado, a tal ponto de não permitir ao escravo nenhuma identificação com o espaço físico, com o 
grupo dos que partilham a sua sorte e, menos ainda, com o universo opressor do branco. 
Por sua vez, o suicídio, desconhecido no continente africano, se torna comum em terras brasileiras 
como forma de escapar a uma realidade odiosa e de grandes sofrimentos. Estimulado pela crença de que 
seus espíritos voltariam para a África, o pôr fim à própria vida assume as feições de um enfrentamento na 
medida em que priva o branco de seu capital humano. Nesta mesma linha, encontramos também os 
abortos praticados pelas negras nas plantações e nos engenhos. Muitas entre as poucas crianças que 
nascem vivas são sacrificadas pelas mães com o propósito de impedir que os filhos de suas entranhas 
tenham que passar pelos mesmos sofrimentos. 
A fuga individual é, sem dúvida, outra forma de resistência amplamente utilizada, apesar dos 
inúmeros perigos que oferece. Chamados a escolher entre o cativeiro e a busca da liberdade, muitos 
escravos enfrentam a severa vigilância dos feitores, as perseguições dos capitães-do-mato, o 
desconhecimento do terreno e dos recursos que permitem sobreviver em regiões hostis mesmo sabendo 
que, ao serem recapturados, poderiam ser fustigados até a morte para servir de exemplo aos demais. 
A violência individual contra senhores e feitores é mais freqüente nos canaviais. Matar membros 
da casa-grande é algo mais raro, que geralmente ocorre através da ação de pequenos grupos ou em 
momentos de tensão excepcional. Mesmo assim, o desejo de destruir os brancos é algo difundido e 
profundo e, em geral, se manifesta através de símbolos e rituais. 
As práticas religiosas realizadas nas senzalas estão relacionadas a formas coletivas em que se 
manifesta a rebeldia escrava. Nelas, as danças desempenham um papel relevante exacerbando os gestos, 
exercitando a ginga, dotando o corpo de extraordinária mobilidade, destreza e velocidade de movimentos. 
Aos poucos, os passos que na África eram utilizados nos rituais ganham no Brasil as características de 
uma arte marcial. Os negros criam e adaptam seus golpes à necessidade de enfrentar o corpo a corpo com 
os capitães-do-mato, encarregados de capturá-los vivos para que possam ser publicamente supliciados ou 
reconduzidos ao trabalho forçado. 
Se as incertezas quanto à origem e ao sentido da palavra capoeira estão longe de terminar, 
pesquisas recentes revelam uma relação cada vez mais próxima entre danças, tradições marciais e lúdicas 
do continente africano e as formas de autodefesa desenvolvidas pelos escravos no Caribe e no Brasil. No 
arquivo histórico de Angola, em Luanda, há gravuras da dança n’golo que confirmam a semelhança com 
os golpes da capoeira antiga. O fato desta não ser a única expressão conhecida pelas etnias de escravos 
aqui desembarcados pelos traficantes, leva a concluir que a capoeira tem diversos pais espalhados por 
toda a África, mas só em nossas terras evolui até se tornar uma arte marcial propriamente dita.
4
 O que aos 
olhos de amos e feitores parece não passar de uma dança ou de um ritual, a avó da capoeira atual leva o 
negro a fazer com que o corpo duramente submetido ao peso da escravidão possa vir a ser usado como 
arma, como instrumento de luta pela liberdade. 
É nesse emaranhado de recusas, rejeições e formas de resistência que os negros dão origem a 
revoltas seguidas de fugas das quais, via de regra, nascem os quilombos”. 
- “Quilombos... Eu já ouvi falar,... mas... será que você poderia tratar um pouco mais deste 
assunto?”, solicita o secretário ao expressar uma curiosidade insólita. 
- “A palavra quilombo – diz a ave balançando o corpo – é a incorporação à língua portuguesa de 
um termo africano que significa esconderijo. No Brasil, se torna sinônimo de núcleo de escravos fugidos 
que procuram abrigo em locais de difícil acesso para neles construírem padrões africanos de organização 
social. 
Em geral, esta forma de enfrentar a ordem escravista acaba predominando nas regiões rurais. É aí 
que, ao lado de grandes concentrações de cativos nas senzalas, nos deparamos com um rigor desenfreado 
na aplicação dos castigos, condições de trabalho desumanas, uma maior possibilidade de encontrar 
facilmente esconderijos naturais e de dar vida tanto a uma economia de subsistência como a ações que 
visam a defesa e a ampliação do próprio quilombo em povoados chamados de mocambos.4
 Dados mais detalhados sobre este processo são discutidos em Carlos Eugênio Líbano Soares (59), pg. 125-150. 
 13 
Por ser uma crítica viva à escravidão, os quilombolas são temidos pelos brancos a tal ponto que 
qualquer ajuntamento de africanos fugidos do cativeiro já é considerado alvo de ataque e eliminação 
independentemente do número de pessoas que nele se escondem. 
Num dispositivo governamental de 6 de março de 1741, por exemplo, é considerado quilombo o 
lugar onde encontram-se reunidos cinco escravos. E, em 20 de agosto de 1847, a Assembléia Provincial 
do Maranhão aprova a Lei N.º 236 que, no artigo 12 diz: Reputar-se-á escravo quilombado, logo que 
esteja no interior das matas, vizinho ou distante de qualquer estabelecimento, aquele que estiver em 
reunião de dois ou mais com casa ou rancho. Para a elite maranhense, a reunião de dois negros em fuga 
sob o teto da mesma choça já cheira a conspiração”. 
- “A sua explicação deixa uma vontade de conhecer um pouco mais a vida e as relações que são 
construídas no interior destes refúgios onde os escravos fugidos buscam abrigo”, confessam os lábios 
numa intervenção inesperada que surpreende o próprio faro da coruja. 
- “É pra já! – responde a ave com um brilho especial no olhar. Mas, como a explicação não é das 
breves, é bom você levantar, tomar um café e dar uma boa espreguiçada porque vem aí o capítulo no qual 
vou tratar de...” 
 
2. O quilombo de Palmares. 
 
Recuperadas as energias, o corpo assume novamente o seu lugar na mesa. Esticados, os braços se 
alongam sobre as folhas do relato enquanto o entrelaçar-se dos dedos parece prepará-los para a etapa que 
está por vir. 
Apóiando o queixo na ponta da asa esquerda, Nádia retoma pensativa o caminho já percorrido. O 
silêncio de reflexão só é rompido pelo rápido virar das folhas e pelos gestos com os quais a direita parece 
desenhar no ar o que está preste a ser transformado em palavras. Limpada a garganta, um “É isso!” 
pronunciado em alto e bom som sinaliza que a ave já está pronta para iniciar os trabalhos. 
- “Em primeiro lugar – diz a coruja cadenciando as palavras – vale a pena lembrar que o quilombo 
de Palmares ganha este nome porque na região onde serão construídas suas aldeias abundam várias 
espécies de palmeiras. Estas, mescladas a espinhos, cipós e arbustos típicos da floresta tropical, dão 
origem a uma mata fechada que, em muitos trechos, forma uma barreira natural impenetrável. 
Quase nada sabemos sobre os escravos que dão origem a este quilombo, mas alguns relatos 
apontam o ano de 1597 como o período provável de sua fundação. Durante uma noite, um grupo de, 
aproximadamente, 40 cativos teria fugido de um engenho da capitania de Pernambuco, atual estado de 
Alagoas, após massacrar a população livre que aí se encontra. Sabendo que a notícia se espalharia 
rapidamente pelas áreas vizinhas e que logo estariam sendo perseguidos, aos rebelados não resta outra 
saída a não ser a fuga. Em sua peregrinação, chegam a um lugar áspero e montanhoso onde de uma das 
serras, muito íngreme, se pode observar toda a região. No topo desta, que, pela sua forma, ganha o nome 
de Serra da Barriga, vão abrir clareiras e levantar choças cobertas de palha. 
De início, o medo dos castigos, os perigos e as dificuldades da vida na selva levam bem poucos 
negros a fugirem para Palmares. Pressionados pelas necessidades, os quilombolas não demoram em 
realizar incursões nas fazendas e engenhos mais próximos com o intuito de seqüestrar escravos, raptar 
mulheres, se abastecer de armas, pólvora, ferramentas de trabalho, além de, não poucas vezes, exercer sua 
vingança ateando fogo nas plantações e matando os feitores. 
Diante destes assaltos, os senhores de engenho se defendem como podem. No início do século 
XVII, a gravidade do problema atrai as atenções das autoridades coloniais. Em 1602, Diogo Botelho, 
terceiro governador geral do Brasil, organiza a primeira expedição contra o quilombo. Esta retorna 
dizendo ter desbaratado o refúgio dos negros, mas, seis anos depois, a notícia de que Palmares continua 
dando muitas dores de cabeça é levada ao rei de Portugal por Diogo de Menezes. 
Sobrevividos aos primeiros ataques, os rebeldes palmarinos vão intensificando suas ações. A fama 
de Palmares aumenta e estimula novas fugas de escravos que vão se somando à população quilombola”. 
- “Bom, depois de falar da sua origem, será que daria para dizer algo sobre como é a vida neste 
reduto de negros fugidos?”, solicitam os lábios entre a curiosidade e o temor de que a pergunta acabe 
aumentando o trabalho de redação. 
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Balançando a cabeça em sinal de aprovação, a ave começa a organizar as idéias. Após um 
rápido bater de asas que espalha pó e ferrugem sobre os papéis já escritos, Nádia fixa o olhar na caneta 
ainda imóvel e diz: 
- “Dos fragmentos de história que falam deste momento, sabemos que, para poder matar a fome, 
os palmarinos se dedicam inicialmente à caça, pesca, à coleta de frutas e raízes. Com o tempo, criam 
instrumentos de madeira para lavrar a terra e, após encontrar minério de ferro em seu território, começam 
a forjar armas de corte e ferramentas para o trabalho agrícola. 
Nas clareiras abertas na mata, as terras recebem plantações de milho, feijão, mandioca, batata, 
cana-de-açúcar, legumes, uma grande variedade de árvores frutíferas ao mesmo tempo em que nas aldeias 
do quilombo se criam porcos e galinhas. 
Os cativos que fogem para Palmares são inicialmente submetidos a um período de prova durante o 
qual executam vários trabalhos. Julgados merecedores de confiança, ingressam numa família e começam 
a ter acesso à terra. 
Pouco a pouco, a penúria dos primeiros tempos é vencida graças a um trabalho coletivo que 
desenvolve uma economia comunitária de auto-subsistência onde, fora os objetos de uso pessoal, as 
terras, os instrumentos de trabalho, as casas e as oficinas pertencem ao mocambo. Com base na 
propriedade coletiva de todos estes recursos, as famílias cultivam a terra não só para o próprio sustento, 
mas também para produzir um excedente a ser utilizado por toda a comunidade. Além de servir de 
provisão para a ocorrência de períodos de seca, pragas ou ataques externos, esta parte da produção é 
destinada à alimentação de guerreiros, idosos, doentes e artesãos que não realizam trabalhos agrícolas. 
Entre a população dos mocambos palmarinos, os homens constituem a esmagadora maioria. Como 
nas fazendas e nos engenhos a maior parte dos escravos é do sexo masculino, o número de mulheres que 
fogem para o quilombo é, proporcionalmente, bem menor. A constante penúria de representantes do 
gênero feminino dá origem à família poliândrica, na qual uma mulher se relaciona com mais homens de 
uma mesma aldeia. Na divisão do trabalho, a esmagadora maioria dos homens está empenhada nas 
atividades produtivas ao passo que às mulheres, chefes dos núcleos familiares assim constituídos, cabe a 
organização, a coordenação e a supervisão das várias atividades produtivas. 
Além disso, é importante lembrar que os membros da comunidade palmarina têm origem étnica 
diferenciada e que a presença de índios, pardos e brancos em seu meio acaba atenuando as características 
das identidades tribais africanas. Desta mistura, nasce uma língua na qual dominam as expressões dos 
idiomas falados pelos negros, mas que incorpora elementos tanto do tupi como do português. Processo 
bem parecido ocorre também com a religiosidade onde as imagens das divindades cultuadas na África 
partilham altares com as de Jesus, Nossa Senhora da Conceição e São Brás. 
Pouco sabemos das instituições políticas anteriores a 1630. Os documentos existentes revelam que 
todos os moradores reunidos em assembléia escolhem os membros de um conselho. Este, por sua vez, 
elege umchefe, cujos poderes, apesar de amplos, não dispensam a consulta popular quando estão em jogo 
decisões cruciais para a vida do quilombo. Nesta época, o número de negros congregados na Serra da 
Barriga não passa de mil e seus esforços de ampliar a revolta entre a massa escrava dificilmente seriam 
coroados de sucesso não fosse por uma ajuda tão inesperada quanto decisiva: o ataque holandês a 
Pernambuco”. 
- “Holandeses...?!? Na capitania de Pernambuco...?!? Por que é que eles resolvem vir até aqui? E o 
que é que isso tem a ver com Palmares?”, prorrompe a língua numa seqüência de perguntas. 
Após um longo suspiro, a coruja levanta as asas e fechando os olhos diz: 
- “Calma! Uma coisa por vez! Pra início de conversa, é bom lembrar que, até a segunda metade do 
século XVI, os territórios dos atuais estados da Bélgica e da Holanda são parte do Reino da Espanha. 
Com o progresso das cidades que neles se desenvolvem vai florescendo também uma próspera burguesia 
de comerciantes e agiotas. A adesão desta à reforma protestante fortalece o seu espírito nacionalista e 
acaba incentivando a luta contra a dominação espanhola. A situação se torna cada vez mais tensa até que, 
em 1567, os comerciantes holandeses organizam uma rebelião contra o rei da Espanha que, há tempo, 
vem cobrando salgados impostos sobre suas atividades. 
Em resposta, os ibéricos enviam uma expedição punitiva que só consegue exacerbar os ânimos. Os 
enfrentamentos continuam até 1609 quando a Espanha se vê obrigada a assinar uma trégua na qual 
reconhece a separação dos territórios. 
 15 
No início do século XVII, a República das Províncias Unidas (Holanda e Bélgica) possui uma 
frota de navios mercantes bem superior a de todos os países europeus juntos e suas principais cidades são 
as maiores praças financeiras e mercantis do continente. Quanto ao Brasil, o que você não sabe é que, até 
este momento, são os comerciantes daquelas terras a financiar parte da instalação dos engenhos, além de 
controlar uma boa fatia do transporte e da comercialização do açúcar. 
O problema é que, após a guerra, o trono português passa para as mãos da Espanha, e estes 
negócios extremamente lucrativos correm o risco de ir por água abaixo na medida em que o rei espanhol 
proíbe terminantemente que os holandeses comercializem os gêneros produzidos nas colônias do seu 
reino. Diante desta realidade, a burguesia da República das Províncias Unidas se vê obrigada a ir buscar 
tais produtos nos países de origem, ou seja, a se instalar em territórios coloniais já ocupados por outras 
nações européias. 
O açúcar brasileiro está entre as mercadorias mais cobiçadas. Por isso, após várias tentativas, em 
fevereiro de 1630, o litoral de Pernambuco é invadido pelas tropas holandesas na altura da cidade de 
Olinda. Cinco anos depois, graças ao apoio de setores da elite local, estas mesmas forças já detêm o 
controle das capitanias de Pernambuco, Itamaracá, Paraíba e Rio Grande do Norte. 
Silenciadas as armas, banqueiros e companhias comerciais impulsionam a retomada da produção 
açucareira através de empréstimos destinados à reconstrução dos engenhos destruídos ou depredados 
durante a guerra enquanto a esquadra holandesa ajuda a superar a escassez de escravos investindo pesado 
nas rotas do tráfico com a África. 
Em 1644, porém, as relações entre os novos colonizadores e os proprietários dos engenhos 
começam a se complicar na medida em que os últimos não têm condições de pagar as altas taxas de juros 
que pesam sobre os créditos obtidos. Diante de um possível calote, os credores respondem ameaçando 
confiscar terras, bens, gado e escravos como forma de saldar as dívidas. Esta medida alimenta o ódio dos 
senhores e a idéia de expulsar os holandeses começa a ganhar consistência. 
Os primeiros sinais de revolta explodem no Recife em 13 de junho de 1645. Aos vários 
enfrentamentos que se sucedem, em 1652, acaba se somando a declaração de guerra da Inglaterra que 
obriga a República das Províncias Unidas a desviar amplos recursos para responder às investidas das 
forças armadas inimigas. Ao mesmo tempo, Londres começa a abastecer de armas, dinheiro e munições 
os revoltosos pernambucanos de cuja ação espera um ulterior enfraquecimento da capacidade de resposta 
da Holanda, sua direta concorrente na disputa pela hegemonia marítima e comercial. 
No ano seguinte, a frota de guerra portuguesa chega ao litoral de Pernambuco. Enfraquecidos 
pelas derrotas diante dos ingleses e sem condições de sustentar seus domínios no Brasil, em 26 de janeiro 
de 1654, aos holandeses não resta outra alternativa a não ser a de assinar a rendição”. 
- “E...o que é que isso tem a ver com Palmares?”, questiona o secretário enquanto a coruja faz uma 
pausa para retomar o fôlego. 
- “Simples, meu querido bípede apressado! – responde Nádia demonstrando não ter perdido o fio 
da meada. Se o seu cérebro acompanhou o desenrolar dos acontecimentos, não vai ter dificuldade em 
perceber que tempo de guerra é sinônimo não só de tensão, como de grande confusão. A debandada das 
autoridades coloniais portuguesas, o êxodo de senhores de engenho para o sul e a mobilização militar para 
enfrentar os holandeses provocam a desorganização do sistema de vigilância e repressão da qual se 
aproveitam tanto os índios quanto os negros. 
Esta situação desencadeia uma sucessão de fugas espontâneas e isoladas, desarticuladas entre si e 
sem um nível de organização consciente. Em alguns casos, os escravos aproveitam para acertar contas 
com amos e feitores, incendeiam os canaviais, destroem os engenhos e, munidos de armas de fogo, facões 
e lanças, se dirigem para Palmares. 
Após sua incorporação no quilombo, os fugitivos são organizados em colunas cujas expedições 
vingadoras pelo litoral da capitania apressam a derrota dos portugueses e assustam os próprios holandeses 
sob cuja dominação as condições de vida e de trabalho da massa escrava se tornam ainda mais amargas. O 
maior rigor na aplicação dos castigos visa não só coibir as possibilidades de novas rebeliões como 
arrancar mais trabalho dos africanos recém-chegados para pagar os juros extorsivos e preservar o padrão 
de vida dos senhores de engenho. 
Mesmo assim, a quantidade de escravos que aproveita da invasão holandesa para fugir é tamanha 
que, em pouco tempo, o quilombo fica superpovoado. Isso leva os negros a fundarem novos mocambos 
no interior da Serra da Barriga e até longe dela, em lugares onde as terras são férteis e podem ser 
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facilmente defendidas. De acordo com uma crônica de 1678, a população de Palmares chega a ser 
estimada em cerca de 20.000 pessoas. 
Majoritariamente composto por negros de origem africana, o quilombo abriga também um 
crescente número de índios, mamelucos, pardos e brancos que, durante a invasão holandesa, aí se 
refugiam para escapar de um conflito em cujo desfecho não têm o menor interesse. A fartura que agora 
reina em território palmarino atrai tanto pequenos proprietários das redondezas como até mesmo soldados 
das expedições organizadas para destruir os mocambos. 
A laboriosidade dos quilombolas, reconhecida pelas próprias autoridades portuguesas, não deixa 
dúvidas quanto ao fato de que é por ser escravo, e não por ser negro, que o africano trazido pelos 
traficantes produz pouco e mal nas plantações e nos engenhos. 
Em tempo de paz, o aumento da população acompanhado pela expansão das roças e das atividades 
artesanais produz excedentes que começam 
a ser trocados por armas, munições e sal em 
vários pontos da capitania. Em muitos 
povoados, o intercâmbio pacífico cria uma 
rede de interesses que se opõe aos que 
procuram destruir Palmares. Compostos por 
camponeses que não se utilizam de trabalho 
escravo, seus moradores atuam no sentidode conviver com os mocambos. Pois, caso 
estes venham a sucumbir, as pastagens e as 
roças formadas para a própria subsistência 
acabariam nas mãos dos grandes 
proprietários pernambucanos aos quais 
haviam sido legalmente cedidas pela coroa 
ou pelos governantes locais. Por isso, além 
de servir de base avançada para as incursões 
quilombolas, estes setores se preocupam em 
fornecer-lhes informações sobre as posições 
do inimigo e em criar empecilhos às 
expedições punitivas”. 
- “Sendo assim, podemos concluir 
que Palmares tem um futuro promissor...”, 
conclui o humano sem esconder sua 
intenção de reduzir o trabalho que lhe cabe. 
Em resposta à tentativa de chegar 
logo aos finalmentes, a ave deixa 
transparecer um sorriso maroto. O balançar 
da cabeça sinaliza que o resgate deste capítulo da história ainda vai conhecer novas etapas e, ao recostar o 
corpo na pilha de livros, não perde a chance de repreender o seu ajudante: 
- “A pressa é sempre uma péssima conselheira, sobretudo quando se trata de analisar as lutas dos 
oprimidos. Por isso, espante a preguiça e use as energias para entender as pegadas que o passado faz 
chegar até nós! 
Contrariando suas expectativas, o quilombo começa a enfrentar problemas sérios justo após a 
derrota dos holandeses, quando as autoridades coloniais portuguesas se voltam para a tarefa de destruir o 
inimigo interno que se esconde nas matas. Além da urgência de extinguir um perigoso foco de rebeldia 
escrava, outras três razões levam a elite a investir contra os mocambos palmarinos. 
A primeira delas deita raízes na necessidade de envolver nestas campanhas militares a multidão de 
famintos e belicosos ex-combatentes que, vencida a guerra contra a Holanda, reivindicam as recompensas 
prometidas como pagamento dos sacrifícios suportados. Como as terras arrebatadas já foram apropriadas 
pelos senhores de engenho, a única maneira de reduzir o descontentamento deste contingente é envolvê-lo 
num novo projeto de conquista como condição para ter acesso a um mais gordo botim. 
Ao lado deste grupo, há outro formado por negros que entre a escravidão e a promessa de deixar o 
cativeiro, caso viessem a integrar as tropas portuguesas, haviam escolhido a segunda possibilidade por 
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acreditar que, em caso de vitória, conquistariam de vez a própria liberdade. Desiludido com a não 
ratificação de suas alforrias, parte deles se integra a Palmares enquanto os demais não hesitam em dar 
sinais claros de insubordinação. 
Última, mas não menos importante, é a posição dos senhores de engenho em função dos prejuízos 
sofridos durante a guerra. O desejo de recuperar os escravos fugidos é fartamente alimentado pela 
prostração econômica da capitania onde a falta de recursos impede a importação imediata de africanos em 
número suficiente para recuperar as lavouras. Sabendo que, nesta época, 200 cativos têm o mesmo valor 
de um engenho de primeira categoria, ninguém vai ter dificuldades em entender porque a perspectiva de 
caçar negros em Palmares ganha um incentivo econômico que não pode ser desconsiderado. 
Impulsionadas por estas razões, no segundo semestre de 1654, as autoridades coloniais iniciam 
uma série de expedições militares que se estendem até 1659. Além de fracassarem ou conseguirem 
resultados bem inferiores ao esperado, os palmarinos capturados não se submetem ao trabalho escravo e, 
cedo ou tarde, acabam fugindo novamente para o quilombo”. 
- “Que mal lhe pergunte, por que todas estas investidas armadas acabam sendo derrotadas?”. 
- Como já disse nas páginas anteriores, a região ocupada pelo quilombo é de mata fechada e de 
difícil acesso. Além de impedir a localização exata dos mocambos e de ocultar os guerreiros palmarinos, 
a própria selva impõe enormes dificuldades às expedições que procuram destruir os redutos de resistência. 
Nesta época, entre o litoral e a Serra da Barriga, não há nenhum caminho pelo qual possam transitar 
carros e carruagens. Isso significa que, além da rede para dormir e das roupas, cada soldado deve carregar 
nas costas uma pesada mochila com todos os mantimentos aos quais se somam uma boa porção de 
pólvora, balas, espingarda, espada, facão e cabaça de água. 
Com a coluna marchando em fila indiana entre despenhadeiros e áreas onde a vegetação dificulta 
o seu avançar, os comandantes não só não podem contar com a vantagem tática da surpresa, como são 
vítimas dos quilombolas que se ocultam na mata. As condições adversas do clima, a fadiga, as doenças e 
a fome, via de regra, se encarregam sozinhas de dobrar a resistência dos expedicionários. Quando as 
coisas se complicam, graças à rede de informantes espalhados pelos povoados, os chefes conseguem 
evacuar os mocambos abrangidos pelos planos inimigos e esconder suas populações selva adentro. 
Ao chegarem num destes, os comandantes acampam suas colunas e, em seguida, enviam pequenos 
grupos de soldados para vasculhar o mato. Contando com o conhecimento do terreno, os palmarinos 
provocam os destacamentos a fim de afastá-los de suas bases para, em seguida, desferir contra eles 
ataques que costumam ser mortais. 
A aparente superioridade bélica das forças oficias é neutralizada pelo peso excessivo do 
armamento e pela demora na repetição dos tiros, o que permite aos negros usar com certa vantagem as 
armas de que dispõem em ataques rápidos e desconcertantes seguidos de fugas para o interior da selva. 
Pouco a pouco, estes elementos criam as condições para que o desespero e o pânico tomem conta 
das tropas oficiais e levem muitos soldados a desertarem. Frente a esta realidade, as autoridades coloniais 
se deparam com dois problemas essenciais: a exata localização das povoações palmarinas e o 
desenvolvimento de uma tática militar adequada ao meio geográfico. 
Enquanto isso, entre 1667 e 1670, os quilombolas multiplicam suas ofensivas nas redondezas de 
Serinhaém, Ipojuca, Porto Calvo e Penedo com o objetivo de libertar os escravos das fazendas e dos 
engenhos, justiçar amos e feitores, conseguir armas e munições, queimar os canaviais e mergulhar o 
inimigo num clima de terror. 
Nos anos seguintes, as coisas não são muito diferentes e os governantes reagem preparando novas 
expedições e prometendo a quem delas participasse a propriedade dos negros aprisionados, o perdão dos 
crimes cometidos e, aos nobres, a nomeação para funções da vida pública. Apesar das dificuldades, as 
tropas oficiais começam a lançar mão de uma tática adotada com sucesso contra os índios na Bahia: 
construir casas fortificadas e entrepostos que servem de bases avançadas às quais são remetidas 
mensalmente determinadas quantidades de comida, armas, munições e demais recursos necessários para 
prolongar os assaltos e destruir os meios de sobrevivência dos adversários. 
Além de reduzir a distância entre os soldados e os centros de abastecimento, a presença de 
destacamentos fixos permite oferecer um tratamento brando aos quilombolas que se rendem e uma ação 
mais rigorosa contra os que, ao oferecer resistência, caem nas malhas da repressão”. 
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- “Pelo que você acaba de dizer, as forças coloniais começam a mudar sua forma de atuação. 
Mas, enquanto isso dá os primeiros passos, o que está acontecendo em Palmares? Será que a organização 
do quilombo permanece igual ao que era?” 
- “Na verdade – responde Nádia ao piscar os olhos -, a ampliação do número de escravos que aí se 
refugiam leva os mocambos palmarinos a desenvolverem uma estrutura centralizada, e relativamente 
complexa, que busca aperfeiçoar tanto os vínculos de cooperação recíproca como os mecanismos de 
defesa militar propriamente ditos. Além de trocarem informações, se ajudarem em tempos de seca e más 
colheitas ou abrigarem as povoações atingidas pelas expedições coloniais, osquilombolas criam formas 
de assistência militar para enviar comandantes e destacamentos de guerreiros a defender as áreas 
ameaçadas pelo inimigo comum. 
Ao que tudo indica, os moradores de cada mocambo elegem em assembléia um grupo de 
autoridades chamadas Maiorais às quais cabe exercer funções político-administrativas e que gozam de 
completa autonomia para as questões locais. Ao lado delas, encontramos os Cabos-de-guerra, 
comandantes militares designados pelo que podemos chamar de chefe de estado da confederação 
palmarina e aprovados pelo seu conselho, composto por representantes dos Maiorais. 
Apesar de sua posição hierárquica, este chefe não detém um poder absoluto sobre seus 
subordinados devendo observar um complexo conjunto de normas que definem suas funções legais e 
militares. Escolhido por sua coragem, força e capacidade de comando, o ocupante deste posto pode ser 
destituído caso sua conduta não seja condizente com as normas do quilombo. O seu governo efetivo é 
circunscrito à área de Macaco, o principal povoado de Palmares, e não lhe é permitido tomar decisões que 
atingem os demais mocambos sem ouvir o conselho dos Maiorais. Entre as personagens que ocupam o 
cargo, encontramos Ganga-Zumba que chega na Serra da Barriga durante a ocupação holandesa e se 
empenha a celebrar o pacto de ajuda militar recíproca entre as povoações palmarinas. 
No que diz respeito às instituições militares, há uma milícia permanente de soldados profissionais 
distribuídos em guarnições pelos mocambos ou organizados em destacamentos móveis para as operações 
guerrilheiras. Nas situações de emergência, porém, todos os homens válidos são convocados a pegarem 
em armas. 
Apesar do crescente investimento no treinamento de suas forças armadas e de sua estrutura 
administrativa, a organização social de Palmares não nasce da necessidade de sufocar conflitos que 
deitam raízes numa ordem de exploração ou de privilégios, mas sim da urgência de assegurar a defesa e a 
sobrevivência do quilombo diante dos desafios impostos pelo seu crescimento interno e pelas expedições 
cada vez mais ameaçadoras organizadas pelas autoridades coloniais. 
Mas a vida em Palmares não é um mar de rosas – acrescenta a coruja preocupada em não 
mistificar um momento de luta. A expedição de 1677, comandada por Fernão Carrilho, impõe derrotas 
que desencadeiam um profundo descontentamento na massa palmarina. Esta acusa o seu chefe supremo, 
Ganga-Zumba, de ter agido com inépcia e irresponsabilidade ao comandar, bêbado, a principal operação 
de guerra contra as tropas coloniais que conseguem destruir o mocambo de Amaro (com mais de mil 
casas) e capturar dezenas de guerreiros, além de autoridades locais e de dois filhos de Ganga-Zumba. 
Em todos os vilarejos do quilombo, com exceção de Macaco, a população realiza assembléias que 
pedem a deposição do chefe palmarino. Levada ao conselho geral, esta proposta acaba sendo derrotada 
pelas manobras internas de Ganga-Zumba. 
Longe de diminuir, o descontentamento em relação ao chefe supremo aumenta e Zumbi conspira 
para depô-lo pela força. Sentindo-se ameaçado, Ganga-Zumba aceita iniciar as conversações de paz que 
as autoridades coloniais vêm oferecendo após a expedição de Fernão Carrilho. Deste processo nasce o 
Pacto de Recife, assinado em 5 de novembro de 1678. A paz com os portugueses prevê a liberdade para 
os nascidos no interior do quilombo (o que implica em reconduzir os demais ao cativeiro), a concessão de 
terras para viverem e cultivarem, a garantia de poder comercializar os próprios produtos com os povoados 
vizinhos e a outorga do título de vassalo da coroa a Ganga-Zumba. 
Os termos do acordo acirram a oposição e as resistências internas, sobretudo pela cláusula que 
devolve à senzala todos os fugitivos abrigados no quilombo. O número reduzido dos que seguem o antigo 
chefe (de 300 a 400 pessoas) revela a falta de confiança dos palmarinos nos compromissos assinados 
pelas autoridades coloniais. 
Diante dos acontecimentos, Zumbi reúne os guerreiros do seu mocambo e marcha contra os que 
ainda se mantêm fiéis a Ganga-Zumba. Com as adesões conseguidas em sua jornada, o novo líder leva as 
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tropas rumo ao principal mocambo de Palmares. Percebendo a impossibilidade de enfrentar seus 
adversários, Ganga-Zumba foge para Cacaú. Mas, após derrotar uma frágil resistência armada, as forças 
leais a Zumbi ocupam Macaco e este assume o cargo mais alto da confederação palmarina. 
Apesar da vitória, os problemas estão longe de terminar. De um lado, a deserção de importantes 
comandantes militares, fugidos com Ganga-Zumba, leva a crer que, de agora em diante, os portugueses 
contam com informações completas sobre a vida e a organização de Palmares. De outro, nem toda a 
população e autoridades de Macaco se dispõem a serem fiéis ao novo chefe. 
Sem perder tempo, Zumbi subordina a vida do quilombo às exigências da guerra contra as 
expedições oficiais. De um lado, promove um sangrento expurgo dos partidários de Ganga-Zumba, e, de 
outro, desloca mocambos para lugares estrategicamente mais seguros, acelera a busca de armas e 
munições, intensifica o adestramento militar de todos os homens válidos, multiplica os pontos de 
vigilância e observação nas orlas das matas, reforça o sistema defensivo de Macaco e decreta uma lei pela 
qual toda tentativa de deserção é punida com a morte”. 
- “Pelo visto, isso altera vários aspectos da sociedade palmarina. Mas será que antes de passar aos 
próximos acontecimentos, você poderia dizer mais alguma coisa sobre Zumbi?”, pede o secretário ao 
procurar entender melhor a figura deste homem que intervém de forma decisiva num momento crítico da 
vida de Palmares. 
Ouvida a solicitação, a ave começa a andar pensativa de um lado a outro da mesa. Após instantes 
de silêncio nos quais a memória tenta recuperar as informações disponíveis, o franzir das plumas da testa 
anuncia que pode atender o novo pedido. Só mais um rápido piscar de olhos e... 
- “Das poucas notícias que temos, parece que Zumbi nasce em 1655 num dos vários mocambos 
palmarinos. Capturado naquele mesmo ano pela expedição comandada por Brás da Rocha Cardoso, o 
menino é dado como presente ao padre português Antonio Melo, do distrito de Porto Calvo, próximo à 
região de Palmares. Nas cartas escritas pelo padre a um amigo da cidade do Porto, em Portugal, consta 
que, após batizá-lo com o nome de Francisco, lhe ensina a ler, o faz seu coroinha, mas nunca chega a 
tratá-lo como escravo. 
Em 1670, porém, para surpresa do próprio Antonio Melo, o adolescente de 15 anos foge para 
Palmares, onde assume o nome de Zumbi. Anos depois, quando já é chefe do quilombo, Zumbi volta a 
visitar o padre que o acolheu pelo menos três vezes e, sabendo da miséria em que este se encontra, lhe 
leva alguns presentes. 
Em 1672, é eleito Maioral e, no ano seguinte, se torna Cabo-de-guerra após os combates que 
levam à derrota da expedição de José Bezerra. Aos 22 anos, Zumbi comanda parte das milícias 
palmarinas contra as investidas das tropas e Fernão Carrilho, ocasião na qual a direção geral das 
operações militares está nas mãos de Ganga-Zumba. 
Não existem relatos que comprovem o seu casamento com uma mulher branca chamada Maria que 
o teria supostamente acompanhado após uma incursão num engenho. Consta que deve ter tido, pelo 
menos, cinco filhos e que durante uma batalha contra os homens de Manuel López Galvão, recebe um 
ferimento que o deixa coxo. 
A sua coragem e o seu espírito de liderança impressionam também as autoridades coloniais. Numa 
crônica encomendada pelo governador Pedro Almeida, Zumbi é descrito como negro de singular valor, 
grande ânimo e constância rara cuja capacidade de ação juízo e fortaleza aos nossos serve de embaraço e 
aos seus de exemplo”.5

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