as barreiras sociais e convencionais; libertos de sua própria identidade, eles atingem a união universal na relação que mantêm entre si. Retomando a imagem que Schopenhauer já utilizara antes do Véu de Maia para falar do mundo da representação, Nietzsche afirmará que as festas dionisíacas, na medida em que lançam os seres naquela unidade, conseguem rasgar esse Véu. Em uma palavra: os indivíduos rompem com esse mundo das aparências apolíneas. Aos olhos de Nietzsche, os gregos souberam dar vazão aos impulsos naturais criando o seu “vasto mundo” artístico. Para explicar como isso ocorreu, o filósofo alemão tende a tomar como ponto de partida sempre o mundo do epos homérico. Para ele, os gregos educados sob a égide de Homero viam em seu passado um elemento bárbaro grosseiro do qual queriam afastar-se; devemos enxergar aí aquele jogo do apolíneo e do dionisíaco, uma vez que esse olhar do homem homérico em relação ao passado não significa outra coisa senão a imposição de 50 Apolo para que os indivíduos conheçam os seus limites. Daí eles se afastarem do atávico elemento bárbaro. Num texto dedicado à influência de Homero no mundo grego, escrito à mesma época de O nascimento da tragédia, Nietzsche afirma: para onde olharíamos, se nos encaminhássemos para trás, para o mundo pré-homérico, sem a condução e a proteção da mão de Homero? Olharíamos apenas para a noite e o terror, para o produto de uma fantasia acostumada ao horrível. Que existência terrestre refletem os medonhos perversos mitos teogônicos? - Uma vida dominada pelos filhos da noite, a guerra, a obsessão, o engano, a velhice e a morte (CV/CP, A disputa de Homero ). Gênio maior da cultura grega, Homero será caracterizado por Nietzsche como o escopo visado pela vontade. Naquele alvo a ser atingido pelo Uno-primordial, o bardo grego surge como antídoto à dor e a contradição. Ele é o artista capaz de transfigurar todo aquele horror originário por meio de sua arte. Nietzsche concebe que o povo heleno, com uma sensibilidade sobejamente desenvolvida, sempre esteve apto a sentir de forma visceral o espetáculo grosseiro do vir a ser. A própria religião mítica demonstrava o quanto o mundo está repleto por toda parte de sofrer, dor, ilusão, luta, morte e malogros vários. A fim de transfigurarem tal realidade, os gregos espelharam em seus deuses uma visão de mundo que os impedisse de sucumbir ante a própria realidade. Ao olharem para os seus deuses, eles vêem que as divindades nascem do Caos, da Noite, e que a constituição definitiva do Olimpo só é possível depois de titanomaquias, parricídios e de lutas que dão cabo desse mundo tenebroso originário. Segundo o filósofo alemão, só assim aos gregos foi possível não sucumbirem num pessimismo atroz e aniquilador: os deuses legitimam a vida humana, vivendo-a eles mesmos – a única teodicéia satisfatória (die allein genügende Theodicee)! A existência sob a clara luz solar de tais deuses é sentida como o desejável em si mesmo, e o que é propriamente dor 51 para os homens homéricos refere-se a deixá-la e, sobretudo, a deixá-la logo (GT/NT § 3 – tradução de RRTF). Nietzsche julga que a excelência de Homero está em que ele conseguiu dar aos gregos um acabamento para seus mitos. Simbolizando a concepção terrível que jaz na própria natureza, o autor da Ilíada torna suportável viver num mundo regido pelo eterno vir a ser, no qual tudo nasce e perece de forma inexorável. Acerca dessa forma de poesia homérica, o filósofo irá contrapor-se à visão que dela têm os modernos, uma vez que eles vêem naquela poesia uma harmonia com a natureza, e de cujos versos saltariam aquela noção cunhada por Schiller de ingênuo [naïf]. Segundo Nietzsche, nada atentaria mais contra o espírito dos épicos homéricos do que enxergar neles uma relação naturalmente harmoniosa com o mundo. Com efeito, pelo que se pode perceber da exposição nietzschiana, antes de haver uma afirmação espontânea da natureza, é preciso vencer toda uma realidade assombrosa. Destarte, ao invés de cantar harmoniosamente a natureza, Homero afirma-a por meio de uma transfiguração dela. Se os épicos homéricos simbolizam em sua essência o ápice do impulso apolíneo, é à música que Nietzsche reserva o caráter de arte dionisíaca por excelência. Uma vez que simbolizam aquela dinâmica do Uno-primordial com a vontade e a representação, as artes também estão submetidas a uma hierarquia. Daquilo que Nietzsche herdou do pensamento schopenhaueriano, certamente essa visão qualitativa do mundo artístico é a mais decisiva. Na filosofia de Schopenhauer, toda arte tem como finalidade levar os homens a reconhecerem as idéias. Estas, como vimos, são a objetidade imediata e adequada da vontade. Nos gêneros artísticos, a vontade é objetivada desde suas manifestações mais baixas até a mais alta. Esse crescendo vai da arquitetura até a tragédia, que ele considera a 52 mais elevada forma das artes poéticas. A música, porém, está fora dessa escala feita por Schopenhauer. Isso porque ela não está presa a esse mesmo esquema; ela está para além das próprias idéias que se dão a conhecer nas artes. A música, com efeito, é uma objetidade, uma cópia tão imediata de toda vontade como o mundo o é, como o são as próprias idéias cujo fenômeno múltiplo constitui o mundo dos objetos individuais. Ela não é, portanto, como as outras artes, uma reprodução das idéias, mas uma reprodução da vontade como as próprias idéias (O mundo como vontade e representação § 51). Tal como Schopenhauer, Nietzsche vai atribuir à música uma superioridade em relação às demais artes: “ela [a música] se refere simbolicamente à contradição e à dor existentes no coração do Uno-primordial, e, portanto, simboliza uma esfera que está acima e antes de toda aparência” (GT/NT § 6). Agora, Nietzsche precisa mostrar como a música se efetiva no mundo grego, tal como fizera com a arte apolínea em relação a Homero. Nesse sentido, cumpre lembrar que, quando o impulso apolíneo das belas formas suprime o caráter dionisíaco, ou seja, aquele ponto em que na história dos gregos eles olham para seu passado e consideram um perigo os elementos bárbaros, o que ficava extirpado aí junto com essa proscrição era a música de Dioniso por trás de suas artes. Quando olhava as festas dionisíacas asiáticas e via nelas um elemento bárbaro grosseiro, os helenos condenavam também a música que havia nessas celebrações. Mas, segundo Nietzsche, Apolo não consegue domar o deus seu oponente ad infinitum. Voltando ao modo como o impulso dionisíaco irrompeu na Grécia apolínea, é interessante notar que a princípio o filósofo não tratará especificamente da música grega, mas encetará essa discussão dando a um outro poeta o atributo de artista dionisíaco. Seu nome é Arquíloco. Como antes havíamos nos referido, não só à música havia sido dada a qualificação de arte do deus Bárbaro, mas também à 53 poesia lírica. Nesse sentido, Nietzsche desconsidera por completo aquela distinção estética entre artistas objetivos e subjetivos; sobretudo porque ela desmerecia sobejamente os últimos. Em verdade, ele vai pôr de ponta cabeça essa hierarquia. Enquanto artista dionisíaco, o poeta lírico é superior ao épico, uma vez que sua arte está em condição de simbolizar mais verdadeiramente o coração do Uno- primordial. Numa carta de 18 de março de 179617 , Schiller afirma a Goethe que sua inspiração poética primeiro lhe aparecia como forma musical e só depois é que lhe vinham as imagens e os conceitos. Essa inspiração de que fala o poeta será decisiva para Nietzsche. Como arte dionisíaca, a música é o símbolo da vontade, estando mais próxima, portanto, do Uno-primordial. De acordo