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COLETÂNEA DE CRÔNICAS

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Leitura e Produção de Textos – Profa. Ana Madalena Fontoura 
 
1 
 
 
LEITURA E PRODUÇÃO DE TEXTOS 
COLETÂNEA DE CRÔNICAS 
 
PROFA. ANA MADALENA FONTOURA 
 
 
CARACTERÍSTICAS DA CRÔNICA (TRECHO) 
 
A crônica é o único gênero literário produzido essencialmente para ser vinculado na imprensa, seja nas 
páginas de uma revista, seja nas de um jornal. Quer dizer, ela é feita com uma finalidade utilitária e pré-
determinada: agradar aos leitores dentro de um espaço sempre igual e com a mesma localização, criando-se 
assim, no transcurso dos dias ou das semanas, uma familiaridade entre o escritor e aqueles que o lêem. 
Em regra geral, a crônica é um comentário leve e breve sobre algum fato do cotidiano. Algo para ser lido 
enquanto se toma o café da manhã, na feliz expressão de Fernando Sabino. O comentário pode ser poético ou 
irônico mas o seu motivo, na maioria dos casos, é o fato miúdo: a notícia em quem ninguém prestou atenção, o 
acontecimento insignificante, a cena corriqueira. Nessas trivialidades, o cronista surpreende a beleza, a 
comicidade, os aspectos singulares. O tom, como acentua Antonio Candido é o de "uma conversa 
aparentemente banal". 
O próprio Fernando Sabino tem uma das melhores delimitações de crônica, dizendo que ela "busca o 
pitoresco ou o irrisório no cotidiano de cada um". Em outro momento, o autor de O homem nu voltou a teorizar 
sobre o gênero: 
Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano. Visava ao circunstancial, 
ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma 
criança ou num incidente doméstico, torno-me simples espectador. 
A questão da linguagem 
A mistura entre jornalismo e literatura leva o cronista a um freqüente impasse: para se constituir como texto 
artístico, o seu comentário sobre o cotidiano precisa apresentar uma linguagem que transcenda a da mera 
informação. Ou seja, precisa de uma linguagem menos denotativa e mais pessoal. Isso não significa elaboração 
Leitura e Produção de Textos – Profa. Ana Madalena Fontoura 
 
2 
 
muito sofisticada ou pretensiosa. Significa que o estilo deve dar a impressão de naturalidade e a língua escrita 
aproximar-se da fala. 
Nem sempre o cronista atinge o duplo alvo: fazer literatura e expressar-se com simplicidade. Em função do 
grande público, é preciso buscar primeiramente a clareza e uma dimensão de oralidade na escrita. Daí porque 
a crônica seja considerada por muitos críticos um gênero menor: aquela vontade de forma que todo o grande 
artista possui termina subjugada pela necessidade de ser acessível a todos. 
Além disso, o cronista tem prazos para entregar seu material, não podendo nunca deixar seu texto amadurecer. 
Mesmo assim, algum desses prosadores, que escrevem sob pressão de horários rígidos, são capazes de 
alcançar uma linguagem literária de singular beleza. 
A proximidade com o conto 
Nem só de comentários a respeito do dia-a-dia vive a crônica. Com relativa freqüência, ela se aproxima do 
conto. O gosto pela história curta, pelo diálogo ágil, pela narrativa de final imprevisto e surpreendente e a 
unidade de ação, tempo e espaço levam vários cronistas à prática mais ou menos disfarçada do conto. 
Fernando Sabino e Luís Fernando Veríssimo são expoentes dessa modalidade. Vários dos trabalhos que 
publicam na imprensa apresentam personagens e situações ficcionais próprias do gênero narrativo. Por 
exemplo, O homem nu, do primeiro, e a série Comédias da vida privada, do segundo, são mais relatos do que 
comentários. 
Diante de tal embrulho teórico, poderíamos considerar que o conto – ao contrário da crônica-conto – não tem as 
limitações de linguagem, extensão e profundidade, exigidas pelos jornais. Apresenta, pois, um grau maior de 
complexidade. Além disso, o conto, em estado puro, visa normalmente ao dramático, enquanto a crônica-conto 
busca, de forma quase que exclusiva, o humor e a sátira. 
No entanto, esta diferenciação só é perceptível aos alunos com a leitura contínua de contos e de crônicas, 
tornando-se desnecessário o estabelecimento de uma rígida fronteira conceitual entre ambos. 
A popularidade do gênero 
A quantidade de cronistas escrevendo na imprensa brasileira atesta a grande repercussão do gênero. Para 
eles, trata-se de uma indispensável fonte de sobrevivência e de prestígio social. Para os seus leitores, um 
momento de quebra do aspecto meramente informativo da comunicação jornalística. Aliás, essa é a maior das 
contradições da crônica: elaborada por alguns dos grandes escritores do país, ela aparece num meio impresso 
de absoluta fugacidade. O jornal de hoje - como disse um crítico - no dia seguinte servirá apenas para 
embrulhar peixe. A revista da semana passada só sobreviverá nos consultórios de dentista. 
Por isso, no desejo de resistir ao caráter descartável do jornalismo, vários cronistas selecionam alguns de seus 
textos, que parecem menos perecíveis, para editá-los sob a forma de livro. Tal providência, por seu turno, não 
garante a perenidade da obra pois como a crônica submerge nos acontecimentos diário, corre o risco de perder 
seu interesse exatamente na medida em que aqueles fatos se tornarem passado e deixarem de atrair a 
atenção. 
Assinale-se também que a crônica – por decorrer das necessidades dos jornais e das revistas – não é praticada 
fora das salas de redação, desconhecendo-se escritores importantes que a tenham composto apenas para 
publicação em livro, a exemplo das outras espécies literárias. 
Os vários tipos de crônica 
A rigor, podemos falar na existência de três tipos de crônica, que muitas vezes se confundem: 
Leitura e Produção de Textos – Profa. Ana Madalena Fontoura 
 
3 
 
 
Crônica lírica ou poética 
 
Caracteriza-se pelo flagrante de aspectos sentimentais, nostálgicos ou de simples beleza da vida urbana, 
especialmente do Rio de Janeiro. Seu maior expoente é Rubem Braga, seguido por legítimos poetas-
prosadores como Carlos Drummond de Andrade, Antônio Maria, Paulo Mendes Campos e outros. Este tipo 
de comentário poético parece em desuso, provavelmente devido à violência e a degradação na vida das 
grandes cidades brasileiras. 
 
Crônica de humor 
 
Procura basicamente o riso, com certo registro irônico dos costumes. Apresenta-se, como já vimos, tanto sob a 
forma de um comentário quanto de um relato curto, próximo do conto. 
Crônica-ensaio 
Apesar de ser escrita em linguagem literária, ter uma veia humorística e valer-se inclusive da ficção, este tipo de 
crônica apresenta uma visão abertamente crítica da realidade cultural e ideológica de sua época, servindo para 
mostrar o que autor quer ou não quer de seu país. Aproxima-se do ensaio, do qual guarda o aspecto 
argumentativo Nelson Rodrigues é o grande nome dessa linha, mas devemos citar também Paulo Francis, 
Arnaldo Jabor, Carlos Heitor Cony e, em alguns textos, Luís Fernando Veríssimo. 
EVOLUÇÃO 
A crônica teve um desenvolvimento específico no Brasil, não faltando historiadores literários que lhe atribuem 
um caráter exclusivamente nacional. Com efeito, a crônica como a entendemos, um pequeno comentário lírico 
ou irônico sobre fatos insignificantes, ou ainda uma história curta de fundo humorístico, não é comum na 
imprensa de outros países. Justifica-se assim a dimensão brasileira desse gênero menor. 
A partir da era romântica, surgiu nos jornais do Rio de Janeiro um rodapé conhecido como folhetim, (o mesmo 
nome atribuído aos romances que apareciam em capítulos nos diários da época), onde um autor conhecido 
escrevia um artigo, comentando as questões do dia, fossem as artísticas, fossem as sociais. José de Alencar e 
Machado de Assis, entre outros, ocuparam este espaço de variedades, legítima matriz da crônica moderna. 
Aliás, Machado sintetizou com precisão o gênero que estava nascendo:Uma fusão admirável do útil e do fútil, 
o sério consorciado com o frívolo... 
Além dos dois maiores romancistas brasileiros do século XIX, também o poeta Olavo Bilac tornou-se um 
adepto do comentário ligeiro acerca do cotidiano. Já no início do século XX, Lima Barreto e João do Rio se 
destacaram; o primeiro pelo tom caricatural e veemente de suas crônicas; o segundo por se converter no porta-
voz do espírito da "belle époque" carioca. Mas foi a partir das décadas de 1940 e 1950, com as obras de 
Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Antônio Maria e outros que a crônica ganhou o 
status de literatura, passando a receber especial estima do grande público. 
 
Retirado do site: 
http://educaterra.terra.com.br/literatura/index.htm 
 
Leitura e Produção de Textos – Profa. Ana Madalena Fontoura 
 
4 
 
 
 
Nascer no Cairo, ser fêmea de cupim 
Rubem Braga 
Conhece o vocábulo escardinchar? Qual o feminino de cupim? Qual o antônimo de póstumo? 
Como se chama o natural do Cairo? 
O leitor que responder "não sei" a todas estas perguntas não passará provavelmente em 
nenhuma prova de Português de nenhum concurso oficial. Alias, se isso pode servir de algum 
consolo à sua ignorância, receberá um abraço de felicitações deste modesto cronista, seu 
semelhante e seu irmão. 
Porque a verdade é que eu também não sei. Você dirá, meu caro professor de Português, que 
eu não deveria confessar isso; que é uma vergonha para mim, que vivo de escrever, não conhecer o 
meu instrumento de trabalho, que é a língua. 
Concordo. Confesso que escrevo de palpite, como outras pessoas tocam piano de ouvido. De 
vez em quando um leitor culto se irrita comigo e me manda um recorte de crônica anotado, 
apontando erros de Português. Um deles chegou a me passar um telegrama, felicitando-me porque 
não encontrara, na minha crônica daquele dia, um só erro de Português; acrescentava que eu 
produzira uma "página de bom vernáculo, exemplar". Tive vontade de responder: "Mera coincidência" 
— mas não o fiz para não entristecer o homem. 
Espero que uma velhice tranqüila - no hospital ou na cadeia, com seus longos ócios — me 
permita um dia estudar com toda calma a nossa língua, e me penitenciar dos abusos que tenho 
praticado contra a sua pulcritude. (Sabem qual o superlativo de pulcro? Isto eu sei por acaso: 
pulquérrimo! Mas não é desanimador saber uma coisa dessas? Que me aconteceria se eu dissesse a 
uma bela dama: a senhora é pulquérrima? Eu poderia me queixar se o seu marido me descesse a 
mão?). 
Alguém já me escreveu também — que eu sou um escoteiro ao contrário. "Cada dia você 
parece que tem de praticar a sua má ação — contra a língua". Mas acho que isso é exagero. 
PARTE 
I 
A língua 
e 
seu uso 
Leitura e Produção de Textos – Profa. Ana Madalena Fontoura 
 
5 
 
Como também é exagero saber o que quer dizer escardinchar. Já estou mais perto dos 
cinqüenta que dos quarenta; vivo de meu trabalho quase sempre honrado, gozo de boa saúde e 
estou até gordo demais, pensando em meter um regime no organismo — e nunca soube o que fosse 
escardinchar. Espero que nunca, na minha vida, tenha escardinchado ninguém; se o fiz, mereço 
desculpas, pois nunca tive essa intenção. 
Vários problemas e algumas mulheres já me tiraram o sono, mas não o feminino de cupim. 
Morrerei sem saber isso. E o pior é que não quero saber; nego-me terminantemente a saber, e, se o 
senhor é um desses cavalheiros que sabem qual é o feminino de cupim, tenha a bondade de não me 
cumprimentar. 
Por que exigir essas coisas dos candidatos aos nossos cargos públicos? Por que fazer do 
estudo da língua portuguesa unia série de alçapões e adivinhas, como essas histórias que uma 
pessoa conta para "pegar" as outras? O habitante do Cairo pode ser cairense, cairei, caireta, cairota 
ou cairiri — e a única utilidade de saber qual a palavra certa será para decifrar um problema de 
palavras cruzadas. Vocês não acham que nossos funcionários públicos já gastam uma parte 
excessiva do expediente matando palavras cruzadas da "Última Hora" ou lendo o horóscopo e as 
histórias em quadrinhos de "O Globo?". 
No fundo o que esse tipo de gramático deseja é tornar a língua portuguesa odiosa; não 
alguma coisa através da qual as pessoas se entendam, ruas um instrumento de suplício e de 
opressão que ele, gramático, aplica sobre nós, os ignaros. 
Mas a mim é que não me escardincham assim, sem mais nem menos: não sou fêmea de 
cupim nem antônimo do póstumo nenhum; e sou cachoeirense, de Cachoeiro, honradamente — de 
Cachoeiro de Itapemirim! 
Rio, novembro, 1951 
Texto extraído do livro "Ai de Ti, Copacabana", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1960, pág. 197. 
 
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Latricério 
Stanislaw Ponte Preta 
Tinha um linguajar difícil, o Latricério. Já de nome era ruinzinho, que Latricério não é lá 
nomenclatura muito desejada. E era aí que começavam os seus erros. 
Foi porteiro lá do prédio durante muito tempo. Era prestativo e bom sujeito, mas sempre com o 
grave defeito de pensar que sabia e entendia de tudo. Aliás, acabou despedido por isso mesmo. Um 
dia enguiçou a descarga do vaso sanitário de um apartamento e ele achou que sabia endireitar. O 
síndico do prédio já ia chamar um bombeiro, quando Latricério apareceu dizendo que deixassem por 
sua conta. 
Leitura e Produção de Textos – Profa. Ana Madalena Fontoura 
 
6 
 
Dizem que o dono do banheiro protestou, na lembrança talvez de outros malfadados 
consertos feitos pelo serviçal porteiro. Mas o síndico acalmou-o com esta desculpa excelente: 
— Deixe ele consertar, afinal são quase xarás e lá se entendem. 
Dono da permissão, o nosso amigo — até hoje ninguém sabe explicar por quê — fez um 
rápido exame no aparelho em pane e desceu aos fundos do edifício, avisando antes que o defeito era 
"nos cano de orige". 
Lá embaixo, começou a mexer na caixa do gás e, às tantas, quase provoca uma tremenda 
explosão. Passado o susto e a certeza de mais esse desserviço, a paciência do síndico atingiu o seu 
limite máximo e o porteiro foi despedido. 
Latricério arrumou sua trouxa e partiu para nunca mais, deixando tristezas para duas pessoas: 
para a empregada do 801, que era sua namorada, e para mim, que via nele uma grande 
personagem. 
Lembro-me que, mesmo tendo sido, por diversas vezes, vítima de suas habilidades, lamentei 
o ocorrido, dando todo o meu apoio ao Latricério e afirmando-lhe que fora precipitação do síndico. Na 
hora da despedida, passei-lhe às mãos uma estampa do American Bank Note no valor de quinhentos 
cruzeiros, oferecendo ainda, como prêmio de consolação, uma horrenda gravata, cheia de coqueiros 
dourados, virgem de uso, pois nela não tocara desde o meu aniversário, dia em que o Bill — o 
americano do 602 — a trouxera como lembrança da data. 
Mas, como ficou dito acima, Latricério tinha um linguajar difícil, e é preciso explicar por quê. 
Falava tudo errado, misturando palavras, trocando-lhes o sentido e empregando os mais estranhos 
termos para definir as coisas mais elementares. Afora as expressões atribuídas a todos os 
"malfalantes", como "compromisso de cafiaspirina", "vento encarnado", "libras estrelinhas", etc., tinha 
erros só seus. 
No dia em que estiveram lá no prédio, por exemplo, uns avaliadores da firma a quem o 
proprietário ia hipotecar o imóvel, o porteiro, depois de acompanhá-los na vistoria, veio contar a 
novidade: 
— Magine, doutor! Eles viero avalsá as impoteca! 
É claro que, no princípio, não foi fácil compreender as coisas que ele dizia mas com o tempo, 
acabei me acostumando. Por isso não estranhei quando os ladrões entraram no apartamento de 
Dona Vera, então sob sua guarda, e ele veio me dizer, intrigado: 
— Não compreendo como eles entraro. Pois asportas tava tudo "aritmeticamente" fechadas. 
Tentar emendar-lhe os erros era em pura perda. O melhor era deixar como estava. Com sua 
maneira de falar, afinal, conseguira tornar-se uma das figuras mais populares do quarteirão e eu, 
longe de corrigir-lhe as besteiras, às vezes falava como ele até, para melhor me fazer entender. 
Foi assim no dia em que, com a devida licença do proprietário, mandei derrubar uma parede e 
inaugurei uma nova janela, com jardineira por fora, onde pretendia plantar uns gerânios. Estava eu a 
admirar a obra, quando surgiu o Latricério para louvá-la. 
— Ainda não está completa — disse eu — falta colocar umas persianas pelo lado de fora. 
Leitura e Produção de Textos – Profa. Ana Madalena Fontoura 
 
7 
 
Ele deu logo o seu palpite: 
— Não adianta, doutor. Aí bate muito sol e vai morrê tudo. 
Percebi que jamais soubera o que vinha a ser persiana e tratei de explicar à sua moda: 
— Não diga tolice, persiana é um negócio parecido com venezuela. 
— Ah, bem, venezuela — repetiu. 
E acrescentou: 
— Pensei que fosse "arguma pranta". 
(PONTE PRETA, Stanislaw. O melhor de Stanislaw Ponte Preta. 
6ª ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 1994, p. 32.) 
 
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Do camelódromo ao amoródromo 
 
Carlos Drummond de Andrade 
 
Na última coluna, ao divulgar a sentença "prometo fazer deste país uma malufcracia", cochilei, 
dando ao prefixo o nome de sufixo. Que me perdoem os gramáticos, se ainda existem. 
Falar em sufixo, é de registrar-se o que brilha na palavra "camelódromo", de recente invenção. 
Surgindo depois de "sambódromo", aí estão pai e mãe de novos vocábulos, que prometem constituir 
vasta família. Estou prevendo para breve o "mendigódromo", posto de recolhimento e assembléia 
geral de mendigos, e o "assaltódromo", local de Botafogo, Ipanema ou outro qualquer bairro carioca, 
onde se concentre o maior número de assaltantes. Passando a esfera mais alta, será talvez 
conveniente rebatizar prédios públicos (ou supostamente públicos, porque nada mais fechado do que 
eles), e teremos então um "governódromo", um "jaburódromo", um "fazendódromo", etc. A 
uniformização trará proveito à coisa pública, simplificando tudo a poder de complicação. O "ódromo" 
conseguirá aquilo que o ex-Ministro Beltrão, com toda a sua diligência e competência, não conseguiu: 
botar um pouco de ordem nos serviços públicos. Pelo menos, ordem nominal. 
Um netinho de João Brandão perguntou ao avô se camelódromo é pista para corrida de 
camelos. João explicou que não se trata de camelos, mas de camelôs, francesia há muito radicada 
em nossa língua para significar o pobre-diabo mercador ou apregoador de bugigangas. "Então os 
camelôs vão disputar corrida?" - perguntou o garoto, fértil em interrogações. "Não, os camelôs não 
vão disputar corrida, eles já superaram a fase em que corriam do rapa. Agora instalaram-se na praça 
pública e não temem o fiscal odioso. São todos eleitores do Brizola e requerem local bastante amplo 
para exercerem a profissão, hoje muito difundida, a ponto de se contarem três camelôs para um 
freguês. O camelódromo é a antipista, é a estabilidade". 
Quanto ao comerciódromo, presumo que mais dia menos dia ele dará as caras: os lojistas do 
Rio de Janeiro se concentrarão numa área espaçosa que comportará o maior número deles, ficando 
os restantes à espera de vagas, abertas por aposentadoria, falência ou morte dos titulares. Depois 
Leitura e Produção de Textos – Profa. Ana Madalena Fontoura 
 
8 
 
virá o populódromo, outro território de dimensões amplas, destinado a abrigar convenientemente os 
atuais e futuros moradores de uma cidade que aspira a ser outra vez maravilhosa, pela organização 
do caos urbano. 
O poder das palavras! Penso nisso e extasio-me ao sentir que coisas velhas rejuvenescem se 
as nomearmos de outro modo, e coisas novas brotam novíssimas pelo prestígio do nome imaginoso 
que lhes for dado. As palavras têm valor próprio e independente do que signifiquem. Um som feliz 
populariza qualquer sabão ou idéia ou vereador que o lançar. A terminação "ódromo" está na moda e 
oferece dividendos certos. Enfeita apenas sete palavras no meu dicionário de rimas, mas tem um tal 
sabor que pode aplicar-se a qualquer outra, dando-lhe cor e louçania novas. Falava-se muito em ao, 
em ento, em ia, em em, e pouco ou mesmo nada em ódromo. Só o grupo de apostadores se referia 
ao hipódromo da Gávea. Hoje, milhões falam em sambódromo e não tropeçam na pronúncia. O 
sambódromo carioca não atrai somente porque é um lugar onde o samba exibe suas máximas 
figurações: seu ódromo faz parte da atração. 
Que eu saiba, não existe ninguém que tenha nome próprio terminado em ódromo. Temos o 
óstomo (Crisóstomo) e em ógono (Cristógono), mas já é tempo de registrarmos ou batizarmos 
cidadãos com os bonitos nomes de Pliniódromo, Ricardódromo, Americódromo, etc. A estas pessoas 
o horóscopo há de prometer, se não estou em erro, espaço grande na vida social, bons negócios, 
amores longos e lindos. Prestígio e sedução do ódromo. 
Falar em amor... Que tal, amigos, instituir-se o amoródromo, ou cupidódromo ou que nome 
tenha, sempre com o mesmo final, destinado a juntar e proteger os pobres seres sem teto, os 
despossuídos de dinheiro para custeio das maciezas do motel, os ansiosos de beijo e carinho, que 
são obrigados a freqüentar o escuro das ruas arborizadas, os desvãos e esconderijos da noite, até 
mesmo as pilastras dos viadutos, para realização de seus projetos idílicos? Pense nisso, Governador, 
pensem também os senhores Prefeito e vereadores. Sem amor, não há vida urbana que preste; não 
há bons governos; não há nada. Venha depressa esse ódromo, para alegria unânime da população 
desta cidade que se chamará em breve Riódromo. 
 
In: Jornal do Brasil, Caderno B, 07/07/84. 
 
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A última flor do Lácio 
 
Fernando Sabino 
 
 
 Estou numa sala de aula do Ginásio Mineiro, em Belo Horizonte. Acabamos de entrar na classe em fila, 
como soldados. O modelo de nosso uniforme, aliás (de cor cáqui, calça comprida e dólmã), é de nítida 
inspiração militar. 
 Eis que chega o professor. Todos nos erguemos num movimento único e só tornamos a nos sentar 
quando ele assim o ordena com um gesto de mão, já aboletado à sua mesa, sobre um estrado. É um velho 
magro, crânio pelado, olhos suaves por detrás dos óculos grossos, terno escuro meio surrado, voz indiferente e 
monótona. Ele agora está fazendo a chamada e cada um se levanta dizendo presente. Todos têm um número, 
o meu é o 11. 
 Mas ele se dirige a nós pelo sobrenome e nos chama de senhor: Senhor Sabino, sente-se direito; 
Senhor Pellegrino, tenha modos. Este, sempre irrequieto na carteira à minha frente, volta-se para me dizer um 
Leitura e Produção de Textos – Profa. Ana Madalena Fontoura 
 
9 
 
gracejo, e corremos ambos o mesmo risco de sermos convidados a sair da sala, como freqüentemente 
acontece, antes que comece a aula. 
 É uma aula de Português. Sujeito, predicado e complemento. Concordância, regência. Figuras de 
retórica. Idiotismos lingüísticos. Já aprendemos o que é anacoluto – não é um palavrão. Aprendemos outras 
coisas também – algumas que cheiram a dentista, como próclise, mesóclise. Só que dentro em pouco 
esqueceremos tudo. 
 As funções do quê, por exemplo, que é a matéria da aula de hoje. De que me adiantará na vida saber 
que o que pode ser tudo na oração, menos verbo? “Pode ser até substantivo; como nesta frase que acabei de 
dizer” – acrescenta o professor. O quê? Ouço uma mosca zumbindo no ar. Vejo o Senhor Pellegrino à minha 
frente a olhar distraído pela janela um pardal pousado na grade que circunda o ginásio. E o professor falando 
com vozarrastada, de vez em quando se arrastando ele próprio até o quadro-negro para escrever qualquer 
coisa. E o ruído do giz na lousa me arrepiando a pele. Os olhos me pesam de sono, deixo pender a cabeça. O 
aluno número 11 está dormindo. 
 Acordo de súbito com uma tremenda gritaria. Olho ao redor e me vejo cercado de alunos também de 12 
e 13 anos, mas com uniformes esportivos, camisas leves, calças curtas – e saias, porque há meninos e 
meninas misturados. Alegres e veementes, estão todos respondendo ao mesmo tempo a uma pergunta do 
professor. A sala de aula é outra, outros são os alunos e – verifico estupefato – o professor na verdade é uma 
professora: uma jovem alta, de calças compridas e blusa fina, de pé, apoiada na mesa, um livro aberto na mão. 
Tem cabelos escuros, olhos claros, e é linda de morrer – ou de matar de admiração o aluno número 11 do 
Ginásio Mineiro. 
 Mas já não estou no Ginásio Mineiro e sim num colégio do Leblon, em 1974. 
 
 É também uma aula de Português. O plá, como dizem os alunos, vem a ser comunicação: 
“Comunicação em Língua Portuguesa para a 7a. série do Primeiro Grau”, diz a capa do livro. Equivale ao nosso 
2o. ano de ginásio, é o que me informam. A autora se chama Magda Soares; atualmente uma das maiorais do 
livro didático, é o que também me informam. Este negócio de livro didático eu não entendo – só sei que o 
assunto é controverso e explosivo. A apresentação gráfica é admirável – disso entendo alguma coisa, afinal já 
fui editor. 
 E aqui termina meu entendimento: que diabo vem a ser isto? História em quadrinhos? Revista infantil? 
Passo os olhos pelo livro ricamente ilustrado a cores. Não é preciso de muito esforço para perceber que se trata 
nada mais nada menos que de uma revolução. Parece que enfim estão tentando tirar a camisa-de-força que 
tolhia o ensino de Português no Brasil. 
 A última flor do Lácio inculta e bela estava simplesmente murchando. O que se ensinava nos colégios 
em matéria de Português era apenas para nos fazer desprezar para sempre a nossa língua. Ninguém 
agüentava ler Garrett, Herculano, Camilo – para não falar em Vieira, Frei Luís de Souza ou mesmo Gil Vicente – 
depois de implacáveis análises lógicas a que eram submetidos. Dos portugueses, só o Eça escapou, e assim 
mesmo porque escritor realista não tinha vez. E quanto aos brasileiros, ficamos sabendo por Euclides da Cunha 
que o sertanejo era antes de tudo um forte; Os Sertões era antes de tudo um chato, principalmente a primeira 
parte. De Machado de Assis, foi-nos dado ler Soneto a Carolina, o poema A Mosca Azul e A Pêndula – só que 
sem a primeira frase do célebre capítulo: “Saí dali a saborear o beijo”. Quando poderiam muito bem nos ter 
iniciado nos segredos da prosa do grande lascivo e sua voluptuosidade do nada com o capítulo anterior do 
mesmo Brás Cubas sobre o próprio beijo. Ou o de Dom Casmurro: Capitu abrochando os lábios... 
 Isso quanto à prosa. E que dizer da poesia? Nunca conseguimos passar das armas e dos barões 
assinalados. Lusíadas se tornou para nós um pesadelo, porque ninguém sabia onde diabo se escondia o sujeito 
da oração naqueles versos retorcidos. É verdade que nos impingiam, de mistura com versinhos piegas de 
poetas medíocres, alguma coisa melhor de Bilac, Castro Alves, Raimundo Correia, Cruz e Souza. Mas não 
sabíamos distinguir o que era bom do que era ruim. O bisturi da análise sintática ia arrebentando versos, 
violentando palavras, assassinando a poesia dentro de nós. 
 E o velho professor sentado à minha frente com ar de desgosto, a dizer que poesia modernista é um 
negócio de pedra no meio do caminho e outras bobagens. Pois vejam só se isso lá é poesia: café-com-pão, 
Leitura e Produção de Textos – Profa. Ana Madalena Fontoura 
 
10 
 
café-com-pão, café-com-pão... Seu sorriso irônico se funde ante meus olhos ao da jovem professora do Leblon, 
lendo para os alunos encantados o mesmíssimo poema de Manuel Bandeira, que o livro de Magda Soares 
apresenta sob a sugestiva rubrica: “Vamos sentir a poesia das palavras”. 
 Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades – como dizia o dos barões assinalados: com uma 
professora como esta, no nosso tempo todos nós seríamos poetas. 
 
 Agora estou com 18 anos e sou eu o professor. No Instituto Padre Machado, em Belo Horizonte, 3o. ano 
ginasial: mais-que-perfeito do indicativo, pretérito imperfeito do subjuntivo, verbos defectivos. E eu tentando 
meter tudo isso na cabeça dos meninos. Tenho de ficar sentado, não posso fumar – a disciplina é rígida; mas 
como fazer com que aprendam uma coisa chamada preposição subordinada conjuncional ou o que venha a ser 
verbo incoativo? 
 Meu amigo Otto Lara Resende, filho do diretor, ensina neste mesmo colégio. É excelente professor, tem 
experiência de ensino, embora ainda não haja feito 20 anos. Um dia, a propósito do sentido de certas palavras, 
começou a falar aos alunos sobre Carlos Drummond de Andrade, foi deste a outros conhecidos seus, contou 
vários casos pessoais. Na lição seguinte os alunos pediram que continuasse e assim suas aulas passaram a 
ser um curso sobre a própria vida, tendo sempre em vista o uso das palavras e a eficiência da linguagem. 
 Era um precursor do que estou vendo hoje, fascinado, nesta aula a que vim assistir por curiosidade: 
uma professora cercada de alunos também fascinados, porque ela lhes ensina que as palavras têm vida e os 
inicia na arte da convivência através da comunicação. Ou, como diz Magda Soares no seu atraente livro: 
“Aprendemos a língua usando-a, não falando a respeito dela. Saber teoria gramatical – sintaxe, morfologia – 
não significa saber comunicar-se bem. Usar a língua e não teorizar sobre ela”. 
 Pois o velho professor do Ginásio Mineiro parece desconsolado, porque o aluno número 11 acaba de 
dizer que o se de uma oração é um pronome, quando está na cara que se trata de uma partícula apassivadora. 
 De minha parte, também sinto desconsolo, pois estou diante do quadro-negro escrevendo para os meus 
alunos uma lista de verbos irregulares, e, quando me volto, dou com um deles dormindo. Em vez de acordá-lo 
como faziam comigo, prefiro sair de mansinho, dizendo adeus para sempre aos demais alunos e ao ensino de 
Português. 
 E continuo na sala de aula: agora os meninos me envolvem de perguntas, sob a risonha e franca 
aprovação da professora, a quem chamam familiarmente de “tia” e “você”. Sinto uma ponta de melancolia, finda 
a aula, ao vê-los partir em alegre algazarra: gostaria de ser um deles. É com este sentimento que me despeço 
de sua linda mestra, e somos três: eu, o professor de 18 anos e o aluno número 11. 
 
In: Literatura Comentada. São Paulo: Abril Educação, 1980, p. 71/74. 
 
 
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Leitura e Produção de Textos – Profa. Ana Madalena Fontoura 
 
11 
 
 
 
 
Lixo 
Luís Fernando Veríssimo 
 
 Encontraram-se na área de serviço. Cada um com seu pacote de lixo. É a primeira vez que se 
falam. 
 - Bom dia... 
 - Bom dia. 
 - A senhora é do 610. 
 - E o senhor do 612. 
 - É. 
 - Eu ainda não lhe conhecia pessoalmente... 
 - Pois é... 
- Desculpe a minha indiscrição, mas tenho visto o seu lixo... 
- O meu quê? 
- O seu lixo. 
- Ah... 
- Reparei que nunca é muito. Sua família deve ser pequena... 
- Na verdade sou só eu. 
- Mmmm. Notei também que o senhor usa muita comida em lata. 
- É que eu tenho que fazer minha própria comida. E como não sei cozinhar... 
- Entendo. 
- A senhora também... 
- Me chame de você. 
- Você também perdoe a minha indiscrição, mas tenho visto alguns restos de comida em seu 
lixo. Champignons, coisas assim... 
- É que eu gosto muito de cozinhar. Fazer pratos diferentes. Mas como moro sozinha, às 
vezes sobra... 
- A senhora...Você não tem família? 
- Tenho, mas não aqui. 
- No Espírito Santo. 
- Como é que você sabe? 
- Vejo uns envelopes no seu lixo. Do Espírito Santo. 
PARTE 
II 
Encontros 
e 
desencontros 
Leitura e Produção de Textos – Profa. Ana Madalena Fontoura 
 
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- É. Mamãe escreve todas as semanas. 
- Ela é professora? 
- Isso é incrível! Como foi que você adivinhou? 
- Pela letra no envelope. Achei que era letra de professora. 
- O senhor não recebe muitas cartas. A julgar pelo seu lixo. 
- Pois é... 
- No outro dia tinha um envelope de telegrama amassado. 
- É. 
- Más notícias? 
- Meu pai. Morreu. 
- Sinto muito. 
- Ele já estava bem velhinho. Lá no Sul. Há tempos que não nós víamos. 
- Foi por isso que você recomeçou a fumar? 
- Como é que você sabe? 
- De um dia para o outro começaram a aparecer carteiras de cigarro amassadas no seu lixo. 
- É verdade. Mas consegui parar outra vez. 
- Eu, graças a Deus, nunca fumei. 
- Eu sei. Mas tenho visto uns vidrinhos de comprimido no seu lixo... 
- Tranqüilizantes. Foi uma fase. Já passou. 
- Você brigou com o namorado, certo? 
- Isso você também descobriu no lixo? 
- Primeiro o buquê de flores, com o cartãozinho, jogado fora. Depois, muito lenço de papel. 
- É, chorei bastante, mas já passou. 
- Mas hoje ainda tem uns lencinhos... 
- É que estou com um pouco de coriza. 
- Ah. 
- Vejo muita revista de palavras cruzadas no seu lixo. 
- É. Sim. Bem. Eu fico muito em casa. Não saio muito. Sabe como é. 
- Namorada? 
- Não. 
- Mas há uns dias tinha uma fotografia de mulher no seu lixo. Até bonitinha. 
- Eu estava limpando umas gavetas. Coisa antiga. 
- Você não rasgou a fotografia. Isso significa que, no fundo, você quer que ela volte. 
- Você já está analisando o meu lixo! 
- Não posso negar que o seu lixo me interessou. 
- Engraçado. Quando examinei o seu lixo, decidi que gostaria de conhecê-la. Acho que foi a 
poesia. 
- Não! Você viu meus poemas? 
- Vi e gostei muito. 
- Mas são muito ruins! 
- Se você achasse eles ruins mesmo, teria rasgado. Eles só estavam dobrados. 
- Se eu soubesse que você ia ler... 
- Só não fiquei com eles porque, afinal, estaria roubando. Se bem que, não sei: o lixo da 
pessoa ainda é propriedade dela? 
- Acho que não. Lixo é domínio público. 
Leitura e Produção de Textos – Profa. Ana Madalena Fontoura 
 
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- Você tem razão. Através do lixo, o particular se torna público. O que sobra da nossa vida 
privada se integra com a sobra dos outros. O lixo é comunitário. É a nossa parte mais social. Será 
isso? 
- Bom, aí você já está indo fundo demais no lixo. Acho que... 
- Ontem, no seu lixo... 
- O quê? 
- Me enganei, ou eram cascas de camarão? 
- Acertou. Comprei uns camarões graúdos e descasquei. 
- Eu adoro camarão. 
- Descasquei, mas ainda não comi. Quem sabe a gente pode... 
- Jantar juntos? 
- É. 
- Não quero dar trabalho. 
- Trabalho nenhum. 
- Vai sujar a sua cozinha. 
- Nada. Num instante se limpa tudo e põe os restos fora. 
- No seu lixo ou no meu? 
 
(In: O analista de Bagé. Porto Alegre: LPM Editores, 81a. ed., p. 83-86) 
 
 
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Aquele casal 
Carlos Drummond de Andrade 
 
Aquele casal, o marido me honra com suas confidências: 
- Ultimamente, a Elsa anda um pouco estranha. Não sei o que é, mas não me agrada a sua 
evolução. 
- Como assim? 
- Deu para usar estampados berrantes, de mau gosto, ela que era tão discreta no vestir. 
- É a moda. 
- Pode ser o que você quiser, porém minha mulher jamais se permitiu esses desfrutes. 
- Deixe Dona Elsa ser elegante. Não há desfrute em seguir o figurino. 
- Se fosse só o figurino. São as maneiras, os gestos. 
- Que é que tem as maneiras, os gestos? 
- A Elsa parece uma menina de quinze anos. Ficou com os movimentos mais leves, um ar 
desembaraçado que ela não tinha, e que não vai bem com uma senhora casada. 
- Posso dar opinião? As senhoras casadas não perdem a condição feminina, e pode até 
realçá-la por uma graça experiente. 
Fixou-me suspeitoso: 
- Que é que está insinuando? 
- Nada. A mulher casada desabrochou, não é mais um projeto, pode revelar melhor o encanto 
natural da personalidade. 
Leitura e Produção de Textos – Profa. Ana Madalena Fontoura 
 
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- Pois fique com suas teorias, que eu não quero saber de minha mulher revelar seu encanto a 
ninguém. 
- Perdão, eu... 
- Já sei. Estava querendo desculpar a Elsa. 
- Desculpar de quê? 
- De tudo que ela vem fazendo. 
- Eu ignoro tudo, e adivinho que não há nada senão... 
- Senão o quê? 
- Aquilo que o dicionário chama de ente de razão, uma fantasia completamente destituída de 
razão. 
- Acha então que estou maluco? 
- Acho que está sonhando coisas. 
- E a flor que ela trouxe ontem para a casa é sonho? Me diga: é sonho? 
- Que é que tem trazer uma flor para casa? 
- Veio do oculista e trouxe uma rosa. Acha direito? 
- Por que não? 
- Eu apertei, ela me disse que foi o oculista que deu a ela. Estava num vaso, ela achou bonita, 
ele deu. 
- E daí? 
- Então uma senhora casada vai ao oculista e o oculista lhe dá uma rosa? Que lhe parece? 
- Que ele é gentil, apenas. 
- Pois eu não vou nessa gentileza de oculista. Não há rosas nos consultórios de oftalmologia. 
E que houvesse. Tem propósito uma coisa dessas? Ela acabou chorando, dizendo que eu sou um 
bruto, um rinoceronte. Engraçado. Minha mulher vem com uma rosa para casa, uma rosa dada por 
um homem, e eu não devo achar ruim, eu tenho que achar muito natural. 
- Desde quando é proibido uma senhora ganhar flor de uma pessoa atenciosa? Que sentido 
erótico tem isso? 
- Tem muito. Principalmente se é rosa. Ora, não tente negar o significado das ordens florais 
entre dois sexos. O oculista não podia dar essa flor, nem ela podia aceitar. O pior é que não deve ter 
sido o oculista. 
- Quem foi, então? 
- Sei lá. Numa cidade do tamanho do Rio, posso saber quem deu uma rosa a minha mulher? 
- Vai ver que ela comprou na loja de flores da esquina, e disse aquilo só para fazer charminho. 
- Ela nunca fez isso. Se fez agora, foi para preparar terreno, quando chegar aqui uma corbelha 
de antúrios e hibiscos. 
- Não diga uma coisa dessas. 
- Digo o que penso. Estou inteiramente lúcido, só me conduzo pelo raciocínio. Repare no 
encadeamento: os vestidos modernos; os modos (só vendo a maneira dela se sentar no sofá); a rosa, 
que ela foi correndo levar para a mesinha de cabeceira do quarto. Cada uma dessas coisas é um 
indício; reunidas, são a evidência. 
- Permita que eu discorde. 
- Discorda sem argumentos. A Elsa não é mais a Elsa. Demora mais tempo no espelho. Fica 
olhando um ponto no espaço, abstrata. Depois, sorri. Estou decidido. 
- A quê? 
- Vou segui-la daqui por diante. Contrato um detetive. E logo que tenha a prova, me desquito. 
Leitura e Produção de Textos – Profa. Ana Madalena Fontoura 
 
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- Não vai ter prova nenhuma, juro. Ponho a mão no fogo por Dona Elsa. 
- Pensei que você fosse meu amigo. Fiz mal em me abrir. Vamos mudar de assunto que ela 
vem chegando. Mas repare só que os olhos de Capitu que ela tem, eu nunca havia reparado nisso! 
Esquecia-me de dizer que meu amigo tem 82 anos, e Dona Elsa, 79. 
 
 
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À beira-mar 
Stanislaw Ponte Preta 
 
Por que será que tem gente que vive se metendo com o que os outros estão fazendo? Pode 
haver coisa mais ingênua do que um menininho brincando com areia, na beira da praia? Não pode, 
né? Pois estávamos nós deitados a doirar a pele para endoidar mulher, sob o sol de Copacabana, em 
decúbito ventral (não o sol, mas nós) a ler “Maravilhas da Biologia”,do coleguinha cientista Benedict 
Knox Ston, quando um camarada se meteu com uma criança, que brincava com a areia. 
Interrompemos a leitura para ouvir a conversa. O menininho já estava com um balde desses 
de matéria plástica cheio de areia, quando o sujeito intrometido chegou e perguntou o que é que o 
menininho ia fazer com aquela areia. 
O menininho fungou, o que é muito natural, pois todo menininho que vai na praia funga, e 
explicou pro cara que ia jogar a areia num casal que estava numa barraca lá adiante. E apontou para 
a barraca. 
Nós olhamos, assim como olhou o cara que perguntava ao menininho. Lá, na barraca 
distante, a gente só conseguia ver dois pares de pernas ao sol. O resto estava escondido pela 
sombra, por trás da barraca. Eram dois pares, dizíamos, um de pernas femininas, o que se notava 
pela graça da linha, e outro masculino, o que se notava pela abundante vegetação capilar, se nos 
permitem o termo. 
- Eu vou jogar a areia naquele casal por causa de que eles estão se abraçando e se beijando 
muito – explicou o menininho, dando outra fungada. 
O intrometido sorriu complacente e veio com lição de moral. 
- Não faça isso, meu filho – disse ele (e depois viemos a saber que o menino era seu vizinho 
de apartamento). Passou a mão pela cabeça do garotinho e prosseguiu: - deixe o casal em paz. Você 
ainda é pequeno e não entende dessas coisas, mas é muito feio ir jogar areia em cima dos outros. 
O menininho olhou pro cara muito espantado e ainda insistiu: 
- Deixa eu jogar neles. 
O camarada fez menção de lhe tirar o balde da mão e foi mais incisivo: 
- Não senhor. Deixe o casal namorar em paz. Não vai jogar areia não. 
Leitura e Produção de Textos – Profa. Ana Madalena Fontoura 
 
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O menininho então deixou que ele esvaziasse o balde e disse: 
- Tá certo. Eu só ia jogar areia neles por causa do senhor. 
- Por minha causa? – estranhou o chato. – mas que casal é aquele? 
- O homem eu não sei – respondeu o menininho. – Mas a mulher é a sua. 
 
(PONTE PRETA, Stanislaw. O melhor de Stanislaw Ponte Preta. 
6ª ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 1994, p. 12.) 
 
 
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Mulher de Matar 
Fernando Sabino 
Olhou distraidamente para o relógio e deu um pulo na cadeira: Ih, cacilda, quatro e meia da 
manhã! Mais um pouco e encontraria a mulher acordada. 
Enquanto a noite durasse, nada a temer. Mas não podia se deixar se apanhar na rua quando 
a claridade do céu começava a anunciar o novo dia. A partir de então a mulher acordava a qualquer 
barulhinho. Houve um dia, por exemplo, em que mal havia tirado a roupa, ouviu a voz dela lá na 
cama, você vai sair a esta hora? Não teve remédio senão dizer que sim, tinha de estar bem cedo no 
escritório. E tornou a sair, foi mesmo para o escritório, dormir no sofá da sala de espera o restinho da 
manhã. 
-- Gente, eu tenho de me mandar. 
Chamou o garçom, pagou sua conta, despediu-se dos amigos que, já bêbados, nem deram 
por sua partida. Meio bebido, ele próprio, na rua firmou-se sobre as pernas e fez sinal para um táxi 
que passava. 
Alguém mais se adiantou e acenou para o mesmo táxi. Era uma mulher que também acabava 
de sair da boate. 
Pronto, pensou rápido: se perco este táxi, lá vai minha última chance de chegar ainda de 
noite. 
Quando o táxi parou, fingiu que não via a mulher e avançou para abrir a porta. Ela também 
avançou, tocou-lhe o braço: 
-- Por favor, estou com pressa! 
A voz, aflita, era educada e insinuante. Então ele reparou que era uma mulher bonita. Ainda 
assim resistiu: pediu-lhe também de maneira educada que o desculpasse, mas sua pressa era maior. 
A menos que seguissem juntos no táxi, e ele a deixaria no caminho, se é que iam para o mesmo lado. 
Vacilaram ambos: 
-- Se não se incomoda... 
-- Incômodo nenhum. 
-- Bem, nesse caso... 
Estavam nisso quando surgiu um grandalhão, de terno xadrez e segurou a mulher pelo braço. 
Ignorou a presença dele e falou com a voz carregada: 
-- Eu agorra te matarr. 
Leitura e Produção de Textos – Profa. Ana Madalena Fontoura 
 
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Notou que o homem tinha à ilharga algo avolumado sob o paletó, só podia ser revolver. E a 
manopla já avançando para sacá-lo. 
-- Não faça isso! -- gritou, com a mão espalmada no ar, como um guarda de trânsito: -- O 
senhor não pode fazer uma coisa dessas! 
-- O homem se voltou, como se o visse só então: 
-- Não poderr porr quê? Quem é senhorr? 
Agora era distrair o gringo e tomar o táxi: 
-- Tenho mulher e filhos em casa me esperando, e o senhor quer me envolver num crime? 
-- Sernhor não saberr que esta mulherr fazerr comigo. 
-- Seja o que for, não vá matá-la, pelo menos na minha vista. 
Mesmo que fosse embora, estaria envolvido: o chofer do táxi seria testemunha. E a mulher 
não tinha a menor reação, ia morrer sem um pio. O jeito era ficar: 
-- Do you speak English? 
-- Eu serr alemon. 
-- Neste caso vai em português mesmo. Vamos tomar um drinque. 
Dispensou o táxi e conduziu ambos pelo braço de volta à boate. 
Era dia claro quando se viu noutro táxi, em companhia da mulher e do alemão, reconciliados 
graças à sua intervenção. A idéia era deixá-la primeiro, para evitar que o homem, sozinho com ela, 
tivesse novo ímpeto homicida. 
Quando ela saltou, o alemão quis descer também, foi um custo contê-lo: 
-- Você prometeu, Fritz. 
Ela se foi, sã e salva, e os dois seguiram viagem. Ele convidou o alemão para tomar o café da 
manhã em sua casa -- única maneira de sua mulher acreditar naquela história: 
-- Quero que você conheça minha mulher. Esta sim, é de matar. 
 
 
Texto extraído do livro "O Gato sou Eu", Editora Record - Rio de Janeiro, 1983, pág.45. 
 
 
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O Homem Nu 
Fernando Sabino 
Ao acordar, disse para a mulher: 
— Escuta, minha filha: hoje é dia de pagar a prestação da televisão, vem aí o sujeito com a 
conta, na certa. Mas acontece que ontem eu não trouxe dinheiro da cidade, estou a nenhum. 
— Explique isso ao homem — ponderou a mulher. 
— Não gosto dessas coisas. Dá um ar de vigarice, gosto de cumprir rigorosamente as minhas 
obrigações. Escuta: quando ele vier a gente fica quieto aqui dentro, não faz barulho, para ele pensar 
que não tem ninguém. Deixa ele bater até cansar — amanhã eu pago. 
Pouco depois, tendo despido o pijama, dirigiu-se ao banheiro para tomar um banho, mas a 
mulher já se trancara lá dentro. Enquanto esperava, resolveu fazer um café. Pôs a água a ferver e 
abriu a porta de serviço para apanhar o pão. Como estivesse completamente nu, olhou com cautela 
para um lado e para outro antes de arriscar-se a dar dois passos até o embrulhinho deixado pelo 
padeiro sobre o mármore do parapeito. Ainda era muito cedo, não poderia aparecer ninguém. Mal 
seus dedos, porém, tocavam o pão, a porta atrás de si fechou-se com estrondo, impulsionada pelo 
vento. 
Aterrorizado, precipitou-se até a campainha e, depois de tocá-la, ficou à espera, olhando 
ansiosamente ao redor. Ouviu lá dentro o ruído da água do chuveiro interromper-se de súbito, mas 
ninguém veio abrir. Na certa a mulher pensava que já era o sujeito da televisão. Bateu com o nó dos 
dedos: 
— Maria! Abre aí, Maria. Sou eu — chamou, em voz baixa. 
Quanto mais batia, mais silêncio fazia lá dentro. 
Enquanto isso, ouvia lá embaixo a porta do elevador fechar-se, viu o ponteiro subir lentamente 
os andares... Desta vez, era o homem da televisão! 
Não era. Refugiado no lanço da escada entre os andares, esperou que o elevador passasse, e 
voltou para a porta de seu apartamento, sempre a segurar nas mãos nervosas o embrulho de pão: 
— Maria, por favor! Soueu! 
Desta vez não teve tempo de insistir: ouviu passos na escada, lentos, regulares, vindos lá de 
baixo... Tomado de pânico, olhou ao redor, fazendo uma pirueta, e assim despido, embrulho na mão, 
parecia executar um ballet grotesco e mal ensaiado. Os passos na escada se aproximavam, e ele 
sem onde se esconder. Correu para o elevador, apertou o botão. Foi o tempo de abrir a porta e 
PARTE 
III 
Saias 
justas 
Leitura e Produção de Textos – Profa. Ana Madalena Fontoura 
 
19 
 
entrar, e a empregada passava, vagarosa, encetando a subida de mais um lanço de escada. Ele 
respirou aliviado, enxugando o suor da testa com o embrulho do pão. 
Mas eis que a porta interna do elevador se fecha e ele começa a descer. 
— Ah, isso é que não! — fez o homem nu, sobressaltado. 
E agora? Alguém lá embaixo abriria a porta do elevador e daria com ele ali, em pêlo, podia 
mesmo ser algum vizinho conhecido... Percebeu, desorientado, que estava sendo levado cada vez 
para mais longe de seu apartamento, começava a viver um verdadeiro pesadelo de Kafka, 
instaurava-se naquele momento o mais autêntico e desvairado Regime do Terror! 
— Isso é que não — repetiu, furioso. 
Agarrou-se à porta do elevador e abriu-a com força entre os andares, obrigando-o a parar. 
Respirou fundo, fechando os olhos, para ter a momentânea ilusão de que sonhava. Depois 
experimentou apertar o botão do seu andar. Lá embaixo continuavam a chamar o elevador. Antes de 
mais nada: "Emergência: parar". Muito bem. E agora? Iria subir ou descer? Com cautela desligou a 
parada de emergência, largou a porta, enquanto insistia em fazer o elevador subir. O elevador subiu. 
— Maria! Abre esta porta! — gritava, desta vez esmurrando a porta, já sem nenhuma cautela. 
Ouviu que outra porta se abria atrás de si. 
Voltou-se, acuado, apoiando o traseiro no batente e tentando inutilmente cobrir-se com o 
embrulho de pão. Era a velha do apartamento vizinho: 
— Bom dia, minha senhora — disse ele, confuso. — Imagine que eu... 
A velha, estarrecida, atirou os braços para cima, soltou um grito: 
— Valha-me Deus! O padeiro está nu! 
E correu ao telefone para chamar a radiopatrulha: 
— Tem um homem pelado aqui na porta! 
Outros vizinhos, ouvindo a gritaria, vieram ver o que se passava: 
— É um tarado! 
— Olha, que horror! 
— Não olha não! Já pra dentro, minha filha! 
Maria, a esposa do infeliz, abriu finalmente a porta para ver o que era. Ele entrou como um 
foguete e vestiu-se precipitadamente, sem nem se lembrar do banho. Poucos minutos depois, 
restabelecida a calma lá fora, bateram na porta. 
— Deve ser a polícia — disse ele, ainda ofegante, indo abrir. 
Não era: era o cobrador da televisão. 
 
 
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A Velha Contrabandista 
Stanislaw Ponte Preta 
Diz que era uma velhinha que sabia andar de lambreta. Todo dia ela passava pela fronteira 
montada na lambreta, com um bruto saco atrás da lambreta. O pessoal da Alfândega - tudo malandro 
velho - começou a desconfiar da velhinha. 
Um dia, quando ela vinha na lambreta com o saco atrás, o fiscal da Alfândega mandou ela 
parar. A velhinha parou e então o fiscal perguntou assim pra ela: 
Leitura e Produção de Textos – Profa. Ana Madalena Fontoura 
 
20 
 
- Escuta aqui, vovozinha, a senha passa por aqui todo dia, com esse saco aí atrás. Que diabo 
a senhora leva nesse saco? 
A velhinha sorriu com os poucos dentes que lhe restavam e mais outros, que ela adquirira no 
odontólogo, e respondeu: 
- É areia! 
Aí quem sorriu foi o fiscal. Achou que não era areia nenhuma e mandou a velhinha saltar da 
lambreta para examinar o saco. A velhinha saltou, o fiscal esvaziou o saco e dentro só tinha areia. 
Muito encabulado, ordenou à velhinha que fosse em frente. Ela montou na lambreta e foi embora, 
com o saco de areia atrás. 
Mas o fiscal desconfiado ainda. Talvez a velhinha passasse um dia com areia e no outro com 
muamba, dentro daquele maldito saco. No dia seguinte, quando ela passou na lambreta com o saco 
atrás, o fiscal mandou parar outra vez. Perguntou o que é que ela levava no saco e ela respondeu 
que era areia, uai! O fiscal examinou e era mesmo. Durante um mês seguido o fiscal interceptou a 
velhinha e, todas as vezes, o que ela levava no saco era areia. 
Diz que foi aí que o fiscal se chateou: 
- Olha, vovozinha, eu sou fiscal de alfândega com 40 anos de serviço. Manjo essa coisa de 
contrabando pra burro. Ninguém me tira da cabeça que a senhora é contrabandista. 
- Mas no saco só tem areia! - insistiu a velhinha. E já ia tocar a lambreta, quando o fiscal 
propôs: 
- Eu prometo à senhora que deixo a senhora passar. Não dou parte, não apreendo, não conto 
nada a ninguém, mas a senhora vai me dizer: qual é o contrabando que a senhora está passando por 
aqui todos os dias? 
- O senhor promete que não "espáia"? - quis saber a velhinha. 
- Juro - respondeu o fiscal. 
- É lambreta. 
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A Estranha Passageira 
Stanislaw Ponte Preta 
- O senhor sabe? É a primeira vez que eu viajo de avião. Estou com zero hora de vôo - e riu 
nervosinha, coitada. 
Leitura e Produção de Textos – Profa. Ana Madalena Fontoura 
 
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Depois me pediu que eu me sentasse ao seu lado, pois me achava muito calmo e isto iria 
fazer-lhe bem. Lá se ia a oportunidade de ler o romance policial que eu comprara no aeroporto, para 
me distrair na viagem. Suspirei e fiz o bacano respondendo que estava às suas ordens. 
Madama entrou no avião sobraçando um monte de embrulhos, que segurava 
desajeitadamente. Gorda como era, custou a se encaixar na poltrona e arrumar todos aqueles 
pacotes. Depois não sabia como amarrar o cinto e eu tive que realizar essa operação em sua farta 
cintura. 
Afinal estava ali pronta para viajar. Os outros passageiros estavam já se divertindo às minhas 
custas, a zombar do meu embaraço ante as perguntas que aquela senhora me fazia aos berros, 
como se estivesse em sua casa, entre pessoas íntimas. A coisa foi ficando ridícula: 
- Para que esse saquinho aí? - foi a pergunta que fez, num tom de voz que parecia que ela 
estava no Rio e eu em São Paulo. 
- É para a senhora usar em caso de necessidade - respondi baixinho. 
Tenho certeza de que ninguém ouviu minha resposta, mas todos adivinharam qual foi, porque 
ela arregalou os olhos e exclamou: 
- Uai... as necessidades neste saquinho? No avião não tem banheiro? 
Alguns passageiros riram, outros - por fineza - fingiram ignorar o lamentável equívoco da 
incômoda passageira de primeira viagem. Mas ela era um azougue (embora com tantas carnes 
parecesse mais um açougue) e não parava de badalar. Olhava para trás, olhava para cima, mexia na 
poltrona e quase levou um tombo, quando puxou a alavanca e empurrou o encosto com força, caindo 
para trás e esparramando embrulhos para todos os lados. 
O comandante já esquentara os motores e a aeronave estava parada, esperando ordens para 
ganhar a pista de decolagem. Percebi que minha vizinha de banco apertava os olhos e lia qualquer 
coisa. Logo veio a pergunta: 
- Quem é essa tal de emergência que tem uma porta só pra ela? 
Expliquei que emergência não era ninguém, a porta é que era de emergência, isto é, em caso 
de necessidade, saía-se por ela. 
Madama sossegou e os outros passageiros já estavam conformados com o término do 
"show". Mesmo os que mais de divertiam com ele resolveram abrir os jornais, revistas ou se 
acomodarem para tirar uma pestana durante a viagem. 
Foi quando madama deu o último vexame. Olhou pela janela (ela pedira para ficar do lado da 
janela para ver a paisagem) e gritou: 
- Puxa vida!!! 
Todos olharam para ela, inclusive eu. Madama apontou para a janela e disse: 
- Olha lá embaixo. 
Leitura e Produção de Textos – Profa. Ana Madalena Fontoura22 
 
Eu olhei. E ela acrescentou: - Como nós estamos voando alto, moço. Olha só... o pessoal lá 
embaixo até parece formiga. 
Suspirei e lasquei: 
- Minha senhora, aquilo são formigas mesmo. O avião ainda não levantou vôo. 
 
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Hierarquia 
Millôr Fernandes 
 
 Diz que um leão enorme ia andando chateado, não muito rei dos animais, porque tinha 
acabado de brigar com a mulher e esta lhe dissera poucas e boas. Ainda com as palavras da mulher 
o aborrecendo, o leão subitamente se defrontou com um pequeno rato, o ratinho mais menos que ele 
já tinha visto. Pisou-lhe a cauda e, enquanto o rato forçava inutilmente para fugir, o leão gritou: 
“Miserável criatura, estúpida, ínfima, vil, torpe: não conheço na criação nada mais insignificante e 
nojento. Vou te deixar com vida apenas para que você possa sofrer toda a humilhação do que lhe 
disse, você, desgraçado, inferior, mesquinho, rato!” E soltou-o. O rato correu o mais que pôde, mas, 
quando já estava a salvo, gritou pro leão: “Será que Vossa Excelência poderia escrever isso pra 
mim? Vou me encontrar agora mesmo com uma lesma que eu conheço e quero repetir isso pra ela 
com as mesmas palavras!” 
 
MORAL: Afinal, ninguém é tão inferior assim. 
SUBMORAL: Nem tão superior, por falar nisso. 
 
 
In: Fábulas Fabulosas. Rio de Janeiro: Nórdica, 1985. 
 
Leitura e Produção de Textos – Profa. Ana Madalena Fontoura 
 
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Eu sei, mas não devia 
Marina Colasanti 
Eu sei que a gente se acostuma. 
Mas não devia. 
A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não as 
janelas ao redor. E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha 
para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas, logo se 
acostuma a acender mais cedo a luz. E porque à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o 
ar, esquece a amplidão. 
A gente se acostuma a acordar de manhã, sobressaltado porque está na hora. 
A tomar café correndo porque está atrasado. A ler jornal no ônibus porque não pode perder o 
tempo da viagem. A comer sanduíches porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. 
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia. A gente se acostuma a abrir a janela e a ler sobre 
a guerra. E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E aceitando os 
números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E aceitando as negociações de paz, aceitar 
ler todo dia de guerra, dos números da longa duração. A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e 
ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser 
ignorado quando precisava tanto ser visto. A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o 
que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que paga. E a ganhar menos do que precisa. E a 
fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E 
a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com o que pagar nas filas em que se 
cobra. 
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes, a abrir as revistas e ver anúncios. A ligar 
a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema, a engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, 
desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos. 
A gente se acostuma à poluição. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos 
levam na luz natural. Às besteiras das músicas, às bactérias da água potável. À contaminação da 
PARTE 
IV 
Lições 
de e 
para a 
vida 
 
Leitura e Produção de Textos – Profa. Ana Madalena Fontoura 
 
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água do mar. À luta. À lenta morte dos rios. E se acostuma a não ouvir passarinhos, a não colher 
frutas do pé, a não ter sequer uma planta. 
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não 
perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está 
cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a 
gente só molha os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola 
pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir 
cedo e ainda satisfeito porque tem sono atrasado. A gente se acostuma para não se ralar na 
aspereza, para preservar a pele. 
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para 
poupar o peito. 
A gente se acostuma para poupar a vida. 
Que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar, se perde de si mesma. 
 
 
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Espírito natalino 
Moacyr Scliar 
 “Homem disfarçado de Papai Noel 
tenta matar publicitária em SP.” 
(Caderno Cotidiano – FSP – 18/12/01) 
 
 
Primeira coisa que ele fez, ao chegar em casa, foi tirar a roupa de Papai Noel: estava muito 
quente, suava em bicas. Também queixou-se de dor na coluna. Isso é por causa do saco que você 
carrega, observou a mulher. De fato pesava bastante, o tal saco. A razão ficou óbvia quando ele 
esvaziou o conteúdo sobre a mesa: revólveres, granadas, submetralhadoras, vários pentes de 
munição. Já não dá para sair de casa sem um arsenal resmungou. 0 seu mau humor era tão óbvio 
que ela tentou amenizá-lo, puxando conversa. Como foi o seu dia, perguntou. 
— Um desastre foi a azeda resposta. — Mais uma vez errei a pontaria. Já é a segunda vez 
nesta semana. 
— Isto é o cansaço — disse ela. 
— Você precisa de um repouso. Amanhã você vai ficar em casa, não vai? 
— De que jeito? Tenho trabalho 
— Amanhã? No dia de Natal? 
— O que é que você quer? É a minha última chance de usar a fantasia de Papai Noel Tenho 
de aproveitar. 
Suspirou: 
— Vida de pistoleiro de aluguel é assim mesmo, mulher. Natal, Ano Novo, essas coisas para 
nós não existem. Primeiro a obrigação. Depois a celebração. 
Leitura e Produção de Textos – Profa. Ana Madalena Fontoura 
 
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Ela ficou pensando um instante. — Neste caso — disse —, vamos antecipar a nossa festinha 
de Natal Vou lhe dar o seu presente. 
Abriu um armário e de lá tirou um caprichado embrulho. Surpreso, o homem o abriu com mãos 
trêmulas. E aí o seu rosto se iluminou: 
— Um colete à prova de balas! Exatamente o que eu queria! Como é que você adivinhou? 
— Ora — disse ela, modesta, afinal de contas eu conheço você há um bocado de tempo. 
Ele examinava o colete, maravilhado. E aí notou que ele era todo enfeitado com minúsculos 
desenhos. 
— O que é isto? perguntou intrigado. 
Ela explicou: eram pequenas árvores de Natal e desenhos do Papai Noel, trabalho de uma habilidosa 
bordadeira nordestina: 
— Para você lembrar de mim quando estiver trabalhando. 
E le começou a chorar baixinho. Em silêncio, ela o abraçou. Compreendia perfeitamente o que 
se passava com ele. Ninguém é imune ao espírito natalino. 
 
(Texto extraído do jornal “Folha de São Paulo”, São Paulo, edição de 24/12/2001, publicado 
com o título "Espírito natalino, 2001. 
Moacyr Scliar, às segundas-feiras, escreve um texto de ficção baseado em notícias publicadas 
no jornal.) 
 
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História de um Nome 
Stanislaw Ponte Preta 
No capítulo dos nomes difíceis têm acontecido coisas das mais pitorescas. Ou é um camarada 
chamado Mimoso, que tem físico de mastodonte, ou é um sujeito fraquinho e insignificante chamado 
Hércules. Os nomes difíceis, principalmente os nomes tirados de adjetivos condizentes com seus 
portadores, são raríssimos, e é por isso que minha avó a paterna - dizia: 
— Gente honesta, se for homem deve ser José, se for mulher, deve ser Maria! 
É verdade que Vovó nãotinha nada contra os joões, paulos, mários, odetes e — vá lá — 
fidélis. A sua implicância era, sobretudo, com nomes inventados, comemorativos de um 
acontecimento qualquer, como era o caso, muito citado por ela, de uma tal Dona Holofotina, batizada 
no dia em que inauguraram a luz elétrica na rua em que a família morava. 
Acrescente-se também que Vovó não mantinha relações com pessoas de nomes tirados 
metade da mãe e metade do pai. Jamais perdoou a um velho amigo seu — o "Seu" Wagner — 
porque se casara com uma senhora chamada Emília, muito respeitável, aliás, mas que tivera o mau-
gosto de convencer o marido de batizar o primeiro filho com o nome leguminoso de Wagem — "wag" 
de Wagner e "em" de Emília. É verdade que a vagem comum, crua ou ensopada, será sempre com 
"v", enquanto o filho de "Seu" Wagner herdara o "w" do pai. Mas isso não tinha nenhuma importância: 
a consoante não era um detalhe bastante forte para impedir o risinho gozador de todos aqueles que 
eram apresentados ao menino Wagem. 
Leitura e Produção de Textos – Profa. Ana Madalena Fontoura 
 
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Mas deixemos de lado as birras de minha avó — velhinha que Deus tenha, em Sua santa 
glória — e passemos ao estranho caso da família Veiga, que morava pertinho de nossa casa, em 
tempos idos. 
"Seu" Veiga, amante de boa leitura e cuja cachaça era colecionar livros, embora colecionasse 
também filhos, talvez com a mesma paixão, levou sua mania ao extremo de batizar os rebentos com 
nomes que tivessem relação com livros. Assim, o mais velho chamou-se Prefácio da Veiga; o 
segundo, Prólogo; o terceiro, Índice e, sucessivamente, foram nascendo o Tomo, o Capítulo e, por 
fim, Epílogo da Veiga, caçula do casal. 
Lembro-me bem dos filhos de "Seu" Veiga, todos excelentes rapazes, principalmente o 
Capítulo, sujeito prendado na confecção de balões e papagaios. Até hoje (é verdade que não me 
tenho dedicado muito na busca) não encontrei ninguém que fizesse um papagaio tão bem quanto 
Capítulo. Nem balões. Tomo era um bom extrema-direita e Prefácio pegou o vício do pai - vivia 
comprando livros. Era, aliás, o filho querido de "Seu" Veiga, pai extremoso, que não admitia piadas. 
Não tinha o menor senso de humor. Certa vez ficou mesmo de relações estremecidas com meu pai, 
por causa de uma brincadeira. "Seu" Veiga ia passando pela nossa porta, levando a família para o 
banho de mar. Iam todos armados de barracas de praia, toalhas etc. Papai estava na janela e, ao 
saudá-lo, fez a graça: 
— Vai levar a biblioteca para o banho? "Seu" Veiga ficou queimado durante muito tempo. 
Dona Odete — por alcunha "A Estante" — mãe dos meninos, sofria o desgosto de ter tantos 
filhos homens e não ter uma menina "para me fazer companhia" - como costumava dizer. Acreditava, 
inclusive, que aquilo era castigo de Deus, por causa da idéia do marido de botar aqueles nomes nos 
garotos. Por isso, fez uma promessa: se ainda tivesse uma menina, havia de chamá-la Maria. 
As esperanças já estavam quase perdidas. Epílogozinho já tinha oito anos, quando a vontade 
de Dona Odete tornou-se uma bela realidade, pesando cinco quilos e mamando uma enormidade. Os 
vizinhos comentaram que "Seu" Veiga não gostou, ainda que se conformasse, com a vinda de mais 
um herdeiro, só porque já lhe faltavam palavras relacionadas a livros para denominar a criança. 
Só meses depois, na hora do batizado, o pai foi informado da antiga promessa. Ficou furioso 
com a mulher, esbravejou, bufou, mas — bom católico — acabou concordando em parte. E assim, 
em vez de receber somente o nome suave de Maria, a garotinha foi registrada, no livro da paróquia, 
após a cerimônia batismal, como Errata Maria da Veiga. 
Estava cumprida a promessa de Dona Odete, estava de pé a mania de "Seu" Veiga. 
Texto extraído do livro "A Casa Demolida", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1963, pág. 175. 
 
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Prova de amor 
(À maneira dos... turcos) 
Millôr Fernandes 
 
 Na ensolarada manhã de abril, a jovem vinha andando pelo campo, trazendo à cabeça a bilha 
d’água fresca recém-apanhada no córrego. Tentava aqui e ali proteger-se (sem deixar de andar) 
nesta e naquela sombra das árvores que margeavam a estrada gramada. Assobiava uma melodia 
entre triste e alegre. Eis senão quando, do alto da colina, num só galope, desce, com a fúria que se 
acende na raça ao meio-dia, um Fauno, completo e acabado, no corpo, no espírito e na flautinha. 
Facetamente pôs-se a acompanhar a senhorita no passo e na melodia. Ela tentou não lhe dar 
atenção, fingiu ignorá-lo, parou de assobiar, pensou em outra coisa. O Fauno então disse, num tom 
de voz de ardor e sinceridade incomparáveis: “Tenho paixão por você. Amo-a como ninguém jamais 
amou ninguém. Não poderia viver sem você.” E a moça respondeu: “Não vejo por que alguém se 
apaixonaria por mim dessa maneira, eu sem graça e sem beleza, quando logo ali atrás vem minha 
irmã, que é a mulher mais linda e encantadora de Bathgarem.” O Fauno olhou e não viu vivalma: “Por 
que me engana dessa maneira?” – perguntou. “Não vejo ninguém.” “Bem” – respondeu a senhoritinha 
– “porque queria experimentar a sua sinceridade. Se você me amasse realmente, não olharia para 
trás”. 
 
In: Fábulas Fabulosas. Rio de Janeiro: Nórdica, 1985. 
 
 
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Como nasce uma história 
Fernando Sabino 
Quando cheguei ao edifício, tomei o elevador que serve do primeiro ao décimo quarto andar. 
Era pelo menos o que dizia a tabuleta no alto da porta. 
— Sétimo — pedi. 
Eu estava sendo aguardado no auditório, onde faria uma palestra. Eram as secretárias 
daquela companhia que celebravam o Dia da Secretária e que, desvanecedoramente para mim, 
haviam-me incluído entre as celebrações. 
A porta se fechou e começamos a subir. Minha atenção se fixou num aviso que dizia: 
 
É expressamente proibido os funcionários, no ato da subida, utilizarem os elevadores para 
descerem. 
 
Desde o meu tempo de ginásio sei que se trata de problema complicado, este do infinito 
pessoal. Prevaleciam então duas regras mestras que deveriam ser rigorosamente obedecidas, 
quando se tratava do uso deste traiçoeiro tempo de verbo. O diabo é que as duas não se 
complementavam: ao contrário, em certos casos francamente se contradiziam. Uma afirmava que o 
sujeito, sendo o mesmo, impedia que o verbo se flexionasse. Da outra infelizmente já não me 
lembrava. Bastava a primeira para me assegurar de que, no caso, havia um clamoroso erro de 
concordância. 
Mas não foi o emprego pouco castiço do infinito pessoal que me intrigou no tal aviso: foi estar 
ele concebido de maneira chocante aos delicados ouvidos de um escritor que se preza. 
Ah, aquela cozinheira a que se refere García Márquez, que tinha redação própria! Quantas 
vezes clamei, como ele, por alguém que me pudesse valer nos momentos de aperto, qual seja o de 
redigir um telegrama de felicitações. Ou um simples aviso como este: 
 
É expressamente proibido os funcionários... 
 
Eu já começaria por tropeçar na regência, teria de consultar o dicionário de verbos e regimes: 
não seria aos funcionários? E nem chegaria a contestar a validade de uma proibição cujo aviso se 
localizava dentro do elevador e não do lado de fora: só seria lido pelos funcionários que já 
houvessem entrado e portanto incorrido na proibição de pretender descer quando o elevador 
estivesse subindo. Contestaria antes a maneira ambígua pela qual isto era expresso: 
PARTE 
V 
Como 
escrever 
uma 
crônica 
Leitura e Produção de Textos – Profa. Ana Madalena Fontoura 
 
29 
 
 
...no ato dasubida, utilizarem os elevadores para descerem. 
 
Qualquer um, não sendo irremediavelmente burro, entenderia o que se pretende dizer neste 
aviso. Pois um tijolo de burrice me baixou na compreensão, fazendo com que eu ficasse revirando a 
frase na cabeça: descerem, no ato da subida? Que quer dizer isto? E buscava uma forma simples e 
correta de formular a proibição: 
 
É proibido subir para depois descer. 
 
É proibido subir no elevador com intenção de descer. 
 
É proibido ficar no elevador com intenção de descer, quando ele estiver subindo. 
 
Descer quando estiver subindo! Que coisa difícil, meu Deus. Quem quiser que experimente, 
para ver só. Tem de ser bem simples: 
 
Se quiser descer, não torne o elevador que esteja subindo. 
 
Mais simples ainda: 
 
Se quiser descer, só tome o elevador que estiver descendo. 
 
De tanta simplicidade, atingi a síntese perfeita do que Nelson Rodrigues chamava de óbvio 
ululante, ou seja, a enunciação de algo que não quer dizer absolutamente nada: 
 
Se quiser descer, não suba. 
 
Tinha de me reconhecer derrotado, o que era vergonhoso para um escritor. 
Foi quando me dei conta de que o elevador havia passado do sétimo andar, a que me 
destinava, já estávamos pelas alturas do décimo terceiro. 
— Pedi o sétimo, o senhor não parou! — reclamei. 
O ascensorista protestou: 
— Fiquei parado um tempão, o senhor não desceu. 
Os outros passageiros riram: 
— Ele parou sim. Você estava aí distraído. 
— Falei três vezes, sétimo! sétimo! sétimo!, e o senhor nem se mexeu — reafirmou o 
ascensorista. 
— Estava lendo isto aqui — respondi idiotamente, apontando o aviso. 
Ele abriu a porta do décimo quarto, os demais passageiros saíram. 
— Convém o senhor sair também e descer noutro elevador. A não ser que queira ir até o 
último andar e na volta descer parando até o sétimo. 
— Não é proibido descer no que está subindo? 
Ele riu: 
— Então desce num que está descendo. 
— Este vai subir mais? — protestei: — Lá embaixo está escrito que este elevador vem só até 
o décimo quarto. 
— Para subir. Para descer, sobe até o último. 
— Para descer sobe? 
Eu me sentia um completo mentecapto. Saltei ali mesmo, como ele sugeria. Seguindo seu 
conselho, pressionei o botão, passando a aguardar um elevador que estivesse descendo. 
Leitura e Produção de Textos – Profa. Ana Madalena Fontoura 
 
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Que tardou, e muito. Quando finalmente chegou, só reparei que era o mesmo pela cara do 
ascensorista, recebendo-me a rir: 
— O senhor ainda está por aqui? 
E fomos descendo, com parada em andar por andar. Cheguei ao auditório com 15 minutos de 
atraso. Ao fim da palestra, as moças me fizeram perguntas, e uma delas quis saber como nascem as 
minhas histórias. Comecei a contar: 
— Quando cheguei ao edifício, tomei o elevador que serve do primeiro ao décimo quarto 
andar. Era pelo menos o que dizia a tabuleta no alto da porta. 
 
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A Aposta do Barão 
L. F Veríssimo 
Quem dentre vós nunca sonhou em criar o seu próprio agente secreto inglês que atire o 
primeiro James Bond. Certa vez, pensei em inventar um superagente brasileiro, Jaime Alguma Coisa, 
e escrever suas aventuras no mundo da intriga internacional, mas não deu certo. Por alguma razão, 
sempre que eu começava a descrevê-lo, saía um tipo magro, baixo, orelhudo, de bigodinho, o único 
no departamento a torcer pelo América, e que enjoava em avião. Sua classificação de 00664853 
barra 7 lhe permitia andar armado, virar a gola do seu impermeável para cima e fazer um lanche por 
dia à custa do departamento, com comprovante. Na primeira página da primeira aventura que 
imaginei para ele, o chefe da espionagem, seu superior, examina o dossiê de um caso dificílimo que 
tem à sua frente, morde a haste do cachimbo e decide: "Este é um caso para o jaimito". Parei aí 
mesmo. Nada de muito sério - e certamente não aquele caso de espionagem atômica, envolvendo a 
própria sobrevivência do país, além de dezessete anões iugoslavos e uma falsa condessa - podia ser 
confiado ao jaimito. Além disso, a sua arma secreta, um isqueiro com sessenta e quatro utilidades 
diferentes, todas mortíferas, falhava até para acender cigarro. Desisti do jaimito. Agente secreto 
inglês tem que ser inglês. Como este que acabei de criar. 
Peter Vest-Pocket encurtou a Segunda Guerra Mundial em oito meses ("e três dias", 
acrescenta ele, com característica atenção ao detalhe), quando decifrou para os aliados os códigos 
do alto-comando alemão - embora tivesse só cinco anos incompletos na ocasião. Seu sorriso 
enigmático foi responsável por dez tentativas de suicídio em todo o mundo, nove mulheres e um 
bailarino russo que engoliu a própria sapatilha. É a maior autoridade mundial em peixes tropicais, 
manuscritos medievais da Europa central e a vida de Mae West. Suplementa o seu salário do 
governo jogando pôquer, no qual desenvolveu um método infalível para ganhar sempre: trapaceia. 
Foi no famoso salão cor-de-vômito, o Puke Room do Harbinger's em Londres, onde você só 
entra apresentando ao porteiro uma nota assinada pelo secretário do Tesouro da Inglaterra, de 
preferência de mil libras, que Vest-Pocket viu-se, certa noite, frente a frente com o único homem no 
mundo que temia: o Barão Guy de La Recherche. Na mesa, estavam ainda um gordo ex-ministro 
venezuelano que suava muito, um emir árabe com óculos tão escuros que precisava de um secretário 
para lhe dizer que cartas tinha na mão e o rei das batatas chips dos Estados Unidos. Mas Vest-
Pocket os ignorou. Seu adversário era De La Recherche. 
Recostado na cadeira com a mão direita erguida ao lado do rosto, segurando um dos charutos 
que Fidel lhe mandava semanalmente com aborrecidos bilhetes cheios de admiração juvenil, Vest-
Pocket jogava displicentemente com a mão esquerda. Só variava a posição quando dava as cartas e 
aí prendia o charuto entre os dentes e usava as duas mãos para embaralhar, servir a mesa e tirar 
cartas da manga quando a situação o exigisse. Periodicamente, levava à boca um copo de 
Leitura e Produção de Textos – Profa. Ana Madalena Fontoura 
 
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aguardente feita especialmente para ele, na Bolívia, com a saliva de jovens índias que mascavam a 
raiz sagrada do peiote - e duas gotas de Beneditino. 
Às quatro horas da madrugada, tendo mantido o jogo razoavelmente equilibrado até ali para 
não espantar ninguém, Vest-Pocket viu a sua chance. O barão, que sempre passava um dedo pelo 
seu afilado nariz quando tinha um bom jogo nas mãos, esfregava o nariz como nunca. E o secretário 
que lia as cartas para o emir acabara de segredar alguma coisa no ouvido do seu mestre que o f izera 
sorrir, quase imperceptivelmente. O venezuelano e o americano estavam de fora. Chegara a hora. 
Tudo dependia daquela jogada. Vest-Pocket dava as cartas. 
O barão não quis cartas. O emir pediu uma, que obviamente o agradou. Peter descartou duas 
e tirou da manga as duas que faltavam para o seu royal street flush. 
O emir não tinha fichas suficientes para apostar e colocou na mesa um cheque de cem mil 
libras. 
"Suas cem", disse o barão, tirando um livro de cheques do bolso, "e mais cem." 
"As suas duzentas", disse Peter, "e mais quatrocentas.” 
"As suas seiscentas", disse o emir, "e mais o número da minha conta na Suíça e uma 
autorização para sacar tudo." 
"Não aceitamos hipóteses, queremos cifras", disse Peter, com tamanha autoridade que o emir 
não disse outra palavra. "Barão?" 
"As suas seiscentas. . .", começou o barão, "e o que quiser, meu amigo. Minha propriedade 
no Loire? A minha ilha nas Caraíbas? Meus cavalos na Argentina? Diga você." 
"Quero a sua receita de mousse de salmão." 
"O quê? Impossível. É um segredo de família. Ninguém mais a conhece. O meu prato 
supremo." 
Exatamente, pensou Peter Vest-Pocket. Enquanto o Barão de La Recherche

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