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TEORIA UTERÁRlA E ESCRITA DA mSTÓRIA 23 
por sua obra, que certamente só fará aumentar com o lançamento previsto para 
1994, pela mesma editora, de Trapica of discourse. 
A disponibilidade de Hayden White para entrar em contato com o Brasil e o 
interesse que vem manifestando nestes dias em estreitar relaçõee com a comuni­
dade acadêmica brasileira acentuaram a impr"""ão original que tive em 1988, 
quando o ouvi primeira vez na Universidade de Santa Cruz, California, de que 
estava diante de 11m intelectual que é movido pela generosidade, pela inquietação 
e pelo projeto de deixar aberta e permanentemente d"""rUlda a atividade de 
pesquisa, o artesanato intelectual. 
Em nome dos pesquisadores e documentalistaa do CPDOC, abro esta OC8Sáo de 
trabalho agradecendo ao professor Hayden White por ter tão pronta e delicadamen­
te aceitado o nosso convite. 
m ensaio recente, Jacques Bar­
zun caracterizou-se a si próprio 
como ''um estudioso de história ... an­
terioJ'luente envolvido no estranho ri­
tual de ensiná-la" e acrescentou: "es­
tranho, por�u,:, na verdade, ela só p0-
de ser lida". E claro que ao falar em 
"história" Barzun não estava se refe­
rindo aos acontecimentos reais do pas­
sado, e sim ao aprendizado acumulado 
de sua profISsão. Com essa breve ob­
servação, contudo, ele nos lembra al­
gumas verdades que a moderna teoria 
da história vem regularmente tenden­
do a esquecer: a saber, que a "história" 
que é o tema de todo esse aprendizado 
só é acessível por meio da linguagem; 
que nossa experiência da história é 
indissociável de nosso discurso sobre 
ela; que esse discurso tem que ser es­
crito antes de poder ser digerido como 
Rio de Janeiro, 14 de setembro de 1993 
Helena Bomeny 
Pesquisadora do CPDOC 
Professora da UERJ 
Socióloga 
"história"; e que essa experiência, por 
conseguinte, pode ser tão vária quanto 
os diferentes tipos de diacurso com que 
nos deparamos na própria história da 
escrita. 
Dentro dessa visão, a "história" é 
não apenas um objeto que podemos 
estudar e nosso estudo desse objeto, 
mas também, e até mesmo antes de 
tudo, um certo tipo de relação com "o 
passado" mediada por 11m tipo distinto 
, 
de discurso escrito. E porque o discurso 
histórico é atualizado em sua forma 
culturalmente significante como um ti­
po especifico de escrita que podemos 
considerar a importância da teoria li· 
terária tanto para a teoria como para 
a prática da historiografUl. 
Antes, porém, de começaI mos a dis­
cutir a importãncia da teoria literária 
para a escrita da história, é preciso 
24 ESruDOS HISTÓRICOS - 1994/18 
fazer algumas observações sobre o dis­
curso histórico e o tipo de conhecimen­
to com que ele lida. Em primeiro lugar, 
o discurso histórico só é possível quan­
do se pressupõe a existência do "passa­
do" como algo sobre que se pode falar 
de maneira significativa. Esta é a ra­
zão pela qual os historiadores nOllllal­
mente não se preocupam com a ques­
tão metafísica de decidir se o passado 
realmente existe ou com a questão epis­
temológica de defInir, se é que ele exis­
te, se podemos realmente conhecê-lo. A 
existência do passado é uma pressupo­
sição necessária do discurso histórico, 
e o fato de podermos realmente escre­
ver histórias é uma prova sufIciente de 
que podemos conhecê-lo. 
Mas, em segundo lugar, o discurso 
histórico, diferentemente do discurso 
científico, não preSBupõe que nosso co­
nhecimento da história derive de um 
método distinto para estudar os tipos 
de coisas que vêm a ser "passado" e não 
'1llesente". Os eventos, as pessoas, as 
estruturas e os processos do passado 
podem ser tomados como objetos de 
estudo por toda e qualquer disciplina 
das ciências humanas e sociais e, de 
fato, até mesmo por muitas das ciên­
cias iLSicas. Na verdade, é apenas na 
medida em que são passado ou são 
efetivamente tratadas como tal que es­
sas entidades podem ser estudadas 
historicamente; mas não é a sua condi­
ção de passado que as torna históricas. 
Elas se tornam históricas apenas na 
medida em que são representadas co­
mo assunto de um tipo de escrita espe­
cifIcamente histórico. Barzun tem ra­
zão ao dizer que a história usó pode ser 
lida", mas ela só pode ser lida se for 
primeiro escrita. E é porque a história 
tem de ser escrita antes de poder ser 
lida (ou antes de poder ser dita, canta­
da, dançada, representada ou mesmo 
mmada) que a teoria literária tem im­
portãncia, não apenas para a historio-
grafIa, mas também e especialmente 
para a mosof", da história. 
Essa caracterização do discurso his­
tórico não quer dizer que os eventos, 85 
pessoas, as instituições e 08 processos 
do passado jamais existiram realmen­
te. Ela não quer dizer que não podemos 
ter informações mais ou menos preci­
sas sobre essas entidades do passado. 
E ela não significa que não podemos 
transfotlüar essas inforu18çóes em co­
nhecimento pela aplicação dos vários 
métodos desenvolvidos pelas diferen­
tes disciplinas que constituem a "ciên­
cia" de uma época ou de uma cultura. 
Ela pretende, sim, enfatizar o fato de 
que a infonnação sobre o passado não 
é em si mesma especificamente histó­
rica, da mesma fonna como o conheci­
mento baseado nesse tipo de informa­
ção tampouco é em si mesmo especifi­
camente histórico. Essa informação 
poderia ser melhor chamada de "arqui­
vística", na medida em que pode servir 
como objeto de qualquer disciplina 
simplesmente ao ser tomada como as­
sunto das práticas discursivas distin­
tas dessa disciplirUl. Assim também, é 
apenss ao serem transfoClnad08 em 
assunto do discurso histórico que nos­
sa informação e nosso conhecimento 
sobre o passado podem ser considera­
dos ''históricos''. 
O discurso histórico não produz por­
tanto infol'lnação nova sobre o passa­
do, já que a posse da informação sobre 
o passado, tanto nova como velha, é 
uma pré-condição da composição de 
um tal discurso. Tampouco pode-se di­
zer que ele fornece novo conhecimento 
sobre o passado, na medida em que o 
conhecimento é concebido como um 
produto de um determinado método de 
investigação.2 O que o discurso histó­
rico produz sáo interpret"fÕes de seja 
qual for a informação ou o conhecimen­
to do passado de que o historiador dis­
põe. Essas interpretações podem ,,"su-
TEORIA UTERÁRlA E ESCRITA DA HISTÓRiA 25 
mir numerosas formas, estendendo-se 
da simples crônica ou lista de fatos até 
''filosofias da história" altamente abs­
tratas, mas o que todas elas têm em 
comum é seu tratamento de um modo 
na ti ativo de representação como fun­
damentaI pera que 8e perceba seus 
referentes como fenômenos distintiva­
mente ''histâricos''. Adaptando uma 
frase famosa de Croce aos n0550S obje­
tivos, podemos dizer que onde não há 
narrativa, não existe discurso distinti­
vamente histórico.3 
Percebo que ao caracterizar o dis­
curso histârico como interpretação e a 
interpretação histârica como na .... ati­
vização, estou tomando posição num 
debate sobre a natureza do conheci­
mento histórico que contrapõe "natI a­
tiva" e '�ria", à maneira de uma opo­
sição entre um pensamento que per­
manece em grande parte ''literário'' e 
até mesmo ''mítico'' e um pensamento 
que é ou aspira a ser c.ientífico.4 Mas é 
preciso sublinhar que estamos aqui 
considerando a questão, não dos méto­
dos de pesquisa que deveriam ser usa­
dos pera investigar o pessado, e sim da 
escrita da histâria, do tipo de discursos 
realmente produzidos pelos historia­
dores no curso da longa C8n eira da 
história como disciplina. E o fato é que 
a narl"ativa sempre foi e continua sen­
do o modo predominante da escrita da 
história. O principal problema pera 
qualquer teoria da escrita da história, 
portanto, não é o da possibilidade ou 
impossibilidade de uma abordagem 
científica do estudo do pessado, mas 
antes o de explicar a persistência da 
nal'latívana historioglaf18. Uma teo.. 
ria do discurso histórico tem de tratar 
da questão da função da nanatividade 
na produção do texto histórico. 
Vamos começar, portanto, com o ine­
gável fato histârico de que os discursos 
distintivamente históricos tipicamen­
te produzem interpretações nart ativas 
de seu assunto. A tradução desses dis­
cursos numa {a ..... a escrita produz um 
objeto distinto, o texto historiográfico, 
que por sua vez pode servir de assunto 
de uma reflexão filosófica ou critica. 
Daí as distinções, convencionais na 
moderna teoria da histâria, entre a 
realidade passada, que é o objeto de 
estudo do historiador; a historiografia, 
que é o discurso escrito do historiador 
sobre esse objeto; e a filosofia da histó­
ria, que é o estudo das relações possí­
veis entre esse objeto e esse discurso. 
Temos de ter em mente essas distin­
çóes se queremo. compreender 08 dife­
rentes tipos de importância que a teo­
ria literária tem tanto pera a prática 
como pera a teoria da escrita histârica. 
I 
A teoria literária tem importância 
tanto direta como indireta pera a com­
pl"eensão da escrita histórica. Direta, 
na medida em que elaborou, com base 
na moderna teoria da linguagem, algu­
mas teorias gerais do discurso que po­
dem ser utilizadas pera analisar a es­
crita histórica e pera identíficar seus 
aspectos especificamente ''literários'' 
(ou seja, poéticos e retóricos). Na subs­
tituição da noção mais antiga, própria 
do século XIX, de "estilo", considerado 
como o segredo do "escrever bem", pela 
noção de estrutura discursiva, a mo­
derna teoria literária fornece novas 
concepções da própria literaridade. Es­
sas novas concepçõee permitem uma 
discriminação da relação entre a fOI ma 
e o conteúdo do discurso histârico mais 
precisa do que era possível antes, com 
base na idéia de que os fato<! consti­
tuíam o "corJX>" do discurso histórico, e 
o estilo, sua uroupagem'\ mais ou me· 
nos atraente, mas de modo algum es­
sencial. 6 Hoje é possível reconhecer 
26 ESTUDOS HISTÓRICOS - 1094/13 
que no discurso realista, tanto quanto 
no discurso imaginário, a linguagem é 
ao mesmo tempo fCnua e conteúdo, e 
que esse conteúdo lingüístico tem de 
ser computado entre os outros tipos de 
conteúdos (Cactual, conceitual e gené­
rico) que fOnIlam o conteúdo geral do 
discurso como um todo. Esse reconhe­
cimento libera a crítica historiográfica 
da fidelidade a um literalismo impos­
sível e permite ao analista do discurso 
histórico perceber em que medida esse 
discurso constrói seu assunto no pró­
prio proce:5S0 de falar sobre ele. Anoção 
do conteúdo da forma lingüística esba­
te a distinção entre discursos literais e 
figurativos e autoriza a busca e a aná­
lise da função dos elementos figurati­
vos na prosa historiográfica tanto 
quanto na prosa ficcional. 
A importância da moderna teoria li­
terária para a escrita histórica é indire­
ta na medida em que as concepções de 
linguagem, fala, escrita, discurso e tex­
tualidade que a infOJ lIlam pel'lllitem 
insights relativamente a alguns proble­
mas tradicionalmente colocados pela {v 
loso{1a da história, tais como a classifi­
cação dos gêneros do discurso histórico, 
a relação de uma representação históri­
ca com seus referentes, o status episte­
mológico das explicações históricas, e a 
relação dos aspectos interpretativos 
com os aspectos descritivos e explanató­
rios do discurso do historiador. Amoder­
na teoria literária ilumina todos esses 
problemas dirigindo a atenção para 
aquilo que é bastante óbvio no discurso 
histórico, mas não foi sistematicamente 
levado em consideração até muito re­
centemente, ou seja, o fato de que a 
história é antes de mais nada um arte­
fato verbal, produto de um tipo especial 
de uso da linguagem. E isso sugere que, 
se o discurso histórico deve ser com­
preendido como produtor de um tipo 
distinto de conhecimento, ele deve antes 
ser analisado como uma estrutura de 
lin�gem. 
E surpreendente que os filósofos da 
história tenham demorado tanto a re­
conhecer a importância da linguagem 
para a compreensão do discurso histó­
rico, especialmente desde que a filoso­
fm moderna em geral fez da linguagem 
um objeto central de interesse em seu 
exame de outros departamentos da 
ciência. Esse lapso deveu-se em parte 
ao fato de que os próprios historiadores 
modernos tenderam a tratar sua lin­
guagem como um meio não-problemá­
tico, transparente, tanto para a repre­
sentação de eventos passados como pa­
ra a expressão de seu pensamento so­
bre esses eventos. Mas deveu-se tam­
bém ao fato de que os filósofos que 
tomaram o discurso histórico como seu 
objeto específico de análise tenderam a 
acreditar na possibilidade de deSBsso­
eiar o conteúdo factual e conceitual de 
um discurso de sua fOl'lua "literária" e 
lingüística, no intuito de afirmar seu 
valor-de-verdade e a natureza de sua 
relação com a realidade. Assim, por 
exemplo, eles tipicamente trataram a 
nal'lativa menos como uma estrutura 
verbal do que como uma explicação do 
tipo contar-estórias e consideraram a 
estória contada numa dada história 
como uma estrutura de conceitos argu­
mentativos, cujas partes mantinham 
relações de natureza mais lógica (espe­
cificamente silogística) do que lingüís­
tica. Tudo isso implicava que o conteú­
do de um discurso histórico podia ser 
extraído de sua forma lingüística, ser­
vido numa paráfrase condensada, pur­
gada de todos os elementos figurativos 
e tropológicos, e submetido a testes de 
consistência lógica como argumento, e 
de adequação predicativa como um 
corpo de fato. Mas isso significava tam­
bém ignorar o único "conteúdo" sem o 
qual um discurso histórico jamais po­
deria existir: a linguagem. 
, ' 
TEORIA UTERARlA E ESCRITA DA HlSTORlA 27 
Durante o próprio período em que 
esse modelo de argumentação predo­
minou entre os analistas do discurso 
histórico, filósofos como Quine, Searle, 
Goodman e Rorty mostravam dificul­
dade em distinguir o que era dito do 
como era dito are mesmo nos discursos 
das ciências fisic8S, quanto mais em 
um discurso não-forllla lizado como a 
história,6 Seu trabalho confilmava 
aquilo que havia sido uma pr .... uposi­
ção fundadora dos lingüistas, a saber, 
que a linguagem nunca é um conjunto 
de "formas" vazias esperando para se­
rem preenchidas com um ((conteúdo" 
factual e conceitual ou para serem co­
nectadas a referentes pré-existentes 
no mundo, mas está ela própria no 
mundo como uma "coisa" entre outras 
e já é cal'l egada de conteúdos figurati­
vos, tropológicos e genéricos antes de 
ser atualizada numa enunciação qual­
quer, 1Udo isso implicava que 88 pró­
prias distinções entre a escrita imagi­
nativa e realista e entre o discurso 
ficcional e factual, em cuja b88e a es­
crita historiográfica havia sido anali­
sada desde a sua separação da retóri­
ca, no início do século XIX, 7 tinham de 
ser refOtIlluladas e reconceitualizadas. 
De fato, o exame mais superficial da 
linguagem de escritos históricos con­
cretos teria revelado que o conteúdo do 
discurso historiográfico é indistinguí­
vel de sua forUla discursiva. Confil'll18-
o o fato de que 88 obraa clássic88 da 
historiografia continuaram a ser valo­
rizadaa por suas qualidades '1iterá­
rias" muito depois de sua informação 
ter·se tornado ultrapassada e de se ter 
atribuído às suas explicações o status 
de lugares-<:omulll5 do momento cultu-
o 
ral em que foram escritas, E verdade 
que, ao falarmos da natureza '1iterá­
ria" de clássicos da historiografia como 
os escritos por Heródoto, Tácito, Guic· 
ciardini, Gibbon, Michelet, Tocquevil­
le, Burckhardt, Mommsen, Huizinga, 
Febvre ou Tawney, podem"" muitas 
vezes estar pensando em seu status 
como exemplares de um estilo bem-su­
cedido de ... crita. M .... ao designarmos 
eua obra como "literária" não a esta­
mos exatamente removendodo domí .. 
nio da produção de conhecimento, e 
sim indicando, simplesmente, até que 
ponto se pode considerar que a própria 
literaturá habita esse domínio, na me­
dida em que ela também nos fornece 
modelos semelhantes de pensamento 
interpretativo. O discurso literário po­
de diferir do discurso histórico devido 
a seus referentes básicos, concebidos 
mais como eventos "imaginários" do 
que c1"eaÍB", mas os dois tipos de discur­
so sáo mais parecidos do que diferentes 
em virtude do fato de que amb"" ope­
ram a linguagem de tal maneira que 
qualquer distinção clara entre sua for­
ma discursiva e sou conteúdo interpre­
tativo penllsnece impossível. 
, 
E por razões como eeta que devemos 
rejeitar, rever ou discutir as teoriae 
mais antigas do discurso histórico, ba­
seadaa na idéia de mimese ou de mode­
lo. Uma história é, como diz Ankersmit, 
menos um retrato destinado a pareoer 
com os objetos de que fala, ou um modelo 
"atado ao passado por oertas regras de 
tradução", do que "uma complexa estru­
tura lingüística especificamente cons­
truida com o pro�ito de mostnu uma 
parte do passado".8 Deese ponto de vis­
ta, o discurso histórico não deve ser 
comparado a um retrato que n06 penui­
te ver mais claramente um objeto que 
de outra fonna pel'maneceria vago, 
apreendido de modo impreciso. Tam­
pouco é ele uma representação de um 
procedimento explicativo destinado fi­
nalmente a fornecer uma resposta defi­
nitiva ao problema do "que realmente 
aconteceu" em um deteI minado domí­
nio do passado. Ao contrário, para lIsar 
uma formulação populariiada por E. H. 
Gombrich em seus ... tudos sobre o re-
28 ESTUDOS HISTÓRICOS -1994113 
aliamo pictórico ocidental, o discurso 
histórico é menos a combinação de uma 
imagem ou modelo com alguma "reali­
dade" extrínseca do que a feiturade uma 
imagem verbal, uma "coisa" discursiva 
que interfere na nossa percepção de seu 
referente putativo mesmo enquanto fi­
xa n085ll atenção nele e o ilumina.9 
Paul Ricoeur afu'mou que um texto 
historiográfico relaciona-se com seu re­
ferente da mesllla maneira como o veíe 
cuIa de uma metáfora relaciona-se com 
seu conteúdo. Desse ponto de vista, um 
discurso histórico é uma espécie de me­
táfora ampliada - a definição tradicio­
nal de alegoria -e por conseguinte deve 
ser visto como pertencente à ordem da 
fala figurativa, tanto quanto às ordens 
das falas literal e técnica. lO Esta é a 
razão por que o discurso histórico, assim 
como o discurso literário ou a linguagem 
figurativa em geral, tipicamente parece 
ser, como diz Ankersmit, mais "denso e 
opaco" do que ralo e transparente, e 
resiste tanto à paráfrase como à análise 
apenas por conceitos lógioos.u Assim 
como o discurso poético, tal como foi 
caracterizado por Jakobson, o discurso 
histórico é ''intensional'', ou seja, é siste-. 
maticamente tanto intra como extra­
referencial. Essa intensionalidade dota 
o discurso histórico de uma qualidade 
de "coisa" semelhante à da enunciação 
poética, e esta é a razão por que qual­
quer tentativa para compreender como 
o discurso histórico trabalha a fim de 
produzir um efeito-conhecimento deve 
se basear, não numa análise epistemo­
lógica da relação da "mente" do historia­
dor com um '1nundo" passado, mas an· 
tas num estudo científico da relação das 
coisas produzidas pela e na linguagem 
com outras espécies de coisas que com· 
preendem Q realidade comum. Em re­
sumo, o discurso histórico não deveria 
ser considerado primordialmente como 
um caso especial dos ''trabalhos de nos-
80S mentes" em seus esforços para co-
nhecer a realidade ou deecievê-la, mas 
antes como um tipo especial de uso da 
linguagem que, como a fala metafórica, 
a linguagem simbólica e a repre­
sentação alegórica, sempre significa 
mais do que literalmente diz, diz algo 
diferente do que parece significar, e só 
revela algumas coisas sobre o mundo ao 
P"'7" de esconder outras tanta... 
E a natureza metafórica dos gran­
des clássicos da historiografIa que ex­
plica por que nenhum deles jamais "en­
caixotou" um problema histórico defi­
nitivamente, mas antes sempre udes_ 
tampou" ul,Ila perspectiva sobre? pas­
sado que inspira mais estudo. E este 
fato que nos autoriza a classíficar o 
discurso histórico primordialmente co­
mo interpretação, mais do que como 
uma explicação ou descrição, e sobre­
tudo como um tipo de escrita que, em 
vez de apaziguar nossa vontade de sa­
ber, nos estimula a cada vez mais pes­
quisa, cada vez mais discurso, cada vez 
mais escrita. Como diz Ankersmit: 
Os grandes liVIOS no campo da histó­
ria da historiografIa, as obras de 
Ranke, de 1bcqueville, Burckhardt, 
Huizinga, Meinecke ou Braudel, náo 
põem um fim ao debate histórico, náo 
nos dão a sensação de que agora fi­
nalmente sabemos como se coisas 
realmente eram no passado, e de que 
a clareza foi fInalmente atingida. Ao 
contrário: esses liVI06 provaram ser 
os mais poderosos estimuladores da 
produção de mau. escritos -seu efeito 
é portanto afastar-nos do passado, 
em lugar de colocá-lo sobre uma es­
pécie de pedestal num museu histo­
riográfico de modo que possamos 
inspecioná-lo de todas as perspecti­
vas possíveis,12 
Nada disso implica que náo devemos 
distinguir a atividade da pesquisa his­
tórica (o estudo pelo historiador de um 
TEORIA LITERÁRIA E ESCRITA DA HISTÓRIA 29 
arquivo contendo informações !!Obre o 
passado) da atividade da escrita histó­
rica (a composição pelo historiador de 
um discurso e sua tradução numa f 01'1119 � 
... crita). Na fase de pesquisa do seu 
trabalho, os historiadoree ... tão empe­
nhadoe em descobrir a verdade !!Obre o 
passado e em rocuperar informações 
esquecidas, ou suprimidas, ou obscura 
cicias, e, é claro, extrair delas todo o 
sentido que puderem. Ma- entre ess. 
fase de pmqui .. , que na verdade não se 
pode distinguir da atividade de um jor­
nalista ou um detetive, e a conclusão de 
umA história escrita, é prEciso realizar 
várias operações transfol'lnadoras im­
portantes, nas quais o aspecto figurati­
vo do pensamento do historiador é mais 
intensificado do que diminuído. 
Na passagem do estudo de um ar­
quivo para a composição de um discur-
80 e para a sua tradução numa fOI'ma 
escrita, os historiadores têm de empre· 
gar as mesmas eetratêgias da figura­
ção lingtiística utilizadas por escrito­
ree imaginativos para dotar seus dis­
cursos daquelee tipos de significados 
latentes, secundários ou conotativos 
que requererão que suas obras não só 
sejam recebidas como mensagens, mas 
sejam lidas como estruturas simbóli­
cas 13 O significado latente, secundá­
rio ou conotativo contido no discurso 
histórico é a sua interpretação dos 
eventos que constituem seu conteúdo 
manifesto. O tipo de interpretação tipi­
camente produzido pelo discurso histó­
rico é o que dá àquilo que de outra 
COlma permaneceria apenas uma série 
de eventos cronologicamente ordena­
dos a coerência formal do tipo de es­
truturas-de-enredo encontradas na fic­
ção nan ativa. A atribuição a uma crô­
nica de eventos de uma estrutura-de­
enredo, que eu chamo de operação de 
"enredamento", é feita por meio de têc­
nicas discursivas que são de natureza 
mais tropológica do que lógica. 
Sendo assim, a análise lógica deve 
ser acrescida da análise tropológica, se 
queremoe ter as categoriAS analíticas 
necessáriAS à compreeMÃo de como o 
discurBO histórico produz seus efeitos­
conhecimento caracteristicos. Se, quan­
do visto da perspectiva do lógico, o <fus­
CUT80 histórico típico deve ser conside­
rado como tendo a estrutura ma is de um 
entimema do que de um verdadeiro si­
logismo, é porque variações mais tropi­
COR do que lógicas presidem tanto sua 
atribuição, a uma série de eventos, da 
coerência estrutural de uma fOl"fil8 de 
enredo quanto sua atribuição, a um con­
junto de fatos, de seja qual for o sentidoque se supõe que ele possua. Realmente, 
é apenas pela operação trópica, e MO 
pela dedução lógica, que qualquer con­
junto dos tipos de eventos pal!6adoe que 
gostariamos de chamar de "históricos" 
pode eer (primeiro) representado como 
tendo a ordem de uma crônica; (segun­
do) tran.sformado pelo "enredamento" 
numa estória oom as fases identificáveis 
de começo, meio e frm; e (terceiro) cana­
tiruCdo como o a88unto de quaisquer 
argumentos formais que possam ser 
aduzidos para estabelecer seu "sentido" 
- cognitivo, ético, ou estético, conforme 
o ca!!O. Essas abduções tropológicae 
oconem na composição de todo discurso 
histórico, atê m ... mo daqueles que, ca­
mo na moderna historiografia ... trutu­
ralista, evitam contar estórias e tentam 
limitar se a análises estatísticas de ins­
tituições e de processos ecológicos e et­
nológicos de longo prazo, efetivamente 
• • • Slncrorucos. 
Por que caracterizar essas abduçães 
como tropológicAs? 
Porque, em primeiro lugar, enquan­
to 06 eventoe OCOtl em no tempo, 08 
códigos cronológicos usadoe para orde­
ná-los em unidades temporais especí­
ficas são especificoe-de-cada-cultura, e 
não naturais; e, além disso, devem ser 
preenchidos com seus conteúdoe espe-
30 ESTUDOS HISTÓRICOS- ID94/13 
cíficos pelo historiador se ele pretende 
constituí-los comofases de um processo 
contínuo de desenvolvimento históri­
co. A constituição de uma crônica como 
um coqjunto de eventoe que pode for­
necer os elementoe de uma estória é 
uma operação de natureza mais poéti­
ca do que científica. ÜI3 eventoe podem 
ser "dados", mas suas funções como 
elementoe de uma estória lhes são im­
postas - e são impostas por técnicas 
discursivas de natureza mais tropoló­
gica do que lógica. 
Em segundo lugar, a transfol'mação 
de uma c,ônica de eventos em uma as· 
tória (ou em conjuntoe de estória.) re 
quer uma escolha entre vários tipos de 
estrutura5.oe..,nredo fornecidas pela 
tradição cultural do historiador. E em­
bora a convenção possa limitar a � 
lha à série de tipos de estrutura5.oe en­
redo adequados à repmsentação dos ti­
pos de eventoe tratados, essa escolha é 
no mínimo relativamente livre. Não há 
nenhuma nec_idade, lógica ou natu­
ral, governando a decisão de colocar em 
um enredo uma dada seqüência de 
eventos como umA tragédia e não como 
uma comédia ou um romance. Existi· 
riam eventoe intrinsecamente trágicos, 
ou depende da perspectiva na qual eles 
são vistos? Enredar eventos reais como 
uma estória de tipo específico (ou como 
uma mistura de estórias de tipos espe­
cíficos) é operar tropicamente esses 
eventoe. Isto acontece porque as estó­
rias não são vividas; não existe uma 
estória ''real''. As estórias são contadas 
ou escritas, não encontradas. E quanto 
à noção de uma estória 'verdadeira", ela 
é virtualmente uma contradição em ter­
mos. Thda.s as histórias são ficções. O 
que significa, é claro, que elas só podem 
ser ''verdadeiras'' num sentido metafó-. 
rico e no sentido em que uma figura de 
linguagem pode ser verdadeira. Esse 
'\rerdadeiro" seria suficiente? 
E, em tel ceiro lugar, qualquer que 
seja o argumento que um historiador 
possa avançar explicitamente para ex­
plicar o significado dos eventoe contidos 
na crônica, ele se referirá tanto ao enre· 
do usado para moldar a Cl'Ônica num 
tipo particular de estória quanto aos 
eventoe em si. Isso significa que o argu­
mento de um disCU1'6O histórico é em 
última anãlise uma ficção de segunda­
mão, uma ficção de uma ficção ou uma 
ficção do fazer ficção, que tem com o 
enredo a mesma relação que este tem 
com a crônica. Tipicamente, a uexplica. 
ção" será a estória com os eventos dei· 
xados de fora e apenas seu conteúdo 
conceitual �'fatoe" de um lado e "conec­
tivos" de enredo do outro) oferecido co­
mo material pera a manipulação lógica 
(ou, mais tecnicamente, nomológica.o8-
dutiva). 
O diecurso histórico estruturalista 
consegue o efeito de produzir um relató­
rio "científico"mais pelo movimento bo­
pológico de desenredar conjuntoe de 
eventoe históricos previamente enreda­
dos do que pelo fornecimento de qual­
quer coisa semelhante ao tipo de com­
preensão da história que as ciências 
[",icao fornecem para a compreensão da 
natureza. Paul Ricoeur mostrou, em 
seu recente Temps et récit, como a escola 
dos Anna/ps teve primeiro de construir 
estruturas discursivas nsuativas em 
seus relatórios sobre o passado, a fim de 
pellllitir que eles passassem por relató­
rios especificamente históricos, antes de 
despojá-los dessa na" atividade a fim de 
passá-los adiante como análises "cientí­
fic8s".14 Na reflexão historiográfics, ao 
que parece, o tratamento científico dos 
materiais históricos é tornado possível 
na base de uma virada tropológica nem 
mais, nem-devemoe acrescentar-me· 
nos justificável no campo científico do 
que aquela que torna possível um trata­
mento "literário" deeseB mWIDos mate· 
• • r18lS. 
TEORIA UTERÁRlA E ESCRITA DA HISTÓRIA 3 1 
Os estudos históricos nunca tive­
ram uma revolução copernicana seme­
lhante à que fundou as ciências IlSicas. 
, 
E apenas o prestígio das próprias ciên, 
cias f'lSic9s, baseado em seu sucesso em 
prover a humanidade moderna de um 
controle sobre' a natureza antes apenas 
sonhado, que inspira o esfo,>" em apli­
car seus princípios de descrição, análi­
se e explicação à históris. Mas até que 
uma revolução copernicana OCOl'l8, OB 
estudos históricos pel maneceráo um 
campo de investigação no qual a esco, 
lha de um método para investigar o 
passado e de um modo de discurso para 
escrever sobre ele pel"manecerá livre, e 
não submetida a constrangimento. Na 
historiografia, o discurso sempre foi, e 
tudo indica que continuará a ser, in­
ve.ntador de regi as, tanto quanto go­
vernado por regi as. Em qualquer dis­
ciplina científica, você só pode fazer 
novas regras fazendo tropos, ou se des­
viando, das velhas regras, mas na his­
toriografia você só pode aplicar as ve­
lhas regras por meio de táticas tropo­
lógicas. Isso não implica que a historio­
gl sim tradicional seja inerentemente 
não-verdadeira, mas apenas que suas 
verdades são de dois tipos: de um lado 
factuais, e de outro figurativas. 
11 
A tropologia não é, é claro, uma teoris 
da linguagem, mas antes um feixe ma is 
ou menos sistematizado de noções sobre 
a linguagem figurativa que deriva da 
tó· " . 16 Ela' re fIca ncoe RS'UC8. .lornece as· 
sim uma perspectiva sobre a linguagem 
a pertir da qual se pode analisar os 
elementos, níveis e procedimentos com­
binstórios de discursos não-formaliza­
dos e, especislmente, praglnãticos.16 A 
tropologia concentra sua atenção nas 
"viradas" de um discurso: virada de um 
nível de generalização para ôutro, de 
uma fase de uma seqüência para outra, 
de uma descrição para uma análise ou 
vice-versa, de uma figura para um fun .. 
do ou de um evento para o seu contexto, 
das convenções de um gênero pera outro 
dentro de um únioo discurso, e AAAim 
por diante. &..as viradas podem ser 
guvernadas por regra.s fOllllAis de expo­
sição lógiea, projeção matemática, infe­
rência e5tatística, convenções genéricas 
ou oratóriAS (PrópriAS do contar estó­
rias, da disputa legal, do dehate político 
e assim por diante), mas em geral elas 
consistem em violaÇÓ€<J dessas regi as.17 
Em discuraos complexos como os encon­
trados na historiogl afia ou, na verdade, 
em qualquer das ciênciAS humanas, a.e: 
reg""" de fOllnação do discurso não es­
táo fIXadas. Diferentemente das transi­
ções de um discurso forjjializado, que 
são governadas por reglBs explícitas de 
seleção e combirmção, as viradas de 
qualquer discurso não-fol'jjislizado e a 
ordem de sua 0001'1 ência não são predi­
zíveis antes de sua atualização numa 
enunciação específica. Esta é a razão 
por que os esforços para construir uma 
lógica ou mesmo uma gJ amáticada nar­
rativa fracassaram. Mas as viradas po­
dem ser identíficadas e classíficadas ca­
mo tipos, e podem-se estabelecer pa­
drões genéricos de 5U9S ordens típicas 
de ocorrência em discursos específicos. 
A classíficação dos tropos da lingua­
gem, da fala e do discurso pel'manece 
um projeto incompleto (e em princípio 
incompletável) da lingüística figurati­
va, da semiótica, da neo-retórica e da 
crítica desconstrutiva. Entratanto, os 
quatro tipos gerais de tropos identifi­
cados pela teoria retórica neoclãssica 
parecem ser básicos: metáfora (basea­
da no princípio da similitude), metoní­
mia (baseada no princípio da contigüi­
dade), sinédoque (baseada na identifi­
cação de partes de uma coisa como 
pertencendo a um todo), e ironia (ba-
32 ESTIlOOS HISTÓruCOS - I094J13 
seada na oposição).18 Considerados co­
mo as estruturas básicas da figuração, 
esses quatro tropos nos fornecem cate­
gorias pora identificar 08 modos de 
vincular uma ordem de polavras a uma 
ordem de pensamentos (por exemplo, 
"maçã" a "tentação'� no eixo poradig­
mático de uma enunciação, e uma f Me 
de um diecurso à!s Caeee snteMo] C6 e 
posteriOl es (por exemplo, parágrafos 
ou capítulos "transicionais'� no eixo 
sintagmático. A predominância de um 
modo de associar polavras e pensa­
mentos uns com 08 outros ao longo de 
todo um discurso noe pennite caracte­
rizar a estrutura do discurso como um 
todo em termos tropológicos. As estru­
turas tropológicas da metáfora, da me­
tonímia, da sinédoque e da ironía (e o 
que eu considero, seguindo Frye, como 
seus tipos de enredos COn espondente&: 
Romance, Tragédia, Comédia e Sátira) 
nos fornecem uma classificação muito 
mais refinada dos tipos de discursos 
históricos do que aquela baseada na 
distinção convencional entre replC 
sentaçõee "lineares" e "cíclicas" do pro­
cesso histórico.19 Elas tembém nos 
pel mitem ver mais claramente ae ma­
neiras pelas quais o discurso histórico 
se parece com e de fato converge para 
a narrativa líccional, tanto nas estra­
tégias que usa para dotar os eventos de 
signíficados como n08 tipos de verdade 
com que lida. 
Mas, pode-se muito bem perguntar, 
e daí? Como diz Arnaldo Momigliano: 
"Por que eu deveria me preocupar se um 
historiador prefere apresentar a parte 
pelo todo em vez do todo pela parte? 
Mmal, nâo me importa se um historia­
dor escolheu escrever num estilo épico 
ou introduzir falas (discorsL) em s"as 
JlB.ttaÇÕE!6. Não tenho nenhuma razão 
para preferir historiadores sinedóticos 
a historiadores irônicos ou vice-vel"­
sa.'.20 Na visão de Momigliano, os úni­
cos requisitos para os historiadores são 
que eles descubram a verdade, apresen­
tem novos fatos e ofereçam novas inter­
pretações dos fatos. ''De fato", concede 
ele, ''para serem chamados de historia­
dOI,,", eles têm de voltar (volvere) sua 
investigação para alguma forma de his­
tória. Mas SUA8 histórias têm de eer 
histórias verdadeiras.'.21 Apenas a ver­
dade dos fatos e, presumivelmente, a 
plausibilidade das interpretações con­
tam; a fOi ma lingüística. e o modo gené­
rico como elas são aplC6Cntadas, a dic­
ção e a retórica do discu1'l5O. não têm a 
menor importância. 
Me importa, sim. se os eventoe eão 
apresentados como partes de um todo 
(com um significado nâo apreensível em 
nenhuma das partes tomadas indivi­
dualmente), à maneira de um realista 
platónico, ou se um todo é apresentado 
como nada ma ia que a 80ma de B\lAS 
diversas partes constituintes, à manei­
rade um nominalista. Isso importa para 
o tipo de verdade que se pode esperar 
derivar de um estudo de qualquer con­
junto de fatos. E tenho confIAnça que 
mesmo Momigliano admitiria que a es­
colha de um estilo farsesco de repre­
eentação de alguns tipos de eventos his­
tóricos constituiria, não apenas um tra­
ço de mau gosto, mA" também uma 
distorção da verdade a eles ligada. O 
mesmo se pode dizer da escolha de um 
modo irônico de repIesentação. Um mo­
do de representação como a ironia é um 
conteúdo do discurso no qual ele é usa­
do, e não apenas uma fOnua - como 
qualquer pessoa que já ouviu observa­
ções irônicas sabe muito bem. Quando 
falo com ou sobre alguém ou alguma 
coisa de um modo irônico, estou fazendo 
mais do que apenAS revestir minhas 
observações de um estilo mordaz. Estou 
dizendo a seu respeito maia coisas e 
coisas diferentes do que pareço estar 
afIrmando no nível literal da minha fa­
Ia. O mesmo acontece com um discurso 
histórico enunciado num modo predo-
• 
• 
33 TEORIA UTERARIA E ESCRITA DA HlSTORlA 
minantemente irônioo, e com 06 outr{)8 
mod"" de enunciação que posso empre­
gar para falar seja lá do que for. 
O mesmo tipo de reep08ta pode ser 
dado a historiadores e filóeof"" da histó­
ria que rejeitam a análise retórica d"" 
texroe históricos sob a alegação da que 
ela llO5 desvia das questões mAjs sérias 
com as quais 58 deveria preocupar 11ma 
crítica politicamente comprometida ou 
socialmente engajada. Em ensaio re 
cente, Gene Bell-Villada, um crítico da 
literatura latino-americana historica­
mente autoconsciente, escreve: 
Enquanto isso, diante de um panora­
ma sociopolítico interno que começa 
a parecer vagamente "latino--smeri· 
cano", somado a alguns "regimes 
amigos" sul-american08 que se coma 
portam de maneira crescentemente 
nazista, a única resposta que o ues_ 
tablishment crítico" dos Estados 
Unidos oferece são seus elaboradoe 
esquemas paraliterárioe, 15'188 guer­
ras à referencialidade e suas prega­
ções de que "História é Ficção, Tropo 
e Discurso". As famílias de vários 
milhares de vítimas d"" pelotões da 
morte salvadorenhoe talvez alimen­
tem ol\.bUl pensamentoe sobre a his-
tó · 22 na. 
Não tenho dúvida de que as famm •• 
mencionadas neste trecho lealmente 
têm sobre a história outltXS pensamen­
toe que náo o de que ela consiste em 
"Ficção, Tropo e Discurso"-se équeelaa 
se dão o trabalbo de pensar sobre a 
''história'' de todo. Elas seriam tão bobas 
quanto o profeesor Bell-Villada aparen­
temente pensa que eu sou se até mesmo 
"alimentassem" essee pensamentos. 
Mas este não é realmente o ponto em 
questão. A "história" que estamos discu­
tindo é aquela que toma fOl'ma na lin­
guagem, na emoção, no pensamento e 
no discurso, na tentativa de extrair um 
sentido das experiências por que essas 
famílias p8Maram. No caso citado, tra­
ta-se de experiênciAS antes de mais na­
da e acima de tudo políticas, e uma das 
maneiras de lhes dar sentido é penspr 
sobre elas "historicamente". Ma. 6V3e 
pensamento tende tanto mais a ser tnS­
pico, discursivo e ficcional (no sentido de 
'�maginário'� na medida em que ele é 
politicamente engajado ou ideologica­
mente motivado. Não existe uma p08i­
ção "superior", nem mesmo a marxista, 
que não seja igualmente trápica, di"'lJr­
siva e ficcional. Ocotl" uma pane da 
consciência histórica quando se eequece 
que a 'iJlistórm", no sentido tanto de 
eventoe como de relatórioe de eventoe, 
não acontece apenas, e sim é feita. Mais 
que isso, devemos acroocentar, é feita 
doe dois lados das barricadas, e tão efe­
tivamente por um lado quanto pelo ou­
tro. 
Bell-Vulada sabe perfeitamente 
bem disso, e suas próprias observações 
sobre o sentido de história que impreg­
na a obra doe escritores modernoe lati­
no-americanoe deixa ÍSBo claro. Dese­
jaria ele dizer que as obras desses au­
tores não nos ensinam sobre a história 
real porque são ficções? Ou que, sendo 
ficções sobre ahistária, elas estão isen­
tas de tropismoe e di ... ursivídade? Os 
romances deMes autore!! são menos 
verdadeiros por serem ficcionais? São 
eles menos ficcionais por serem histó­
ricoe? Poderia qualquer história ser 
tão verdadeira quanto eMes romances 
sem fazer uso do tipo de tropos poéticos 
encontradoe na obra de Vargas Lloea, 
Carpentier, Danoso e Cortazar? 
111 
Apresentei em outros traballioe ar­gumentoe em defesa das p08ições esbo­
çadas acima e demonstrações, sob a 
• 
• 
34 ESTUDOS HISTÓRICOS - 1994/13 
forma de explicações extensivas de tex­
toe historiográficos especificos, de sua 
possível utilidade para a compreensão 
daquilo que a composi�ão de um dis­
curso histórico envolve. 3 Não tentarei 
recapitular aqui os detalhes desses ar­
gumentos por falta de espaço, mas tal­
vez seja útil sumariar alguns tipos de 
objeções levantadas pelos críticos das 
posições aqui apresentadas. São qua­
tro as objeções gerais. 
Aprimeira objeção à teoria é que ela 
parece nos comprometer com o deter­
minismo lingüístico ou, o que vem a 
dar no mesmo na cabeça de alguns 
críticos, com o relativismo lingüístico. 
Nessa teoria, argumenta·se, o histo· 
riador parece ser um prisioneiro do 
modo lingüístico no qual ele ilÚcial­
mente descreve ou caracteriza seu ob­
jeto de estudo: ele só pode ver o que a 
sua linguagem lhe permite conceitua­
lizar. Essa circunstância parece esta­
belecer limites ao que pode ser apren­
dido no processo de investigar a evi­
dência e não leva em conta o fato de que 
05 historiadores inegavelmente mu­
dam sua percepção das coisas no curso 
de sua pesquisa e revêem suas concep­
ções dos significados dessas coisas na 
reflexão sobre a evidência. 
Uma objeção similar, baseada nas 
mesmas alegações gerais, é levantada 
em relação ao relatório escrito do his­
toriador sobre suas descobertas. A teo­
ria tropológica do discurso histórico 
parece obscurecer o fato de que uma 
obra histórica é um relaiório dos fatos 
descobertos na pesquisa, das crenças 
do historiador quanto à verdade desses 
fatos, e da melhor argumentação que 
ele pode imaginar a respeito das cau­
sas, do significado ou da importância 
dessas verdades para a compreensão 
do campo de ocorrências que ele estu­
dou. Ao sugerir que as conexões entre 
os vários elementos, níveis e dimen­
sões do discurso no qual o argumento 
é apresentado são tropológicas, e não 
lógicas ou racionalmente deliberati­
vas, o discurso histórico é privado de 
suas pretensões de verdade e relegado 
ao domÍlÚo fantasioso da ficção. Esses 
dois argumentos são freqüentemente 
fundidos e expressos de modo mais 
conciso na afirlllação de que a teoria 
faz da historiografia pouco ma is que 
um exercício retórico e por isso mesmo 
mina a pretensão da história de forne­
cer verdades sobre e conhecimento dos 
seus objetos de estudo. 
A segunda objeção geral é dirigida 
contra a teoria da natureza tropológica 
da linguagem e suas implicações para o 
discurso histórico. A teoria tropológica 
da linguagem parece dissolver a distin­
ção entre fala figurativa e literal, fazen­
do da última um C"SO especial da pri­
meira. A teoria vê a linguagem literal 
como um conjunto de usos figurativos 
que foram regularizados e estabelecidos 
como fala literal ulÚcamente por con­
venção. O que é literal num momento do 
desenvolvimento de uma comurúdade 
lingüística pode assim tornar-se figura­
tivo em outro momento e vice-versa, de 
modo que o significado de um dado dis­
curso pode mudar ao sabor de qualquer 
mudança nas regI as para se determi­
nar o que conta como fala literal e o que 
conta como metáfora. ISBO parece dar 
autoridade para se determinar 08 signi­
ficados dos discursos, não nAS intenções 
de seus autores nem naquilo que 05 
textos por eles escritos dizem manifes­
tamente, mas nos leitores ou MS comu­
nidades leitoras, que têm pel'missão pa­
ra fazer deles o que quiserem ou o que 
as convenções ordinárias que governam 
a distinção entre fala literal e figurativa 
peJ"mitirem. Assim, parece que, na te0-
ria tropológica da linguagem, não pode­
ríamos mais apelar para "os fatos" a fim 
de justificar ou criticar qualquer inter­
pretação da realidade. O que poderia 
contar como um fato seria infinitamente 
TEORIA LITERÁRIA E ESCRITA DA HISTÓRIA 35 
revisível, na medida em que a noção do 
que conta como uma afu'Wação literal e 
do que oonta como uma afUlllação me­
tafórica mudasse. Em 8uma, a teoria 
tropológica da linguagem e do discurso 
se choca com a própria concepção de 
factualidade, e especialmente com as 
pretensões dos historiadores relativas à 
verdade Cactusl, não apenas de suas 
afumaçãee sobre eventos particulares, 
mas de seu discurso como um todo. Se 
uma declaração factual não é apenas 
uma proposição existencial singular 
emitida na linguagem literal, mas tal 
proposição mais as convençóes implíci­
tas para determinar o que deve contar 
como literal e o que deve contar como 
figurativo nessa proposição, então essas 
declarações não podem mais ser toma­
das por seu valor nominal. Como o pa­
pel-moeda, elas só podem ser cobradas 
pela taxa vigente de seu valor em moeda 
literal. Como ..",.,. taxa estã sempre flu­
tuando, nunca se pode saber onde se 
está pisando em relação aos "fatos da 
realidade". A teoria tropológica da lin­
guagem, então, ameaça a pretensão se­
cular da história de tratar de fatos, e 
portanto seu stahuJ como uma discipli-
, . na emplrlC8. 
A terceira objeção geral à teoria tlv­
pológica da linguagem e do discurso em 
sua relação com o discurso histórico vol­
ta ·se para suas implicaçãee com relação 
à natureza dos objetos estudados pelos 
historiadores. A teoria parece implicar 
que esses objetos não são encontrados 
no mundo real (mesmo se esse mundo 
real for um mundo plesado), mas MO 
antes construções da linguagem, obje­
tos espectrais e irreais, poética ou reto­
ricamente "inventados" e cuja existên­
cia se lt!l5tringe aos liVIW. A teoria, nu­
ma palavra, enfatiza as funções poéti­
CAS (auto-referentes), conativas (afeti­
vas) e sobretudo meta\ingüisticas (codi­
ficadoras) do discurso histórico às ex­
pensas de SUAS funções referenciais 
(predicativas), fátiC2s (comunicativas) e 
expressivas (autorais).24 Como se pre 
tande que um discurso histórico seja 
primordialmente referencial, expressi­
vo (do pensamento racional de seu autor 
sobre seus referentes) e comunicativo, a 
teoria tropológica do discurso trata a 
história de maneira imprópria, como se 
ela fosse apenas uma ficção. Com isso, 
a "realidade" de seus referentes é nega­
da, e substitulda pelo que Barthes irliu­
riosamente chamou de "o efeito-realida­
de",26 uma construção puramente retó­
rica. Mas como os objetos do estudo 
histórico são (ou eram) objetos reais, e 
os historiadores pretendem fazer refe­
rencias precisas a eles e declaraçãee 
verdadeiras a seu respeito, a eJisão da 
distinção entre a função referencial e as 
outras funções do discurso coloca em 
questão a existência da própria realida­
de e a própria possibilidade de uma 
representação especificamente ') ealis­
ta" dela. 
Se a teoria tropológica da linguagem 
e do discurso parece minar a pretensão 
do historiador de lidar com fatos liga­
dos a objetos reais particulares, ela é 
ainda mais ameaçadora para a preten­
são de lidar com fatos de natureza mais 
geral, coletiva ou procesaual. Isto acon­
tece especialmente em relação à noção 
de que o conto contado pelo historiador 
natlativo é uma estória uverdadeira", 
e não "inventada". 'Verdadeira" é en· 
tendida aqui como conforme ao "que 
realmente aconteceu", enquanto o uque 
realmente aconteceu" é considerado 
como tendo sido uma fOl'ma de vida 
humana, individual ou coletiva, com o 
contorno e a estrutura de uma estória. 
A teoria tropológica, ao sugerir que 
uma estória só pode ser uma constru­
ção de linguagem e um fato do discur­
so, parece minar a legitimidade das 
pretensões à verdade do modo tradicio­
nal do discurso histórico, a narJ ativa. 
Assim, enquanto parece dissolver as 
36 ESTUDOS HISTÓRICOS - 1994/13 
pretensões do historiador científico à 
cientificidade, a teoria tropológica do 
discurso histórico também dissolve a 
tradicional pretensão do historiador 
natlstivo a ter fornecidourna estória 
que é verdadeira, e não imaginária. 
Finalmente, uma quarta objeção ao 
uso da teoria tropológica da linguagem 
para a análiae do discurso histórico 
volta-se para a questão de suas impli­
cações para o status epistêmico do pró­
prio diacurso do crítico historiogrãfico. 
Se todo discurso é fictício, figurativo, 
imaginativo, poético-retórico, se ele in­
venta seus assuntos, ao invés de encon­
trá-los no mundo real, se ele só-deve ser 
tomado figurativamente, e assim por 
diante, como a teoria tropológica pare­
ce sugerir, isto também não valeria 
para o discurso do tropologista? Como 
pode o crítico tropológico levar seu pró­
prio discurso a sério ou esperar que 
outros o façam? Não seria a própria 
tropologia uma ficção, e as afi. mações 
feitas com base' nela apenas ficções das 
ficções que ela pretende encontrar por 
toda parte? Em resumo, a teoria tropo­
lógica da linguagem parece tornar im­
possível uma crítica cognitiva mente 
responsável, e como tal mina a própria 
atividade da crítica. 
IV 
Essas objeções pareceráo mais ou 
menos constrangedoras conforme o 
grau de confiança que se tenha nas 
distinções convencionais entre fala li­
teral e figurativa, discurso referencial 
e não-referencial, prosa factual e ficcio­
nal, o conteúdo e a fOl"ma de um dado 
tipo de discurso, e assim por diante. 
Onde essa confiança for grande, as for­
mulações alternativas das diatinções 
oferecidas pela moderna teoria da lin­
guagem e da literatura parecerão des-
necessárias, e sua utilidade para a 
compreel15ão do diacurso histórico, 
Bem�nseqüência. Deve ser assinala­
do, contudo, que as teorias tropológicas 
do diacurso não exatamente dissolvem 
essas distinções, e sim as reconceitua­
lizam. Enquanto a teoria crítica tradi­
cional vê as dimensões literal e figura­
tiva, ficcional e factual, referencial e 
intensional da linguagem como alter­
nativas opostas, e mesmo mutuamen­
te excludentes, de todo discurso sério, 
a moderna teoria da linguagem e da 
literatura tende a vê-las como os pólos 
de um contínuo lingüístico entre 05 
quais a fala deve se mover na articula­
ção de todo e qualquer discurso, seja 
ele sério ou frívolo. Na medida em que 
esse movimento dentro do discurso é 
ele mesmo por natureza tropológico, 
precisamos de uma teoria tropológica 
para guiar sua análise. 
Quanto às objeções em si, as seguin­
tes respostas podem Ber dadas: 
Primeiro, não há nada na teoria tro­
pológica que implique detel"lninismo 
ou relativismo lingüistico. A tropologia 
é uma teoria do discurso, não da mente 
ou da consciência. Embora assuma que 
a figuração não pode ser evitada no 
discurso, a teoria, longe de implicar o 
determinismo lingüístico, procura for­
necer o conhecimento necessário para 
uma escolha livre entre diferentes es­
tratégias de figuração. Ela tampouco 
sugere, como Whorf, que a percepção é 
determinada pela linguagem e que a 
verdade de um discurso é relativa à 
linguagem na qual ele foi escrito. Como 
uma teoria do diacurso, a tropologia 
tem muito a dizer sobre representação, 
mas nada a declarar sobre percepção. 
Em segundo lugar, a tropologia não 
nega a existência de entidades extra­
discursivas ou nossa capecidade de nos 
referillnos a elas ou representá-ias na 
fala. Ela não sugere que "tudo" é lingua­
gem, fala, discurso ou texto, mas apenas 
TEORIA UTERÁRlA E ESCRITA DA HISTÓRIA 37 
que a referencialidade e a repre 
sentação lingül.stica MO AMuntoe muito 
mais complicados do que as antigas no­
ções literalisw da linguagem e do dis­
curso entendiAm. A tropologia ""blinha 
a função metalingürstica, mais do que 
referencial, de um discurso porque estã 
mais preocupada com 08 códigoe do que 
com as mensagens contingente.. que 
possem ser transmitidas por meio de 
usos específiC08 dB88B8 códigoe. Na me­
dida em que OS códigoe são eles próprios, 
por direito nato, conteúdos-mensagens, 
ela expande a própria noção de mensa­
gem e nos alerta para o aspecto perfor­
mance, 8S15im como para o epecto c0-
municativo, do discurso. 
Em terceiro lugar, a tese de que todo 
di""urso é por estrutura tropológico ""­
gere realmente que o mesmo possa ser 
dito do próprio discurso do tropologista. 
Mss ÍMo implica apenas que a análise 
tropológica deve ser elaborada com a 
plena const:iência de seu próprio aspecto 
figurativo. Longe de implicar que a aná­
lise tropológica seja um jogo frivolo, a 
teoria tropológica implica que devemos 
repensar a própria distinção entre dis­
curso sério e não-8ério. Quando os críti­
cos tropológicos analisam a estrutura 
tropológica de um texto, eles estão fa­
lando sobre fatos - fato.. de linguagem, 
de discurso e de textualidade - lI,esmo 
se estão falando numa linguagem que 
sabem ser tão figurativa quanto literal. 
Eles estão se referindo a coisas que 
percebem ou acreditam perceber no tex­
to, mesmo se estão se referindo tanto na 
maneira indireta da fala figurativa 
quanto na maneira direta da fala litera­
lista. Deve então seu discurso ser levado 
lia sério", como "realmente significando" 
• 
o que diz? E claro que sim, mas apenaR 
desde que ''seriedade'' náo seja equipa­
rada a estreiteza literal-mental, '\oigni­
ficado" náo seja identificado unicamen­
te com significado literal, e "l ealmente" 
náo seja entendido como exclusão da 
possibilidade de que a fala figurativa 
poesa ser tão verdadeira à eua maneira 
quanto a fala literal. 
Em quarto lugar, a teoria tropológi­
ca náo destrói a diferença entre fato e 
ficção, mas rederme as relações entre 
o. doU. dentro de qualquer discurso. Se 
não existem 'Tatos brutos", mas apenas 
evento.. sob diferente.. descrições, a 
factualidade torna-se questão dos pro­
tocolos descritivos usados para trans­
formar eventoe em fatos. As descrições 
figurativas de eventos reais são náo 
menos "factuais" do que literalisw, 
são apenas factuaÍs - ou, diria eu, "fac­
tológicAs" - de maneira diferente. A 
teoria tropológica implica que náo de­
vemoe confundir "fatos" com "eventos". 
Os eventos acontecem, os fato.. são 
constituídos pela descrição lingüística. 
O modo da linguagem usado para cons­
tituir os fatos pode ser formalizado e 
governado por regI as, como nos discur­
sos científicos e tradicionais; pode Ber 
relativamente livre, como em todo du.­
curso literário ''modernista''; ou pode 
ser uma combinação de práticas du.­
cursivas formalizadas e livres. No se· 
gundo e no terceiro casos, a tropologia 
oferece uma perspectiva melhor para a 
teoria da invenção discursiva do que 08 
modelos lógico ou gramático de discur­
sividade. E desde que a historiografia 
em geral tendeu e ainda tende a per­
manecer uma combinação de práticas 
discursivas governadas por regi as com 
práticas livres, a tropologia tem espe­
cial relevância para o esforço de com­
preendê·la. 
A tropologia é especialmente útil pa­
ra a análise da historiograflB nanati­
va, porque a história nanativa é um 
modo de discurso no qual as relações 
entre o que uma dada cultura conside­
ra como verdades literais e 88 verdades 
figurativas expressas em SilOS ficções 
características, os tipos de estórias que 
ela conta sobre si mesma e sobre os 
38 ESnJOOS HISTÓRICOS - I O�/13 
outros. podem ser testadas. Nas nana­
tivas históricas, as fOl'l119S�de--enredo 
dominantes utilizadas por uma cultu­
ra para "imaginar" os diferente. tipos 
de significado (trágico. cômico. épico. 
farsesco etc.) que uma forma de vida 
distintivamente humana pode ter são 
testadas contra a informação e o co­
nhecimento sobre as formas especifi­
cas que a vida humana teve no passado. 
Nesee processo, não apenas as formas 
passadas de vida humana são dotadas 
dos tipos de significado encontrados 
nas formas de ficção produzidas por 
uma dada cultura, mas 08 gXB\l8 de 
"verdade" e ''realismo'' dessas formas 
de ficção em relação aos fa tos dareali­
dade histórica e ao nosso conhecimento 
histórico dessa realidade podem ser 
medidos. Essa relação entre a inter­
pretação histórica e a representação 
literária diz respeito não apenas a seu 
interesse mútuo em estruturas-de-en­
redo genéricas. mas também ao modo 
nal'lativo de discurso que elas parti­
lham mutuamente. 
v 
, 
E porque o discurso histórico utiliza 
estruturas de produção-de-significado 
encontradas em sua fOl'ma mais pura 
nas ficções literárias que a moderna 
teoria literária. especialmente em suas 
versões orientadas para as concepções 
tropológicas da linguagem. discurso e 
textualidade. é imediatamente rele­
vante para a teoria contemporánea da 
escrita da história. Ela se relaciona 
diretamente com um dos debates mais 
importantes da teoria histórica con­
temporánea: aquele sobre o status 
epistémico da nanatividade. 
Esse debate se ergue contra o pano 
de fundo de uma discussão de quarenta 
anos. iniciada na década de 1940. entre 
filósofos e historiadores. sobre a questão 
do �ível status da hiatória como ciên­
cia.26 A questão da narrativa foi levan­
tada neesa discussão, rnae primordial­
mente em tellU08 de sua adequação ao 
objetivo e aos propósitos do discurso 
cientifico. Um lado. nesse debate. sus­
tentava que. se os estudos históricos 
fossem ser transfOJ"lI1Rd06 numa ciên­
cia, o modo nanativo do discurso, sendo 
por natureza manifestamente ''literá­
rio", era ineesencial para o estudo e a 
escrita da história. O outro considerava 
que a nanativa era não apenas um 
modo de discurso. mas também. e o que 
é mais importante. um modo especifico 
de explicação. Embora a explicação nar­
rativa diferisse do modo de explicação 
(nomológico-dedutivo) dominante nas 
ciências flSicas, ela não devia ser consi­
derada inferior a ele. era especialmente 
adequada à representação dos eventos 
históricos em cont. aste com 05 naturais, 
e poderia portanto ser usada com per­
feita propriedade para a explicação de 
eventos especificamente históricos. Es­
se debate especifico se encenou em al­
gum momento da década de 1970. da 
maneira como se pode esperar que um 
debate filosófico se encene: com um 
compromisso. Foi decidido. por consen­
so geral. que a nal'lativa era adequada­
mente usada na historiografia para al­
guns propósitos. mAs não para outws. 
Mas tão logo foi aparentemente re­
solvida. a questão foi reaberta pela ex­
plosão na cena crítica de umA outra 
disclJMão que vinha ee arutando em 
outro reduto e que tinha a ver com o 
"conteúdo" implícito do discurso nal'l a· 
tivo em geral. Enquanto a antiga dis­
puta se centrara na relação do discurso 
na ti ativo com o conhecimento científi­
co. a nova enfatizava a relação da nar­
rativa com o mito e a ideologia. Assim. 
por exemplo. Barthes sustentava que 
a própria na., atividade era o conteúdo 
efetivo do ''mito moderno" (com o que 
, , 
39 TEORIA UTERARlA E ESCRJTA DA HJSTORtA 
ele queria dizer "ideologia'1, Kristeva 
(seguindo AlthllB6er) acusava a nana­
tividade de ser o instrumento por meio 
do qual a sociedade produziu o "sujeito" 
auto-Dpressivo e complacente a partir 
do "indivíduo" originariamente auw. 
nomo. Derrida citava a nal"] ativa como 
o privilegiado "gênero da lei", 4'otard 
atribuia a "condição pés-modernista" 
ao colapso de um "conhecimento nar­
rativo" de natureza puramente Ucoetu_ 
meira", E, maÍB recentemente, Sande 
Cohen representou a consciência nar­
rativa como a encarnação de um modo 
de pensar puramente "reativo" e "de­
sintelectivo" e como o principal empe­
cilho a um pensamento "crítico" e ''teó-.
" · .. · h 27 rICO nas ClenC18S . umanas. 
Ao mesmo tempo, porém, os defenso­
res da narl'atividade não ficaram au­
sentes, Alguns historiadores iroportan­
tes, como Laurence Stone, Dominick 
LaCapra, James Henretta e Bernard 
Bailyn, recentemente sublinharam a 
desejabilidade, se não a necessidade, da 
narrativa como um antídoto para o 
alheamento dos leitores leigos, afasta­
dos pela abstração e falta de intiroidade 
da historiografia "técnica", Alguns Alv 
nalistes temíveis, mais destacadamente 
Leroy Ledurie e Le Golf, não apenas 
chegaram a admitir a desejabilidade da 
nalTativa para a representação de cer­
tos tipos de fenômenos históricos, como 
realmente cometeram atos explícitos de 
nanatividade historiográfica, Entre os 
teóricos literários, Frederic Jameson 
tentou reenergizar o marxismo subli­
nhando seu status, menos como uma 
ciência do que como uma �'nan ativa 
mestra" da história que poderia forne­
cer tanto uma compreensão do passado 
como 85 bases necessárias para a espe­
rança de transcender as ''necessidades 
alienantes" de uma história vivida como 
uma estória de opressão de classe, E 
finalmente, vindo do reduto da herme­
nêutica ftlosófica, Paul Ricoeur, no que 
constitui a tentativa mais abrangente 
de sintetizar o pensamento ocidental 
moderno sobre a história, Temps et récit, 
anunciou uma verdadeira metaf'lSica da 
nanativa e uma defesa de sua adequa­
ção, não apenas à representação histó­
rica, mas também à representação das 
"estruturas de temporalidade" funda­
mentais,28 
Obviamente, esse debate envolveu 
algo mais do que uma questão de "fOI ma 
literária", Com exceção daqueles histo­
riadores proflSSionais que a viam como 
um cosmético pam um conhecimento 
demasiado árido para ser tomado puro 
p:>r uma audiência leiga, a 1l8nstiva 
estava sendo tmtada como muito mais 
do que um meio' de transmitir mensa­
gens que poderiam ser transmitidas 
igualmente bem por oulI as técnicas dis­
CUrsiVB5. Ao contrário, a na. ,ativa esta­
va sendo tratada como se fosse uma 
mensagem por direito nato, uma men­
sagem com seu próprio referente e um 
significado muito diferente daquilo que 
ela aparenta apenas ·�conter". Porexem­
pio, Jameson fala da nal'lativa como 
"uma instãncia central da mente huma­
na e um modo de pensar tão cabalmente 
legítimo como o do pensamento abstra­
to",29 Lyotard e McIntyre, embora de 
perspectivas ideológicas diametral­
mente opostas, referem-se à função so­
cial da nall ativa como o suporte básico 
de qualquer '�egitirnação" efetiva do co­
nhecimento e da autoridade ético-políti­
ca, 30 E Ricoeur sustenta que a narrati­
va, longe de ser apenas uma fOi ma, é a 
manifestação na linguagem de uma ex­
' periência de tem�ralidade distintiva-
mente humana,3 Tudo isso em oposi­
ção à idéia, proposta pelos desconstru­
tores hostis da nanativa como Barthes, 
Kristeva, Derrida e Cohen, de que a 
nallativa é o resíduo ainda não dissol­
vido da consciência mítica no pensa­
mento moderno, Em uma palavra, lon­
ge de ser considerada apenas urna for-
40 ESTUDOS HISTÓRICOS -199(,113 
IDO, a DBnativa vem sendo crescente­
mente reconhecida como um modo dis­
cursivo cl.\Ío conteúdo é a sua forma . 
• 
E claro que da perspectiva da teoria 
literária tradicional, a noçÃo de que a 
fOl.,IA de um djscW'80poderia ser UID de 
seus conteúdos teria que ser tratada ou 
como um paradoxo ou como \Im mist& 
rio. No entanto, da peisp:!ctiva aberta 
pela teoria tropológica, não haveria na­
da de paradoxal ou mL.terioao com tal 
noção. Esse conteúdo de uma forma de 
di..curso seria de natureza lingüística e 
consL.tiria na estrutura de seu tropo 
dominante, o tropo que serve como pa­
radigma na linguagem para a repre­
sentação de coL.as como partes de todos 
identificáveL.. Dentro desta visão, a 
narrativa pxle ser caracterizada como 
um tipo de di..curao no qual a sinédoque 
funciona como o tropo dominante para 
"9malT8.l"" (grego: siMdoque; latim: su­
bintellectio) "'" partes de uma totalida­
de, apreendida como estando di..persa 
por urnA série temporal, num todo, se­
gundo o modo da identificação.32 FAse 
modo do di..curso pode ser diferenciado 
daqueles nos quais "", partes de um todo 
aparente se relacionam umas com as 
outras por semelhança(metáfora), con­
tigüidade (metonímia) ou oposição (iro­
nia ou cataOlese). Não há nada de espe­
cialmente metailSico com a repre 
sentação de coisas di..cretas, sejam elas 
pessoas individuaL., instituições sociais 
ou conjuntos de eventos, como unidades 
CUjOB aspectos são identificáveis como 
atributos dos todos de que elas fazem 
parte. Fazemos isso na fala ordinária 
(seja o que for que isto quer dizer) o 
tempo todo. Fazemos isso na linguagem 
filosófica quando, seguindo Aristóteles, 
Leibniz, Hegel, James, Whitehead e De­
wey, queremO/! indicar e refletir sobre 
aqueles aspectos da realidade que pare­
cem ser mais orgânicos do que mecanÚ5-
ticos em sua estrutura e modo de desen­
volvimento e articulação. Fazemos isso 
na linguagem hi..tórica quando quere 
mos falar sobre continuidades, transi­
ções e integiações. E fazemos ieeo na 
linguagem literária quando queremos 
escrever romanOEs natl ativ08, poema" 
ou peças. 
VISta dessa perspectiva, a nai"i ativa 
não é exatamente nem uma dL.torção 
daquela "realidade" que nos é dada em 
percepção (o "mito" de Barthes) nem 
uma manifestação epifânica de uma 
instância metallSica do ser (as "estru_ 
turas de temporalidade" de Ricoeur), e 
sim o aparecimento na fOfillA discursi­
va de uma das possibilidades tropoló­
gicas do uso da linguagem. Encarando 
a questão desta forma, podemos come­
çar a apreciar em que medida progt'a­
mas destinad08 a apagar a IlBri ativi­
dade do discurso "sério" ou a elevá-la 
ao status de uma exprE68ão do Ser, ou 
do Tempo, ou da Historicidade, são 
igualmente equivocados. A nail ativa é 
um universal cultural porque a lingua­
gem é um universal humano. Não po­
demos apagá-Ia do discurso, "",sim co­
mo não podemos declarar o próprio 
dL.curao fora-da-exi.otência. A nan ati­
va pode ser a própria alma do mito, 
mas isto porque o mito é uma forma de 
dL.curso lingüístico, não porque a nar­
rativa seja inerentemente mítica. O 
mesmo pode ser di to da relação da 
nanativa com a ficção literária. Algu­
mas ficções literárias são enunciadas 
num modo nal"l ativo, mas isto não sig­
nifica que todas as na 1"1 ativas sejam 
ficções literárias. Significa que as nar­
rativas mítica e literária são ambas 
figurações lingüísticas. 
O mesmo se aplica igualmente à 
relação da nariativa com os discursos 
históricos (e, por extensão, com todos 
os di..cursos "realL.tas"). Uma repre­
sentação histórica pode ser enunciada 
no modo de uma nallativa porque a 
natureza tropológica da linguagem 
abre essa possibilidade. Por conse-
TEORIA UTERÁRlA E ESCRITA DA HISTÓRIA 4 1 
guinte, é absurdo supor que, porque 
um discurso histórico é enunciado no 
modo de uma nall'a tiV8, ele tem de ser 
mítico, ficcional, substancialmente 
imaginário, ou de alguma maneira 
"não-realista" naquilo que ele nos diz 
sobre " mundo. Supor isso é ceder a um 
tipo de pensamento que resulta na 
crença na mágica contagi05a ou na cul­
pa por associação. Se o mito, a ficção 
literária e a historiografia tradicional 
utilizam o modo narrativo de discurso, 
é porque todos eles são formas de uso 
da linguagem. Isto em si não nos diz 
nada sobre sua verdade - e menos ain­
da sobre seu '''realismo'' I na medida em 
que essa noção é sempre culturalmen­
te determinada e varia de cultura para 
cultura. De qualquer rornia, será que 
alguém acredita seriamente que o mito 
e a ficção literária não se refiram ao 
mundo real, não digam verdades sobre 
ele e não forneçam um conhecimento 
útil a seu respeito? 
A questão da relação entre nanativa 
e história recebeu atenção especial na 
teoria literária recente porque é central 
para um problema crucial da história 
literária, o da relação do modernismo 
literário com o realismo literário. A 
transição do realismo para o modernis­
mo parece, para muitos intérpretes, ter 
acarretado o repúdio tanto da forma da 
narrativa quanto de qualquer intele5Se 
pela wresentação da "realidade histó­
rica". Para os intérpretes marxistas, 
especialmente, um repúdio parece ter 
sido função do outro. Assim, prosse­
guem eles, o realismo do romance clás­
sico do século XIX fói o resultado da 
descoberta de que a "realidade social" 
era de natureza ''histórica''. A descober­
ta da natureza histórica da realidade 
social foi a descoberta de que a ''socieda­
de" não era apenas, e nem mesmo pri­
mordialmente, tradição, consenso e con­
tinuidade, 11l9.3 também conflito, revo­
lução e mudança. O romance realista foi 
a expressão nec essária na literatura 
da"" .. descoberta, não apenas porque 
ele tomou a "realidade histórica" como 
seu "conteúdo", mss também porque ele 
desenvolveu a habilidade inerentemen­
te "dialética" da COI'II,a nal'lstiva para a 
representação de qualquer realidade de 
natureza especificamente ''histórica''. O 
abandono da nanatividade nOI'IIIal pe-
105 escritoras modernistas, por conse­
guinte, foi a expressão no nível da fOI I na 
da rejeição da "realidade histórica" no 
nível do conteúdo. E desde que o Caseis­
mo se baseou numa rejeição semelhante 
da realidade histórica e numa fuga para 
soluções polítiCAS puramente 'TOl'Jllalis· 
taa" para contradições BociaiB "leais", o 
modernismo poderia ser visto como a 
expressão na literatura do fascismo na 
I't' 34 po I lca. 
Este debate no interior da modema 
teoria literária sobre a natureza do mo­
dernismo literário - um debate que foi 
ampliado para abranger também o põe­
modernismo -recapitula muit05 d05 ar­
gument05 de um debate anterior no in­
terior das ciências humanas precipitado 
pela chamada "crise do historicismo".36 
Essa crise se manifestou numa desespe­
rança geral de jamais se alcançar """" 
"ciência objetiva da história"buscada no 
século XIX como um antídoto para a 
ideologia no pensamento social e políti­
co. Ela foi marcada pelo i1úcio, na. ciên­
cias humanas, do relativismo moral e 
epistemológico, do pluralismo crítico e 
do ecletismo metodológico. Sob muit05 
aspectos, a crise Coi catlsada pelo próprio 
sucesso d05 estudos históricos tradicio­
nais, rankeanos, em mapear a diversi· 
dade política, social e cultural não ape­
nas da história humana em geral, mas 
daqueles valOles éticos, ideais estéticos 
e estruturas cognitivas que suposta­
mente fizeram a natureza humana qua­
litativamente diferente de suas contra­
partidas "animais", O conhecimento 
histórico pareceu confinnsr a idéia de 
42 ESTIJOOS HlSTÓRlCOS - 190<iU 
que, se a cultura distinguia os seles 
humanos dos animais, as formas de cul­
tura eram irúmitamente variáveis, e 
tanto o conhecimento como 08 valOles 
eram específicos de cada cultura e não 
"universais'". Além disso, pareceu que o 
próprio conhecimento histórico, longe 
de ser a chave para a compreensão da 
natureza humana, pxieria ser apenas 
um preconceito particular da civilização 
ocidental moderna. Daí a ter se sentido 
a neressidade de novas ciências da 50-­
ciedade e da cultura que seriam genui­
namente universalistas em esoopo e 
orientação, absolutamente livtes de 
qualquer laço com 05 valotes 'de qual­
quer cultura específica e programatica­
mente a-históriCAS em SUB abordagem 
do estudo dos fenômenos sociais e cultu-
• ralS. 
O neoJXlSitivismo e o estruturalismo 
foram as fOI mas assumidas pelas no­
vas ciências previstas. Foram ofereci­
dos como alternativas a um ''historieis­
mo" superdifundido nas ciências hu­
manas em geral e 806 estudos históri­
cos tradicionais em particular. O que 
estava em questão nos estudos históri­
cos especificamente era a possibilidade 
de uma abordagem do estudo da histó­
ria livre das ilusôes do ''realismo" do 
século XIX em todas as suas fouuas, 
tanto literárias como filosóficas, cientí­
fico-sociais ou historiográficas. 
Sob muitos aspectos, portanto, os 
debates contemporáneos no interior 
das ciências humanas sobre a relação 
da historiografIa tradicional com suasalternativas "científiCAS" se asseme­
lham aos debates COr! entes no campo 
dos estudos literários sobre a relação 
do realismo literário com o modernis­
mo literário - e não por acaso, já que o 
que está em pauta nos dois casos é a 
questão da adequação de uma dada 
fOl'lna de discurso, a nanstiva, à rep­
resentação de um dado conteúdo, "re­
alidade histórica". Se os dois debates 
raramente parecem convergir ou fun­
dir-se, é porque cada um deles tende a 
tomar como explanans o que o outro 
trata como explanandum. 
Assim, por exemplo, o debate sobre 
o modernismo no campo dos estudos 
literários sustenta, sob a égide de uma 
noção compartilhada tanto por moder­
nistas como por antimodernistas, que 
a '1Ustória" oferece uma base neutra de 
''fatos'' a que se pode apelar para a 
caracterização do que é realmente o 
modernismo, daquilo em que consiste 
sua verdadeira significação social ou 
cultural e de qual é realmente sua fun­
ção ideológica. Isto ocorre especial­
mente quando 08 críticos marxistas, 
seguros na convicção de que o marxis­
mo é a ciência da história prometida 
pelo século XIX, propõem-se revelar o 
verdadeiro conteúdo ideológico e signi­
ficação histórica do modernismo consi­
derado como um estilo de época. Da 
mesma fOl'ma, o debate sobre o status 
da história nalTativa tradicional no in­
terior da teoria da história parte da 
suposição, partilhada tanto por anti 
como por pró�nal'i ativistas, de que a 
nau ativa é uma fOnna de discurso C'li. 
terário", que a literatura lida com 
eventos "imaginários" mais que "re­
ais", e que, por conseguinte, os estudos 
h istóricos têm ou de se despojar da 
nanativa ou de usá-la apenas para 
tornar os "detalhes" da realidade his­
tórica "interessantes" para um público 
leitor de outra forma desatento. Os 
críticos literários recorrem à história 
como um corpo de fatos não problemá­
tico para a solução de problemas na 
teoria literária, enquanto os teóricos 
da história apelam para aquilo que 
imaginam ser uma noção não proble­
mática da relação da "literatura" com 
a "realidade" para situar a questão da 
função da narrativa no discurso histó­
rico. Assim acontece na maioria das 
discussões teóricas' qualquer campo 
• 
• 
TEORIA lJTERARIA E ESCRITA DA HISTORIA 43 
dado de conhecimento tem de pressu­
por a adequação das prática. de pelo 
menos um outro campo a fim de pros­
seguir em seu movimento. 
Mas a moderna teoria literária abre 
uma perspectiva sobre a escrita da his­
tória mais abrangente do que as ima­
ginadas pelos participantes do debate 
sobre a natureza do discurso natl ativo, 
de um lado, e aqueles engajados no 
debate sobre a natureza do conheci­
mento histórico, de outro. O dis<:urso 
histórico (eu:> oposição à investigação 
histórica) é um caso especial do discur­
so em geral. Conseqüentemente, os 
teóricos do discurso histórico não po­
dem se permitir ignorar as teorias ge­
rais do discurso que foram desenvolvi­
das dentro da moderna teoria literária 
com base em novas concepções da lin­
guagem, da fala e da textualidade, as 
quais pel'luitem refotlnulaçõeB das no­
çóes tradicionais de literalidade, refe­
rência, autoria, público e códigos. Não 
porque a moderna teoria literária for­
nece respostas definitivas às questões 
levantadas por essas novas concepções 
da linguagem, da fala e da textualida­
de, mas antes porque, ao contrário, ela 
reproblematizou uma área de investi­
gação que, pelo menos na teoria da 
história, durante muito tempo havia 
sido tratada como não apresentando 
nada de problemático. 
Em ensaio publicado em Commun� 
catiens em 1972, Barthes sugeria que o 
tipo de trabalho interdisciplinar exigido 
pelas modernas ciências h umanas re­
queria não tanto o uso de váriAS disci­
plinas estabelecidas para a anãlise de 
um objeto de estudo tradicionalmente 
definido, como a invenção de um novo 
objeto que não pertenceria a qualquer 
disciplina estabelecida em particular.36 
Barthes oferecia "o texto", em sua con­
ceitualização moderna, lingüístico-6e­
miótica, como esse objeto. Se acompa­
nhal'lll05 as implicações dessa sugestão, 
poderemoe oome",r a perceber a signi­
ficação da moderna teoria literária para 
a oompreensão do que está envolvido 
noe nossoe próprios esforços para teori­
zar a escrita da história. Uma das im­
plicações ma;'" importantes é que não 
poderemoe ma is ver o texto historiográ­
fico como um continente não-problemá­
tico e neutro de um oonteúdo suposta­
mente daClo em sua inteireza por uma 
"realidade" que jaz além de seus limites. 
Não precisamos ir táo longe quanto 
Barthes estava querendo ir naquela 
época ao dividir o '�xto" nas duas pos­
sibilidades do '1eitor" e do "escritor", e 
ao sustentar que a primeira era apenas 
um NlSQ especial, disfarçado, da última 
- especialmente na medida em que a 
utilidade heurística da noção de ''texto'' 
deriva de sua função mais de designar 
um novo problema para a pesquisa do 
que de servir de solução para um pro­
blema antigo. Gostariamos, contudo, de 
explorar em que medida a escrita histó­
rica serve como lugar privilegiado do 
texto do '1eitor" e fornece um paradigma 
de todos os discursos putativamente 
'�listas". 
O próprio Barthes o sugeriu num 
ensaio intitulado "O discurso da histó­
ria" (1970). Ali ele destaca como a his­
toriograf18 científica contemporánea 
desistiu da busca do ''real'' em beneficio 
da tarefa mais modesta, e afinal mais 
"realista", de simplesmente tornar a 
história '�nteligível". Naquele ponto do 
desenvolvimento de sua próprias teo­
rias da discursividade, Barthes pensa­
va que isso acarretava o abandono da 
(Iestrutura narrativa". Ele pensava 
que, plrque a na.rtativa havia sido "de_ 
senvolvida dentro do caldeirão da fic­
ção (nos mitos e nas primeiras epo­
péias)", ela era por conseguinte ineren­
temente inadequada para servir corno 
tio sinal e a prova da realidade" em 
I d· 37 qua quer ISCUrsO. 
• 
44 ESTUDOS HISTORlCOS - 1994/1S 
Na visão de Barthes, a moderna his­
tória científica, com o que ele queria 
dizer a historiografia estruturalista do 
tipo Annales, se assemelhava ao mo­
dernismo literário em virtude de seu 
interesse pelo '�nteligível", ma is do que 
pelo "real". Mas 8e assim é, segue-se 
que a história "estruturalista" não é 
mais realista do que a história tradicio­
naL Além disso, se é mais uma questão 
de '�nteligível" do que de "real", B nar· 
rativa é uma instrumentalidade dis­
cursiva tão efetiva para produzi-lo 
quanto o modo dissertivo preferido por 
toda historiografia científica. 
Contudo, a sugestão de Barthes, de 
semelhanças entre a história estrutu­
ralista e o modernismo literário, tem 
implicações para a nossa compreensão 
do que estã envolvido em sua aparente 
hostilidade comum ao discurso na 1'1 a­
tivo. Digo "aparente" porque hoje é pos­
sível reconhecer que o modernismo li­
terário não rejeitou tanto a narrativi­
dade, a historicidade ou mesmo o "re­
alismo", e sim explorou os limites de 
suas fonnas peculiarmente século-XIX 
e expôs a mútua cumplicidade dessas 
fonnas nas práticas discursivas domi­
nantes da cultura da alta burguesia. 
Nesse processo, o modernismo literá­
rio revelou possibilidades novas ou es­
quecidas do próprio discurso narrati­
vo, potencialidades para tornar '�nteli­
gíveis" as experiências especificamen­
te modernas de tempo, de consciência 
histórica e de realidade social. O mo­
dernismo literário não repudiou o dis­
curso narrativo, mas descobriu nele 
um conteúdo, lingüístico e tropológico, 
adequado à representação de dimen­
sões da vida histórica só implicitamen­
te percebidas no realismo do século 
XIX, tanto literário como histórico. A 
adequação do "conteúdo da fotIua" do 
modernismo literário para a repre­
sentação da forrnae do conteúdo do tipo 
de vida histórica que desejamos cha-
mar de "moderna" comprova

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