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Responsabilizacao na Sociedade Civil

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(2) N.T.: Como em outros tex-
tos, o autor utiliza a distinção
entre Verantwortung e Veran-
twortlichkeit, traduzidos aqui
como "responsabilidade" e
"responsabilização", respecti-
vamente. Se a tradução do pri-
meiro termo parece menos
problemática, a do segundo é
apenas aproximativa, já que o
autor emprega pelo menos três
vezes a locução Verantwortli-
ch-Machen, que pode ser tra-
duzida literalmente como "res-
(1) Versão ampliada da aula
inaugural proferida pelo autor
na Faculdade de Direito da Jo-
hann Wolfgang Goethe-Uni-
versität, Frankfurt am Main, em
30/06/1999. Publicado origi-
nalmente em Müller-Doohm,
Stefan (org.). Das Interesse der
Vernunft. Frankfurt am Main:
Suhrkamp, 2000, pp. 465-485.
RESPONSABILIZAÇÃO
NA SOCIEDADE CIVIL1
Klaus Günther
Tradução do alemão: Flavia P. Püschel
RESUMO
A imputação de responsabilidade possui uma estrutura formal e uma função social das quais
decorre sua codificação binária, observando-se hoje a tendência de imputação não mais a es-
truturas supraindividuais (à sociedade, à natureza, ao destino), mas a indivíduos. Tal mudança
traz conseqüências ambivalentes, pois implica o alargamento ou o estreitamento dos espaços de
liberdade do indivíduo. A fim de evitar o risco de imputação ilimitada — argumenta o autor
—, os cidadãos devem atentar de maneira reflexiva para o conceito de responsabilidade e os
critérios e regras de imputação, assumindo responsabilidade por sua responsabilização.
Palavras-chave: Direito; sociedade civil; responsabilização; imputação.
SUMMARY
The imputation of responsibilities has a formal structure and a social function from which comes
its binary codification, in such a way that nowadays is observed a tendency of blaming in-
dividuais instead of supra-individual structures (society, nature, destiny). Such change has
ambivalent consequences, for it implies either widening or narrowing of individual freedom.
The author argues that in order to avoid the risk of unlimited blaming, citizens should consider
reflexively about the concept of accountability and the criteria and rules of imputation, taking
responsibility for this process of accountability.
Keywords: Law; civil society; accountability; responsibility; imputation.
Um conceito-chave?
Em cada época há certas palavras às quais se vincula mais intimamente
o espírito objetivo de uma sociedade. Isso se torna perceptível não apenas
pelo uso freqüente dessas palavras na comunicação cotidiana, mas espe-
cialmente porque seu uso não provoca qualquer objeção, nem ao menos
a pergunta sobre quem ou o que é referido. Atualmente, o conceito de
"responsabilidade"2 parece desempenhar esse papel. Um grande partido
político alemão fez dessa palavra o lema de seu primeiro congresso após a
vitória nas eleições, guarnecendo-lhe ainda de um ponto, como que para
deixar claro tratar-se simplesmente da constatação de um fato. Na Grã-
Bretanha, uma indústria farmacêutica multinacional fez publicidade de
comprimidos de vitaminas com cartazes em que um pai estende os braços
JULHO DE 2002 105
106 NOVOS ESTUDOS N.° 63
para sua filha pequena, que o olha sorridente. A qualificar essa cena, apenas
uma palavra: "responsability" — mensagem que parece ser considerada
motivo suficiente para a compra do produto.
As situações fáticas assim indicadas são na realidade banais. Quem
assume o poder de governo em um Estado democrático constitucional é
responsável perante o povo pelo exercício desse poder em conformidade
com a Constituição, e não em detrimento do povo. Pais são responsáveis não
apenas por sua própria saúde, mas também pela de seus filhos. Por que se
destacam expressamente tais fatos evidentes e espera-se que o público lhes
reaja de maneira positiva? É natural supor que "responsabilidade" constitua
um conceito-chave, a indicar mudanças profundas na autocompreensão e
no estado de espírito das sociedades modernas. Não se trata apenas da
conjuntura de um conceito, pois ligadas a isso há regras e instituições que
estabelecem e organizam a distribuição de responsabilidades entre o Estado
e a sociedade, bem como entre os cidadãos. Quatro exemplos podem com-
provar essa suposição de maneira exemplar.
O primeiro diz respeito a vários fenômenos agrupados sob a rubrica
"sociedade de risco"3. Os riscos imprevisíveis, e por isso dificilmente con-
troláveis, decorrentes do avanço técnico acelerado, do maior dinamismo
econômico e das intervenções cada vez mais extensivas e intensivas na
natureza e no meio ambiente fizeram da questão da responsabilidade um
tema público. À assustadora situação de uma "irresponsabilidade organiza-
da" deveria opor-se o "princípio da responsabilidade", que atribui à geração
presente o dever de zelar pela sobrevivência das gerações seguintes4. A
partir daí desenvolveu-se um amplo movimento de juridicização com o fim
último de determinar quem é responsável pelo controle de riscos e a quem e
como são imputados os prejuízos5.
O segundo exemplo vem do debate mundial sobre a privatização dos
serviços públicos e a desregulação do sistema econômico. Trata-se em es-
pecial da transformação do Estado social sob a pressão da "competitividade"
econômica mundial e das crises financeiras dos Estados tributários. Em vez
de depender de medidas burocrático-estatais para assegurar sua subsistên-
cia, cada um deve cuidar de seu próprio futuro, ou seja, assumir responsabi-
lidade própria pela garantia de suas condições de vida. Nesse contexto, o
sociólogo Wolfgang Streeck presume que "responsabilidade individual será
em breve um conceito-chave na discussão político-social"6. Também no âm-
bito da regulação jurídica, como no direito ambiental, considera-se a alterna-
tiva do controle "auto-responsável" pelo direito privado, eventualmente me-
diante "procedimentos de ecoauditoria" privados7.
Com o terceiro exemplo aproximo-me do direito penal. Nesta virada
de século muitas sociedades confrontam-se com seu passado recente a partir
da questão fundamental acerca de quem deve ser responsabilizado por qual
ato ilícito. Isso não ocorre apenas na Alemanha, onde o problema da
responsabilização individual pelo Holocausto se apresenta mais forte e
claramente do que nunca — pelo menos desde o debate suscitado pelo livro
de Daniel Goldhagen sobre os Executores de Hitler8. Os atos ilícitos pratica-
RESPONSABILIZAÇÃO NA SOCIEDADE CIVIL
ponsabilização". Uma tentati-
va de tradução literal de Ve-
rantwortlichkeit produziria o
neologismo "responsabilicida-
de". O termo mais próximo
nesse contexto seria talvez,
com restrições, "accountabili-
ty", do inglês.
(3) Beck, Ulrich. Risikogesells-
chaft. Frankfurt a.M., 1986.
(4) Jonas, Hans. Das Prinzip
Verantivortung. Frankfurt a.M.,
1984; Beck, Ulrich. Gegengifte.
Die organisierte Unverantwor-
tlichkeit. Frankfurt a.M., 1988.
(5) Lübbe, Weyma (org.). Kau-
salität und Zurechnung. Über
Verantiwortung in komplexen
kulturellen Prozessen, Berlim/
Nova York, 1994. Uma análise
crítica da atribuição de respon-
sabilidade coletiva encontra-se
em Lübbe, Weyma. Veran-
twortung in komplexen kultu-
rellen Prozessen. Freiburg/Mu-
nique, 1998.
(6) Streeck, Wolfgang. "Einlei-
tung". In: Streeck, Wolfgang
(org.). Internationale Wirts-
chaft, nationale Demokratie.
Frankfurt a.M./Nova York,
1998, p. 43.
(7) Para uma visão critica a res-
peito, ver Lübbe-Wolff, Gertru-
de. Recht und Moral im
Umweltschutz. Baden-Baden,
1999; Power, Michael. The au-
dit society: rituals of verificati-
on. Oxford, 1997.
(8) Goldhagen, Daniel J. Hi-
tlers willige Vollstrecker. Ber-
lim, 1996. Sobre a responsabili-
zação individual, ver, entre ou-
tros, Jäger, Herbert. "Die Wi-
derlegung des funktionalistis-
chen Täterbildes". In: Lüders-
sen, Klaus (org.). Aufgeklärte
Kriminalpolitik oder Kampfge-
gen das Böse? (vol. 3: "Makro-
delinquenz"). Baden-Baden,
1998, pp. 190-206; Habermas,
Jürgen. "Über den öffentlichen
Gebrauch derHistorie". In: Die
postnationale Konstellation.
Frankfurt a.M., 1998, pp. 47-64.
JULHO DE 2002 107
Esses exemplos podem provar a atualidade do conceito de responsabi-
lidade, mas deixam em aberto a possibilidade de tratar-se de fenômenos
totalmente diversos, portanto a exigir distinções. A responsabilização de um
governo perante o Parlamento não significa algo diverso da responsabili-
dade do indivíduo por suas próprias condições de existência ou da respon-
sabilização de um delinqüente pela violação de uma norma penal? A
responsabilidade para consigo mesmo é diversa da responsabilidade pelo
próprio filho; a responsabilidade de um ministro por sua pasta é diversa da
responsabilização por um dano concreto que alguém causou a outrem por
meio de sua ação. Por mais incontestável que seja o fato de que contextos
diversos resultam em significados diversos de "responsabilidade", salien-
tam-se pelo menos duas características comuns a todas as suas aplicações.
Estrutura formal e função social da "responsabilidade"
(11) Günther, Klaus. "Die Zus-
chreibung strafrechtlicher Ve-
rantwortlichkeit auf der Grun-
dlage des Verstehens". In: Lü-
derssen (org.), op. cit. (vol. 1:
"Legitimationen"), pp. 319-349.
dos sob o regime da Alemanha Oriental, comparativamente muito menos
graves, foram desde o início imputados apenas individualmente. Nas socie-
dades em transformação da Europa Central e Oriental, África e América
Latina a questão da responsabilização pela violação de direitos humanos no
passado recente é discutida de diversas maneiras9. O mesmo se pode dizer,
com maior razão, dos crimes contra a humanidade cometidos recentemente:
os tribunais instituídos pela ONU para julgamento de crimes contra os
direitos humanos na antiga Iugoslávia e em Ruanda dirigem-se apenas
contra o criminoso individual. O art. 25 do Estatuto de Roma, de 1988, que
trata da criação de um Tribunal Criminal Internacional, exige expressamente
a determinação de responsabilidade individual por graves violações de
direitos humanos. O significado desse procedimento fica claro ante o pano
de fundo das alternativas de imputação, cujo espectro vai desde a história
mundial como tribunal mundial10, passando pela dominação por suprema-
cia de classe ou raça, até o antagonismo entre os sistemas oriental e ocidental
e a conseqüente Guerra Fria.
E com isso chego ao quarto ponto: os direitos penais e as políticas
criminais nacionais. Em países como Estados Unidos, Bélgica e Alemanha
difunde-se incessantemente um discurso público sobre o combate à crimina-
lidade, que é tema proeminente em campanhas eleitorais. Nesse discurso
postula-se uma mudança na imputação dos crimes, que não mais devem ser
qualificados conforme déficits de socialização ou da estrutura social para
aplicarem-se medidas de prevenção do crime e de ressocialização dos
criminosos ou ao menos para diferenciar a imputação individual de acordo
com tais circunstâncias, seja por meio de causas excludentes de antijuridici-
dade ou de culpabilidade, seja por meio da sua contemplação quando da
dosagem da pena. Em vez disso, o delinqüente deve ser cada vez mais
responsabilizado de maneira claramente individual, sobretudo perante a
vítima11.
KLAUS GÜNTHER
(9) König, Helmut, Kohlstruck,
Michael e Will, Andreas (orgs.).
Vergangenheitsbewältigung
am Ende des zwanzigsten
Jahrhunderts. Opladen, 1998.
(10) N.T.: O autor refere-se
aqui ao dito de Hegel "die Wel-
tgeschichte ist das Weltgericht".
108 NOVOS ESTUDOS N.° 63
Em primeiro lugar, elas têm em comum uma certa estrutura formal.
"Responsabilidade" é um termo complexo. Trata-se sempre da responsabili-
dade de uma pessoa por uma ação (ou omissão) ou conseqüência de uma
ação perante outras pessoas. Tais ações, omissões ou conseqüências são
atribuídas à pessoa para que esta se responsabilize, devendo prestar contas
desses fatos a outras pessoas. Isso vale em especial para aquelas ações ou
conseqüências de ações consideradas negativas com base em uma norma,
como certos tipos de danos. Essa estrutura formal determina a "responsabi-
lidade" dos pais perante seus filhos, assim como a de governos perante o
Parlamento e de delinqüentes perante o Estado. As regras de imputação
naturalmente variam em cada caso. Imputa-se a um delinqüente apenas
aquilo que ele sabia ou podia saber, ao passo que a um ministro atribuem-se
também acontecimentos relativos à sua pasta dos quais ele não tivesse
qualquer conhecimento.
Entretanto, ainda mais importante para o suposto papel-chave do
conceito de responsabilidade parece ser a função social que cumpre em
razão da sua estrutura formal. A responsabilidade é imputada em comunica-
ções sociais: uma pessoa é feita responsável por algo por parte de outrem ou
faz-se responsável a si mesma perante outrem. Por meio dessa prática social
de auto ou heteroimputação de responsabilidade estrutura-se o fluxo infi-
nito dos acontecimentos, de modo que determinados fatos são atribuídos a
uma pessoa como conseqüência de uma ação ou omissão sua. Entre os
diversos fatores que envolvem todo acontecimento, o complexo e obscuro
novelo de relações de causalidade e de probabilidade é reduzido a um pon-
to escolhido de modo mais ou menos arbitrário: a uma pessoa agente. A
busca de nexos causais é interrompida em um certo ponto, e se a decisão
acerca dessa interrupção não deve ser completamente arbitrária, então é
preciso justificá-la com critérios de imputação sobre os quais seja possível
haver dissenso, assim como deve ser possível haver dissenso acerca de seu
emprego correto e adequado.
Imputa-se sempre sobre o pano de fundo das alternativas existentes
para a imputação a um agente, para o seu isolamento em relação aos
contextos atual e passado da ação. A imputação é codificada de modo
binário sob três aspectos12. Sob o aspecto temporal, relaciona-se o fato em
questão a fatores internos ou características constantes da pessoa, e não a
fatores externos variáveis: o que levou A a matar B não foi um acontecimento
imprevisível e surpreendente, como uma provocação grave que causou um
acesso de fúria espontâneo e compreensível, e sim o próprio A. Sob o
aspecto objetivo, trata-se de decidir se o acontecimento foi determinado pela
situação e pelas circunstâncias ou pelo próprio agente: a morte de B é ex-
plicada pelas intenções, desejos e convicções de A e pela realização destes
por meio de sua ação, e não pelas circunstâncias externas da situação, por
pressões irresistíveis ou outros fatores causais, como, por exemplo, o meio
em que A foi criado — em resumo, a morte de B não se explica nem pela
natureza nem pelo destino. Sob o aspecto social, por fim, decide-se por meio
da imputação quem deverá arcar com o fato, qual das muitas pessoas
RESPONSABILIZAÇÃO NA SOCIEDADE CIVIL
(12) Sobre o que se segue, cf.
Heidenescher, Mathias. "Zure-
chnung als soziologische Kate-
gorie". Zeitschrift für Soziolo-
gie, nº 21, 1992, pp. 440-455.
(13) Günther, Klaus. "Abs-
chaum — Moralisierung des Re-
chts und Verrechtlichung der
Moral im gegenwärtigen Straf-
trecht". Kursbuch, nº 136,
1999, pp. 159-173.
KLAUS GÜNTHER
entrelaçadas na densa rede das interações sociais será escolhida e isolada
para que se atribua o acontecimento aos seus interesses, inclinações ou
motivos: o fato de A ter matado B não tem sua causa no comportamento de
B com relação a A, nem tampouco na influência de C e D, nos pais de A, em
seus professores ou nos responsáveis pela política social da comunidade,
mas apenas e exclusivamente na cobiça de A.
A imputação de um acontecimento para a atribuição da responsabili-
dade a uma pessoa sobre o pano de fundo de alternativas significa, em suma:
em vez de ser atribuído a uma pessoa que age, o acontecimento poderia ser
imputado também às circunstâncias, à situação, a outras pessoas, à socieda-
de ou simplesmente ao destino, e nesse caso a comunicação social acerca
desse acontecimentodar-se-ia de maneira diversa do que no caso em que o
acontecimento é imputado a uma pessoa responsável.
A mudança da imputação e suas conseqüências ambivalentes
É essa função de estruturação que funda o significado da responsabili-
dade como conceito-chave em contextos diversos. Trata-se, enfim, de estru-
turar a comunicação social acerca de problemas sociais, conflitos, riscos,
perigos e danos de maneira que estes sejam atribuídos a pessoas singulares,
a indivíduos, e não a estruturas e processos supra-individuais: à sociedade, à
natureza ou ao destino. No esquematismo binário da imputação ocorre uma
mudança de um lado para o outro. A despeito de todas as diferenças, isso se
aplica à maioria dos contextos em que se fala de "responsabilidade". Des-
vantagens sociais e pobreza não se explicam mais por uma posição de classe
ou uma distribuição desigual de chances e bens, mas apenas por decisões
erradas do indivíduo que cai abaixo da linha de pobreza. O comportamento
criminoso não mais é atribuído a déficits na socialização ou na estrutura so-
cial, mas apenas ao criminoso individual, considerado em si mesmo culpado
por seu ato13.
Essa mudança no esquematismo binário da imputação tem como
conseqüência uma redistribuição de responsabilidades. Se não é mais a
sociedade, mas cada indivíduo o responsável por suas condições de existên-
cia, isso significa, entre outras coisas, que aqueles que elaboram a política
social e os concidadãos que pagam contribuições obrigatórias para uma
previdência social pública são liberados da co-responsabilidade solidária
pelas condições de vida de cada indivíduo na velhice. Quais sistemas sociais
se ligam, e de que modo, à comunicação social estruturada desta ou daquela
maneira, quem é incluído ou excluído de quais sistemas, isso depende, entre
outros fatores, da imputação de acontecimentos e de sua codificação.
Tal mudança da imputação traz porém conseqüências ambivalentes.
Conforme o modo como se estruturam as imputações no esquema binário e
com isso se distribuem responsabilidades entre natureza e destino, socie-
dade e indivíduo, alargam-se ou estreitam-se os espaços de liberdade do
JULHO DE 2002 109
110 NOVOS ESTUDOS N.° 63
indivíduo. A referência à dependência do indivíduo em relação à sociedade,
à história e à natureza já serviu como justificativa para a limitação da
liberdade, para a atribuição da configuração da própria vida, com seus
riscos, desvantagens e prejuízos (em menor medida com as vantagens e
sucessos), e não exclusivamente para a liberdade de decisão individual, mas
também à daqueles a quem competem as condições de vida de cada
indivíduo. Essas atribuições de responsabilidade a uma coletividade ou a
uma instituição de controle central foram freqüentemente integradas a
grandes descrições histórico-filosóficas que serviram ao mesmo tempo
como autorização para um controle abrangente do indivíduo pelo Estado.
Com o fim dessas grandes descrições, resta uma sociedade de indivíduos
que não podem recorrer a nada nem a ninguém além de si próprios para
autorizar a escolha das suas formas de vida e para a organização de sua vida
em comum.
Esse páthos da liberdade dirigido contra um Estado interventor e con-
trolador sucumbe a uma auto-ilusão complementar. Ontem como hoje, as
condições econômicas iniciais para o uso individual da liberdade atribuída
são distribuídas de maneira desigual. Além disso, a liberdade é concedida
apenas sob a condição não expressa de que o indivíduo possua capacidade
de autogoverno, autocontrole e autodisciplina. São deveres desse tipo que
se escondem sob o conceito de responsabilidade por si próprio. Desvanta-
gens pessoais que atinjam o indivíduo — a pobreza na velhice, por exemplo
— podem ser subsumidas como descumprimento desses deveres e imputa-
das à responsabilidade individual do atingido. Tais deveres naturalmente
não têm origem, como exigiria um amplo conceito de autonomia, em uma lei
geral auto-imposta; ao contrário, são impostos externamente. Wolfgang
Streeck referiu-se, nesse contexto, ao "reconhecimento da pressão econômi-
ca como força formadora de caráter", e Elisabeth Noelle-Neumann, de modo
um pouco mais nebuloso e eufemístico, ao fato de que o constrangimento ao
tomar decisões individuais e arcar com suas conseqüências daria ao indiví-
duo a experiência da consciência "por meio do poder sobre si mesmo, do
autocontrole"14. Já a escolha das palavras fala contra a suposição de que aqui
se estaria aludindo realmente à "liberdade": parece tratar-se, antes, da
transformação de disciplinamentos externos em internos.
Para uma sociedade de indivíduos responsáveis introduziu-se o con-
ceito de "sociedade civil", que remete a uma longa tradição e resulta da
infinita pluralidade dos indivíduos e de seus conflitos. Para a regulação
desses conflitos os indivíduos não podem mais recorrer à representação
simbólica da sociedade como uma unidade supra-ordenada. Esvazia-se o
lugar simbólico do poder, antes ocupado com tais representações de unida-
de, e a questão acerca dos princípios fundamentais para a organização da
sociedade fica sem resposta15. São os próprios indivíduos que precisam
responder a essa questão incessantemente — uns aos outros, nas disputas de
uns contra os outros e apenas provisoriamente. Uma sociedade que se cria a
si mesma a partir de seus indivíduos pressupõe, no entanto, pessoas "au-
tônomas e capazes de agir"16. A esse pressuposto dirige-se a "exigência
RESPONSABILIZAÇÃO NA SOCIEDADE CIVIL
(14) Streeck, op. cit.; Noelle-
Neumann, Elisabeth. "Zauber
der Freiheit". Frankfurter All-
gemeine Zeitung, 24/06/1999.
(15) Rödel, Ulrich, Franken-
berg, Günter e Dubiel, Helmut.
Die demokratische Frage.
Frankfurt a.M., 1989, p. 89. Não
por acaso o renascimento des-
se conceito ocorreu nos movi-
mentos de dissidentes e cida-
dãos da Europa Central e Ori-
ental que se viram confronta-
dos com o problema de fazer
frente a um poder estatal ideo-
logicamente fundamentado e
limitador da responsabilização
do indivíduo sem simplesmen-
te substituir a antiga ideologia
por outra.
(16) Frankenberg, Günter. Die
Verfassung der Republik. Ba-
den-Baden, 1996, p. 54.
(22) Ibidem, p. 22.
(21) Sartre, Jean-Paul. "Ist der
Existentialismus ein Humanis-
mus?". In: Drei Essays. Frank-
furt a. M., 1985, p. 16.
(20) Sobre os efeitos crimino-
gênicos da "armadilha da indi-
vidualização", especialmente
com relação a jovens, ver Heit-
meyer Wilhelm e outros.
Gewalt— Schattenseiten der ln-
dividualisierung bei Jugendli-
chen aus unterschiedlichen
Milieus. Munique, 1995; ver
também Günther, Klaus. "Die
Sprache der Verstummten:
Gewalt und performative Ent-
machtung". In: Lüderssen,
Klaus (org.). Kriminalpolitik
oder Kampf gegen das Böse?—
vol. 3: "Neue Phänomene der
Gewalt". Baden-Baden, 1998,
pp. 120-143.
(19) Thomä, Dieter. Erzähle
dich selbst. Lebensgeschichte als
philosophisches Problem. Mu-
nique, 1998.
(18) Beck, Ulrich, Giddens, An-
thony e Lasch, Scott. Reflexive
Modernisierung. Frankfurt
a.M., 1996; Giddens, Anthony.
Konsequenzen der Moderne.
Frankfurt a.M., 1995. Na formu-
lação de Habermas, a racionali-
zação do mundo da vida na
modernidade aparece na rela-
ção entre cultura e personali-
dade na medida em que "a re-
novação de tradições depende
cada vez mais da disposição
crítica e da capacidade de ino-
vação dos indivíduos". Daí re-
sulta para a cultura "um estado
de revisão contínua de tradi-
ções mutáveis e tornadas refle-
xivas [...] para a personalidade,
um estado de estabilização con-
tínua e autoconduzida de uma
identidade do eu altamente
abstrata" (Habermas, Jürgen.
Theorie des kommunikativen
Handelns. Frankfurt a.M., 1981,
vol. 2, pp. 219 ss).
(17) Ibidem, p. 57.
KLAUS GÜNTHER
ativista" (aktivistische Zumutung17) a que os cidadãos se expõem mutua-
mente para, de modo ativo, a partir de seus conflitos, produzir e constan-
tementerenovar e rever os princípios elementares de sua vida em comum.
A exigência ativista significa que os cidadãos de um Estado são politicamente
responsáveis pelos princípios de sua convivência, pois com a secularização
não podem mais recorrer a uma autoridade transcendente que os alivie de
suas decisões.
Essa responsabilização vê-se cada vez mais aumentada e ampliada
pela globalização, pela ampliação de espaços e tempos. Os cidadãos do
Estado são submetidos à exigência ativista não mais apenas como os res-
ponsáveis pela organização de sua vida em comum — e para tanto não po-
dem mais orientar-se pelas fronteiras externas e pela autocompreensão
coletiva interna de seus respectivos Estados nacionais —, mas também como
pessoas éticas, na medida em que se sentem comprometidos com uma tra-
dição coletiva e pertencentes a uma ou várias comunidades que se diferen-
ciam entre si. Tradições e culturas perdem sua força formadora de identi-
dade e determinadora de formas de vida para os indivíduos, que precisam
escolher por si mesmos seus vínculos sociais e filiações, os quais se subme-
tem, como mostraram Ulrich Beck e Anthony Giddens, a um processo de
"modernização reflexiva"18.
A exigência ativista abrange ainda o indivíduo e sua história de vida.
Circunstâncias, meio, destino valem cada vez menos como razões para a
não-atribuição de uma história de vida à responsabilidade do indivíduo.
Cada um deve estruturar e levar sua vida de modo que ela possa ser
apresentada e compreendida como a realização de um projeto de escolha
própria, o qual é projetado sobre toda a sua história de vida19. Imputa-se a
cada um sua própria história, embora se saiba da rede de dependências, de
determinantes biográficos, familiares, sociais, psíquicos e físicos, de casuali-
dades e fatalidades em que cada indivíduo está envolvido. O eu individual
corre então o risco de acabar em um estado de sobrecarga constante, diante
do qual o sofrimento com a individualização no século XIX parece um
idílio20.
Seria quase possível falar aqui de um novo existencialismo. Não por
acaso, o mais popular manifesto existencialista, o ensaio O existencialismo é
um humanismo, de Jean-Paul Sartre, foi escrito em uma situação semelhante
à atual em um aspecto, em 1946, sob o efeito ainda pouco consistente do
colapso das grandes descrições ideológicas."... o homem está condenado a
ser livre. Condenado, porque não criou a si mesmo, e apesar disso [...] livre,
já que, uma vez posto no mundo, é responsável por tudo o que faz"21. Em
conseqüência dessa responsabilização, o existencialista não encontra ne-
nhuma desculpa. Para Sartre, sua teoria causaria medo a algumas pessoas
porque, muitas vezes, "elas têm apenas um meio para suportar sua desgraça,
que é pensar: 'as circunstâncias estavam contra mim, eu teria sido capaz de
ser muito melhor do que fui'"22. Na variável das "circunstâncias" pode-se
incluir tudo o que aliviaria o indivíduo da responsabilização por si próprio, a
qual se vê imensamente ampliada.
JULHO DE 2002 111
112 NOVOS ESTUDOS N.° 63
(24) Baumann, Zygmunt. Un-
behagen in der Postmoderne.
Hamburgo, 1999, p. 84.
As ambivalências e linhas de desenvolvimento aqui apontadas deixam
claro que a sociedade civil como sociedade da responsabilidade corre o
risco de permitir que a imputação se torne ilimitada, com uma totalização das
responsabilizações23. Se não há mais desculpas, então cada um é responsá-
vel por tudo, de modo que "responsabilidade" torna-se um conceito vazio.
Para escapar desse risco não se pode porém recair no outro extremo:
lamentar o sujeito supostamente desgraçado e sobrecarregado por sua
responsabilização e oferecer previdência social, intervenção e controle
estatais amplos e consoladores ou novas causas excludentes que, assim
como a responsabilização, tomam a liberdade do indivíduo. Tal risco só se
deixará evitar na medida em que os cidadãos da sociedade civil tomem
consciência da ambivalência da exigência ativista, voltando sua atenção
reflexivamente ao conceito de responsabilidade e aos critérios e regras de
imputação a ele relacionados. Essa guinada reflexiva precisa relacionar-se
com as suposições e intuições implícitas que os cidadãos têm a respeito de si
próprios e uns dos outros quando responsabilizam uns aos outros e a si
próprios por algo. Tais suposições e intuições determinam e justificam a
imputação em código binário de um acontecimento, a escolha do lado ao
qual se dirige a imputação em dado momento — a uma pessoa individual-
mente responsável, a outras pessoas ou a uma coletividade, a circunstâncias
próximas ou distantes, à situação ou à natureza e ao destino.
Entre outras coisas, os envolvidos traçam nesse processo uma fronteira
implícita entre liberdade, dependência e coerção, entre as circunstâncias
externas mais ou menos determinantes de uma ação e as decisões mais ou
menos livres do indivíduo. O conjunto dessas suposições, intuições, delimi-
tações e diferenciações integra-se a um conceito de pessoa responsável que
os envolvidos criam de si mesmos e uns dos outros e ao qual recorrem
quando imputam uma responsabilidade ou a refutam ou criticam. Esse
conceito implícito de pessoa, co-determinante da imputação de responsa-
bilidade, não é mencionado nem discutido nos discursos públicos sobre
imputação. Enquanto esse conceito não se tornar objeto de discursos
públicos da sociedade civil, não se poderão evitar tais oscilações extremas
entre uma totalização da responsabilidade e a sua negação paternalista. Na
medida em que os cidadãos discutem seu conceito de pessoa explícita e
publicamente, a própria responsabilidade se torna reflexiva. Seguindo Zyg-
munt Baumann, seria possível dizer que os cidadãos assim assumiriam a
responsabilidade pela sua responsabilização24.
(23) Esse risco foi logo notado
por aqueles que sempre duvi-
daram da autonomia do sujeito
(cf. Lübbe, Herman. "Moralis-
mus. Über eine Zivilisation
ohne Subjekt". Universitas,
1994, pp. 332-342).
Responsabilidade pela responsabilização
A exigência ativista dos cidadãos de uma sociedade civil, entendida no
sentido amplo referido acima, corresponde àquela mudança na imputação,
que passa da sociedade, da história e da natureza para o indivíduo. A so-
ciedade civil global é o protótipo da sociedade da responsabilidade.
RESPONSABILIZAÇÃO NA SOCIEDADE CIVIL
KLAUS GÜNTHER
(25) Günther, Klaus. "Welchen
Personenbegriff braucht die
Diskurstheorie des Rechts?
Überlegungen zum internen
Zusamenhang zwischen deli-
berativer Person, Staatsbürger
und Rechtsperson". In: Brunk-
horst, Haucke e Niesen, Peter
(org.). Das Recht der Republik.
Frankfurt a.M., 1999, pp. 83-
104.
(26) Habermas, Theorie des
kommunikativen Handelns
(vol. 1), loc. cit., pp. 397 ss.
Em simultâneo à discussão pública, são necessárias naturalmente as
diferenciações, já indicadas aqui, entre os diversos contextos em que as pes-
soas responsabilizam a si próprias e umas às outras. O conceito de pessoa é
caracterizado de modo diverso de acordo com o contexto — quando se trata
da responsabilidade pela própria história de vida, as características relevan-
tes são diversas daquelas importantes para a imputação da violação de uma
lei a um indivíduo ou para a responsabilização de um ministro. De acordo
com o contexto, também as exigências de defensibilidade pública do con-
ceito implícito de pessoa são maiores ou menores. Para a imputação ética da
própria história de vida elas são menores do que para a imputação jurídica
da violação de uma lei.
Evidentemente, há uma base comum à qual se referem todos os concei-
tos de responsabilidade formados de acordo com contextos específicos. Na
guinada reflexiva para a responsabilidade por nossas responsabilizações
deparamos uma constante: a responsabilização se encontra já nas próprias
relações comunicativas elementares25. A responsabilização por uma ação e
suas conseqüências está ligada de modo constitutivoao fato de que os
homens estão dispostos e têm capacidade para prestar contas — perante si
próprios ou perante outros. Essa disposição está, por sua vez, internamente
entrelaçada ao significado comunicativo de proferimentos lingüísticos26. Com
uma afirmação, uma exortação ou a expressão de uma intenção ou desejo, o
falante levanta uma pretensão de validade com relação a um ouvinte que lhe
é imputada. Seria possível dizer também que o falante que com sua afirmação
apresenta uma pretensão de validade (à verdade, à correção ou à veracidade)
está disposto a responder por seu proferimento perante um ouvinte — está,
por assim dizer, disposto a deixar-se prender a essa pretensão de validade. É
apenas sob essas condições que faz sentido para o ouvinte contestar a
pretensão de validade de um proferimento. Sem a disposição para assumir a
responsabilidade pelo próprio proferimento, ninguém participaria do jogo de
linguagem da argumentação, da crítica e da réplica por meio de fundamenta-
ções27. A apresentação, a contestação e a fundamentação de pretensões de
validade pressupõem portanto que pessoas imputem afirmações umas às
outras, que possam responsabilizar-se por suas afirmações.
Se esse pensamento, traçado aqui apenas muito superficialmente, é
correto, então é possível supor, indo além, que para a mútua imputação de
pretensões de validade falante e ouvinte recorrem simultaneamente a um
conceito de pessoa implícito que inclui, por exemplo, suposições acerca da
imputabilidade a ser pressuposta28. Quando há motivos para supor que uma
afirmação é feita por um falante inimputável, o ouvinte não reage com
crítica, mas talvez com indulgência apenas. Às características gerais do
conceito implícito de pessoa pertencem também suposições acerca da
identidade das pessoas. É apenas quando um ouvinte pode atribuir identida-
de a um falante que um proferimento feito no passado pode ser imputado
também no presente — e pode-se criticar hoje a pretensão de validade feita
então. Tais suposições acerca da identidade pessoal são também uma
condição para que outros compromissos possam ligar-se à apresentação ou
(27) Ver a explicação da filoso-
fia da linguagem para essa rela-
ção em Brandom, Robert.
"Pragmatistische Themen in
Hegels Idealismus". Deutsche
Zeitschrift für PhilosoPhie, nº
47, 1999, pp. 355-381: "Uma
das idéias mais elementares e
importantes de Kant é que juí-
zos e ações diferenciam-se das
reações de criaturas meramen-
te naturais pelo fato de que nós
temos uma responsabilidade
muito peculiar por elas" (p.
356).
(28) Habermas, Theorie des
kommunikativen Handelns
(vol. 1), loc. cit., pp. 117, 213.
JULHO DE 2002 113
RESPONSABILIZAÇÃO NA SOCIEDADE CIVIL
aceitação de uma pretensão de validade: tanto os compromissos iniciais
diretamente relacionados com o prosseguimento da interação lingüistica-
mente mediada29 como também, de modo derivado, outras obrigações
relevantes para a ação com as quais um falante pode comprometer-se com
um ouvinte para o futuro, como no caso de uma promessa.
Percebe-se que um falante assume responsabilidade por seus profe-
rimentos quando está disposto a fundamentar contra críticas a pretensão
aventada, quando é capaz de prestar conta de seus proferimentos. Isso su-
põe também a capacidade e a disposição para alterar suas próprias preferên-
cias sob a influência de razões e argumentos. É apenas sob a condição de ser
responsável por meus proferimentos que posso me considerar destinatário
da obrigação de permitir que as razões que me convenceram tenham efeito
correspondente sobre minha ação. Uma pessoa assim é capaz de agir
conforme suas ponderações. É essa concepção de "pessoa deliberativa" que
falante e ouvinte atribuem a si próprios e um ao outro em suas relações
comunicativas. Sobre ela se fundam as concepções de pessoa específicas de
cada contexto e que têm influência sobre a imputação de situações e
acontecimentos à responsabilidade individual de uma pessoa.
(29) Ibidem, p. 398; Brandom,
op. cit.
Exemplo: imputação no direito penal
A seguir, tomando o direito penal como exemplo, esboçarei sucinta-
mente as conseqüências que daí resultam para a legiferação penal e as regras
da imputação individual de ilícitos penalmente puníveis. O direito penal
possui um caráter exemplar porque permite demonstrar de maneira elemen-
tar o que significa dizer que cidadãos assumem responsabilidade por sua
responsabilização como pessoas de direito (Rechtspersonen30) no papel de
destinatários responsáveis de normas.
Os cidadãos assumem responsabilidade por suas leis penais. Isso
significa que a legislação não é o resultado acidental da soma de decisões
individuais que ingressam no processo político como resultados prontos. Ao
contrário, os cidadãos compreendem-se de forma a poder fundamentar suas
preferências e criticar-se mutuamente, em suma, como pessoas que podem
ponderar (e agir) com base em razões publicamente defensáveis31. Com
isso, reconhecem-se mutuamente como pessoas deliberativas. O processo
político deve referir-se a este pressuposto: o caráter deliberativo do processo
público de formação da opinião e da vontade fica claro na medida em que as
respectivas preferências individuais devem ser expostas a um procedimento
de crítica e refutação. Esses procedimentos, em sua forma ideal, organizam
uma competição pelos melhores fundamentos, e as normas jurídicas resul-
tantes de tais procedimentos podem ser consideradas provisoriamente
legítimas32.
No entanto, nem toda violação de uma dessas normas constitui um
ilícito merecedor de punição penal. Merecem-na apenas as violações às
114 NOVOS ESTUDOS N.° 63
(30) N.T.: A melhor tradução
para "Rechtsperson" seria cer-
tamente "sujeito de direito", ou
simplesmente "pessoa" (termo
que na linguagem jurídica indi-
ca já o sujeito de direito, sem
necessidade de qualquer quali-
ficação). Contudo, como no
presente contexto é fundamen-
tal para a argumentação do au-
tor a referência ao conceito de
pessoa, pareceu-nos preferível
adotar a expressão "pessoa de
direito" (que no mais das vezes
o autor faz acompanhar do ad-
jetivo "responsável"). Desse
modo, o termo fundamental
"pessoa" é preservado, ao mes-
mo tempo que fica claro tratar-
se do sentido jurídico dessa
palavra.
(31) Offe, Claus. "Micro-aspects
of democratic theory: what
makes for the deliberative com-
petence of citizens?". In: Hade-
nius, Axel (org.). Democracy's
victory and crisis. Cambridge,
1997, pp. 81-104.
(32) Habermas, Jürgen. Fakti-
zität und Geltung. Frankfurt
a.M., 1992, pp. 349-398.
KLAUS GÜNTHER
(33) Para uma teoria da demo-
cracia deliberativa que se fun-
da sobre o direito e a chance
de dissenso, ver Pettit, Philip.
Republicanism. Oxford, 1997,
esp. pp. 187-190.
normas elementares que fundam o status de uma pessoa como pessoa de
direito igual, isto é, basicamente as violações das normas do núcleo do
direito penal. É apenas quando tais normas são violadas que se ferem, além
da vítima, todos os outros cidadãos que são titulares desses direitos. Natural-
mente, tais direitos não são incluídos diretamente como "bens jurídicos" no
direito penal; ao contrário, em procedimentos deliberativos precisam ser por
sua vez interpretados e aperfeiçoados. O ilícito penal tem, portanto, dois
fundamentos: a violação de direitos constitutivos para o status de uma
pessoa de direito e a violação de normas que interpretam e aperfeiçoam tais
direitos em um procedimento de democracia deliberativa, isto é, normas
legítimas.
Conseqüentemente, um direito penal legítimo somente pode existir
em uma democracia deliberativa, em um Estado de Direito, já que apenas
nesse caso é possível remeter o destinatário da norma às suas possibilidades
de participação na formação da opinião e vontade públicas e, com isso, à sua
opção pelo dissenso quando ele viola a norma33. A obediência à norma pode
então ser esperada mesmo quando seu destinatárionão aceita sua validade.
Apenas uma democracia pode legitimamente esperar do destinatário de uma
norma válida que a obedeça também no caso de rejeição individual, porque
a democracia lhe concede simultaneamente o direito e a possibilidade fáti-
ca de expressar sua rejeição de outro modo que não a violação da norma
manifestada com sua ação. O direito penal de uma democracia deliberativa
não exige que a norma criada desse modo deva ser aceita internamente por
seu destinatário e obedecida em razão de sua compreensão, ou que os
cidadãos sejam obrigados a tomar parte na formação da vontade pública,
porque apenas assim consentiriam também com a obrigação de realmente
obedecer às normas daí resultantes. A liberdade de rejeitar internamente
uma norma penal e obedecê-la apenas externamente, resultante da separa-
ção entre moralidade e legalidade da obediência a normas (e ligada ao poder
de coerção), é mantida. O dever de obediência externa à norma funda-se
exclusivamente sobre o direito e a possibilidade fática que cada indivíduo
possui de tomar parte no processo de formação da vontade, e não sobre o
"como" e o "se" do exercício individual desse direito.
Isso vale não apenas para as normas de conduta do direito penal, mas
também para as regras de imputação com base nas quais se atribui a um
delinqüente a responsabilidade pela violação de uma norma. Tais normas e
conceitos devem, por sua vez, ser publicamente defensáveis. Também nesse
ponto a responsabilidade torna-se reflexiva. Os cidadãos recorrem ao mes-
mo conceito de pessoa a que fazem recurso para fundamentar normas para
si próprios — o conceito de pessoa deliberativa —, mas agora o interpretam
em face do seu próprio papel de destinatários de normas legítimas. Das
características do conceito de pessoa deliberativa é possível tirar uma
conclusão que determina a interpretação e o aperfeiçoamento ulteriores do
conceito de pessoa de direito responsável. Quando os participantes reco-
nhecem-se reciprocamente como pessoas deliberativas, decidem-se pelo
princípio de que cada um deles é responsável pelo respeito às normas. Isso
JULHO DE 2002 115
RESPONSABILIZAÇÃO NA SOCIEDADE CIVIL
pressupõe, pelo menos, que se atribuam mutuamente liberdade de decisão
e de ação em face de alternativas de ação. Além disso, eles precisam es-
tabelecer que capacidades e incapacidades, que espaço para liberdade e que
consideração pelos limites da possibilidade de motivação devem fazer parte
do conceito de pessoa de direito responsável que criam juntos para futuras
imputações de violações de normas. Tal conceito resulta, portanto, da auto-
interpretação conjunta de todos os cidadãos. O que isso significa para a
imputação em particular, pretendo ilustrar de modo exemplificativo com
base em quatro teses curtas.
i) A atribuição de responsabilidade, a responsabilização de uma pes-
soa com base em regras publicamente reconhecidas de imputação e em um
conceito de pessoa de direito responsável publicamente defensável, pode
ser então compreendida como uma prática social com significado próprio. A
imputação não deve mais ser entendida apenas, ou mesmo de modo algum,
como simples requisito para a pena. Ao contrário, a imputação de uma ação
ou conseqüência de uma ação à responsabilidade individual de uma pessoa
é ela mesma uma ação social, um ato performativo. Esse ato consuma-se
com o proferimento da sentença, em especial daquela em que se considera
o réu culpado. Para uma "sociedade da responsabilidade" a sentença conde-
natória torna-se mais importante do que a pena, e tem pelo menos quatro
significados. Ao delinqüente, à vítima e à sociedade transmite-se a mensa-
gem de que continuam a existir bons motivos para manter-se a validade da
norma. Além disso, a sentença condenatória tem diferentes significados para
o delinqüente, a vítima e a sociedade. Para o delinqüente deixa-se claro que
a violação da norma é erro seu e não atribuível às circunstâncias da situação,
à natureza ou ao destino, nem tampouco à sociedade, e ao mesmo tempo
confirma-se com isso que se deve manter o conceito público de pessoa de
direito responsável. À vítima comunica-se, por meio da afirmação do delito e
de sua imputação à responsabilidade individual do delinqüente, que a lesão
sofrida não é resultado de má sorte nem consiste num erro pelo qual a
própria vítima teria de responder34. À sociedade, finalmente, a imputação
individual significa que ela, por sua vez, não é responsável pelo ilícito, e que
este tampouco pode ser atribuído ao azar, à natureza ou ao destino, mas à
ação responsável de uma pessoa de direito.
ii) Compreendendo-se a imputação de responsabilidade individual
por atos ilícitos como uma prática independente e constitutiva para os
cidadãos de uma sociedade civil e sua autocompreensão, é possível então
dar o próximo passo e arriscar a idéia, que à primeira vista parece provoca-
tiva e utópica, de rompimento do vínculo entre culpa e pena. Uma sociedade
civil que assumisse responsabilidade por sua responsabilização poderia
renunciar totalmente à pena no sentido de inflição de um mal. Todas as
funções simbólicas atribuídas à pena já podem ser preenchidas pelo signifi-
cado comunicativo da sentença condenatória para o próprio delinqüente,
para a vítima e para a sociedade, como se expôs. Tendo em vista, além disso,
que não são de se esperar da pena resultados preventivos especiais e que a
eficácia da prevenção geral por meio da pena permanece ausente, não resta
116 NOVOS ESTUDOS N.° 63
(34) Shklar, Judith N. Über Un-
gerechtigkeit. Frankfurt a.M.,
1997, pp. 67 ss.
JULHO DE 2002 117
(40) Wiethölter, Rudolf. Rechts-
wissenschaft. Zurique, 1986
[1968], p. 96.
(39) Ibidem, § 22, n. 11.
(38) Roxin, Claus. Strafrecht-
Allgemeiner Teil, I. 3a ed. Mu-
nique, 1997, § 22, n. 7.
nenhuma justificativa convincente para a pena no sentido de inflição de um
mal. A pena não tem nenhum significado além daquele comunicativo da
sentença condenatória. Com isso abre-se espaço para formas de reação
alternativas, como acordos entre delinqüente e vítima, indenização dos
prejuízos, assistência social, ressocialização35.
iii) Se fosse permitido que o ato performativo de responsabilização por
meio da sentença condenatória saísse da sombra da pena, seria também
possível perceber mais claramente seu caráter interventivo próprio. Isso não
apenas porque a pessoa em questão pode ser detida e forçada a tolerar a
imputação em um procedimento formalizado e aceitá-la após o trânsito em
julgado. A imputação de responsabilidade é uma intervenção especialmente
relevante do ponto de vista dos direitos fundamentais porque modifica o
status da pessoa. A sentença penal do tribunal de julgamento é uma sentença
de status (Statusurteil36) com a qual se atribui publicamente a uma pessoa a
culpa por um ato ilícito. Já essa intervenção exige legitimação e não somente
a pena.
iv) A dogmática penal atualmente dominante compreende a si própria
como "normatizante": as regras e conceitos da imputação devem orientar-
se pela função da pena, especialmente por sua função de estabilização das
normas37. A isso deve contrapor-se o programa de uma dogmática penal
pautada não pela pena, mas pelo direito da imputação pública de responsa-
bilidade individual por delitos graves, que atingem a coletividade. A questão
fundamental não seria então saber qual a função de cada uma das etapas da
imputação, como conformidade ao tipo legal, ilicitude e culpa, e dos con-
ceitos a elas relacionados para a estabilização da norma e o restabelecimento
da confiança na validade do direito. Em vez disso, perguntar-se-ia sob quais
condições é justificável imputar individualmente a violação de uma norma a
uma pessoa de direito responsável e torná-la publicamente responsável por
isso. As regras e conceitos cabíveis seriam elaborados e justificados tendo em
vista essa questão fundamental.
Um breve exemplo: quem, diante de um perigoque não podia ser
afastado de outro modo, pratica um delito cuja ilicitude não pode ser
excluída, pode, preenchidos certos outros requisitos, ter sua culpabilidade
excluída, de acordo com o § 35 do Código Penal alemão. Há duas interpreta-
ções concorrentes acerca do estado de necessidade excludente da culpabili-
dade: segundo a interpretação psicológica, deve-se excluir a culpabilidade,
e com isso a punição, daquele que age em estado de necessidade em razão
da ocorrência de uma "pressão motivadora psíquica" irresistível38; e para a
teoria normatizante importa apenas que, em situações de estado de necessi-
dade desse tipo, não subsiste nenhuma necessidade preventiva, geral ou
específica, de punir o ato ilícito39. Contra ambas as interpretações, seria de
afirmar a opinião de que um determinado estado psíquico por si só não
exonera de modo algum e não pode em si mesmo fundar a necessidade de
não se fazer responsável o delinqüente. Isso depende antes do conceito de
pessoa de direito responsável que se aplica à situação de fato. Caberia per-
guntar, portanto, se esperar o cumprimento da norma em situações de
KLAUS GÜNTHER
(35) Em julgado recente, o Tri-
bunal Federal Alemão desta-
cou esse significado indepen-
dentemente da sentença con-
denatória em relação à pena
(BGH Strafverteidiger, 1999, p.
149).
(36) Calliess, Rolf-Peter e Mül-
ler-Dietz, Heinz. Strafvollzugs-
gesetz Kommentar. 7a ed. Mu-
nique, 1998, § 2, n. 9.
(37) Jakobs, Günther. Strafre-
cht — Allgemeiner Teil. 2a ed.
Berlim/Nova York, 1993.
RESPONSABILIZAÇÃO NA SOCIEDADE CIVIL
estado de necessidade dessa espécie é compatível com o conceito publica-
mente defensável de pessoa de direito responsável.
Esse programa também poderia ser desenvolvido, enfim, para o con-
ceito de culpa do direito penal. Em 1968, lançando um olhar crítico sobre a
discussão que então se travava entre as teorias do dolo e da culpa, Rudolf
Wiethölter escreveu: "Querendo-se um conceito para as noções de pena por
culpa vigentes, pode-se extrair apenas um conceito político de culpa"40. O
programa aqui esboçado procura aclarar essa tese e levá-la a sério, ao
explicitar o conteúdo político implícito do conceito de culpa para submetê-
lo à decisão consciente de uma sociedade civil, cujos cidadãos assumiram
responsabilidade por sua responsabilização.
Recebido para publicação em
14 de fevereiro de 2002.
Klaus Günther é professor da
Faculdade de Direito da Uni-
versidade Johann Wolfgang
Goethe (Frankfurt am Main).
Novos Estudos
CEBRAP
N.° 63, julho 2002
pp. 105-118
118 NOVOS ESTUDOS N.° 63

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