Buscar

O valor do amanha CAP6

Prévia do material em texto

6. A dilatação da dimensão temporal
O desejo incita à ação; a percepção do tempo incita o conflito entre desejos.1 A troca intertemporal no mundo natural resulta de uma seleçãoex post. São padrões metabólicos e comportamentais cujos efeitos, repetidamente submetidos ao crivo da sobrevivência e aptidão reprodutiva no processo evolutivo, provaram o seu valor no laboratório da vida. Com a entrada do animal humano em cena, o enredo das trocas intertemporais deixa de ser integralmente determinado de fora, ou seja, pelos efeitos cumulativos das vantagens e desvantagens que confere. Uma nova e revolucionária porta se abre: a escolha ex ante. À realidade datroca junta-se agora a possibilidade da escolha intertemporal.
A novidade é clara e pode ser diretamente verificada por qualquer um. A dieta é um prato cheio. Uma vez ingerido o doce, a formação de gordura no tecido adiposo do corpo é algo que nos acontece: nada pode ser feito. O soma cuida de si. Comer (ou não) o tal doce, entretanto, é algo que fazemos: uma decisão que, ao contrário dos processos metabólicos imunes à nossa vontade e escolha conscientes, parte de nós. Trata-se aqui de uma ação passível de deliberação e aberta, em princípio, à interferência dos estados mentais de quem decide se vai (ou não) comer — suas crenças, preferências e juízos de valor. A percepção consciente do tempo cinde a unidade natural do desejo. O doce atrai; o espectro da obesidade assombra. Desfrutar ou abster-se? Aquele que deseja mas não age (ou retarda a ação), distancia-se de si mesmo: pondera, calcula, compara e elege um amanhã.
Espaço privilegiado da escolha intertemporal é o mundo do trabalho. Como veremos em maior detalhe na quarta parte, com o advento da agricultura, o avanço da divisão do trabalho e a generalização das trocas mediadas pelo dinheiro, o animal humano deixou de viver, por assim dizer, “da mão para a boca”. Toda a atividade produtiva passou a ser, de forma crescente, o circuito dos meios, ou seja, um território regido pela suspensão do impulso de gratificação imediata dos desejos em prol da satisfação futura de outros fins — uma operação nem sempre aprazível a que os italianos chamam, sintomaticamente, “fatica” (“fadiga”) e nós, brasileiros, “batente”.2 Abre-se assim um hiato — que com o tempo se tornou um vasto, intrincado e por vezes ameaçador sistema de trocas comerciais e financeiras de âmbito planetário — separando, de um lado, aquilo que se faz no presente para ganhar a vida (trabalho) e, de outro, aquilo que efetivamente se almeja para poder viver (satisfação das necessidades e desejos). Desse divórcio entre os meios e os fins nasce o universo da racionalidade na vida prática.
O animal humano que a natureza produziu não se resignou à sua condição natural. Ele se distanciou gradualmente de suas pulsões instintivas e passou a submetê-las, de forma mais ou menos deliberada e sistemática, ao filtro de suas escolhas e visões do amanhã. O pano de fundo dessa mudança radical foi a ampliação da percepção do tempo — um extraordinário alargamento da faculdade de imaginar o futuro e reter na memória a experiência passada visando conhecer e modificar o amanhã. A progressiva conquista da dimensão temporal levou a uma crescente abstração do momento vivido: ao refreamento da tirania do aqui-e-agora e ao lugar de honra que passado e futuro vieram a ocupar em nossa vida mental. Memória e expectativa — realidades virtuais — passaram a modular o apelo das certezas sensíveis e desejos circunstanciais. A imaginação desbravou o futuro, povoou de temores e esperanças o tempo vindouro e colonizou o infinito. A “outra vida” dos religiosos e metafísicos, não menos que a “posteridade” de poetas, criadores e mártires seculares, são pontos extremos desse processo.
Abstrair o aqui-e-agora significa habitar em pensamento o que não é: interiorizar-se. Do mais caprichoso e rarefeito devaneio juvenil à mais austera dedução matemática, todo o universo da interioridade subjetiva pressupõe um recuo do império dos sentidos e uma suspensão da imediatidade do instinto. O ser humano, como nota Paul Valéry, torna-se desse modo herdeiro e refém do tempo — “o animal cuja principal morada está no passado ou no futuro”. Um ser que age, na maior parte das vezes, sem nenhum alvo ou motivo concretamente visível, “como se estivesse mirando outro mundo, como se estivesse respondendo à influência de coisas invisíveis e de seres ocultos”. Um animal, em suma, que “sente continuamente a necessidade daquilo que não existe”.3
A realidade e a força de nossa capacidade de abstrair o presente podem ser claramente evidenciadas pelo seu colapso. Sensações intensas de dor e de prazer, como é fácil notar, absolutizam o momento e obliteram a percepção de passado e futuro: a tirania do aqui-e-agora volta a reinar soberana. A vivacidade da sensação suga e sequestra o foco de nossa atenção consciente, eliminando qualquer vestígio de perspectiva na percepção temporal. A voragem do êxtase e a irritação da dor restauram no animal humano o desejo uno e o primado de um presente quase absoluto. “Uma pequena ardência sentida”, afirma Locke, “nos impulsiona com mais força do que grandes prazeres prospectivos nos atraem ou cativam.”4
A fome ilustra bem isso. Viver não admite solução de continuidade. Se você estiver passando fome, sem perspectiva de refeição à vista e com o estômago ardendo no vazio, não há ganho prospectivo ou prêmio de juro que o faça abrir mão de alimentar-se agora. Um bocado de arroz, desde que imediatamente disponível, valerá mais que um fino banquete, regado a vinho, mas só no mês que vem. O preço da espera, não importa a promessa de juros, seria fatal. Um mendigo esfomeado a quem se dá a chance de uma refeição boca-livre vai se entupir de comida e, ainda por cima, enfiar o que puder nos bolsos. Quando outra vez? A guerrilha da vida é, para ele, o pão nosso de cada dia — um dia de cada vez.
No extremo oposto desse mesmo eixo, vale notar, é compreensível que os adeptos da meditação e da espiritualidade busquem evitar fortes oscilações hedônicas e prefiram um ideal de vida assentado não no máximo de prazer, mas na ausência de dor. Tanto o prazer como a dor tendem a atrair sobre si nossa atenção consciente e absolutizar o momento vivido. Isso faz deles inimigos naturais de qualquer postura contemplativa que almeje a transcendência do mundo dos sentidos e o encontro com a eternidade. Daí que o prazer seja encarado, em algumas tradições filosóficas e religiosas orientais, não como um valor positivo, mas como algo a ser evitado, assim como a dor e o desconforto: “Do prazer advém o pesar, do prazer advém o medo; aquele que se livra do prazer não sente pesar nem temor” (Dhammapada, 212).5 Nem o orgasmo nem a cólica renal se coadunam com a meditação sobre a eternidade.
Hedonista ou asceta, epicurista ou estoico, romântico ou utilitarista — quaisquer que sejam os seus valores, eles terão que ser distribuídos no tempo. O maximizar agressivo do prazer, por exemplo, implica valorizar o presente, isto é, agarrar e desfrutar ao máximo o momento que se oferece, ainda que isso possa representar algum custo ou dor de cabeça mais à frente. O minimizar defensivo da dor e desconforto, ao contrário, recomenda uma postura de completa imparcialidade na distribuição de valor entre presente e futuro: o que se almeja é a arte de neutralizar o apelo de qualquer desejo, não importa quão veemente, que possa porventura sacrificar ou pôr em risco a tranquilidade e a paz de espírito futuras. As combinações possíveis entre essas duas estratégias puras são certamente múltiplas — nenhuma vida humana tem a coerência de uma doutrina ética. Mas as armadilhas, autoenganos e surpresas no caminho de cada uma delas, como será visto nos capítulos 13 e 14, não ficam atrás.
Uma coisa, entretanto, é a discussão normativa dos prós e contras de diferentes formas de vida à luz de suas implicações no tocante à escolha intertemporal. Outra, muito distinta, é buscar entender os determinantes dessas escolhas, ou seja, como se formam ese alteram as preferências temporais reveladas por nossas ações e projetos de vida. O tema é sem dúvida vasto e complexo, perpassando inúmeras áreas especializadas da pesquisa acadêmica — da neurobiologia à psicologia, da história à teoria econômica, da antropologia à sociologia da cultura. Sem pretensão de esgotar o assunto, creio que valeria a pena, no entanto, examinar um aspecto específico da questão dos determinantes das preferências temporais na vida prática, tendo em vista sua especial relevância para a análise das relações entre escolha intertemporal, juros e ética pessoal: o papel do ciclo de vida.

Outros materiais