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Ministro Epitacio Pessôa Memória Jurisprudencial Brasília 2009 Supremo Tribunal Federal SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Memória Jurisprudencial MINISTRO EPITACIO PESSÔA MAURO ALMEIDA NOLETO Brasília 2009 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Ministro GILMAR Ferreira MENDES (20-6-2002), Presidente Ministro Antonio CEZAR PELUSO (25-6-2003), Vice-Presidente Ministro José CELSO DE MELLO Filho (17-8-1989) Ministro MARCO AURÉLIO Mendes de Farias Mello (13-6-1990) Ministra ELLEN GRACIE Northfleet (14-12-2000) Ministro CARLOS Augusto Ayres de Freitas BRITTO (25-6-2003) Ministro JOAQUIM Benedito BARBOSA Gomes (25-6-2003) Ministro EROS Roberto GRAU (30-6-2004) Ministro Enrique RICARDO LEWANDOWSKI (16-3-2006) Ministra CÁRMEN LÚCIA Antunes Rocha (21-6-2006) Ministro José Antonio DIAS TOFFOLI (23-10-2009) Diretoria-Geral Alcides Diniz da Silva Secretaria de Documentação Janeth Aparecida Dias de Melo Coordenadoria de Divulgação de Jurisprudência Leide Maria Soares Corrêa Cesar Seção de Preparo de Publicações Cíntia Machado Gonçalves Soares Seção de Padronização e Revisão Rochelle Quito Seção de Distribuição de Edições Maria Cristina Hilário da Silva Diagramação: Ludmila Araujo Capa: Jorge Luis Villar Peres Edição: Supremo Tribunal Federal Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Supremo Tribunal Federal – Biblioteca Ministro Victor Nunes Leal) Noleto, Mauro Almeida. Memória jurisprudencial : Ministro Epitacio Pessôa / Mauro Almeida Noleto. – Brasília : Supremo Tribunal Federal, 2009. – (Série memória jurisprudencial) 318 p. 1. Ministro do Supremo Tribunal Federal. 2. Brasil. Supremo Tribunal Federal (STF). 3. Pessôa, Epitacio - Jurisprudência. I. Título. II. Série. CDD-341.4191081 9 788561 435134 ISBN 978-85-61435-13-4 Ministro Epitacio Pessôa APRESENTAÇÃO A Constituição de 1988 retomou o processo democrático interrompido pelo período militar. Na esteira desse novo ambiente institucional, a Constituição significou uma renovada época. Passamos para a busca de efetividade dos direitos no campo das presta- ções de natureza pública, como pelo respeito desses direitos no âmbito da so- ciedade civil. É na calmaria institucional que se destaca a função do Poder Judiciário. É inegável sua importância como instrumento na concretização dos va- lores expressos na Carta Política e como faceta do Poder Público, em que os horizontes de defesa dos direitos individuais e coletivos se viabilizam. O papel central na defesa dos direitos fundamentais não poderia ser al- cançado sem a atuação decisiva do Supremo Tribunal Federal na construção da unidade e do prestígio de que goza hoje o Poder Judiciário. A história do SUPREMO se confunde com a própria história de constru- ção do sistema republicano-democrático que temos atualmente e com a conso- lidação da função do próprio Poder Judiciário. Esses quase 120 anos (desde a transformação do antigo Supremo Tribunal de Justiça no Supremo Tribunal Federal, em 28-2-1891) não significaram sim- plesmente uma seqüência de decisões de cunho protocolar. Trata-se de uma importante seqüência político-jurídica da história na- cional em que a atuação institucional, por vários momentos, se confundiu com defesa intransigente de direitos e combate aos abusos do poder político. Essa história foi escrita em períodos de tranqüilidade, mas houve tam- bém delicados momentos de verdadeiros regimes de exceção e resguardo da independência e da autonomia no exercício da função jurisdicional. Conhecer a história do SUPREMO é conhecer uma das dimensões do caminho político que trilhamos até aqui e que nos constituiu como cidadãos brasileiros em um regime constitucional democrático. Entretanto, ao contrário do que a comunidade jurídica muitas vezes tende a enxergar, o SUPREMO não é — nem nunca foi — apenas um prédio, um ple- nário, uma decisão coletada no repertório oficial, uma jurisprudência. O SUPREMO é formado por homens que, ao longo dos anos, abraçaram o munus publicum de se dedicarem ao resguardo dos direitos do cidadão e à de- fesa das instituições democráticas. Conhecer os vários “perfis” do SUPREMO. Entender suas decisões e sua jurisprudência. Analisar as circunstâncias políticas e sociais que envolveram determi- nado julgamento. Interpretar a história de fortalecimento da instituição. Tudo isso passa por conhecer os seus membros, os valores em que acre- ditavam, os princípios que seguiam, a formação profissional e acadêmica que tiveram, a carreira jurídica ou política que trilharam. Os protagonistas dessa história sempre foram, de uma forma ou de outra, colocados de lado em nome de uma imagem insensível e impessoal do Tribunal. Vários desses homens públicos, muito embora tenham ajudado, de forma decisiva, a firmar institutos e instituições de nosso direito por meio de seus vo- tos e manifestações, são desconhecidos do grande público e mesmo ignorados entre os juristas. A injustiça dessa realidade não vem sem preço. O desconhecimento dessa história paralela também ajudou a formar uma visão burocrática do Tribunal. Uma visão muito pouco crítica ou científica, além de não prestar homena- gem aos Ministros que, no passado, dedicaram suas vidas na edificação de um regime democrático e na proteção de um Poder Judiciário forte e independente. Por isso esta coleção, que ora se inicia, vem completar, finalmente, uma inaceitável lacuna em nossos estudos de direito constitucional e da própria for- mação do pensamento político brasileiro. Ao longo das edições desta coletânea, o aluno de direito, o estudioso do direito, o professor, o advogado, enfim, o jurista poderá conhecer com mais pro- fundidade a vida e a obra dos membros do Supremo Tribunal Federal de ontem e consultar peças e julgados de suas carreiras como magistrados do Tribunal, que constituem trabalhos inestimáveis e valorosas contribuições no campo da interpretação constitucional. As Constituições Brasileiras (1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1988) consubstanciaram documentos orgânicos e vivos durante suas vigências. Elas, ao mesmo tempo em que condicionaram os rumos político-insti- tucionais do país, também foram influenciadas pelos valores, pelas práticas e pelas circunstâncias políticas e sociais de cada um desses períodos. Nesse sentido, não há como segmentar essa história sem entender a dinâ- mica própria dessas transformações. Há que se compreender os contextos históricos em que estavam inseridas. Há que se conhecer a mentalidade dos homens que moldaram também essa realidade no âmbito do SUPREMO. A Constituição, nesse sentido, é um dado cultural e histórico, datada no tempo e localizada no espaço. Exige, para ser compreendida, o conhecimento dos juristas e dos políti- cos que tiveram papel determinante em cada um dos períodos constitucionais tanto no campo da elaboração legislativa como no campo jurisdicional de sua interpretação. A Constituição, por outro lado, não é um “pedaço de papel” na expressão empregada por FERDINAND LASSALE. O sentido da Constituição, em seus múltiplos significados, se renova e é constantemente redescoberto em processo de diálogo entre o momento do intér- prete e de sua pré-compreensão e o tempo do texto constitucional. É a “espiral hermenêutica” de HANS GEORG GADAMER. O papel exercido pelos Ministros do SUPREMO, como intérpretes ofi- ciais da Constituição, sempre teve caráter fundamental. Se a interpretação é procedimento criativo e de natureza jurídico-polí- tica, não é exagero dizer que o SUPREMO, ao longo de sua história, completou o trabalho dos poderes constituintes que se sucederam ao aditar conteúdo nor- mativo aos dispositivos da Constituição. Isso se fez na medida em que o Tribunal fixava pautas interpretativas e consolidava jurisprudências. Não há dúvida, portanto,de que um estudo, de fato, aprofundado no campo da política judiciária e no âmbito do direito constitucional requer, como fonte primária, a delimitação do pensamento das autoridades que participaram, em primeiro plano, da montagem das linhas constitucionais fundamentais. Nesse sentido, não há dúvida de que, por exemplo, o princípio federativo ou o princípio da separação dos Poderes, em larga medida, tiveram suas fron- teiras de entendimento fixadas pelo SUPREMO e pela carga valorativa que seus membros traziam de suas experiências profissionais. Não é possível se compreender temas como “controle de constitucionali- dade”, “intervenção federal”, “processo legislativo” e outros tantos sem se saber quem foram as pessoas que examinaram esses problemas e que definiram as pautas hermenêuticas que, em regra, seguimos até hoje no trabalho contínuo da Corte. Por isso, esta coleção visa a recuperar a memória institucional, política e jurídica do SUPREMO. A idéia e a finalidade é trazer a vida, a obra e a contribuição dada por Ministros como CASTRO NUNES, OROZIMBO NONATO, VICTOR NUNES LEAL e ALIOMAR BALEEIRO, além de outros. A redescoberta do pensamento desses juristas contribuirá para a melhor compreensão de nossa história institucional. Contribuirá para o aprofundamento dos estudos de teoria constitucional no Brasil. Contribuirá, principalmente, para o resgate do pensamento jurídico-polí- tico brasileiro, que tantas vezes cedeu espaço para posições teóricas construídas alhures. E, mais, demonstrará ser falaciosa a afirmação de que o SUPREMO deve ser um Tribunal da carreira da magistratura. Nunca deverá ser capturado pelas corporações. Brasília, março de 2006 Ministro Nelson A. Jobim Presidente do Supremo Tribunal Federal Aos servidores do Supremo Tribunal Federal. “Forçoso é circunscrever o debate ao direito positivo e analisar a Constituição como ela é e não como devia ser.” Epitacio Pessôa SUMáRIO ABREVIATURAS .......................................................................................... 17 DADOS BIOGRÁFICOS ............................................................................... 19 NOTA DO AUTOR ......................................................................................... 21 1. LINHA DO TEMPO: MINISTRO EPITACIO PESSÔA (1865-1942) ...... 25 2. O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL DE EPITACIO PESSÔA — O DIREITO E A POLÍTICA NA REPÚBLICA VELHA ........................... 34 3. ASPECTOS NORMATIVOS DA ORGANIZAÇÃO ORIGINÁRIA DA JURISDIÇÃO DO STF: PARA COMPREENDER MELHOR A JURISPRUDÊNCIA DO INÍCIO DO SÉCULO XX ............................. 54 3.1 Recurso extraordinário .......................................................................... 56 3.2 Apelações e agravos: o começo da “crise do Supremo” ....................... 64 3.3 Habeas corpus: a doutrina brasileira na visão de Epitacio Pessôa ....... 66 4. EPITACIO PESSÔA E A JURISPRUDÊNCIA DO STF ........................... 69 4.1 Tópicos da jurisprudência do STF nas matérias cível e criminal ......... 72 4.1.1 Guerra fiscal: imposto sobre intercurso de mercadorias .............. 72 4.1.2 Direito adquirido .......................................................................... 79 4.1.2.1 Vitaliciedade de cargo ..................................................... 79 4.1.2.2 Posse não gera direito adquirido ..................................... 81 4.1.2.3 Não há direito adquirido à manutenção de regime jurídico ............................................................................ 86 4.1.2.4 Direito intertemporal pós-estado de sítio ........................ 89 4.1.3 Inconstitucionalidade de aposentadoria compulsória aos 70 anos ......................................................................................... 92 4.1.4 Invocação indireta de fundamento constitucional ....................... 96 4.1.5 Sucumbência da Fazenda Nacional: duplo efeito e recurso ex officio ...................................................................................... 97 4.1.6 Atribuições ambivalentes do Chefe de Polícia do Distrito Federal ......................................................................................... 99 4.1.7 Despejo por condições sanitárias ............................................... 101 4.1.8 Peculato e co-autoria de pessoa estranha à administração pública ....................................................................................... 104 4.1.9 Um crime sui generis: depositário de moeda falsa .................... 105 4.1.10 Crime continuado e aplicação da pena .................................... 106 4.2 Jurisdição extraordinária ..................................................................... 107 4.2.1 Nulidade dos atos inconstitucionais ........................................... 107 4.2.2 Prequestionamento ..................................................................... 113 4.2.3 Irredutibilidade de vencimentos ................................................. 115 4.2.4 Inamovibilidade de funcionários estaduais ................................ 117 4.3 Jurisdição das liberdades ..................................................................... 119 4.3.1 Elegibilidade de militar e direito à disponibilidade ................... 119 4.3.2 Direito da testemunha de ser ouvida no lugar de seu domicílio .................................................................................... 121 4.3.3 Bombardeio federal ao Palácio do Governo da Bahia: as negativas do STF a impetrações de Rui Barbosa em defesa de direitos políticos ........................................................................ 122 REFERÊNCIAS ............................................................................................ 125 APÊNDICE ................................................................................................... 129 ÍNDICE NUMÉRICO ................................................................................... 315 ABREVIATURAS AC Ação cautelar ACi Apelação cível ACr Apelação criminal ADI Ação direta de inconstitucionalidade Ag Agravo AgP Agravo de petição AI Agravo de instrumento CA Conflito de atribuições CJ Conflito de jurisdição DJ Diário da Justiça ED Embargos de declaração HC Habeas corpus LC Lei complementar MS Mandado de segurança RE Recurso extraordinário RHC Recurso em habeas corpus RvC Revisão criminal SE Sentença estrangeira STF Supremo Tribunal Federal STJ Supremo Tribunal de Justiça DADOS BIOGRáFICOS EPITACIO DA SILVA PESSÔA, filho do Tenente-Coronel José da Silva Pessôa e D. Henriqueta Barbosa de Lucena, nasceu em 23 de maio de 1865, na cidade do Umbuzeiro, província da Paraíba do Norte. Órfão de pai e mãe aos oito anos de idade, foi admitido, em 1874, no Ginásio Pernambuco como um dos pensionistas da província de Pernambuco, que mantinha vinte órfãos no mesmo Ginásio, à custa do Tesouro Provincial. Suprimida pela Assembléia Legislativa a verba destinada à educação de tais pensionistas, prosseguiu ele gratuitamente em seus estudos por determinação do então Presidente da província, Dr. Francisco Sodré. Concluindo o curso secundário, matriculou-se, em 1882, na Faculdade de Direito do Recife, cujos estudos terminou com grande brilhantismo, recebendo o grau de Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, em 13 de novembro de 1886. Iniciou sua carreira pública com a nomeação de Promotor interino de Bom Jardim, em Pernambuco, passando a Promotor efetivo da comarca de Cabo, em 18 de fevereiro de 1887, cargo que exerceu até junho de 1889, quando foi exonerado. Proclamado o regime republicano, aceitou o convite para Secretário do Governo do Dr. Venancio Neiva, na Paraíba, assumindo o exercício em 21 de dezembrode 1889. Em setembro de 1890, foi eleito Deputado à Constituinte pelo Estado da Paraíba. Atendendo ao seu curso brilhantíssimo e à cultura já revelada em várias pu- blicações, foi nomeado, em decreto de 23 de fevereiro de 1891, Lente Catedrático da Faculdade de Direito do Recife. Em decreto de 15 de novembro de 1898, foi nomeado Ministro da Justiça e Negócios Interiores, no Governo do Dr. Campos Sales, cargo de que foi exonerado, a pedido, em decreto de 6 de agosto de 1901. Em decreto de 25 de janeiro de 1902, foi nomeado Ministro do Supremo Tribunal Federal, tomando posse a 29 seguinte, preenchendo a vaga ocorrida com o falecimento do Barão de Pereira Franco, e por outro, de 7 de junho desse ano, o Governo resolveu nomeá-lo Procurador-Geral da República, sendo exonerado, a pedido, a 21 de outubro de 1905. Como Procurador da República, reivindicou para o patrimônio nacional a pro- priedade dos terrenos de marinha, escrevendo sobre o assunto notável monografia, repu- tada o melhor trabalho existente sobre a matéria. A convite do Barão do Rio Branco, elaborou em 1909 o projeto do Código de Direito Internacional Público. Foi aposentado em decreto de 17 de agosto de 1912. Em 1912 foi nomeado Delegado do Brasil no Congresso de Jurisconsultos Americanos, do qual foi aclamado Presidente pelo voto unânime dos representantes de todas as repúblicas do continente. Foi eleito Senador em 1912, e, posteriormente, Presidente da República, tomando posse em 28 de julho de 1919, permanecendo neste cargo até 15 de novembro de 1922, preenchendo a vaga aberta com a morte de Rodrigues Alves, que havia falecido antes de assumir as funções. No período do seu governo, o Brasil recebeu a visita dos Reis da Bélgica, que chegaram ao Rio de Janeiro em 19 de setembro de 1920, e do Presidente da República Portuguesa, Dr. Antônio José de Almeida, de 18 a 27 de setembro de 1922. Dotado de grande talento, ilustração e vasta cultura, são notáveis os trabalhos que publicou, quer em pareceres, memoriais, relatórios, discursos parlamentares, quer em atos como chefe da nação e sentenças arbitrais em questões de limites entre os Estados de São Paulo e Paraná, Minas Gerais e Goiás. Designado por vinte e um grupos nacionais, foi o nome do Dr. Epitacio Pessôa sufragado unanimemente e proclamado membro titular da Corte Permanente de Justiça Internacional, em 10 de setembro de 1923. Seu alto saber jurídico mereceu da Universidade de Buenos Aires a concessão do grau de Doutor in honoris causa. Os relevantes serviços que prestou foram reconhecidos pela Santa Sé e por diver- sas nações, que concederam ao Dr. Epitacio Pessôa as seguintes condecorações: Grã- Cruz da Legião de Honra, da França; Grã-Cruz de Leopoldo, da Bélgica; Grã-Cruz de São Maurício e São Lázaro, da Itália; Grã-Cruz da Ordem de Santo Olavo, da Noruega; Grã-Cruz, com colar, da Ordem do Banho, da Inglaterra; Grã-Cruz do Libertador Simão Bolivar, da Venezuela; Grã-Cruz da Ordem do Sol, do Peru; Grã-Cruz da Ordem do Crisântemo, do Japão; Cavaleiro da Ordem Superior de Cristo, da Santa Sé; Cavaleiro da Ordem do Elefante, da Dinamarca; Cavaleiro da Ordem dos Serafins, da Suécia; Cavaleiro da Ordem da Águia Branca, da Polônia; Banda das Três Ordens, de Portugal; a mais alta distinção da China e a medalha de 1ª classe Al Mérito do Chile. Faleceu em 13 de fevereiro de 1942, no sítio que possuía em Nogueira, Município de Petrópolis, Estado do Rio de Janeiro, sendo consignado pela Corte um voto de pesar, na reabertura dos trabalhos, em sessão de 7 de abril de 1942. O Supremo Tribunal Federal comemorou o centenário de seu nascimento, em sessão de 24 de maio de 1965, quando falou pela Corte o Ministro Cândido Mota Filho, pela Procuradoria-Geral da República o Dr. Oswaldo Trigueiro e pela Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Distrito Federal, o Dr. Esdras Gueiros. Dados biográficos extraídos da obra Supremo Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal: Dados biográficos (1828-2001), de Laurenio Lago. Este texto também pode ser encontrado no sítio do Supremo Tribunal Federal na Internet. NOTA DO AUTOR Foi com muita honra e gratificação pessoal que recebi o convite para participar deste esforço coletivo de preservação da memória jurisprudencial do STF. Desafio fasci- nante, mas carregado de responsabilidade. Coube a mim a elaboração do perfil jurídico do Ministro Epitacio Pessôa, com base na identificação e na análise de sua obra jurisprudencial, produzida ao longo do período de dez anos em que ocupou a vaga de número 12 no Supremo. Sorte a mi- nha, analista judiciário e ex-assessor de dois Ministros da Casa (Sepúlveda Pertence e Cármen Lúcia), fui levado, pela leitura dos votos de Pessôa, aos primeiros momentos da experiência republicana no Brasil e ao (re)começo da história do próprio Supremo Tribunal Federal. Além das inúmeras descobertas que uma pesquisa assim haveria de proporcio- nar, a escolha também tornou possível conhecer melhor a biografia dessa personalidade tão ímpar da história brasileira. Epitacio Pessôa foi um “fenômeno” político daqueles tempos iniciais em que se praticou a experiência republicana e federativa no Brasil. Ocupou os cargos mais importantes nos três Poderes da República: Constituinte em 1891; Ministro da Justiça de Campos Salles (1898); Ministro do Supremo aos 37 anos incompletos (1902-1912), onde atuou nos três primeiros anos como Procurador-Geral da República; Senador (1912); Presidente da República (1919-1922); e Juiz da Corte Internacional de Justiça, sediada na cidade de Haia (1923). Órfão de pai e mãe aos oito anos de idade, na Província de Pernambuco, a traje- tória ascendente de Epitacio Pessôa era mesmo improvável. Precisou combinar mérito pessoal com a “imprevista coincidência de circunstâncias felizes” — a que alude Sobral Pinto — para elevar-se aos pontos mais altos da carreira de estadista. A notável singula- ridade histórica e os lances ficcionais da biografia de Epitacio Pessôa foram motivações latentes desta pesquisa. Por outro lado, a figura histórica de Pessôa também revela os traços marcantes da elite jurídica brasileira da época, desde as características dominantes do recrutamento de quadros para a composição da cúpula do Judiciário, até as contradições próprias de uma nação que pretendia reinventar-se, na difícil e tumultuada transição do Império (unitário) para a República federativa, da escravidão para a sociedade de direitos, de um modelo constitucional europeu, em que o Legislativo tinha precedência, para a inspira- ção norte-americana do controle judicial da constitucionalidade das leis e da defesa da nova e complexa ordem federativa. A pesquisa teve assim a dupla preocupação de recuperar as manifestações de- cisivas do Ministro Pessôa em sua passagem pelo STF, mas também, a partir delas, procurou revelar características marcantes da jurisdição e das instituições republicanas, àquela altura de nossa história nacional, ainda em fase de franca formação. Para atingir de modo adequado esse segundo objetivo, optou-se por apresentar os dados biográficos do Ministro Epitacio Pessôa na forma de uma linha anual do tempo. Cronologia que começa com seu nascimento em 1865 e vai até a edição de suas Obras Completas, em 1965. Na medida do possível, a descrição dos fatos em ordem cronológica procurou conciliar o relato de eventos relevantes na política, nas artes e nas ciências, na economia e no direito brasileiro, sem perder de vista, obviamente, os fatos importantes da trajetória do biografado. Espera-se, com isso, ambientar o leitor destas páginas no tempo de Epitacio Pessôa, para que sua obra jurídica possa ser compreendida também pelo ângulo do contexto em que foi produzida. Algumas obras, em particular os trabalhos de Leda Boechat Rodrigues, Emilia Viotti da Costa, Aliomar Baleeiro, Paulo Bonavides,Laurita Pessoa, Afonso Arinos de Melo Franco, Orlando Bittar, Andrei Koerner, entre muitas outras, foram fontes biblio- gráficas de grande importância para a compreensão e reconstrução do contexto institu- cional em que atuou o Ministro Pessôa, o STF da primeira década do século XX, objeto do capítulo seguinte à linha do tempo. Ali a preocupação foi mostrar fatos importantes da história do STF, desde a sua criação, em 1890, até o momento em que o Tribunal pas- sou por sua primeira renovação, justamente o período de Epitacio Pessôa como Ministro. A revisão da bibliografia sobre o Supremo da época, embora não acrescente nada novo, cumpre bem, a meu ver, a tarefa desta coleção, que é voltada para a preservação da memória do Tribunal, neste caso, a partir da identificação do protagonismo de um de seus mais notáveis Ministros. Essa é também a razão para as extensas citações e notas de rodapé: a documentação — na medida do possível, de modo a não inviabilizar a con- tinuidade do texto principal — do relato e da análise dos que já se dedicaram a estudar a história e o funcionamento de uma instituição tão vital como o STF. Em seguida, o livro conta ainda com uma breve explanação sobre a estrutura or- gânica da jurisdição do Supremo Tribunal Federal do início do século passado, as vias e os instrumentos processuais mais utilizados, as competências e os limites dessa jurisdi- ção, com a crise de congestionamento que já se insinuava. Além do apoio bibliográfico das obras de história do STF já mencionadas, esta pesquisa sobre a obra do Ministro Epitacio Pessôa encontrou duas manifestações preciosas de sua autoria: uma monografia e um discurso no Senado, que permitiram retratar com fidelidade histórica as origens da prática do recurso extraordinário brasileiro e do habeas corpus, respectivamente. O capítulo registra também elucidativo debate entre juristas, ocorrido em 1912, sobre as propostas de reforma do Judiciário federal. Participaram nomes de peso como Clóvis Beviláqua, Pedro Lessa, Enéas Galvão e Epitacio Pessôa. A nota curiosa é que o debate foi promovido pelo Jornal do Commercio, que fez distribuir às autoridades um questio- nário. As respostas foram publicadas nas edições periódicas do jornal e compiladas no 117º volume da revista O Direito, de 1912. E assim, bem definido o contexto histórico e institucional da obra de Epitacio Pessôa no Supremo, segue-se seu exame direto, a descrição dos acórdãos e votos de sua lavra, que proporcionaram a este pesquisador a surpresa de descobrir as origens de tópi- cos seculares da jurisprudência do nosso STF. Essa é a parte mais extensa do trabalho, mas foi, certamente, a mais fecunda e prazerosa de executar. É preciso dizer, antes de concluir esta nota, que a principal fonte da pesquisa foi a coletânea realizada pelo Instituto Nacional do Livro, do Ministério da Educação, editada em 1965, ano do centenário de nascimento de Epitacio Pessôa, e que reúne, no volume III das Obras Completas de Epitacio Pessôa, praticamente todos os seus acór- dãos e votos. Ali estava preservada uma parte do patrimônio cultural do STF. Foi lá que este livro nasceu. Esta é, portanto, uma releitura da obra do grande Epitacio Pessôa, Ministro do STF, mas é, sobretudo, uma nova documentação de sua participação destacada na fun- dação da jurisprudência do Tribunal. Seu autor se permite alimentar a expectativa de que as páginas seguintes possam de fato cumprir esse papel, possam contribuir para reforçar a nobreza e a autoridade do STF pela demonstração de seu papel histórico na preserva- ção das liberdades democráticas, da unidade nacional, do governo das leis, mas funda- mentalmente por tudo aquilo que pode sempre representar a ação prudente do Supremo na promoção da justiça para a sociedade brasileira. Brasília, junho de 2009. O Autor. 25 Ministro Epitacio Pessôa 1. LINHA DO TEMPO: MINISTRO EPITACIO PESSÔA (1865-1942)1 1865 — Nasce Epitacio Lindolpho da Silva Pessôa, em 23 de maio, na fazenda Marcos de Castro, na localidade do Umbuzeiro, serra do Cariri parai- bano, filho do coronel José da Silva Pessôa, senhor de engenho, e de sua segunda esposa, Dona Henriqueta de Lucena, irmã do Barão de Lucena. 1870 — Em dezembro, o jornal carioca A República publica o “Manifesto Republicano”, assinado por mais de cinqüenta profissionais liberais (advogados, médicos, engenheiros, professores), que inaugura publica- mente a decadência da monarquia e a intenção de implantação do fede- ralismo republicano no Brasil: “Se carecêssemos de uma fórmula para assinalar, perante a consciência nacional, os efeitos de um e outro re- gime, nós a resumiríamos assim: Centralização — Desmembramento. Descentralização — Unidade.” Termina a Guerra do Paraguai, com a morte do ditador positivista Francisco Solano Lopez, na batalha de Cerro Corá. 1873 — Falecem, infectados por varíola, na cidade do Recife, no intervalo de apenas um mês, o pai e a mãe de Epitacio Pessôa, então com oito anos de idade. Por influência do tio, o Barão de Lucena, Presidente da Província de Pernambuco, Epitacio recebe uma bolsa de estudos no Ginásio Pernambucano. 1882 — Epitacio Pessôa ingressa na Faculdade de Direito do Recife, no mesmo ano em que Tobias Barreto passa a integrar a Congregação de profes- sores daquela que passaria a ser conhecida como a “Casa de Tobias”. 1886 — A três anos da queda da monarquia, no dia 13 de novembro, Epitacio Pessôa cola grau na Faculdade de Direito do Recife. Na sua turma de formandos estavam Pires de Albuquerque, futuro ministro do Supremo, e Graça Aranha, escritor modernista. 1887 — Epitacio é nomeado promotor público da cidade do Cabo/PE. 1 Esta cronologia foi baseada nas seguintes obras: GOMES, Ângela de Maria de Castro et al. A República no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: CPDOC, 2002. MELLO FILHO, José Celso de. Notas sobre o Supremo Tribunal (Império e República). 2. ed. Brasília: STF, 2007. NOSSO Século: Memória Fotográfica do Brasil no Século 20. São Paulo: Abril Cultural, 1981 (1900/1910: A Era dos Bacharéis, 1). NOSSO Século: Memória Fotográfica do Brasil no Século 20. São Paulo: Abril Cultural, 1981 (1910/1930: Anos de Crise e Criação, 2). RAJA-GABALGIA Laurita Pessoa. Epitacio Pessôa (1965-1942). Rio de Janeiro: José Olympio, 1951. 26 Memória Jurisprudencial 1888 — A princesa Isabel assina a Lei 3.353, a “Lei Áurea”, na condição de Regente, durante viagem de D. Pedro II à Europa. Estava abolida a es- cravidão no Brasil. 1889 — Último país a abolir a escravidão negra e única monarquia americana, o Brasil imperial, por uma dessas estranhas coincidências históricas, manda expressiva delegação a Paris, para participar da Exposição Universal Comemorativa do Centenário da Revolução Francesa, a “Exposição Tricolor”. O evento grandioso celebrava o centenário da “Grande Revolução” com a inauguração da Torre Eiffel, símbolo co- lossal e iluminado dos ideais de igualdade, liberdade e fraternidade. No Rio de Janeiro, uma conspiração militar proclama a República no Brasil no dia 15 de novembro. Forças do Exército saem às ruas, ocupam prédios públicos, rendem o gabinete do Conselho de Ministros e ins- talam um governo provisório. Para a edificação das novas instituições republicanas, toma-se como exemplo a experiência norte-americana, inclusive o próprio nome do país, que passava a se chamar “Estados Unidos do Brazil”, em alusão ao federalismo escolhido como novo modelo político de organização territorial. Era a vitória das províncias, principalmente São Paulo e Minas Gerais, que passavam à nova condi- ção de Estados. 1890 — Epitacio Pessôa é eleito, pelo Estado da Paraíba, Deputado constituinte. O Decreto 848, de 11 de outubro de 1890, do Governo Provisório, cria o Supremo Tribunal Federal e institui a Justiça Federal no Brasil. Era Ministro da Justiçao futuro Presidente Campos Salles, que também faz publicar naquele ano o novo Código Penal brasileiro. No campo eco- nômico, a primeira experiência republicana foi a tentativa de moderni- zação e industrialização imediatas do país, que deveria vir da abertura total do mercado brasileiro para a entrada de capitais estrangeiros, seguida de permissão para bancos privados emitirem moeda, da edi- ção de uma nova e liberal lei das sociedades anônimas, além da criação de um mercado de ações concentrado na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro. Essa aposta no mercado de ações acabou provocando o surto especulativo e inflacionário que ficaria conhecido como o “encilha- mento”, expressão alusiva ao alinhamento inicial dos cavalos no turfe. 1891 — É promulgada, em 24 de fevereiro, a Constituição da República Fede- rativa dos Estados Unidos do Brasil. No dia anterior, Epitacio era no- meado Lente Catedrático da Faculdade de Direito do Recife. Deodoro dissolve o Congresso. Os Estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul reagem a essa medida e recebem o apoio da Marinha, que inicia uma revolta na Baía de Guanabara. Para evitar a guerra ci- vil, Deodoro renuncia e é substituído pelo marechal Floriano Peixoto. 27 Ministro Epitacio Pessôa Floriano promove a substituição dos governantes de São Paulo e do Rio Grande do Sul. Os gaúchos demonstram descontentamento com o novo – e imposto – governante. 1892 — Em 6 de abril, treze generais protestam contra a falta de convocação da eleição presidencial. Manifestações de rua em apoio a Deodoro provo- cam a reação violenta de Floriano, que ordena a prisão e a deportação de vários civis, inclusive parlamentares, apesar de suas imunidades. Entre os presos, Olavo Bilac e o almirante Wanderkolk, que havia sido ministro do Governo Provisório. Rui Barbosa pede ao STF habeas corpus em favor dos presos (HC 300) que permaneciam no cárcere ou no desterro, após extinguir-se o prazo de 72 horas do estado de sítio. O Supremo nega a ordem pedida, contra o voto isolado do Ministro Pisa e Almeida, cujas mãos Rui teria beijado num gesto comovido de agra- decimento. No Rio Grande do Sul, as forças locais promovem o movi- mento separatista que ficou conhecido como a Revolução Federalista. 1893 — Em apoio ao movimento gaúcho, a Marinha inicia na capital a Revolta da Armada. Os revoltosos dominam a baía da Guanabara e bombar- deiam a cidade. Rui Barbosa renuncia ao mandato de Senador e busca refúgio em Buenos Aires, mudando-se depois para Londres, onde permanece até o fim do governo de Floriano. As autoridades republi- canas recebem a informação de que no povoado de Canudos, no sertão baiano, concentravam-se “fanáticos religiosos e monarquistas”, lide- rados por Antônio Vicente Mendes Maciel, o “Antônio Conselheiro”. 1894 — Com o apoio financeiro de São Paulo, Floriano consegue derrotar os movimentos do Sul e da Marinha, mas, em troca, concorda com a rea- lização de eleições que levarão ao poder o primeiro Presidente civil, o paulista Prudente de Morais. No final de seu governo, Floriano nomeia vários ministros para o Supremo, encerrando o período de recesso for- çado a que estava submetido o Tribunal há meses, por falta de quorum para julgamento dos feitos. Em novembro, uma mudança legislativa (Lei 221) estabelece que o Presidente e o Vice-Presidente do STF pas- sariam a prestar juramento perante o próprio Tribunal, não mais pe- rante o Presidente da República. 1897 — As Forças da União, após sucessivas e surpreendentes derrotas milita- res, finalmente derrotam os sertanejos, massacrando-os e pondo fim à Guerra de Canudos, no sertão da Bahia. Os acórdãos do Supremo pas- sam a ser publicados na Revista de Jurisprudência. 1898 — O Supremo, na sessão de 16-4-1898, no julgamento do HC 1.073, revê jurisprudência firmada em 1892 e concede o habeas corpus requerido por Rui Barbosa em favor de presos políticos para então consagrar a 28 Memória Jurisprudencial tese de que cessam, com o fim do estado de sítio, todas as medidas de repressão durante ele tomadas pelo Executivo. Epitacio é convi- dado para o cargo de Ministro da Justiça e Negócios Interiores pelo Presidente da República, Campos Salles, eleito no dia 1º de março com cerca de 420.000 votos. A grande obra jurídica de Epitacio Pessôa no cargo de Ministro da Justiça foi a elaboração do projeto de Código Civil, cuja execução foi por ele confiada ao jovem jurista cearense Clóvis Beviláqua, seu contemporâneo de faculdade. 1900 — A população brasileira atinge mais de 17 milhões de habitantes, a maioria (64%) ainda no campo. O Brasil detém então o monopólio mundial da produção de café, favorecido por doenças ocorridas nos ca- fezais asiáticos e por fatores econômicos. A Revolta dos Cocheiros, um movimento grevista, estoura em janeiro e provoca violentos choques entre manifestantes e a polícia durante três dias. Machado de Assis publica Dom Casmurro, e Chiquinha Gonzaga compõe Ô Abre Alas, considerada a primeira marchinha brasileira. Campos Salles implanta a “política dos governadores”, pacto oligárquico que vai caracterizar a aliança governista durante toda a primeira república. Epitacio Pessôa apresenta o projeto de Código Civil ao Presidente da República, que, em 17 de novembro, remete-o ao Congresso Nacional. Como se sabe, a tramitação do projeto do primeiro Código Civil brasileiro levaria ainda mais 16 anos. Somente no governo de Wenceslau Braz, tendo como re- lator geral dos trabalhos no Senado o próprio Epitacio Pessôa, o novo código seria finalmente aprovado. 1901 — É publicado, em janeiro, o novo Código de Ensino, projeto do Ministro da Justiça, Epitacio Pessôa, que tornava mais rigorosa a disciplina escolar, inclusive com medidas de repressão que envolviam até a con- vocação da polícia. No decorrer do ano, os estudantes da Capital pro- movem várias manifestações e protestos contra o Código. A relutância do Presidente Campos Salles, preocupado com a sucessão que se avizi- nhava, em tomar medidas mais enérgicas contra os manifestantes, leva Epitacio a apresentar em agosto sua carta de demissão, que foi aceita. Sylvio Romero publica os Ensaios de Sociologia e Literatura. 1902 — Campos Salles, em seu último ano de governo, por decreto de 25 de janeiro, nomeia Epitacio da Silva Pessôa, pouco antes de completar 37 anos, para o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal, na vaga aberta com o falecimento do Barão de Pereira Franco. Outro decreto presidencial, de 7 de junho, traz a nomeação de Epitacio Pessôa para o cargo de Procurador-Geral da República (cargo que era exercido, de acordo com a Constituição de 1891, por um dentre os membros da 29 Ministro Epitacio Pessôa Corte). Rodrigues Alves é eleito Presidente da República. Começa a ser editada a revista O Malho. 1903 — Oswaldo Cruz, médico sanitarista, é nomeado para a presidência da Diretoria Geral de Saúde Pública, criada em janeiro, no Rio, que passa por um surto de febre amarela. Euclides da Cunha ingressa na Academia Brasileira de Letras. Em agosto, é deflagrada uma greve geral na cidade do Rio de Janeiro por melhores salários e pela jornada de trabalho de 8 horas. Em novembro, o Brasil assina com a Bolívia o “Tratado de Petrópolis”, obra diplomática do Barão do Rio Branco, que garante a incorporação do Acre ao país, após pagar indenização no va- lor de dois milhões de libras esterlinas ao país boliviano. 1904 — O jornal Correio da Manhã lidera uma campanha contra as medidas de combate à febre amarela instituídas por Oswaldo Cruz. O Prefeito da Capital, Pereira Passos, dá início às obras de reforma urbana, demo- lindo prédios e cortiços para a abertura de novas avenidas, é o “bota- abaixo” Em outubro é aprovada a lei da vacinação obrigatória contra a varíola. Em novembro explode a Revolta da Vacina, que provoca choques entrea população e as forças de repressão. O país sofre com a carestia e o desemprego, ingredientes que, somados à truculência dos agentes da vacinação obrigatória, alimentaram o calor e a violência da batalha urbana. Registram-se centenas de mortes. Quando o governo consegue retomar o controle da cidade, já na vigência de estado de sítio, prende centenas de pessoas e as despacha para o Acre, inclusive políticos e militares que aproveitaram a revolta para conspirar contra o Governo. 1905 — O Procurador-Geral da República, Epitacio Pessôa, apresenta no Plenário do STF seu discurso de acusação no rumoroso “caso das pedras”, em que o Presidente do Tribunal de Contas da União e o Ministro da Fazenda eram acusados de crimes de peculato. Em março, termina o estado de sítio decretado para conter a revolta contra a vaci- nação obrigatória. São lançadas as candidaturas de Afonso Pena e Nilo Peçanha, para Presidente e Vice-Presidente da República. Caem os pre- ços do café no mercado internacional, há risco de crise de superprodu- ção, o que acaba por se confirmar. Epitacio Pessôa, após atritos com o Ministro da Justiça, J. J. Seabra, pede demissão da Procuradoria-Geral e retoma as funções de Ministro do Supremo Tribunal Federal. 1906 — Em janeiro, os Governadores de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro reúnem-se na cidade de Taubaté, onde fecham um acordo para tentar contornar a crise do café. Pelo acordo, o Governo central assu- miria o compromisso de comprar estoques e estabelecer uma prática de preços mínimos para tentar segurar o valor do produto. Em outubro, 30 Memória Jurisprudencial Afonso Pena assume a Presidência da República. Nesse mesmo mês, Santos Dumont realiza o primeiro vôo público de um veículo mais pe- sado que o ar, o 14 Bis. Ao longo do ano, diversas greves operárias são deflagradas em São Paulo, no Rio e no Recife. 1907 — Em junho, realiza-se na cidade de Haia, na Holanda, a Segunda Conferência Internacional de Paz, com a debutante participação bra- sileira. Nosso principal representante é o Senador Rui Barbosa, cujo destaque obtido com sua participação rende a ele o título de “águia de Haia”. É publicada a Lei Adolpho Gordo, que permite a expulsão do Brasil de estrangeiros acusados de “comprometerem a segurança nacional”. Toma posse do cargo de Ministro do STF o advogado e pro- fessor da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, Pedro Lessa. 1908 — Conflitos armados na Bahia e em Goiás provocam a intervenção do Governo federal. Uma greve de cinco dias na companhia de gás pa- ralisa o Rio de Janeiro, que fica sem luz. Em agosto, tem início a ex- posição nacional comemorativa do centenário da abertura dos portos no Brasil. Instalada na Praia Vermelha (Rio de Janeiro), a exposição tinha a finalidade de mostrar aos estrangeiros as melhorias feitas na Capital pela reforma urbana de Pereira Passos e os avanços sanitários coordenados por Oswaldo Cruz. O navio Kasato Maru chega ao Porto de Santos trazendo o primeiro grupo de imigrantes japoneses. Epitacio Pessôa pede licença do Supremo e faz com a família uma viagem de seis meses à Europa, onde passa por tratamento de saúde. Nasce a re- vista O Careta. Morre Machado de Assis. 1909 — Com a morte de Afonso Pena, no exercício do mandato presidencial, assume o cargo o Vice-Presidente, Nilo Peçanha. Rui Barbosa lança sua candidatura à Presidência da República em oposição à candidatura do marechal Hermes da Fonseca. Rui, em campanha, reclama o po- der para os civis. É inaugurado o Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Carlos Chagas descobre a causa de uma doença muito comum no meio rural; o micróbio, transmitido pela picada do inseto barbeiro, recebe o nome de Trypanosoma Cruzi em homenagem ao sanitarista Oswaldo Cruz. Durante esse ano, a Lei Adolpho Gordo é aplicada e são expul- sos do país 25 militantes socialistas e anarquistas. Tem início a for- mulação da “doutrina brasileira do habeas corpus”, no julgamento do “caso do Conselho Municipal do Distrito Federal” (HC 2.794, Relator o Ministro Godofredo Cunha). 1910 — A “campanha civilista” de Rui Barbosa intensifica-se, conseguindo muitas adesões em São Paulo. Pela primeira vez, os candidatos procu- ram consolidar o apoio popular com a realização de grandes comícios e 31 Ministro Epitacio Pessôa atos públicos. Numa eleição muito disputada contra Rui Barbosa, o ma- rechal Hermes da Fonseca é eleito Presidente da República. É criado o Serviço de Proteção ao Índio sob a direção do tenente-coronel Cândido Mariano da Silva Rondon. Os marinheiros dos encouraçados Minas Gerais e São Paulo amotinam-se sob o comando de João Cândido (“Almirante Negro”), exigindo a extinção das penas de açoites prati- cadas na Marinha do Brasil. Era a Revolta da Chibata. O Jornal do Commercio de 15 de julho faz severas críticas ao Supremo, que “sacri- fica a justiça e a lei à influência nefasta dos interesses e dos empenhos”, em alusão às decisões do Tribunal proferidas em habeas corpus moti- vados por conflitos políticos nos Estados. 1911 — O Governador eleito do Estado de Pernambuco, Rosa e Silva, é de- posto pelo candidato derrotado, coronel Dantas Barreto, com apoio dos militares e do Governo federal. Tem início a chamada “política das salvações”, do regime do marechal Hermes e de seu líder no Senado, o gaúcho Pinheiro Machado. Epitacio é operado na Europa para retirada da vesícula. 1912 — Bombardeio de Salvador por forças federais obriga a deposição do Governador, Aurélio Vianna. Sucessivos habeas corpus impetrados por Rui Barbosa no Supremo Tribunal Federal são considerados preju- dicados pela maioria dos Ministros, que acompanham a argumentação do Ministro Epitacio Pessôa, recém-chegado de sua convalescença na França. Em 17 de agosto de 1912, Epitacio Pessôa, por recomenda- ção médica, aposenta-se do cargo de Ministro do Supremo Tribunal Federal. Logo depois de deixar o Tribunal, Epitacio é convidado por lideranças dos dois partidos da Paraíba para ocupar a vaga de Senador pelo Estado, com a condição de poder se ausentar do país pelo tempo que fosse necessário ao seu restabelecimento. Epitacio, após diversos telegramas, aceita, é eleito e reconhecido. Nos quatro últimos dias da sessão legislativa, comparece ao Senado e, em seguida, parte com toda a família para a Europa, de onde retornaria apenas em 1914, três meses antes de rebentar a primeira Guerra Mundial. 1913 — Realiza-se no Rio de Janeiro um comício contra a carestia, reunindo mais de dez mil pessoas. Morre Campos Sales. Estoura a Revolução do Juazeiro, no Ceará: o Padre Cícero alia-se aos coronéis contra o Governador Franco Rabelo, imposto pelo governo de Hermes da Fonseca, que decreta estado de sítio. Rui Barbosa funda o Partido Liberal. 1914 — Venceslau Braz é eleito Presidente da República. Em julho, o Império Austro-húngaro declara guerra à Sérvia. Começa a Primeira Guerra Mundial. 32 Memória Jurisprudencial 1915 — O Senador Pinheiro Machado é assassinado por Francisco Manso de Paiva, no Rio de Janeiro. Em 26 de dezembro o Congresso Nacional aprova o Código Civil brasileiro. 1916 — Aumentam os protestos e as greves contra a carestia. O tenor italiano Enrico Caruso visita o Brasil e se apresenta em São Paulo, interpre- tando a ópera francesa Carmen, de Bizet. O serviço militar torna-se obrigatório em todo o Brasil. 1917 — Submarinos alemães disparam torpedos contra o navio Paraná, na costa francesa. Em represália, o Governo brasileiro confisca navios alemães ancorados nos portos do país. Em junho, três milhões de sacas de café estocadas são queimadas, para evitar a queda nos preços. Anita Malfatti realiza exposição de suas obras em São Paulo. Manuel Bandeira publica A Cinza das Horas. A música Pelo Telefone, de Donga, passa a ser o primeiro samba gravado no Brasil. Em outubro, o navio brasileiroMacau é afundado pelos alemães. O Brasil declara guerra à Alemanha. 1918 — Rodrigues Alves e Delfim Moreira são eleitos Presidente e Vice- Presidente da República. A “gripe espanhola” faz milhares de ví- timas. Em São Paulo, oito mil pessoas morrem em apenas quatro dias. O Presidente eleito, Rodrigues Alves, adoece contaminado pela moléstia. Delfim Moreira assume interinamente. Morre Olavo Bilac. Monteiro Lobato publica Urupês. Em novembro, termina a Primeira Guerra, com a assinatura de armistício entre a Alemanha e os Aliados. 1919 — Epitacio Pessôa chefia a delegação brasileira que parte, em janeiro, para a Conferência de Paz, em Versalhes. No final de janeiro, morre no Rio Rodrigues Alves. A Constituição determinava a realização de novas eleições, que são convocadas para abril. Mesmo ausente do país, Epitacio Pessôa é eleito Presidente da República com 249.324 votos, contra 118.303 votos obtidos por Rui Barbosa. 1920 — O Presidente Epitacio cria a Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Por ordem sua, fica proibida a participação de jogadores negros no selecionado brasileiro de futebol. Monteiro Lobato publica Negrinha. 1921 — Hermes da Fonseca é eleito Presidente do Clube Militar. Em outu- bro, são publicadas no Correio da Manhã cartas atribuídas a Artur Bernardes ofensivas ao marechal Hermes. Freire Júnior compõe a marchinha carnavalesca Ai, Seu Mé!, cuja letra satirizava o candidato à Presidência Artur Bernardes. A música é proibida e seu autor, preso. 1922 — Ano do centenário da Independência do Brasil. Em fevereiro, realiza- se em São Paulo a Semana de Arte Moderna. No dia 25 de março, é fundado no Rio o Partido Comunista Brasileiro. Artur Bernardes é 33 Ministro Epitacio Pessôa eleito Presidente da República. O Exército intervém nas eleições de Pernambuco, gerando uma reclamação de Hermes da Fonseca. Epitacio Pessôa manda fechar o Clube Militar e ordena a prisão do marechal Hermes. As guarnições da Vila Militar, da Escola Militar e do Forte de Copacabana se rebelam no dia 5 de julho e pedem a deposição de Epitacio. No dia seguinte, os revoltosos do Forte de Copacabana mar- cham pela Avenida Atlântica, sendo fuzilados pelas tropas do Governo. Apenas dois sobrevivem. No dia 15 de novembro, o mineiro Artur Bernardes toma posse na Presidência da República. 1923/ — Epitacio Pessôa ocupa o cargo de Juiz da Corte Permanente de Justiça 1930 Internacional, sediada em Haia, na Holanda. 1942 — No dia 13 de fevereiro, aos 76 anos, falece Epitacio Pessôa, na cidade de Petrópolis, Rio de Janeiro. 1965 — No ano do centenário de seu nascimento, os restos mortais de Epitacio Pessôa e de sua esposa, D. Mary Sayão Pessôa, são transportados do Rio de Janeiro para João Pessôa, na Paraíba. No mês de maio, o Congresso Nacional e o STF realizam sessões solenes em homenagem ao centenário de nascimento de Epitacio Pessôa. O Instituto Nacional do Livro, do Ministério da Educação, publica as Obras Completas de Epitacio Pessôa. 34 Memória Jurisprudencial 2. O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL DE EPITACIO PESSÔA — O DIREITO E A POLÍTICA NA REPÚBLICA VELHA Epitacio Pessôa foi Ministro do STF pelo período de dez anos, entre 1910 e 1912. Tinha apenas 36 anos de idade quando foi nomeado, mas já havia sido Ministro da Justiça de Campos Salles (1898-1901) e Deputado Constituinte pelo Estado da Paraíba em 1891. Depois de se aposentar do cargo de Ministro do STF, chegaria a Senador (1912-1919) e Presidente da República (1919-1922). Fora do comum, a sua biografia já foi escrita, pela filha, Laurita Pessoa Raja- Gabaglia, em edição do ano de 1951. Sua obra jurídica e trajetória política foram fartamente documentadas com a publicação das Obras Completas de Epitacio Pessôa, coleção editada pelo Ministério da Educação em 1965. O volume III dessa coleção, cujo prefá- cio é assinado por Sobral Pinto, é dedicado aos acórdãos e votos do Ministro Epitacio Pessôa no STF. Estudiosos da história do Supremo, como Leda Boechat Rodrigues, Emilia Viotti da Costa, Aliomar Baleeiro e Andrei Koerner, escre- veram importantes passagens de suas respectivas obras sobre o protagonismo do Ministro Epitacio Pessôa na formação da jurisprudência do STF durante aquela primeira e decisiva década do século XX. Com efeito, o estudo das fontes primárias e secundárias de e sobre Epitacio Pessôa ilumina um período especialmente importante, a fundação das instituições republicanas do país. As balizas e os propósitos desta coleção, Memória Jurisprudencial, do STF, impõem, todavia, maior delimitação desse foco de luz. O resultado, no entanto, é parecido. Descobre-se, a partir da leitura das decisões das quais participou ativamente o Ministro Pessôa, mas principal- mente a partir dos vários casos que julgou, na maior parte das vezes liderando a maioria do Tribunal, a edificação das instituições jurídicas nacionais: a duali- dade da Justiça e a unidade do Direito; a prevalência da Constituição (formal e materialmente) sobre as leis estaduais; o modo presidencialista de composição do Judiciário, repetido no âmbito estadual; o legalismo positivista e o raciocínio lógico-dedutivo que o acompanha; a utilização de instrumentos jurídico-pro- cessuais de caráter mandamental contra ilegalidades e abusos (mandados proi- bitórios, interditos, habeas corpus) para a garantia de direitos fundamentais. Esse período, contudo, não evoca apenas memórias edificantes. Houve também muitos motivos para acreditar que, ao lado da cultura republicana de direitos que o Supremo começava fomentar, eram mantidos e até aprimora- dos mecanismos de fuga da legalidade constitucional: exploração do trabalho, fraudes eleitorais, oligarquias políticas, patrimonialismo, autoritarismo polí- tico. Afinal, a história republicana brasileira não registra outro período como o que experimentamos na vigência da Constituição de 1988, vinte anos sem 35 Ministro Epitacio Pessôa golpes de Estado ou decretação de estado de sítio no país, e com a vigência simultânea de normas que estabeleçam: a realização de concursos públicos para o preenchimento dos cargos do Estado; a licitação para a contratação de serviços e aquisição de bens; a universalidade do sufrágio popular e o sigilo do voto; o controle concentrado da constitucionalidade das leis; a defesa do consumidor; o direito de greve. Na atualidade, até os conflitos sociais, como os conflitos pela terra no campo ou pela moradia nas cidades, ou ainda os con- flitos de gênero, de raça, étnicos, trabalhistas, todos encontram amparo e fun- damento na própria Constituição, o que, de algum modo, os coloca dentro da normalidade constitucional. No passado do Brasil republicano, contudo, os parâmetros da dignidade da pessoa e seus direitos fundamentais, da unidade, da força normativa e da supremacia da Constituição mal começavam a se tornar realidade, eram atrope- lados por medidas de exceção, ou mesmo por rupturas da ordem constitucional, situações que provocavam a sensação de recomeço a cada nova restauração da normalidade democrática.2 A própria Constituição de 1891 passaria sua primeira década de vigência em fase de ensaio. Paulo Bonavides, inspirado em Lassale3, afirma, a propó- sito de nossas fundações republicanas, que entre a “Constituição jurídica e a Constituição sociológica havia enorme distância” e que “nesse espaço se cavara também o fosso social das oligarquias e se descera ao precipício político do su- frágio manipulado”. Tudo isso para lembrar que, na República Velha, os fatores reais do poder teimaram em predominar sobre o texto conciso, elegante e liberal da Constituição de 1891, pois “ao redor da autoridade presidencial gravitavam 2 “O desrespeito à legalidade constitucional acompanhou a evolução política brasileira como uma maldição, desde que D. Pedro I dissolveu a primeira Assembléia Constituinte. Dasrebeliões ao longo da Regência ao golpe republicano, tudo sempre prenunciou um enredo acidentado, onde a força bruta diversas vezes se impôs sobre o Direito. Foi assim com Floriano Peixoto, com o golpe do Estado Novo, com o golpe militar, com o impedimento de Pedro Aleixo, com os Atos Institucionais. Intolerância, imaturidade e insensibilidade social derrotando a Constituição.” BARROSO, Luis Roberto; BARCELOS, Ana Paula de. O Começo da História: A nova interpre- tação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. Disponível em: http://www. camara.rj.gov.br/setores/proc/revistaproc/revproc2003/arti_histdirbras.pdf. Acesso em 15 de abril de 2009. 3 Ferdinand Lassale é um dos autores mais importantes para o desenvolvimento da teoria cons- titucional. Sua obra sobre o tema é um clássico: A Essência da Constituição (conferência para intelectuais e operários da Prússia em 1863) é considerada precursora de muitos debates centrais dentro do constitucionalismo moderno, especialmente no que se refere à questão da eficácia das regras de uma constituição e — o que parece dar no mesmo — à questão das limitações práticas (políticas), ou debilidade jurídica das constituições escritas para a realização de grandes pro- messas, além de naturalmente suscitar os debates sobre a questão do poder constituinte. Lassalle não acreditava na chamada “força normativa da constituição escrita”. Com certo menosprezo, ele a chamava de “folha de papel”, em oposição à verdadeira constituição de uma sociedade, para Lassalle, a soma de seus “fatores reais de poder”. 36 Memória Jurisprudencial todas as dependências, todas as influências, todos os interesses. (...) O Presidente da República era um monarca eletivo que se substituía a cada quatriênio”.4 Outro registro parecido com o de Bonavides foi feito pelo brasilianista inglês Ernest Hambloch, que publicou em 1934 o instigante Sua Majestade, o Presidente do Brasil. Residente há vintes anos no Brasil, Hambloch ocupa va então o cargo de Secretário da Câmara Britânica de Comércio, no Rio de Janeiro. Sua obra atraiu a ira de nacionalistas durante os anos da ditadura do Estado Novo5, mas sua análise, ou melhor, sua crítica do presidencialismo, visto como regime autoritário e controlado por caudilhos, se dirigia ao período ante- rior, a primeira República. Vale a transcrição: (...) Não foi a existência de uma cabeça coroada que preocupou os republi- canos durante a monarquia. Foi a Coroa que se tornou a sua obsessão. Repetiam como papagaios: “A monarquia deve ser destruída!” Mas quando os Catões republicanos fizeram isso, ou melhor, deixaram que o fizessem para eles, nada encontraram para colocar no lugar do regime liberal de uma monarquia constitu- cional. Reformar o sistema político desenvolvido durante o Império e trazer a sua aplicação até os dias atuais teria feito do Brasil um país realmente livre. O que estava em jogo, entretanto, não era dar maior liberdade ao indivíduo. O cidadão tinha progredido lenta, mas seguramente sob a monarquia. O que estava em jogo era dar ao novo cidadão a ilusão de uma Constituição inteiramente nova como a única garantia sólida da liberdade republicana. A ilusão não durou muito! A lei constitucional republicana foi aprovada a 24 de fevereiro de 1891. No dia 3 de no- vembro desse mesmo ano o primeiro Presidente constitucional da República dis- solveu o Congresso e declarou um estado de sítio. Todos os Presidentes brasileiros subseqüentes, com duas exceções, prestaram-lhe homenagem da mais sincera adulação, imitando-o! Mas não chegaram à medida inconstitucional de dissolver o Congresso. A prática tornou-se perfeita. Eles tinham empregado o estado de sítio sem dúvida ou hesitação — e caminharam em direção ao despotismo, com a aprovação servil do Congresso. O povo brasileiro foi compelido à aquiescência nas liberdades republicanas pelos métodos altamente persuasivos dos majores.6 (Sem grifos no original.) Essa análise pessimista vale, sobretudo, para os primeiros dez anos de vi- gência do texto de 1891, quando conflitos intensos ameaçaram e questionaram a 4 BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: Paz e Terra Política, 1988. p. 252. 5 “His Majesty The President of Brazil, escrito por Hernest Hambloch, causou grande im- pressão pública, quando publicado. Como reação instantânea apareceu Esmagando a Víbora. Crítica ao Volume His Majesty The Presidente. Sua Majestade, o Presidente. A Afronta ao Brasil e com o autor escondido sob o pseudônimo Brasil Libero. Na explicação introdutória, escrevia-se um violento artigo contra os banqueiros estrangeiros que queriam ‘transformar a pátria brasileira num Protetorado da agiotagem internacional...” RODRIGUES, José Honório. Introdução. In: HAMBLOCH, Ernest. Sua Majestade, o Presidente do Brasil: Um estudo do Brasil Constitucional (1889-1934). Brasília: UnB, 1981. p. 9 (Coleção Temas Brasileiros). 6 HAMBLOCH, Ernest. Sua Majestade, o Presidente do Brasil: Um estudo do Brasil Constitucional (1889-1934). Brasília: UnB, 1981. p. 57 (Coleção Temas Brasileiros). 37 Ministro Epitacio Pessôa solidez do novo regime. Período histórico que, visto a partir dos valores republi- canos e constitucionais de hoje, apresenta copiosos exemplos de desrespeito aos limites constitucionais da ação do Estado e aos direitos fundamentais básicos dos cidadãos brasileiros.7 Reduzidas após 1898, mas não superadas definitivamente, as tensões po- líticas foram a marca maior de toda a primeira fase republicana. Nesse cenário de tensões e estréias institucionais, merece destaque a atuação de um antigo Conselheiro do Império, o advogado, político e jornalista baiano Rui Barbosa, que assumiu o papel e a responsabilidade de verdadeiro founding father da República recém-nascida.8 Rui Barbosa também contribuiu como protagonista para edificar as fun- dações republicanas da mais alta Corte de Justiça do Brasil, o STF. Não foi Ministro do Supremo, mas há fartos registros de que as feições americaniza- das do STF são fruto de sua intervenção direta na revisão feita pelo Governo Provisório aos projetos da “Comissão dos Cinco”.9 Em toda a carreira, Rui foi árduo defensor da Corte, mesmo quando suas teses eram derrotadas no Plenário do STF. 7 “Tanto o episódio de Canudos quanto o da Revolta da Vacina, com suas evidentes afinidades, são dos mais exemplares para assinalar as condições que se impuseram com o advento do tempo republicano. Um tempo mais acelerado, impulsionado por novos mecanismos energéticos e tec- nológicos, em que a exigência de acertar os ponteiros brasileiros com o relógio global suscitou a hegemonia de discursos técnicos, confiantes em representar a vitória inelutável do progresso e por isso dispostos a fazer valer a modernização ‘a qualquer custo’. (...) Casos como esses se mul- tiplicaram, como se sabe, em outros episódios trágicos como, apenas para ilustrar, a Guerra do Contestado (1912-1916) na fronteira entre o Paraná e Santa Catarina ou o bombardeio desumano da população paulista quando da Revolta de 1924, seguido de execução sumária de imigrantes.” SEVCENKO, Nicolau. Introdução — O prelúdio republicano: Astúcias da ordem e ilusões do progresso. In: História da Vida Privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 27 (República: Da belle époque à era do rádio, 3). 8 “Rui Barbosa, no cair da noite de 15 de novembro, sentou-se, de caneta em punho, defronte duma resma de papel almaço, institucionalizando, os fatos da manhã. E assim, antes que vol- tasse ao solo toda a poeira da cavalgada de Deodoro, começou este a assinar o Decreto orgânico que instituía o Governo Provisório da nova República. Seguiram-se a separação da Igreja e do Estado e, dia a dia, inovações políticas e jurídicas de toda espécie...” BALEEIRO, Aliomar. Constituições Brasileiras: 1891. Brasília: Senado Federale Ministério da Ciência e Tecnologia, Centro de Estudos Estratégicos, 1999. p. 14. 9 “O Supremo Tribunal Federal somente adquiriu um perfil quase idêntico ao da Suprema Corte norte-americana a partir das emendas de Rui Barbosa, que resultaram no projeto do Governo Provisório. Nesse projeto foram suprimidas as atribuições do Legislativo de estabele- cer a interpretação autêntica e de velar na guarda da Constituição. A competência foi ampliada para todas as questões decididas pelos juízes e tribunais estaduais que negassem a validade de leis federais. (...) Também foi proibido que o Congresso transferisse qualquer jurisdição federal a tribunais dos estados e foi estabelecida a supremacia da jurisdição federal sobre a estadual. (...) A emenda de Rui Barbosa estabeleceu que os ministros seriam nomeados pelo Presidente da República, com a aprovação do Senado, dentre cidadãos elegíveis para este cargo.” KOERNER, Andrei. Judiciário de Cidadania na Constituição da República Brasileira. São Paulo: Hucitec, Departamento de Ciência Política, USP, 1998. p. 155-156. 38 Memória Jurisprudencial Uma pequena demonstração desse “carinho” nutrido por Rui pelo Supremo está no discurso proferido ao assumir a Presidência do Instituto dos Advogados, em 1914. Na ocasião, paternal, Rui Barbosa aproveitava a tribuna para atirar suas setas sobre o Senado, então liderado por Pinheiro Machado, e sobre a ameaça de reforma constitucional que pretendia retirar poderes da Justiça Federal e do próprio STF, principalmente em razão do ativismo judicial construído em torno da “doutrina brasileira do habeas corpus”. Rui Barbosa ironizava os que à época reclamavam da “ditadura da justiça”. Vale novamente a transcrição: Em vez de ser o Supremo Tribunal Federal, tal qual nossa Constituição o declarou, o derradeiro árbitro da constitucionalidade dos atos do Congresso, uma das câmaras do Congresso passaria a ser a instância de correição para a sentença do Supremo Tribunal Federal. (...) A investida reacionária de nulificação da justiça, que se esboça no grandioso projeto de castração do Supremo Tribunal Federal, tem por grito de guerra, conclamado em brados trovejantes, a necessidade, cuja impressão abrasa o peito a generosas coortes, de por tranca ao edifício republicano contra a ditadura jurídica. Santa gente. Que afinado que lhes vai nos lábios, onde se tem achado escusas para todas as ditaduras da força, esse escarcéu contra a ditadura da justiça! Os tribunais não usam espadas. Os tribunais não dispõem do Tesouro. Os tribunais não nomeiam funcionários. Os tribunais não escolhem deputados e senadores. Os tribunais não fazem ministros, não distribuem candidaturas, não elegem e deselegem presidentes. Os tribunais não comandam milícias, exércitos e esquadras. Mas é dos tribunais que se temem e tremem os sacerdotes da ima- culabilidade republicana.10 A reforma constitucional, que estabeleceria limites para a atuação do Supremo Tribunal em questões políticas, só viria em 1926, já nos últimos anos da decadente República Velha. Mas, antes disso, o Tribunal seria palco de grandes causas políticas, que surgiam em momentos de grave crise ins- titucional e quando não estava ainda em seu melhor funcionamento o novo sistema de freios e contrapesos previsto na Constituição. Sistema que, logo após sua criação, em 1891, precisou ser reinventado, partindo-se do remé- dio constitucional então disponível para a defesa das liberdades públicas, o habeas corpus. Essa militância obstinada de Rui Barbosa e de vários Ministros da Corte, com destaque para a atuação do Ministro Pedro Lessa, provocou a criação juris- prudencial mais original e ousada politicamente do Supremo, a “doutrina brasi- leira do habeas corpus”, precursora da garantia constitucional do mandado de 10 BARBOSA, Rui. O Supremo Tribunal Federal na Constituição Brasileira. In: Escritos e Discursos Seletos. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1960. p. 569. 39 Ministro Epitacio Pessôa segurança — criado em 1934 — contra abusos e ilegalidades do Estado em face dos direitos públicos subjetivos.11 Pois foram ambos, doutrina e “autores”, em mais de uma ocasião, comba- tidos à altura de seu brilhantismo intelectual pelo Ministro Epitacio Pessôa — outro fenômeno da política na primeira República. Ortodoxo, o Ministro Pessôa resistia em admitir cabimento de habeas corpus que não fosse para salvaguar- dar exclusivamente o direito de locomoção. Conservador por formação e con- vicção, Epitacio Pessôa fez contraponto ao liberalismo de Rui Barbosa dentro e fora do Supremo, no Direito e na Política. No entanto, Epitacio só chegaria ao Supremo no final do governo de Campos Salles, em 1902. Àquela altura, Rui Barbosa já havia se notabilizado por levar para o Plenário do Supremo o calor das disputas políticas, enfren- tando os jacobinos partidários de Floriano Peixoto, arriscando-se para fazer valer o império da Constituição.12 Suas primeiras tentativas, como se sabe, fra- cassaram. Foi preciso, em alguns casos, esperar longos anos até que ocorresse alguma mudança efetiva na jurisprudência do Tribunal, e para que se observas- sem no Brasil as primeiras manifestações do novo sistema de checks and balan- ces e de garantia de direitos. Apesar de o STF ser, em 1890, quando foi criado, um órgão completa- mente novo em suas competências e funções, seus primeiros quinze membros foram escolhidos entre os velhos colaboradores do antigo regime. Tendo sido mantidos por Deodoro, esses juristas integraram o vetusto Supremo Tribunal de Justiça do Império luso-brasileiro e aderiram tardiamente à causa republicana, conforme a análise precisa de Aliomar Baleeiro: (...) talvez por economia, Deodoro aproveitou para o recém-criado Supremo Tribunal Federal vários dos barões e conselheiros da mais alta Corte 11 “Sem embargo do ousado e creio que injusto libelo de João Mangabeira, quando, há perto de 30 anos, afirmou que o malogro da democracia representativa no Brasil se devia ao Supremo Tribunal Federal, este desempenhou, como lhe foi possível, sua missão política, protegendo a liberdade e direitos individuais, assegurando o equilíbrio federativo e impondo a supremacia da Constituição e das leis federais. Ainda não se apagaram as recordações dos atritos tormentosos do Supremo com Floriano, Prudente e Hermes da Fonseca. A construção da chamada teoria brasileira do habeas corpus com Ruy e Pedro Lessa, até mesmo nos seus exageros e aberrações, oferece um exemplo honroso do esforço tenaz do Supremo para proteção dos direitos, garan- tias e liberdades.” BALEEIRO, Aliomar. O Supremo Tribunal Federal. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 34, p. 36, 1972. Separata. 12 “Essas atitudes de desassombro, batendo às portas dos Tribunais, ou utilizando a tribuna do Senado ou a pena de jornalista, onde quer que se registrasse abuso de poder contra as liberdades públicas e direitos individuais, algumas vezes em favor de adversários e até de inimigos, fizeram de Rui um mito nacional, porque assim continuou pela vida afora ao longo de 30 anos, durante os quais conseguiu incutir no Supremo Tribunal Federal o seu papel de guardião da Constituição e das leis.” BALEEIRO, Aliomar. Constituições Brasileiras: 1891. Brasília: Senado Federal e Ministério da Ciência e Tecnologia, Centro de Estudos Estratégicos, 1999. p. 56. 40 Memória Jurisprudencial do Império: o visconde de Sabará, com 73 anos; Andrade Pinto, com 65 anos “moço fidalgo da Casa Imperial e último Morgado do Inferno em Lisboa”; Araripe, 69 anos, ex-presidente de duas províncias; Freitas Henrique, 68 anos, ex-presidente de quatro províncias; J. F. Faria, 65 anos, ex-procurador da Coroa; J. M. Uchoa, 71 anos, ex-presidente de província e procurador da Coroa; Queiroz Barros, 73 anos, remanescente da Revolução Praieira; Souza Mendes, 67, ex-vice-presidentede província; Trigo de Loureiro, 62; Barradas, 54, desem- bargador que não chegou ao Supremo Tribunal de Justiça, mas presidiu duas províncias; Barão de Sobral, um dos mais novos com 49 anos; Barão de Lucena, ex-presidente de quatro províncias; Barão de Pereira Franco, ex-presidente de província e ex-ministro em dois gabinetes monárquicos; Barros Pimentel, ex- Presidente de província e deputado em 5 legislaturas do Império... Por maiores que fossem os títulos e virtudes desses juristas, eram políticos de mentalidade umbilicalmente vinculados ao passado oposto às instituições novas, das quais talvez não houvessem assimilado a razão de ser.13 O STF foi criado pelo Decreto 848, de 11 de outubro de 1890 — documen to normativo equivalente ao Judiciary Act norte-americano, de 1789, de onde abertamente nosso Governo Provisório fora retirar o modelo.14 Meses antes, o Decreto 510, de 22 de junho de 1890, que implantou uma constituição provisória no Brasil, dispôs sobre a composição (quinze ministros)15, as compe- tências e a criação do STF. Confirmado pela Constituição de 24 de fevereiro de 1891, o Tribunal foi instalado quatro dias depois, sob a Presidência interina do Visconde de Sabará, Ministro João Evangelista de Negreiros Saião Lobato. Emilia Viotti da Costa observa que muito pouco foi alterado nas caracte- rísticas e funções essenciais do Supremo ao longo de sua secular história repu- blicana. Mas exatamente por ter assumido, desde o início, o papel de instância jurídica de controle sobre os demais Poderes, papel antes exercido pelo Poder 13 BALEEIRO, Aliomar. O Supremo Tribunal Federal. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 34, p. 13, 1972. Separata. 14 “Campos Sales, naquele Decreto nº 848, de 1890, marco inicial da Justiça da União e do pró- prio Supremo, inspirou-se na Lei Judiciária norte-americana de 1789, para definir a competência de nossa mais alta Corte.” BALEEIRO, Aliomar. O Supremo Tribunal Federal, esse outro des- conhecido. Rio de Janeiro: Forense, 1968. p. 90 15 “Diferentemente da Constituição dos Estados Unidos (de acordo com a Constituição brasi- leira de 1891), os presidentes dos tribunais eram eleitos por seus pares e o Procurador-Geral da República seria designado pelo Presidente da República entre os Ministros do Supremo. Estes deveriam ser nomeados pelo Presidente da República dentre cidadãos ‘de notável saber e reputa- ção, elegíveis para o Senado’ (isto é, maiores de 35 anos). Como o texto não dizia que o ‘saber’ devia ser especificamente jurídico, Floriano nomeou para o STF um general e um médico. Este, Barata Ribeiro, chegou a exercer o cargo. Mas o Senado assentou que só juristas poderiam ser Ministros do STF.” BALEEIRO, Aliomar. Constituições Brasileiras: 1891. Brasília: Senado Federal e Ministério da Ciência e Tecnologia, Centro de Estudos Estratégicos, 1999. p. 38. 41 Ministro Epitacio Pessôa Moderador16, sua história seria marcada por conflitos políticos, para os quais é freqüentemente chamado a dar respostas definitivas. Nas palavras de Viotti da Costa, “inevitavelmente levado a participar das lutas políticas que se travam à sua volta e sofrendo suas conseqüências, o Supremo Tribunal Federal é ao mesmo tempo agente e paciente dessa história”17. O regime constitucional de 1891 não previa decerto o controle abstrato de constitucionalidade das leis, atualmente bastante utilizado pelo STF no jul- gamento das ações diretas. Aliás, esse tipo de intervenção judicial direta na ati- vidade política, de que dispõe o Supremo hoje, chamado de “modelo austríaco”, em oposição ao modelo americano que adotáramos então, não havia sido ainda nem inventado18. Mas, nos termos da Constituição de 1891, o Tribunal já era competente para julgar os crimes comuns do Presidente da República e dos Ministros de Estado, incluídos aí os diplomatas. No exercício dessa competência, o Tribunal chegou a julgar, na época, um caso criminal célebre, que ficou conhecido como o “Caso das Pedras”, em que o Ministro da Fazenda e o Presidente do Tribunal de Contas da União eram acusados de peculato, supostamente envolvidos numa trama de indenizações fraudulentas. Epitacio Pessôa atuou nesse caso como Procurador-Geral da República, pedindo a condenação dos acusados.19 Era do Tribunal também a função de arbitragem dos conflitos federa- tivos (entre Estados e entre estes e a União) e de jurisdição (juízes federais e estaduais). Como tribunal de apelação, era sua a competência para julgar, em grau de recurso ordinário ou de agravo, as questões resolvidas pelos juízes e tribunais federais. Além disso, o Supremo passaria a controlar, em sede de recurso extraor- dinário, as decisões de última instância das Justiças dos Estados: quando nelas 16 “Na ausência da figura do imperador, era necessário definir a última instância para resolução de conflitos públicos e privados, uma vez que desaparecera com ele aquela função. O imperador, na verdade, já havia pensado em introduzir no Brasil uma instituição, similar à Suprema Corte dos Estados Unidos da América, que assumisse muitas das responsabilidades até então atribuí- das a ele (Poder Moderador) e ao Conselho de Estado. Essa idéia, entretanto, só vingaria depois da queda da Monarquia.” COSTA, Emilia Viotti da. O STF e a Construção da Cidadania. 2. ed. São Paulo: IEJE, 2007. p. 30. 17 Idem, p. 29. 18 O primeiro regime a prever o controle abstrato de constitucionalidade foi o austríaco por influência direta de Hans Kelsen que o concebeu. Sob a influência do pensamento de Kelsen, a Constituição austríaca de 1920 inovou ao introduzir essa nova e concentrada forma de controle da constitucionalidade das leis e atos normativos, exercida por um Tribunal constitucional, a quem caberia a função exclusiva de guarda da integridade da Constituição. 19 RAJA-GABAGLIA, Laurita Pessoa. Epitacio Pessôa (1965-1942). Rio de Janeiro: José Olympio, 1951, p. 178-187. 42 Memória Jurisprudencial se questionasse a validade ou a aplicação de tratados e leis federais e a decisão do tribunal do Estado fosse contra essa validade; e quando se contestasse a va- lidade de leis ou de atos dos Governos dos Estados em face da Constituição, ou das leis federais, e a decisão do tribunal estadual houvesse considerado válidos esses atos, ou essas leis impugnadas.20 Com todas essas competências, a vocação e o destino político do STF estavam de fato traçados desde sua criação. Naqueles primeiros tempos, no entanto, essa vocação não foi tão positiva para o Tribunal. Os poderes da República nascente, apesar da fórmula consti- tucional da harmonia e independência recíproca21, tiveram especial predileção pelo atrito e pouca, ou pelo menos insuficiente, atenção a certos mandamentos constitucionais, então carentes de supremacia efetiva e força normativa. O qua- dro político também não favorecia as soluções jurídicas e pacíficas da jurisdição constitucional, pois, em situações de crise aguda, na maioria das vezes, imperou o arbítrio e a manipulação. Nem o STF ficaria imune à influência das oligar- quias que dominaram o período.22 Emilia Viotti da Costa classifica esse período inicial da história do STF como um “difícil aprendizado”. Ela também registra outra curiosidade, o vivo interesse com que a sociedade brasileira já acompanhava os primeiros passos do Tribunal: No meio desses confrontos múltiplos, o recém-criado Supremo Tribunal Federal era chamado a se manifestar, julgando pedidos de habeas corpus. As decisões eram examinadas pela imprensa e debatidas na Câmara. Os minis- tros tornavam-se alvo de críticas, de defesas e ataques. As sessões eram concor- ridas. O Tribunal transformava-se em teatro para o gozo do público que lotava as galerias e se manifestava ruidosamente a favor e contra: vaiava, assobiava, aplaudia os discursos e os acórdãos, apesar das reiteradas advertências
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