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A Civilização do Açucar Fátima Quintas

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Prévia do material em texto

www.civilizacaodoacucar.com.br
Fundação Gilberto Freyre
Presidente
Sonia Maria Freyre Pimentel
Vice-Presidente
Maria Cristina Suassuna de Mello Freyre
Superintendente Geral
Gilberto Freyre Neto
Organizadora
Fátima Quintas
Secretárias
Germana Kaercher
Eliane dos Santos Nóbrega
Marcas
FGF e 20 anos
Sebrae em Pernambuco
Presidente do Conselho Deliberativo
Josias Silva de Albuquerque
Diretor Superintendente
Murilo Roberto de Moraes Guerra
Diretora Técnica
Cecília Figueiredo Wanderley
Diretor Administrativo Financeiro
Gilson Pereira Monteiro
Sebrae na Paraíba
Presidente do Conselho Deliberativo
Antônio Gomes de Lima
Diretor Superintendente
Júlio Rafael Jardelino da Costa
Diretor Técnico
Pedro Aurélio Mendes Brito
Diretor Administrativo Financeiro
Luiz Alberto Gonçalves de Amorim
Sebrae em Alagoas
Presidente do Conselho Deliberativo
Wilton Malta de Almeida
Diretor Superintendente
Marcos Antônio da Rocha Vieira
Diretora Técnica
Renata Fonseca de Gomes Pereira
Diretor Administrativo Financeiro
José Roberval Cabral
Revisão
Norma Baracho
Projeto Gráfico
Gisela Abad
Assistente de diagramação
Waleshka Vieira
Foto da capa
Humberto Medeiros
QUINTAS, Fátima(Org.) . A civilização do açúcar.
Recife: Sebrae, Fundação Gilberto Freyre, 2007.
192 p. Il.
1. Açúcar - Brasil, Nordeste - História.
I. Título.
 CDU 664.1 981(812/814)
SUMÁRIO GERAL
Nota Introdutória | 9
Apresentação - A Civilização Açucareira | 13
Manuel Correia de Andrade
Cultura, Patrimônio e Civilização | 21
Fátima Quintas
Cana, Engenho e Açúcar | 49
Fátima Quintas
A Família Patriarcal - Personagens e Costumes | 69
Fátima Quintas
Casa-Grande, Capela e Senzala | 109
José Luiz Mota Menezes
Religiosidade - Fé, Festa & Cotidiano nas Terras do Açúcar | 125
Raul Lody
Açúcar no Tacho | 133
Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti
A Memória Judaica no Mundo do Açúcar em Pernambuco | 145
Tânia Kaufman
A Moda como Representação Social |159
Fátima Quintas
À memória de Manuel Correia de Andrade,
geógrafo,
historiador,
ensaísta,
cujos estudos sobre
a terra, o homem e o Nordeste
constituem um marco
na interpretação da cultura brasileira.
A verdade é que no Brasil, ao contrário do que se
observa noutros países da América e da África de
recente colonização européia, a cultura primitiva –
tanto a ameríndia como a africana – não se vem
isolando em bolões duros, secos, indigestos,
inassimiláveis ao sistema social europeu.
Gilberto Freyre
NOTA INTRODUTÓRIA
O presente livro é resultado de uma extensa pesquisa, com foco na
contextualização do projeto turístico Roteiro Integrado da Civilização do Açúcar
– envolvendo os Estados da Paraíba, de Pernambuco, de Alagoas –, nascida
por solicitação do Sebrae, na tentativa de aprimorar “possíveis” conceitos ao
longo da sua implementação. Fazia-se essencial uma configuração da reali-
dade para adequar os pressupostos teóricos à orientação dos ulteriores pro-
cedimentos. Duas razões demandavam tal iniciativa: a) a compreensão da
abordagem socioantropológica como estrutura de fundamentação do referido
projeto; b) a necessidade de acoplar maiores conhecimentos históricos e
conjunturais dos períodos colonial e pós-colonial, alicerces da nossa socieda-
de patriarcal.
Com este propósito foram realizados quatro grandes seminários sobre
temas relevantes: Cultura, Civilização, Patrimônio, Gastronomia, Religiosi-
dade, Moda e Presença Judaica em Pernambuco. Os textos ora publicados
refletem, portanto, a pesquisa e os debates empreendidos. Houve a preocu-
pação em atender a questionamentos enriquecedores, com o intuito de ela-
borar uma síntese fidedigna das argumentações proferidas.
Frise-se que o livro-coletivo não tem a pretensão de esgotar o assunto.
Pelo contrário: o seu objetivo recai em conceitos que venham a subsidiar as
políticas de turismo direcionadas ao Roteiro Integrado da Civilização do Açúcar.
Na qualidade de Documento-base guarda as suas limitações e carece natural-
mente de acréscimos e desdobramentos – início de uma longa trajetória –,
em razão dos postulados da Ciência Social que, pela sua própria natureza,
reivindica flexibilização e, sobretudo, incursões em tempos viventes e não-
viventes. A intersecção da História com a Antropologia – ou vice-versa –
exige densos aprofundamentos, o que vem a sugerir renovadas abordagens
em torno do complexo canavieiro do massapê nordestino.
Fátima Quintas
A CIVILIZAÇÃO AÇUCAREIRA
Manuel Correia de Andrade
geógrafo, historiador e ensaísta
15
Manuel Correia de Andrade
1. Dos períodos em que se costumou dividir a história econômica brasileira –
pau-brasil, açúcar, gado, algodão, ouro, café, etc. –, o da cana-de-açúcar, inega-
velmente, é um dos mais importantes, por ter ocupado maior área territorial e
por haver se prolongado por cinco séculos, o maior período de nossa história.
Na verdade, não é apropriado se denominar cada um desses períodos de ciclos,
de vez que eles não foram se sucedendo através de épocas determinadas, e sim,
com uma grande disponibilidade de espaço geográfico, se expandiram, con-
quistando novas áreas, à proporção que a demanda internacional estimulava
sua expansão. A denominação de ciclos, dada por Normano (1) para cada um
desses períodos, generalizou-se a tal ponto que, no caso da cana-de-açúcar, con-
sagrou-se no Nordeste, em face do uso da expressão, “ciclo da cana-de-açúcar,”
usada por José Lins do Rego, para denominar a coleção de livros que escreveu,
nos anos Trinta e Quarenta – Menino de engenho, Doidinho, Moleque Ricardo, Bangüê
e Usina.
2. Na verdade, a cana-de-açúcar foi trazida para o Brasil, pelos coloniza-
dores portugueses, no início do século XVI; tendo a sua cultura se iniciado na
feitoria situada na costa de Itamaracá, já na segunda década da colonização,
pelo navegador Cristóvão Jaques (2). Em seguida, com a política de povoamen-
to iniciada no governo de D. João III, numerosos donatários procuraram trazer
a gramínea das ilhas do Atlântico para cultivá-la no Brasil, dentre eles, Duarte
Coelho Pereira, de Pernambuco; Jorge de Figueiredo Correia, de Ilhéus; Pero do
Campo Tourinho, de Porto Seguro; Vasco Coutinho, do Espírito Santo, e o pró-
prio Martim Afonso de Souza, de São Vicente. As capitanias que se situavam
mais próximas de Portugal, em razão do menor custo do transporte, tiveram
produção mais expressiva nos primeiros tempos, segunda metade do século
XVI, como Pernambuco, então chamada de Nova Lusitânia, e a Bahia de Todos
os Santos, onde o governo português instalara o Primeiro Governo-Geral do
Brasil, em 1549. O açúcar produzido no Brasil ensejou a formação de empresas
artesanais de transformação da matéria-prima e a implantação de grandes áreas
de plantios de cana, com o investimento de capitais, em geral acumulados por
judeus na Europa Central. Daí admitir Celso Furtado que a “plantação”
canavieira, a plantation dos ingleses teria sido o primeiro empreendimento capi-
talista em atividade agrícola (3).
Olinda, que nos fins do século XVI era a principal aglomeração urbana da
América, serviu de ponto de partida para o avanço dos canaviais: para o Sul até
Penedo, para o Norte até Goiana, então capitania de Itamaracá, e para as capita-
nias da Paraíba do Norte e do Rio Grande. Já Salvador, que crescera como capital
de toda a Colônia, seria a responsável pelo desenvolvimento da cultura canavieira
no chamado Recôncavo Baiano, de ricos solos de massapé originários da de-
composição de rochas calcárias.
16
Apresentação - A Civilização Açucareira
Assim, nessa faixa litorânea, que se estende da foz do Potenji até a Bahia
de Todos os Santos, desenvolveu-se a chamada Civilização do Açúcar, estu-
dada em profundidade pelo mestre Gilberto Freyre, em livros magistrais como
Casa-grande & senzala (4) e Sobrados e mucambos (5), enquanto as implicaçõesecológicas do avanço dessa cultura seriam analisadas em Nordeste (6).
A Civilização do Açúcar permitiu a formação de uma sociedade aristo-
crática, dominada por grandes e médios proprietários de terra, os sesmeiros,
que viviam em casas grandes, ricas e luxuosas, dispondo de uma imensa quan-
tidade de serviçais, além de artífices especializados na fabricação do açúcar e da
aguardente. Os serviçais, inicialmente indígenas nativos da América, foram em
seguida substituídos por escravos negros, trazidos da África. Os escravos for-
mavam dois grupos distintos, os que trabalhavam na agricultura, sujeitos à
submissão total, e os que eram destinados aos serviços domésticos, na casa-
grande, gozando de alguns favores e regalias. Os cronistas coloniais que vive-
ram na área e conviveram com escravos e com senhores, dão um testemunho
de grande valor, dos hábitos e costumes da sociedade colonial e das transforma-
ções que ela foi sofrendo à proporção que o tempo passava; alguns cronistas
famosos como Antonil, fizeram uma análise profunda da sociedade da época.
Mas, se no século XVI, o açúcar de cana, usado como alimento, se
generalizara na Europa, o mesmo ocorreu no Brasil; por isso, à proporção
que o povoamento se expandia através de áreas menos povoadas, sobretudo
no Sertão, expandia-se também a cultura da cana-de-açúcar, quer cultivada
em pequenas parcelas, quer, às vezes, pelos próprios agricultores livres –
pequenos proprietários ou rendeiros – com a finalidade de produzir os tabletes
de açúcar, chamados em geral de “rapadura,” e a cachaça. Essas unidades de
produção eram os engenhos rapadureiros que permaneceram primitivos até
o século XX, movidos a tração animal, em geral bovinos. Enquanto isso, os
engenhos do litoral evoluíram do engenho movido a tração animal, os cha-
mados engenhos de “bestas”, para os engenhos reais movidos a água, para
os engenhos a vapor, já no século XIX, e, finalmente, para as usinas de açúcar
de pequeno, médio e grande portes.
Os engenhos rapadureiros tornaram-se famosos no Cariri cearense, na
Ibiapaba, no Brejo Paraibano, na serra de Triunfo em Pernambuco e em áreas
úmidas dos sertões da Bahia, de Minas Gerais e de Goiás.
3. As grandes regiões açucareiras de Pernambuco e Alagoas, assim como
da Bahia, no entanto, vêm perdendo espaço e importância para outras regi-
ões açucareiras, como as situadas no Baixo Paraíba, Rio de Janeiro e, mais
recentemente, em terras situadas em Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do
Sul, Minas Gerais e São Paulo (7).
Nas áreas onde as condições climáticas, as técnicas de cultivo permiti-
rem e o mercado internacional estimular, os canaviais tendem a se estender,
17
Manuel Correia de Andrade
sobretudo em um país que dispõe de grande extensão de terras e de mão-de-
obra barata e com grande mobilidade.
4. A sociedade açucareira, porém, não apresenta grande mobilidade em
ascensão social, as várias classes estão bem estruturadas e hierarquizadas e as
diferenças sociais estão estruturadas com base nas diferenças raciais. Isto, ape-
sar de ter havido, desde o período colonial, uma grande miscigenação e de
haver no Brasil leis que incriminem o preconceito racial e, mais recentemente,
procurem favorecer a ascensão social de negros, mulatos e indígenas por meio
do acesso à educação. Mesmo assim, até hoje, no Brasil, só dois indígenas conse-
guiram obter títulos de doutorado em universidades federais.
No período Imperial, alguns negros e mulatos conseguiram ascender a
postos elevados no governo e a desfrutar de prestígio na Corte, como Rebouças,
o barão de Cotegipe e o escritor Machado de Assis. Também na República, ainda
marcada por ritos e costumes imperiais, apenas Nilo Peçanha, que era mulato,
ascendeu à Presidência, embora muitos negros e mulatos tenham ocupado po-
sições de relevo e desfrutado de riquezas.
No entanto a cultura brasileira é profundamente influenciada pela cultu-
ra negra, sobretudo nos Estados onde a escravidão foi mais intensa, como na
Bahia, no Maranhão, em Pernambuco, no Rio de Janeiro, em Minas Gerais e em
São Paulo.
A influência do açúcar se fez sentir nos mais variados aspectos: na organi-
zação familiar, na arquitetura, na alimentação, na religião e na cultura.
Assim, em uma sociedade latifundiária, monocultora e escravagista, como
salientou Gilberto Freyre, o proprietário de terras e de escravos tinha o domínio
absoluto sobre a família, tanto no sentido restrito, aquela formada por esposa e
descendentes, como no sentido amplo, reunindo também agregados e depen-
dentes. Poucas foram as matriarcas que resistiram às determinações dos mari-
dos e, após a morte destes, a dos filhos primogênitos, como D. Ana Paes, duran-
te o domínio holandês, no século XVII, ou D. Emerenciana da Costa Azevedo
do Engenho Barra, no século XIX. Ambas casaram três vezes.
A regra geral era o marido mandar e desmandar no seu clã, “casando e
batizando”, mantendo a casa cheia de parentes pobres, de filhos, de netos e de
agregados, vivendo muitas vezes uma vida dissoluta, emprenhando não só a
esposa como também comadres pobres e remediadas e escravas da senzala, so-
bretudo as novas e bonitas. Em geral consideravam-se brancos e nobres, embo-
ra, nos primeiros séculos, muitos tivessem sangue indígena – os descendentes
de Jerônimo de Albuquerque com a índia tabajara, que foi formalmente sua
primeira esposa – ou sangue negro, como um famoso capitão-mor de Bom
Jardim que espantou o cronista inglês Henry Koster ao encontrar um mulato
investido em um cargo tão importante (8).
18
Apresentação - A Civilização Açucareira
Na realidade, a nobreza brasileira nem sempre era branca e nobre, mas
em grande parte formada por judeus, os chamados cristãos-novos ou
marranos, por mouros com forte sangue árabe e por descendentes de outros
povos do Mediterrâneo, como os Costa e os Cavalcanti, de origem italiana, e os
Holanda, oriundos da Europa Central. Com um século de Brasil e a fortuna
acumulada com a produção açucareira, formou-se uma casta, a chamada
“açucocracia” de que falava Tobias Barreto, representada por famílias tradicio-
nais, como os Cavalcanti – Rego Barros, os Albuquerque, os Wanderley, os Sou-
za Leão e os Carneiro da Cunha. Os Cavalcanti, por exemplo, tornaram-se im-
portantes a ponto de se afirmar que “quem viver em Pernambuco/ há de estar
desenganado/ ou há de ser Cavalcanti/ ou há de ser cavalgado”. Na Paraíba, em
pleno século XX, quando Epitácio Pessoa dominou a República, dizia-se que,
“quem não é Pessoa é coisa”, ou até que “quem não é Coutinho é coitado”.
Os cronistas narram o fausto em que viviam os senhores de engenhos em
suas casas-grandes como a do Engenho Patrimônio no Recôncavo da Bahia, a
do Engenho Noruega na Mata Meridional pernambucana e a de Poço Compri-
do na Mata Setentrional deste mesmo Estado, além dos sobrados suntuosos que
construíram nas cidades, como o famoso “Sobrado Grande da Madalena” no
Recife (9), e numerosos outros construídos em cidades como João Pessoa (antiga
cidade da Paraíba), em Goiana, no Recife, em Maceió, em Penedo, em São Cris-
tóvão e nas cidades baianas de Salvador e Cachoeira.
Na organização familiar, apesar de dominar o casamento monogâmico, a
influência árabe era grande; a fidelidade conjugal não era respeitada pelo ho-
mem, podendo o chefe de família procriar em vários leitos a seu bel-prazer. Os
filhos mamelucos e mulatos eram numerosos, embora se procurasse impedir
que eles casassem com os filhos da linha chamada legítima; daí os casamentos
“arrumados” pelos pais para as filhas donzelas que deveriam casar virgens e
com pessoas escolhidas, geralmente primos. Com isso, impedia-se o casamento
com estranhos, preservando-se a fortuna e a cor da família. Essa preservação
tornava-se mais branda quando o candidato, embora mulato, fosse rico ou tives-
se um título de doutor, formado em direito, medicina ou engenharia, como
ocorreu com Tobias Barreto e, certamente, com obarão de Cotegipe.
Na alimentação, a influência não européia foi muito grande, tanto com a
inclusão de alimentos indígenas, como a farinha de mandioca, ou “de pau”,
como com o uso de animais e de numerosas frutas da terra, a exemplo do caju,
do sapoti, da goiaba, do araçá, etc., além de animais de caça – tatus, veados,
cotias, pacas, antas, etc. Também os alimentos produzidos com animais e plan-
tas da África, da Ásia e da Oceania, como as galinhas d’angola, os bodes, o sorgo,
chamado de “milho d’angola”, a manga, a jaca, a banana e o a fruta-pão se
juntaram aos produtos europeus, dando à região açucareira uma culinária mui-
19
Manuel Correia de Andrade
to rica e diferenciada. A culinária à base do milho e do feijão é típica de várias
regiões do Brasil, sobretudo do Nordeste (10).
Do ponto de vista religioso, não podemos deixar de salientar o grande
sincretismo que existe entre o catolicismo romano e as crenças religiosas dos
indígenas e dos africanos. As pessoas, sobretudo das classes populares e do meio
rural, temem entrar em uma mata, à noite, por causa da ação de seres que elas
temem que existam e que as persigam, como a caipora, o saci-pererê, o curupira,
tão divulgados na literatura infantil do grande Monteiro Lobato. As crenças
espíritas de origem africana na Bahia deram origem ao Candomblé e, em
Pernambuco, ao Xangô. Essas crenças dão origem a cultos que têm grande pe-
netração entre as pessoas humildes das capitais e de cidades do interior, mas que
são também respeitadas por pessoas ligadas às classes média e alta das grandes
cidades e que foram fortemente divulgadas em trabalhos de Antropologia, como
os de Artur Ramos, de Câmara Cascudo e de Valdemar Valente e nos romances
famosos de Jorge Amado, que nos meados do século XX foi um dos romancistas
mais lidos do Brasil.
Assim, a Civilização Açucareira tem importância tanto econômica como
social na vida e cultura brasileiras; sobretudo na região nordestina, como têm a
do Ouro e a do Café no Sudeste do Brasil.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
(1) NORMANO, F.J. Evolução econômica do Brasil. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1939.
(2) ANDRADE, Manoel Correia de. A terra e o homem no nordeste. 7. ed.. São Paulo: Cortez Editora,
 2005.
(3) FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1959.
(4) FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. 5. ed. São Paulo: Global, 2003.
(5) ______. Sobrados e mucambos. 15. ed. São Paulo: Global, 2003.
(6) ______. Nordeste. 7. ed. São Paulo: Global, 2004.
(7) ANDRADE, Manoel Correia de. Modernização e pobreza. São Paulo: Editora Unesp, 1986.
(8) KOSTER, Henry. Viagens ao nordeste do Brasil. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1942.
(9) GOMES, Geraldo. Engenho e arquitetura. Fundação Gilberto Freyre: Recife, 1997.
(10) CASCUDO, Luís da Câmara. História da alimentação no Brasil. São Paulo: Global, 2003.
CULTURA, PATRIMÔNIO
E CIVILIZAÇÃO
Fátima Quintas
antropóloga e ensaísta
A lembrança é a matéria viva da cultura.
O esquecimento faz parte do desapego à tradição.
Fátima Quintas
SUMÁRIO
Em torno de um possível conceito de Cultura | 25
Quadro sinótico dos Universais da Cultura | 28
O Potlach e o Kula: especificidades culturais da sociedade primitiva | 29
Origem da Cultura | 29
Em torno de um possível conceito de Civilização |30
A morfologia das Civilizações | 32
Patrimônio: o sentimento de pertença | 34
O fenômeno da remotização | 35
Patrimônio material: a vida social das coisas | 35
Patrimônio nacional: um breve histórico de suas políticas | 38
Tradição e memória | 43
Região e regionalismo | 45
Bibliografia | 48
25
Fátima Quintas
EM TORNO DE UM POSSÍVEL
CONCEITO DE CULTURA
O termo cultura vem do latim cultura, ae, derivado do verbo colligere, “lavou-
ra”, “cultivo dos campos”, “colheita”, ação ou maneira de cultivar a terra ou de
explorar produções naturais. Acrescente-se que é sinônimo de agricultura –
cultura agri, do latim ager, agri, campo. Fundar cultura era, pois, plantar uma
determinada espécie ou selecionar o terreno para um cultivo adequado. Por
conseguinte, a cultura representava o exercício da inteligência humana
direcionado ao tratamento dos plantios. A acepção primeira esteve ligada à
terra e à natureza, conforme o emprego ainda da semântica usual: cultura da
cana, cultura do algodão, cultura do café, etc. Depois, a idéia de colheita
assumiu dimensão mais ampla, agregando o sentido de conhecimentos adqui-
ridos. Mesmo nessa nova contextualização, percebe-se a fidelidade etimológica,
ao denotar uma outra forma de colheita – a do espólio social. Logo, a cultura
é a contribuição humana ao habitat; aquilo que o homem adicionou à nature-
za. Em outras palavras: o modo de vida de um povo, a sua cosmovisão. Por sua
vez, a sociedade é o agregado organizado de indivíduos que adotam o mes-
mo modo de vida. Em resumo: uma sociedade é composta de um conjunto de
pessoas; o modo como se comportam essas pessoas é a cultura. A expressão,
“quanto mais distante da natureza, mais próximo da cultura”, destaca a in-
terferência do homem nas coisas da natureza, a ponto de distanciar a cultura
do seu núcleo-fonte.
Faço um parêntese: a palavra cultura relacionada à pessoa erudita pro-
vém do germanismo kultur. Na Alemanha, por volta de 1793, o termo rece-
beu a significação de aperfeiçoamento do espírito humano ou de um povo.
Ironicamente, justo na Alemanha, o marechal nazista Hermann Goering pro-
nunciou a melancólica frase: “quando ouço a palavra cultura pego no revól-
ver”. A divulgação do vocábulo foi de início uma arma política de aliciamento
intelectual – kultur kampf, luta pela cultura. A rádio oficial de Berlim, duran-
te a Segunda Guerra Mundial, sobretudo entre 1942–45, repetia insistente-
mente o slogan: “Alemanha! Defensora da Cultura!”. A propaganda popula-
rizou-se. Ainda assim, a sua decodificação vincula-se à idéia do indivíduo
que congrega um maior número de conhecimentos adquiridos, aquele que ar-
mazenou um inventário intelectual digno de ser realçado. Do que se conclui
que o “imaginário coletivo” incorpora razões nem sempre desconhecidas
pela própria razão.
Uma das melhores definições de cultura – até hoje aceita e referenda-
da pelos estudiosos – foi proposta por Edward Tylor, em 1871, no século XIX:
“Um conjunto complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei,
26
Cultura, Patrimônio e Civilização
costumes e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem
como membro da sociedade”. Ralph Linton (1893–1953) também oferece uma
definição bastante consistente: lato sensu, cultura significa a herança social e
total da Humanidade; stricto sensu, significa determinada variante da heran-
ça social. Em consonância com a visão de Linton, cultura, como um todo,
compõe-se de um grande número de culturas, cada uma caracterizando um
certo grupo de indivíduos (cf. LINTON, Ralph. O homem, uma introdução à
antropologia. São Paulo, 1943). As duas concepções citadas opõem-se distinti-
vamente: a de Tylor, descritiva, enumerativa, quase exaustiva no seu esque-
ma seqüencial; a de Linton, mais generalista e, talvez, de melhor apreensão.
Há muitas outras definições de cultura – os antropólogos Alfred Kroeber
e Clyde Kluckhohn arrolam 164. Todas, entretanto, reconhecem alguns as-
pectos que lhe são comuns:
1. a cultura, toda ela, é aprendida. O aprendizado corresponde ao traço
diferencial que a distingue da natureza, esta, a existir per se, independente-
mente da vontade do homem. Ninguém nasce investido de cultura, mas há
um legado ancestral que é repassado através da história de vida de cada um.
Portanto, o ser cultural advém de uma ancestralidade sociológica que Gilber-
to Freyre nomeia de Sociologia genética;
2. as manifestações culturais são variáveis, múltiplas e diversificadas, o
que não implica em uma valoração de superioridade de uma cultura sobreoutra; sim de aprimoramento técnico de algumas. É de grande importância
introduzir tal critério, de modo a evitar qualquer juízo de valor;
3. a cultura é ao mesmo tempo estável e mutável, operando em uma
dualidade que se assenta no dinamismo que lhe é próprio. A vibração dos
seus elementos faz parte do estímulo do grupo, inclinando-se para mais ou
para menos, a depender dos impulsos do cotidiano. Ao lado do dinamismo,
há, todavia, um continuum estruturante que evita o esgarçamento do fio con-
dutor. O tecido social resiste a uma mutação dissolvente porque o pólo de
sustentação se defende das rupturas, embora não impeça o movimento de
mudança;
4. os processos culturais se desdobram em pensamentos, idéias, insti-
tuições e objetos materiais – a cultura material se relaciona diretamente com
o imaginário simbólico e cognitivo. Embora a expressão “cultura material” se
refira ao real/tangível, nela habitam as circunvoluções do mundo simbólico e
fantasioso. Há, por efeito, uma cultura material e outra não-material. A cultu-
ra não-material responde sobretudo às dimensões de valor e subjetivação
comunitárias. Mas nem uma nem outra coexistem isoladamente;
5. a cultura revela-se como o instrumento por meio do qual o indiví-
duo se ajusta ao cenário local/total e adquire meios de expressão criadora;
27
Fátima Quintas
6. a cultura contém o princípio da universalidade – onde há agrupamen-
to humano sua presença se instala. Na sua universalidade, prevalece uma
“adequação” ao tempo e ao espaço. As modulações são inúmeras:
especificidades e dessemelhanças, semelhanças e analogias. As singularida-
des enriquecem as culturas, tornando-as únicas, sem minorar, contudo, a
perspectiva universal;
7. a cultura deriva de componentes biológicos, ambientais, psicológi-
cos e históricos;
8. a cultura é estruturada em blocos: a cultura da arte, a cultura religio-
sa, a cultura da alimentação, etc. Importa entender essa fragmentação para
perceber a rede que se forma numa dada comunidade, tal qual uma tecela-
gem com novelos interconectados;
a esses “blocos culturais” que se disseminam com características peculiares
agregam-se os chamados Universais da Cultura. Observam-se duas apreciá-
veis convergências nessa universalidade:
a. a universalidade, enquanto critério presencial, emerge em qualquer
aglomerado humano – condição sine qua non de sobrevivência, presença real
e subjetiva;
b. a universalidade, enquanto crivo de manifestações particulares –
universal x particular –, arrebanha os desejos de cada gente. Por exemplo: o
nascer, o falar, o alimentar-se, o morar, o dormir... o morrer são inerentes ao
ser humano, porém, os rituais simbólicos que circundam tais fenômenos
modificam-se de um lugar para outro. E são únicos nas suas expressões de
cultura.
***
Tentarei adaptar os enunciados dos antropólogos Edward Tylor e Clark
Wissler em um quadro sinótico, a fim de obter resultados elucidativos quan-
to à universalidade da cultura, melhor dizendo, quanto aos tópicos culturais
aderentes a qualquer cultura, seja “primitiva” ou “civilizada”. Volto a
exemplificar: os ritos do nascimento sofrem variações de acordo com os
modelos culturais; há muitas línguas faladas entre países de fronteiras contí-
guas, às vezes, até mesmo dialetos dentro de um mesmo país; mora-se em
chalés, em casas com quintais, em sobrados austeros, em ocas, em mocambos
de palha; dorme-se em rede, em cama, no chão; os ritos funerários têm um
largo espectro demonstrativo. Todo esse pluralismo de representação não
diminui o carisma da universalidade. Portanto, onde houver aglomerado
humano, hão de existir tais tópicos.
28
Cultura, Patrimônio e Civilização
QUADRO SINÓTICO DOS UNIVERSAIS DA CULTURA
Os Universais da Cultura provêm de necessidades básicas que, por sua
vez, geram necessidades derivadas numa cadeia crescente e progressiva. As socie-
dades “primitivas” possuem uma dinâmica menos acelerada, o que provoca um
volume menor de necessidades derivadas, o mesmo não acontecendo nas soci-
edades contemporâneas ocidentais, estas infladas de estímulos exógenos e
capitalizantes de novas necessidades. A partir dos desejos satisfeitos, desenvol-
vem-se as chamadas necessidades psicoculturais, que vão além das categorias de-
rivadas, provocando um forte ritmo de desdobramentos e de incentivo às trans-
formações. Exemplifico: o abrigo é uma necessidade básica; a moradia já adicio-
na componentes a mais e, cumpridas essas etapas, a sociedade gera artifícios
prazerosos – rádio, televisão, luz indireta – que se sucedem numa aspiração
excedente do homem social. O mundo capitalista consagra um leque de amplo
espectro na emulação das necessidades psicoculturais.
29
Fátima Quintas
O POTLACH E O KULA
Especificidades culturais da sociedade “primitiva”
Com o intuito de clarificar o quanto as singularidades culturais dos grupos hu-
manos apresentam-se diversificadas, escolho duas cerimônias clássicas – bem
distantes da construção mental do “civilizado” – referentes a sinais de prestígio
entre os povos “selvagens”. O Potlach é um festival institucionalizado, no qual
ocorre a destruição de bens pelo fogo: cobertores, canoas, folhas de cobre são
queimados pelos chefes rivais. Um dos chefes inicia a destruição, demonstran-
do o máximo de desprezo pela quantidade de bens destruídos, e, dessa forma,
açulando o rival a proceder dentro dos mesmos parâmetros, até que um deles
não tenha mais nada a oferecer. O excesso de desprendimento se converte num
gesto de poder – destruir o que se tem significa opulência em demasia. Destrói-
se porque se pode reconstruir, contra-senso aberrante para o mundo em que
vivemos. E a intensidade do prestígio é proporcional ao tamanho do “incên-
dio”. Tal costume é descrito detalhadamente por Franz Boas, considerado o pai
da Antropologia americana, com a finalidade de evidenciar a luta pelo status
entre os Kwakiutl, índios da costa noroeste dos Estados Unidos.
Bronislaw Malinowski, antropólogo polonês (1884–1942), apresenta o Kula,
sistema de trocas cerimoniais intergrupais e interinsulares de braceletes por co-
lares, ritual periódico dos trobriandeses, índios do Sudoeste da Melanésia (Ilhas
Trobriand), com o igual propósito de lograr prestígio – quem obtiver mais bra-
celetes ou colares será distinguido em superioridade.
Os costumes descritos mostram-se aparentemente exóticos para nós, os
ditos “civilizados”. Podem parecer estranhos à primeira vista; no entanto, quali-
ficam tendências comuns ao homem, qual seja, a ambição pelo poder. Entre “primi-
tivos” e “civilizados” os mecanismos diferem, porém os objetivos se igualam.
ORIGEM DA CULTURA
Naturalmente que não sei contar, repetindo Câmara Cascudo, como a primeira
cultura começou e nem tampouco quais os primeiros elementos que a compu-
seram. No entanto, há indícios da importância de algumas descobertas: o fogo, o
uso dos metais, a roda para a História Social da Humanidade. Em razão desses
artefatos, outros foram se desenvolvendo no arcabouço daquilo que se chama
Cultura. No primeiro momento, objetos incipientes; hoje, sofisticados em
tecnologias.
Uma pergunta me instiga: Por que os primeiros homens escolheram a
atividade da caça e da pesca como maneira de angariar alimentos de substância
viva, implicando no ato da morte de outro ser, para manter a sua sobrevivên-
cia? A colheita de frutos praticava-se de maneira embrionária e dispersiva. A
30
Cultura, Patrimônio e Civilização
agricultura, essa surgiu posteriormente e tem origem na prática da lavoura
doméstica, realizada pela mulher na condição de sedentária, logo de repassadora
dos valores da rotina. Assim, o nomadismo masculino – caça, pesca, guerra –
não facilitou a regulação da cultura; coube à mulher, portanto, a grande parcela
de contribuição cumulativa no arquivo cultural. E pode-se eleger, de uma forma
absolutamente aleatória, que a cultura ordenada, repito, a culturaordenada e não a
cultura per se, tem a sua consolidação no ato da sistematização da agricultura – é
bom lembrar que cultura é sinônimo de agricultura (item 1). Vale igualmente
reprisar que o nomadismo não concorreu para a fixação da cultura, porque se
afastava dos fluxos regulares e ordenadores. A aventura se opõe à rotina, e dela,
a aventura, não se extraem preceitos disciplinadores de cultura. Convém alertar
que a sobrevivência, como ponto de partida, e a curiosidade racional e intuitiva
ensejaram, ao longo do tempo, um sistema cultural mais complexo.
Arqueologicamente falando, as formas humanas partem do esqueleto do
Pithecanthropus erectus – cujo crânio e um fêmur foram encontrados por Eugène
Dubois, em 1891, em Java –, passando pelo Sinanthropus pekinensis – encontrado
em Chucutien, ao sudoeste de Pequim, em 1921 –, até o Homem de Neandertal.
Esquema simplista e discutido: a ausência de descoberta de um esqueleto com-
pleto e a fragmentação de ossos – alguns, inclusive, calcinados –, deparados nas
escavações, provocam críticas e conclusões desencontradas. Faço questão de
pincelar aspectos físicos e culturais de um passado remoto para sublinhar a
complexa carpintaria da nossa construção biológico-cultural.
Como se chegar à aurora da História do Mundo? A indagação continua,
com algumas respostas pouco precisas.
EM TORNO DE UM POSSÍVEL
CONCEITO DE CIVILIZAÇÃO
Civilização vem do latim civis – cidadão, civilidade, civismo, civilização, cidade
– e diz respeito à cultura das cidades. Tal conceito, como todos os conceitos,
admite uma série de variações. Karl Marx lembra que a sede da civilização antiga
era a cidade, enquanto Aristóteles ao usar a expressão zoon politikon se referia ao
homem habitante das cidades. O homem político corresponde ao que participa
da Ágora, ou seja, do debate no espaço público. Na Grécia, o espaço público – a
Ágora – configurava a polis e era responsável pela construção da cidadania. As
idéias de cidadania floresceram em diversos períodos históricos – na Grécia e na
Roma antigas, nos burgos da Europa medieval, nas cidades do Renascimento.
Mas a cidadania moderna, embora influenciada por essas concepções antigas,
possui um caráter próprio. Primeiro, a cidadania formal é hoje quase universal-
mente definida como a condição de membro de um Estado-Nação. Em segun-
31
Fátima Quintas
do lugar, tem se tornado cada vez mais significativa a cidadania substantiva, que subs-
creve a posse de um corpo de civis (leis), políticos e especialmente líderes sociais.
A civilização grega antiga foi controlada pela cidade, volta-se a falar na
polis. As cidades da Mesopotâmia, anteriores à Grécia, já utilizavam a urbe como
pólo de atividades mercantil e cultural – por exemplo, chegavam a incluir cam-
pos e plantações de tâmaras que eram cultivadas por empresários urbanos den-
tro dos muros da cidade. A situação seria revertida na Idade Média, quando a
sede da propriedade fundiária coincidia com o locus do poder – o campo – e as
cidades existiam principalmente como mercado para a troca do excedente pro-
duzido pelos nobres em seus imensos latifúndios.
A cidade ganhou força com a formação da burguesia, o burgos, embora
não se possa desprezar o caráter fundiário que a terra assumiu como poder
econômico ao longo da História. Esta proposição levou o sociólogo Max Weber
a distinguir entre civilização com base na cidade, política no sentido literal da
palavra, pois fundamentada na polis, e civilização econômica, no sentido literal
de oikos, ou família, fundamentada na economia de núcleos familiares amplos.
O Brasil se desenvolve por entre os contatos do homem econômico com o
homem político de Weber. Tal formatação induz ao modelo que Gilberto Freyre
caracterizou como RURBANO, ou seja, uma sociedade entrelaçada de costumes
e hábitos tanto rurais quanto urbanos.
Nessa civilização regional predominantemente rural – e açucareira – já se fazia
notar uma complementação urbana, com Olinda e o Recife – o Recife como
porto de mar, importantíssimo para a exportação do açúcar e para a importação
de valores europeus e africanos. (...) Se podem esses surtos de desenvolvimento
sociocultural brasileiro ser denominados civilizações é que não lhes faltaram
características urbanas de vivência e de convivência. Mas essas características,
sobre bases e sobre espaços principalmente rurais. De onde poderem ser consi-
derados exemplos de ajustamentos toscamente rurbanos. Ou antecipações de
toscos ajustamentos rurbanos (FREYRE, Gilberto. Rurbanização, que é?. Re-
cife: Ed. Massangana, 1982. p. 12).
Cumpre registrar que o conceito de civilização traz sempre a idéia de
Progresso, como uma aspiração evolutiva de princípio irreversível, “induzindo”
Oswald Spengler a apontar A decadência do ocidente, em virtude do excesso de
tecnologias e de acentuadas materializações, em detrimento de uma cultura
mais espiritual e subjetiva.
 Por outro lado, Freud, no seu livro O mal-estar da civilização, defende a
tese de que a civilização resulta da repressão do desejo sexual de cada um,
isto é, da canalização da energia libidinal – então sublimada – para projetos
culturais.
32
Cultura, Patrimônio e Civilização
Como se pode observar, o conceito de civilização sofre inúmeras
releituras, e está sujeito a grandes polêmicas, egressas da própria dificuldade
que todo conceito avoca a si mesmo.
A MORFOLOGIA DAS CIVILIZAÇÕES
Uma das principais características da cultura – conforme já foi assinalado – é a
sua estruturação em blocos, o que a pulveriza em núcleos de expressão. As partes,
todavia, não são autônomas; interconectadas em firmes ligamentos, bosquejam
a espinha dorsal da árvore germinadora. É preciso entender que o todo civilizador
é maior que a soma das partes culturais. Quando digo: cultura religiosa, cultura
da habitação ou cultura alimentar, remeto aos blocos culturais de um arranjo
macro. A dimensão civilizatória engloba todos os segmentos, mas não resulta de
uma simples adição, sim de um cimento unificador que lhe confere perfil e
singularidade. Em outras palavras: a civilização é maior que a soma de suas
partes porque constrói, na sua engenharia social, um jogo de xadrez bem encai-
xado, não obstante o diversificado volume das peças.
Todos os povos são parecidos e dessemelhantes, mesmo na coexistência
milenar. O espanhol é diferente do português; o alemão, do francês; o inglês, do
irlandês. E, no entanto, estão próximos geograficamente, sofrem influências entre
si e submetem-se a uma irradiação de costumes e hábitos em suas fronteiras. Por
mais que escoem as possibilidades de contato, vizinhança, miscigenação man-
têm distinções essenciais, intransponíveis, “insuscetíveis de exportação”. O co-
mum e o peculiar se aproximam e se afastam. Esse índice diferencial representa
a marca da individualidade do coletivo, o traço próprio de uma civilização. As
demarcações físicas não são apenas físicas; trazem uma paisagem psicológica
que as define enquanto rostos comunitários. A civilização não é transmissível.
Tentarei destrinchar melhor esse postulado.
O que se transmite é a cultura, ou melhor, os blocos culturais; propagam-se
através da divulgação, da migração, da difusão. Mas o rito de passagem, no
sentido literal da locução, não acontece dentro dos parâmetros de sua verdadei-
ra gênese. Com o deslocamento ocorre uma ressignificação dos elementos cul-
turais. O maracatu, o reisado, a capoeira terão nítidos ajustamentos se pratica-
dos por povos europeus ou asiáticos. Qualquer imitação, da mais simples a mais
complexa, sofre o efeito da recriação. O mobiliário, a moda, os sistemas de lin-
guagem disseminam-se, comunicam-se de país a país, sem que neles se inclua a
civilização originária que os produziu. O espírito criador, que é a medula da
civilização, esse não vai além do contexto em que foi desenvolvido. Observa-se
um caráter inviolável no conceito de civilização. Há uma morfologiaimpregnada
que não se deixa macular por processos de difusão. “A cultura bizantina foi uma
das mais divulgadas e influenciadoras e a sua civilização a mais enquistada e
33
Fátima Quintas
hermética” (CASCUDO, Luís da Câmara. Civilização e cultura. São Paulo: Global
Editora, 2004. p. 46).
A essência da civilização é intransferível. Sua conservação no tempo
extrapola o imaginável. Por vezes, a civilização entra em decadência, chega a
perder os blocos culturais, fenece em meio a novas composições, nunca, contu-
do, perde a substância mater da sua configuração. O tálamo persiste. As abstra-
ções de um ethos morto continuam a refluir no imaginário dos pósteros. Os
gregos modernos não são os gregos antigos, porém as emanações de uma civili-
zação que se excedeu em pensamento filosófico inscrevem a marca de um pas-
sado que tem cheiro de eternidade. E a Grécia contemporânea vive da sua Anti-
guidade. Os gregos modernos carregam essa história civilizatória como lastro
estruturante. Recorro, mais uma vez, a Câmara Cascudo:
O Egito perdeu o idioma, a religião milenar, administração, dinamismo cultural
típico. Manteve superstições e métodos primários rurais. O clima mental é egíp-
cio em suas soluções psicológicas populares. Na mentalidade. Na literatura oral.
Na defesa legítima do seu invisível e eterno patrimônio. Não é o egípcio turco,
árabe, romano, mas o egresso das trinta dinastias faraônicas o que sentimos
ainda (CASCUDO, Luís da Câmara. Idem, p. 47).
A continuidade morfológica da civilização atravessa o sentido material.
Os elementos invisíveis não acompanham a temporalidade. Petrificam-se em
subjetivações, transcende o apenas tangível, alongam-se em cronologias não
mensuráveis. A fisionomia de cada civilização possui morfologia própria. Tem
alma, nome e matéria. Não se desfaz facilmente. Exorta o lacre da individualida-
de dentro de um inventário coletivo. Um artista, pianista ou pintor, recebe a
técnica para a execução de suas obras, mas o esplendor da execução é o que lhe
outorga o toque de genialidade: a intuição, a sensibilidade, a harmonia no lidar
com os elementos aprendidos.
A civilização se caracteriza por emissões psicológicas que desenham o es-
pírito nacional. As acepções de cultura dizem de conteúdo; a civilização, de
continente. Para o grande sociólogo Pitirim Sorokin, as civilizações podem desapa-
recer, mas elas expandem suas partículas como átomos que se libertam de um núcleo
catalisador para girar ao redor do imaginário coletivo. Os Maias, os Incas, os
Astecas – “civilizações mortas” – continuam a jorrar o caráter de seu ideário.
Gostaria de me deter na idéia de Spengler, quando anuncia a morte da
cultura em estado civilizatório. Com isso o autor atribui a decadência ao mo-
mento em que a cultura se permite afogar numa realidade sem essência, ou
seja, ao esgarçar-se em artefatos com pobreza simbólica. A Decadência do Oci-
dente de Spengler atém-se à melancolia de uma sociedade que se deixa engolfar
por traços indigentes em simbolismo. Sem a substância do espírito, sem a
34
Cultura, Patrimônio e Civilização
alma da cultura/civilização, sem o intangível do humano, a sociedade galga-
ria o triste decesso criador.
Ao se adotar a legenda A Civilização do Açúcar, recorre-se aos blocos
culturais conectados em um determinado eixo possibilitador de irradiações. Tro-
cando em miúdos: a Civilização do Açúcar é um complexo social com base na
cana, mas seguramente expandido por todos os lados e por todos os ângulos –
uma civilização que se quis horizontal, gorda, barroca, ancha de adereços, a
extrapolar o mandala paradigmático da casa-grande, da senzala, do engenho
propriamente dito, da capela... A lavoura da cana gestou uma sociedade rica em
alinhamentos entrelaçados e enroscados numa teia híbrida e plural. A planta –
da família das gramíneas – não se isolou em si, apesar de sua tirania
monopolizante; projetou toda a orquestração das rel ações sociais do passado
colonial e pós-colonial. Por efeito, A Civilização do Açúcar é bem maior do que a
cultura do açúcar. A segunda cabe na primeira. A primeira não cabe na segunda.
E a sua morfologia aglutina fluências e confluências únicas, a estampar um qua-
dro que fala de um contexto intransmissível na sua totalidade.
PATRIMÔNIO
o sentimento de pertença
O que dá dignidade a uma pessoa é a segurança de pertencer a alguma genealogia
– tanto biológica quanto cultural. O mundo está carregado de símbolos que
fazem parte da nossa biografia individual e coletiva. O homem solto no univer-
so, sem história, sem tradição, sem origem cultural, é um homem desterrado
(Fátima Quintas).
O Patrimônio representa um conjunto de bens materiais e imateriais que
compendiam a herança da humanidade. Nele reside um forte traço pessoal:
cada indivíduo recebe o seu legado num tempo e num espaço prescrito, sem
que essa pessoalidade venha a distorcer a índole ancestral e universal. O
Patrimônio reivindica o sentimento de pertença, ou seja, a dimensão de posse de
uma sucessão de realidades acasaladas ao contexto histórico. Sem essas marcas
impregnantes, a humanidade existiria no vácuo, desintegrada dos elos afetivos
e psicológicos. O real só se funda na memória e na idéia de pertencimento. O
presente é conseqüência de uma memória transfigurada. Importante acentuar:
a única forma de se ter acesso à captação do presente advém da introspecção e
da busca das reminiscências pessoais. E o que mais pertence ao ser humano se-
não a sua própria história? A lucidez do passado – tradição – legitima o senti-
mento de pertença, fortalecendo o espírito de identidade.
35
Fátima Quintas
Todo homem – homem, no sentido de humanidade – necessita aprofundar
suas raízes para dilatar os laços de “propriedade” que lhe pertencem. À medida
que a dominação de si mesmo acontece, isto é, que o legado se introjeta verda-
deiramente, o calço para a formação da personalidade se fortifica. Quem não
pertence a nada nem a ninguém levita por entre uma existência desagregada e
dissoluta. Do que se infere: o patrimônio é estruturante, porque a consciência do
sentimento de pertença garante a vértebra da identidade e do equilíbrio humano.
Em última instância: ter identidade é pertencer a um patrimônio inalienável – o
do espólio ancestral.
O FENÔMENO DA REMOTIZAÇÃO
O nascer biológico demanda a ideologia da retrospecção. A atitude remissiva se
promulga através das circunstâncias culturais que se processam por entre
internalizações nem sempre conscientes. Quanto mais inconscientes as
internalizações, maiores os efeitos de permanência. Para tanto, a “cognição cul-
tural” – ato de conhecimento de costumes, hábitos, etc. – deve desprezar artifí-
cios de aprendizado e exaltar as naturais absorções. Todos os valores alheios à
nossa experiência pessoal trazem a conotação de efemeridade, porque a
internalização não se fez espontaneamente. A cognição, para ter autenticidade,
invoca, portanto, a legitimidade da remotização. O que não é nosso é alienígena,
isto é, está fora do tronco genético da cultura.
Ora, se a criança recebe tempos passados, presentes, futuros, em momen-
tos não fragmentados, a ela não lhe pode faltar a inserção de uma história já
construída – âncora da remotização. Digo em outras palavras: o sentido do que é
remoto oferece sustentação à biografia do homem como pilar inerente à narra-
tiva pessoal, que tem começo muito antes da data de nascimento. O que é remo-
to é anterior ao tempo social vivente, mas pertence ao tempo histórico de cada
um. Exemplificando: a remotização do brasileiro não é igual à remotização do
dinamarquês. Conseqüentemente, o fenômeno da remotização valida o sentimen-
to de pertença. É, pois, a introjeção de um remoto não-vivente que chancela o
mérito dos símbolos viventes. Em última análise: a remotização consolida a or-
dem da pertença.
PATRIMÔNIO MATERIAL
a vida social das coisas
A cultura material corresponde à formaaparentemente tangível de relação com
o mundo. Nenhum objeto tem somente um uso funcional, mas, sobretudo,
significação e representação para a época – história – e para o espaço – geogra-
fia. Não se deve pensar num artefato isoladamente; há que se entendê-lo no
36
Cultura, Patrimônio e Civilização
simbolismo e no subjetivismo que dele se desprendem. O toucador não reve-
la apenas um móvel de madeira, sucupira ou amarelo vinhático: nele rostos se
projetam, cabelos se penteiam, mãos se agitam na construção de uma imagem
feminina ou masculina. A moda, o portar-se, o alimento não coexistem dissociados
da convivência com o homem; são as relações sociais que dão pigmentação ao
subjetivismo das coisas. Os objetos oferecem um grande suporte à morfologia
das diferentes culturas. Spengler já dizia que a casa reflete a forma de ser de
quem a habita (cf. A decadência do ocidente. Rio de Janeiro: Zahar, 1964).
O vestuário designa uma das mais fortes expressões de cultura. O fraque,
o colete, os espartilhos, as saias longas e franzidas patenteiam “insígnias de pres-
tígio”, no qual o ócio se torna quase obrigatório. A cadeira de balanço e a rede
sugerem a imagem de lerdeza que a cultura patriarcal tanto preconizou. Uma
fotografia, supostamente corriqueira, remete a ilações diversas: o jeito de
empertigar-se, o toque do penteado, a brilhantina no cabelo, o olhar triste acu-
sam sensações transmitidas de um tempo que parece findo, mas não o é; os
vestígios vão seguindo um destino cultural, de gerações a gerações.
Gilberto Freyre foi o primeiro antropólogo brasileiro a dedicar um interes-
se especial à Sociologia das Coisas: a apalpar a cultura material como algo meta-
tangível; a sentir as “nuances sensoriais” de uma longa mesa de jacarandá; a
absorver os sentimentos que transitaram dentro da casa-grande. E afirmou, sem
tergiversar: “A história social da casa-grande é a história íntima de quase todo
brasileiro. [...] Nas casas-grandes foi até hoje onde melhor se exprimiu o caráter
brasileiro” (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. Rio de Janeiro/São Paulo:
Editora Record, 2000. p. 56).
O ânimo proustiano de Freyre – Marcel Proust (1871–1922) foi um roman-
cista francês que facultou às coisas um valor sentimental – robustece o seu dese-
jo de tocar nos objetos para deles extrair significados mais amplos. Não é sem
razão que no seu livro Um engenheiro francês no Brasil, Gilberto inclui o diário de
Vauthier – engenheiro e arquiteto que permaneceu no Brasil entre 1840–1846 –
, assim como as suas cartas, datadas de 1840. Saliente-se que o diário do francês
foi descoberto por Paulo Prado em alfarrabista parisiense e enviado como regalo
a Gilberto Freyre – tanto que o livro supracitado é oferecido à memória de Paulo
Prado. Os comentários do francês denotam uma acuidade extraordinária no
que se refere ao detalhismo da arquitetura urbana e doméstica:
O que constitui uma cidade e lhe faz a beleza são as casas; portanto, nunca é
demais aproximá-las. Tal é ainda hoje a teoria dos brasileiros de antiga linha-
gem, para os quais o alargamento das ruas parece uma aberração. É ainda a
influência dessa idéia que explica a ausência completa de vegetação no centro das
cidades intertropicais. A vegetação significa o campo, e as árvores não são julgadas
dignas de se mesclarem às obras do homem. [...] Na arquitetura doméstica, os
37
Fátima Quintas
costumes são o espírito que engendra, a alma que dá forma à matéria (FREYRE,
Gilberto. Um engenheiro francês no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio,
1960. vol. II, p. 802, 814-815).
É o próprio Freyre que reconhece em Vhautier sua sensibilidade para
com a arquitetura do século XIX em Pernambuco:
Como deixar [...] de exprimir o meu espanto ao ver nas cartas de Vauthier, ainda
mais do que no seu diário, voltar-se o francês para as casas-grandes e os sobra-
dos de Pernambuco da primeira metade do século XIX, com o olhar de quem,
fixando-se por mais tempo no problema, acabaria talvez descobrindo aí os prin-
cipais pontos de referência para o estudo da nossa história social (FREYRE,
Gilberto. A casa brasileira. Rio de Janeiro: Grifo Edições, 1971. p. 82).
A importância concedida por Freyre à cultura material é reverenciada por
vários escritores, entre eles o historiador inglês Peter Burke que realça, no seu extra-
ordinário artigo A cultura material na obra de Gilberto
Freyre, a antevisão do escritor pernambucano. Ao mes-
mo tempo, Burke analisa as possíveis fontes que in-
fluenciaram esse olhar visionário, citando alguns es-
tudiosos que antecederam a Freyre: Franz Boas com
seu rigor etnográfico e espírito descritivo; Oswald
Spengler e os enunciados sobre a casa; Thorstein
Veblen, famoso sociólogo que se ateve com precisão
ao valor das coisas; Walter Peter (1839–1894), escritor inglês que buscava compreen-
der como as pessoas viviam, o que elas eram realmente, e como elas se mostravam,
este último também bastante enfatizado por Maria Lúcia Pallares-Burke no seu
livro Gilberto Freyre: Um vitoriano dos trópicos (São Paulo: Ed. Unesp, 2005).
A cultura material tem, sem dúvida, um lugar exponencial na História das
Mentalidades. É símbolo. É complexo social. É reflexo de um contexto gerado
pelo homem em um período histórico e em uma região distinta. Gilberto Freyre,
ao se inclinar para a narrativa íntima do brasileiro, não poderia esquecer os
artefatos que cercaram a vida dos antepassados, como afirma Peter Burke no
artigo acima citado: “Não seria possível uma história da vida cotidiana sem as
evidências da cultura material, assim como a história da cultura material seria
ininteligível se esta não fosse colocada no contexto da vida cotidiana” (BURKE,
Peter. “A cultura material na obra de Gilberto Freyre”. In: FALCÃO, Joaquim;
ARAÚJO, Rosa Maria Barboza de. [Orgs.]. O imperador das idéias. Rio de Ja-
neiro: Fundação Roberto Marinho/Topbooks, 2001. p. 68).
As coisas possuem vida. Não são inertes na sua concretude. O que faz
delas, coisas, dotadas de alma e matéria, é a sua interação com o homem.
38
Cultura, Patrimônio e Civilização
Cada móvel com um sigilo, com uma cumplicidade, com um afeto quase
externo e dizível. Um aparador do século XIX guarda silenciosamente histórias
de várias gerações. E como são discretos no seu gesto confessional!
A representação do que é táctil ultrapassa a simples materialidade física –
matriz indispensável para o acervo da História. Basta pensar nas escarradeiras,
nas conversadeiras, no urinol, na cama de solteirão,
nas namoradeiras, no hábito de deixar um pouco de
comida no prato como sinal de boa educação, nos
lustres dos salões, nas cortinas pesadas a esconder o
ambiente, nos severos leitos nupciais... para ideali-
zar-se os interiores das moradas dos séculos XVII,
XVIII e XIX. As fachadas das casas exprimem teste-
munhos valiosos. Esclareço o tema com mais uma
citação de Freyre:
Há casas cujas fachadas indicam todo o gênero de vida dos seus moradores. Os
mais íntimos pormenores, os gostos, os hábitos, as tendências. Mas não são
apenas as casas que falam e revelam a vida, o espírito e o gosto dos donos. Falam
também por sinais esses outros surdos-mudos que são os móveis (FREYRE,
Gilberto. Artigos de jornal. Recife: Edições Mozart, [s.d.]. p. 82).
PATRIMÔNIO NACIONAL
um breve histórico de suas políticas
A primeira iniciativa brasileira relacionada à proteção de monumentos históri-
cos data de meados do século XVIII, precisamente de 5 de abril de 1742. (cf.
LEMOS, Carlos A. C. O que é patrimônio histórico. São Paulo: Brasiliense, 1981). O
nobre português, D. André de Melo e Castro, Conde de Galveias, Vice-Rei do
Estado do Brasil, entre 1735 e 1749, ao tomar conhecimento das intenções do
governador de Pernambuco, Luís Pereira Freire de Andrade, enviou uma carta
de protesto pelo projeto que transformaria o Palácio das Duas Torres, construído
pelo Conde de Nassau, em quartel de tropas locais. O teorda carta demonstrava
indignação no trato com a obra holandesa, esta, merecedora da integridade que
honra as construções públicas de natureza estética e artística.
O segundo registro remete a um século depois, quando o ministro do
Império, Conselheiro Luiz Pereira de Couto Ferraz, mais tarde Visconde do
Bom Retiro, ordenou aos Presidentes das Províncias que guardassem as cole-
ções epigráficas, assim como cuidassem da reparação dos monumentos, de modo
a não dilapidar as inscrições neles gravadas – a epigrafia é a parte da paleontologia
que estuda as inscrições, isto é, a escrita antiga em matéria resistente (pedra,
metal, argila, etc.), incluindo sua decifração, datação e interpretação.
39
Fátima Quintas
Três décadas depois, o chefe da Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacio-
nal, Alfredo do Vale Cabral, percorreu as províncias da Bahia, Alagoas,
Pernambuco e Paraíba, recolhendo a epigrafia dos monumentos da região (cf.
Proteção e revitalização do patrimônio cultural do Brasil: uma trajetória, Ministério
da Educação e Cultura, Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,
Fundação Nacional Pró-Memória, Brasília, 1980).
O Imperador D. Pedro II sempre demonstrou simpatia pelos estudos his-
tóricos, mas apesar dessa vocação “acadêmica” nenhuma providência foi toma-
da durante o seu reinado para proteger os monumentos nacionais.
Com o advento da República, alguns escritores, tais como, Araújo Viana e
Afonso Arinos, preocupados com a questão do patrimônio nacional, reivindica-
ram medidas efetivas, porém não obtiveram sucesso.
Em 1922, o arquiteto Lúcio Costa, ainda estudante – formou-se em 1924 –
, empreendeu uma viagem pelas cidades históricas de Minas, com a intenção de
realizar um estudo sobre os monumentos artísticos da região. Suas impressões
foram decisivas. Ao chegar a Diamantina, maravilhado, confessa que caiu “em
cheio no passado no seu sentido mais despojado, mais puro; um passado de
verdade, que eu ignorava, um passado que era novo em folha para mim. Foi
uma revelação”. (Apud PUNTONI, Pedro. “A casa e a memória: Gilberto Freyre e
a noção de patrimônio histórico Nacional”. In: FALCÃO, Joaquim; ARAÚJO,
Rosa Maria Barboza de. [Orgs.]. O imperador das idéias. Rio de Janeiro: Fundação
Roberto Marinho/TopBooks, 2001. p. 27). Para Lúcio Costa, a arquitetura brasi-
leira colonial emblemava o que havia de mais recôndito na formação do brasilei-
ro e, vê-la de perto, transportava-o para o sentimento de origem, o núcleo inici-
al responsável pela consubstanciação do espírito nacional. O desvanecimento
do menino arquiteto denunciava o sentimento de pertença necessário à elabora-
ção da personalidade individual e coletiva. E a epifania de Diamantina provo-
cou-lhe um forte insight:
Quem viaja pelo interior de Minas percorrendo suas velhas cidades, Sabará,
Ouro Preto, São João Del-Rei, Mariana e tantas mais, não pode deixar de ter a
impressão triste que tive, a pena infinita que se sente vendo completamente
esquecidos aqueles vestígios tão expressivos do passado, de um caráter tão mar-
cado, tão nosso. Vendo aquelas casas, aquelas igrejas, de surpresa em surpresa,
a gente como que se encontra, fica contente, feliz, e se lembra de cousas que a
gente nunca soube, mas que estavam lá dentro de nós. Não sei – Proust devia
explicar isso direito. (“O Aleijadinho e a arquitetura tradicional”, artigo pu-
blicado na Edição Especial de O Jornal, em 1929).
Quando Manuel Bandeira escreve, em 1938, seu Guia de Ouro Preto
(informe-se que, em 1934, Gilberto Freyre publicou o primeiro Guia de cida-
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Cultura, Patrimônio e Civilização
de no Brasil, o Guia prático, histórico e sentimental da cidade do Recife, com
ilustrações de Luís Jardim, e em 1939, Olinda – 2º Guia prático, histórico e senti-
mental de cidade brasileira) partilha do sentimento comum ao seu grupo-geração
– o de fisgar da arquitetura vernacular a verdadeira história do Eu brasileiro. Dessas
casas proviam os fantasmas do passado. A vida dos que lá moraram dizia da vida dos
indivíduos que integram a Nação brasileira. O poeta Bandeira, assim se coloca:
Para nós brasileiros, o que tem força de nos comover são justamente esses
sobradões pesados, essas frontarias barrocas, onde alguma coisa de nosso come-
çou a se fixar. A desgraça foi que esse fio de tradição se tivesse partido (BAN-
DEIRA, Manuel. Guia de Ouro Preto. Rio de Janeiro: Editora da Casa do
Estudante do Brasil, 1957. p. 43-45).
Retorno à cronologia das políticas adotadas em defesa do patrimônio na-
cional. Em 1924, ocorre a histórica viagem a Minas, capitaneada pelos modernis-
tas de São Paulo – Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral,
acompanhados de d. Olívia Guedes Penteado, René Thiollier e Godofredo da
Silva Telles. Tal viagem simbolizou um marco na história do patrimônio brasilei-
ro e teve o propósito de levar o poeta francês, Blaise Cendrars, a conhecer as
cidades históricas mineiras. O esclarecedor artigo de Pedro Puntoni, já
referenciado, traz à tona inúmeras questões de grandeza incontestável. Alerta:
O fato dos nossos modernistas irem mostrar ao homem da vanguarda francesa
nossas velhas cidades, com seus casarões e igrejas carcomidas pelo tempo, não
passa de aparente paradoxo. Antes de tudo, revela muito da necessidade de cons-
trução de uma identidade no bojo do movimento de atualização estética
(PUNTONI, Pedro. Op. cit., p. 83).
Provavelmente Puntoni se refere à avidez inovadora da Semana de Arte
Moderna, aconte cida em São Paulo, em 1922. É da máxima relevância frisar que
o autor não lhe subtrai o devido valor – o que é sabido e consabido por todos os
que cultuam uma vida intelectual. O que não se deve, entretanto, aqui realço
uma opinião pessoal – que fique bem clara, apenas opinião pessoal –, é procla-
mar unilateralmente uma convergência quase fatalista dos sopros lançados pela
Semana de Arte Moderna. Entre exaltações e extremismos, há um equilíbrio que
deve nortear a emoção mesmo daqueles que empunharam bandeiras
vanguardistas. O Brasil “transigiu” na pintura, na prosa, na poesia, enfim, na
arte e na escrita, mas “transigiu” basicamente na forma que, embora alavancada
pelos ecos modernistas, jamais deixou de imprimir o ex-libris da brasilidade. A
Semana de Arte Moderna sintetizou um divisor d’águas: para uns, com fustigantes
criações; para outros, com derrotismos importados aleatoriamente.
41
Fátima Quintas
Não é demais repetir: Gilberto Freyre sempre se aliou à cultura material,
vista pelo ângulo arquitetônico e pelo aspecto interacional homem-artefato. Já
havia se impressionado com as palavras de Lúcio Costa, publicadas em 1929, em
edição especial de O Jornal, tanto que as utilizou no Prefácio à primeira edição
de Casa-grande & senzala. Aproveito para transcrever parte da carta de Manuel
Bandeira, escrita em 23 de março de 1935, de Cambuquira, Minas Gerais, na
qual se observa a troca de idéias entre os dois amigos, ambos susceptíveis aos
encantos dos casarões, dos telhados, das ruas antigas.
Afinal desencantei a viagem a Cambuquira. Estou aqui desde o dia 15, e parece
que as águas estão me fazendo grande bem. [...] Anteontem fui numa excursão
a Campanha, cidadezinha morta que fica a uns ¾ de hora daqui. Faz agora
justamente 30 anos que cheguei lá carregado. Verifiquei que era um camelo em
1905, pois não senti então a delícia que são aquelas ruas tão simples, tão modes-
tas, com os seus casarões quadrados, quase todos com bicos de telhado em forma
de asa de pombo. Há lá uma rua Direita (hoje tem nome de gente) que é um
encanto: tão genuinamente brasileira, tão boa, dando vontade de morrer nela
(Arquivo da Fundação Gilberto Freyre).
O poeta e o ensaísta se complementavam, desde então, em claras aproxi-
mações. Freyre, ao antecipar os estudos de vida íntima na Antropologia, numa
época em que a abordagem positivista exortava os “dogmas” da metodologia
científica, lança novos olhares para osocial, trazendo a lume discussões verda-
deiramente madrugadoras. Tanto que o primeiro estudo sobre a arquitetura
vernacular brasileira publicado pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, em 1937, tem a assinatura de Freyre.
A mentalidade patrimonial começava a florescer de maneira sistêmica. Já
não era possível frear os apelos de um grupo de intelectuais empenhados na
luta pela criação de um órgão ligado à defesa dos monumentos nacionais. Cou-
be a Gustavo Capanema, ministro da Educação e Saúde (1934–45), transformar
a iniciativa em lei federal. São suas as palavras:
Nos princípios de 1936, sendo Ministro da Educação, e às voltas que então já
andava com os nossos múltiplos assuntos culturais, lembrou-me mandar fazer
o levantamento da obras de pintura, antigas e modernas, de valor excepcional,
existentes em poder dos particulares, na cidade do Rio de Janeiro. [...] Mas vi
que isso só, sendo embora coisa relevante, não teria o sentido compreensivo e
geral de um cometimento de tal natureza. [...] A idéia inicial, deste modo, se
transformava num programa maior que seria organizar um serviço nacio-
nal para a defesa do nosso extenso e valioso patrimônio. [...] Logo me ocor-
reu o caminho: Telefonei para o Mário de Andrade, então Diretor do Departa-
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Cultura, Patrimônio e Civilização
mento de Cultura da Prefeitura de São Paulo. Expus-lhe o problema e lhe pedi
que organizasse o projeto. (CAPANEMA, Gustavo. “Rodrigo: espelho de
critério”, In: A lição de Rodrigo. Recife: Amigos do DPHAN, 1969, p. 41).
Consigne-se, por dever de justiça, que Rodrigo Melo Franco de Andrade
exerceu um papel imprescindível na implantação desse programa, razão pela
qual, em 1936, foi nomeado diretor do recém-criado Serviço do Patrimônio His-
tórico e Artístico Nacional (SPHAN), ainda em fase de experimentação, embora
aprovado pelo presidente da República, Getúlio Vargas. Finalmente, no dia 30
de novembro de 1937 foi promulgado o Decreto-lei nº 25, efetivando a institui-
ção em moldes oficiais. O projeto de Mário de Andrade recebeu algumas altera-
ções de Rodrigo M. F. de Andrade, não sendo afetado, entretanto, nas suas
linhas gerais. A chamada “fase heróica” do SPHAN estende-se de 1936 a 1967,
período da gestão de Rodrigo M. F. de Andrade, o grande incentivador das
políticas públicas direcionadas ao tema.
Ainda em 1930, quando o único serviço de proteção do patrimônio se estruturava
no Museu Histórico Nacional, sob a direção de Gustavo Barroso, Rodrigo M. F.
de Andrade pensara em nomear Gilberto Freyre para a função. O que lhe impe-
diu foi a situação política do sociólogo, que se via, então, no exílio em Lisboa. [...]
Segundo Lauro Cavalcanti [no artigo “O cidadão moderno”, Revista Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro, 24; p. 114, 1996], quando o SPHAN
foi finalmente criado, ter-se-ia cogitado a nomeação do sociólogo para diretor
(regional?), o que foi vetado por Agamenon Magalhães. Em uma carta de 14 de
janeiro de 1938 endereçada a Capanema, o interventor recusou a indicação por
esse “haver participado do movimento comunista de 1935” [sic] e se recusado,
em 1937, “a fazer uma preleção anticomunista, ordenada pelo reitor”
(PUNTONI, Pedro. Op. cit., p. 91-92)
Durante o “período heróico”, comandado por Rodrigo de M. F. de
Andrade, ocorreram 689 tombamentos, sendo que 529 referentes à fase colonial,
confirmando a importância da arquitetura vernacular do oitocentos, como
arcabouço fundante da nossa identidade. Não há como hesitar: a cultura mate-
rial representa a grande depositária do espaço arquitetônico e social da memória
coletiva do brasileiro – “é um passado que se estuda tocando em nervos, um
passado que emenda com a vida de cada um”, adverte Gilberto Freyre (Casa-
grande & senzala, p. 56).
A segunda etapa do SPHAN é chefiada por Renato Soeiro e vai de 1967 a
1979, devendo-se assinalar que, em 27 de julho de 1970, por Decreto, o Ministé-
rio da Educação e Cultura transforma a Diretoria do Patrimônio Histórico, Ar-
43
Fátima Quintas
tístico Nacional em Instituto, o IPHAN. Resumindo o caminho percorrido pelo
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), elenco:
a. a sua criação, no dia 30 de novembro de 1937, Decreto-lei nº 25, com o
nome Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN);
b. transformação em Diretoria (DPHAN), em 2 de janeiro de 1946, pelo
Decreto-lei nº 8.534;
c. Finalmente Instituto (IPHAN), em 27 de julho de 1970, por novo Decre-
to-lei nº 66.967, designação até hoje utilizada.
Há nomes que devem ser lembrados na luta pelo patrimônio: o de Aluízio
Magalhães – idealizador do Centro Nacional de referência Cultural –, o de Pau-
lo Duarte, o de Mário Melo, o de Aníbal Fernandes, o de Airton Carvalho, entre
outros. À obstinação e à tenacidade de um grupo de intelectuais brasileiros do
Nordeste, do Sudeste e de outras regiões, deve-se o surgimento de um pensa-
mento voltado para a riqueza do nosso patrimônio vernacular. Sem essa dispo-
sição para inventariar a cultura material do Brasil, teria sido muito difícil recapi-
tular os meandros por onde transitaram os nossos antepassados.
***
Preservar não é somente guardar o artefato, mas mantê-lo vivo na sua
contextualização. Os museus, por exemplo, requerem um tratamento de todo
especial, de modo a escapar do isolamento e de um possível estatismo do objeto
exposto. A sociedade se mostra como uma tecelagem cuja urdidura se fabrica
em bases relacionais – fenômenos entrançados e interativos. A cultura material
faz parte dessa trama cheia de ramificações. As genealogias objetivas e subjetivas
“nomeiam” as entrelinhas do fato social, não importando se egressas de
concretudes visíveis ou de subterfúgios implícitos à realidade em mira.
TRADIÇÃO E MEMÓRIA
Os nexos de uma consciência vivente perduram enquanto há memória. O traço
de individualidade tributa às lembranças acumuladas um crédito de valor
intransferível. Recordar pode vir a ser uma leveza de fruição ou um peso trau-
mático do passado que vai e que vem num círculo vicioso. O escritor colombia-
no Gabriel García Márquez diz na epígrafe da sua autobiografia: “A vida não é a
que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la”.
Desse contar ribomba a construção existencial de cada um. As biografias hu-
manas comportam vivências extraordinárias, ou seja, experiências para além
do que é plausível à observação ordinária. A elas outorga-se a consistência
ontológica, porque a ausência do não feito redundaria no nada. Na memória
habita a textura do ser.
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Cultura, Patrimônio e Civilização
Somos tempos: passado, presente, futuro. O passado conserva a soli-
dez do acontecido – fundação do ciclo vital do indivíduo. Há um passado-
vivente e um passado não-vivente. O que quero dizer com isso: o passado-vivente
resulta das experiências de ontem, de um passado participante da nossa histó-
ria, o que já foi vivido em sentido pleno. Ao distanciar-se da presentificação, o
factual adentra em um tempo que se aloja na memória, resistindo, assim, às
várias “interrupções” e recriando-se no processo da transmutação. As lembran-
ças cabem nessa memória, mas já não são vivências, e sim recordações transfi-
guradas. Do passado-vivente, a memória reelabora o experienciado através de
uma narrativa fantasmática. O passado não-vivente é o que se desloca até a
ancestralidade – herança recebida de uma história da qual não participamos,
ainda que sujeito posteriori desta história, então incrustada dentro de uma famí-
lia, de um sistema de parentesco, de alianças afetivas, enfim de uma comunida-
de, ou seja, daquilo que é comum ao grupo. O passado-vivente e não-vivente con-
cebe pactos de pertença, de modo a ajustar o homem às suas referências psicoló-
gicas e culturais.
Tradição, do latim traditio, traditionis, derivado do verbo tradere, significa
entregar, transmitir, legar à geraçãoseguinte. Embora o verbo se referisse, de
início, à transmissão de coisas triviais, ao termo acresceram-se as reservas
marcantes de um passado que repercute no presente e, presumivelmente, no
futuro. Logo, tradição é a transmissão oral de fatos, lendas, acontecimentos, de
idade em idade, de geração em geração através do fio condutor dos testemunhos.
Aqui dois aspectos sobressaem: o da oralidade e o da transmissão. O da oralidade
reúne a concepção primeira, no sentido de veicular os costumes e hábitos que
incidiam no imaginário coletivo dos povos ágrafos. Tal versão perdurou por lon-
go tempo e ainda perdura com bastante vigor ao acoplar os nichos de contami-
nação de uma realidade para outra, isenta de registros escritos. Naturalmente
que a tradição vem sofrendo reelaborações e, na contemporaneidade, o signifi-
cado se alarga, abarcando escrituras reveladoras de passados. Entretanto, os
estudiosos mais ortodoxos aceitam a tradição apenas no seu viés de oralidade.
Na tradição escrita perder-se-iam os elementos de espontaneidade e a força da
narrativa verbal, ou seja, a força do significante.
A transmissão se acasala à tradição numa simbiose perfeita. Não se pode
pensar uma sem a outra. Ambas se equivalem em grau e intensidade. Jamais
acontecerá tradição sem transmissão, embora nem toda transmissão seja tradi-
ção. Transmitir não é sinônimo de tradição; tradição é sinônimo de transmissão.
Por conseguinte, a etimologia da palavra tradição conserva a chama da
historicidade.
O homem tem na tradição o seu ponto de origem. E precisa não só recebê-
la como espólio de um passado não-vivente, como aceitá-la para se construir em
humanidade. A tradição diz do passado não-vivente, da memória ancestral, de
45
Fátima Quintas
um longe que parece não ser nosso, mas que o é, com todos os seus fluxos e
refluxos. Arredios aos resíduos desse legado, os continuísmos se romperiam,
desagregando a pirâmide psíquica. Um homem sem raízes é um homem morto
na sua integração ao mundo – alado, solto, imbuído da síndrome de orfandade
cultural.
Reavivo o princípio da pertença porque é deste sentimento que se sugam
os ajustes e os desajustes do Sujeito pensante. A sua ausência inflamará sérias
distorções, provocadas pela carência sociocultural. Os conluios formados pelos
grupos carimbam exatamente a necessidade dos selos coletivos: ligamentos cultu-
rais que se firmam para sancionar a homogeneidade do complexo sociológico.
Cumpre afiançar que o patrimônio, a memória, a tradição confluem em
um mesmo direcionamento, qual seja, o do sentimento de pertença. Sem ele, tor-
na-se complicado sedimentar laços identitários, uma vez que a pessoalidade
demanda um mastro de valores comuns para os quais converge a imprescindí-
vel sensação de pertencer a alguém ou a algo que assegure solidez existencial.
REGIÃO E REGIONALISMO
Os tópicos acima referenciados vão desaguar na idéia de região-regionalismo.
Por região, aqui se conceituam os vetores físicos e culturais delimitados pelo
espaço; por regionalismo, amplia-se o conceito a padrões atinentes a um grupo
cultural que pode estar inserido em um dado espaço ou dele transcender, im-
portando para outros locais os pressupostos valorativos que o balizam. Tomo
como exemplo as manifestações culturais congêneres em regiões diferentes.
Ressalte-se, contudo, que o regionalismo encrava-se dentro do processo
civilizatório mais amplo, isto é, dentro da Civilização onde os blocos culturais se
encaixam. Portanto, o regionalismo subjaz à Civilização e não extrapola, na sua
dimensão autêntica, os seus pontilhados.
O mundo globalizado, por incrível que pareça, tem recrudescido os prin-
cípios do regionalismo justamente porque abala o sentimento de pertença, trisca
as raízes, uniformiza realidades. Pertencer a um mundo anônimo e impessoal
não é pertencer a uma região que tem nome e proximidade. Há um fosso enor-
me entre uma coisa e outra. O mundo representa a exterioridade maior, algo
superior à apreensão de cada um, aquilo que se esgueira para além das possibi-
lidades do indivíduo. Igualar diferenças é anular identidades. Padronizar costumes
é dissolvê-los numa atmosfera de ninguém. Por essa razão, que leva a uma
outra, a da busca de origem, o regionalismo tende a fortalecer os sinais pecu-
liares a um conjunto cultural: seus padrões distintivos. E antes do homem
diluir-se nos fantasmas da globalização, ele vem intentando realçar os
atavismos, o que quer dizer: as aderências à origem.
O regionalismo não pode ser compreendido em oposição ao
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Cultura, Patrimônio e Civilização
universalismo. Esse aspecto é de natureza primordial para um bom
discernimento do postulado. Um depende do outro para que se assentem
em estacas duradouras. Do contrário, prevaleceriam extremos inaceitáveis.
Da pequena aldeia de Tolstoi se desenhará o mundo, assertiva de caráter
indiscutível. A linha de intersecção que cabe entre a parte e o todo estabele-
cerá a primazia da unidade.
No Brasil, a primeira voz a levantar-se em favor de uma visão regional
foi a de Gilberto Freyre, em 1923, quando cria informalmente o Centro
Regionalista:
Toda terça-feira, um grupo apocalíptico de “Regionalistas” vem se reunindo
em casa do professor Odilon Nestor, em volta da mesa de chá com sequilhos
e doces tradicionais da região – inclusive sorvete de Coração da Índia. Discu-
tem-se então, em voz mais de conversa que de discurso, problemas do Nor-
deste (FREYRE, Gilberto. Manifesto Regionalista. QUINTAS, Fátima
(Org.). 7. ed. Recife: Editora Massangana, 1996. p. 49).
Ao voltar de viagem dos Estados Unidos e Europa – onde permaneceu
cinco anos –, exatamente em 1923, Freyre se estonteia com a devastação do Reci-
fe, sentindo-se agredido na sua própria cidade, onde o traçado urbanístico mais
remoto desmantelava-se. O Recife começava a doer-lhe, como segredava
Unamuno em relação à Espanha. Reagindo à descaracterização causada por
uma falsa modernidade, realiza, em 1926, o primeiro Congresso Regionalista a seu
modo Modernista, momento no qual leu o seu manifesto. Eis alguns fragmentos:
Pois de regiões é que o Brasil, sociologicamente, é feito, desde os seus primei-
ros dias. [...] Somos um conjunto de regiões antes de sermos uma coleção
arbitrária de “Estados”, uns grandes, outros pequenos. [...] Regionalmente é
que deve o Brasil ser administrado. É claro que administrado sob uma só
bandeira e um só governo, pois regionalismo não que dizer separatismo. [...]
Regionalmente deve ser estudada, sem sacrifício do sentido de sua unidade, a
cultura brasileira, do mesmo modo que a natureza; o homem da mesma
forma que a paisagem (FREYRE, Gilberto. Ibid., p. 50, 51).
Com o igual propósito de conclamar a gênese do povo, Freyre já orga-
nizara, em 1925, o Livro do nordeste, comemorativo do centenário do Jornal
Diario de Pernambuco, livro esse que foge dos parâmetros esperados e trans-
forma-se em um verdadeiro hino ao ethos nordestino. Mais uma vez o escri-
tor pernambucano encorpa o sentido de brasilidade, evocando o passado
arquitetônico vernacular em todos os seus matizes: materiais e subjetivos.
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Fátima Quintas
O respeito ao regionalismo engrandece a imagem do Nordeste: da sua
cultura, da sua fecundidade, do seu pluralismo. Ter consciência dos frutos
que desabrocharam da história do massapê equivale a enaltecer as tradições,
o patrimônio, a memória, enfim, o complexo civilizatório que se difundiu a
partir da monocultura açucareira. Nunca é demais esmiuçar a edificação so-
cial do triângulo rural – casa-grande, incluindo a senzala, engenho/fábrica e
capela – para alcançar um ethos que se espraiou, com as devidas adequações,
por todo o território brasileiro. Não temo afirmar que as fazendas de café, de
cacau, de gado adotaram o mesmo modelo patriarcal das construções
vernaculares do massapê canavieiro. Mesmo os que enriqueceram com o
ciclo da mineração desejaram alongar-se nos referenciais do sistema

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