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também a sentir o medo da morte como algo concreto. Isso tudo sem dúvida se refletiu no livro. Hoje. acredito que um escritor que não conhecesse o medo, a dor e o desespero não teria uma visão completa do universo de Goya. Não estou dizendo, é óbvio, que seja necessário quase perder a vida num acidente para entender um artista. Mas isso certamente facilitou a apreciação da maté-ria-prima de sua obra. o sofrimento. Veja — Em seu recém-piiblicado volume de memórias, o senhor conta como uma viagem a Florença durante a enchente que destruiu boa parte da cidade italiana e de seus tesouros, em 1966, fixou sua crença no valor do passado para a arte. Por que chegou a essa conclusão? Hughes — Em Florença, vivi a expe- riência de encontrar destroços de peças renascentistas em meio à lama, uma tra- gédia que me fez compreender de uma vez por todas que aquilo que foi criado no período de ouro da arte é insubstituí- vel. Não apenas porque não se pode- riam refazer tais obras. Vivemos numa era muito pobre em matéria de artes vi- suais. Hoje se podem encontrar bons escultores e pintores, mas a ideia de que a arte amai possa um dia se igualar às enormes realizações do passado é um disparate. Nenhuma pessoa séria, por mais que se empolgue com a arte con- temporânea, poderia acreditar que ela um dia será comparada àquilo que foi feito entre os séculos XVI e XIX. Veja — Como as pessoas podem se re- lacionar com a obra dos grandes pin- tores do passado? Hughes — Olhando para o que eles pro- duziram. Aprendendo a entender e a amar sua arte. Os mestres da pintura se relacionam a nós da mesma forma que as grandes obras literárias e as composi- ções musicais do passado. Como o ho- mem atual pode se relacionar com Cer- vantes? Por meio da leitura de sua obra. Dom Quixote continuará sendo uma his- tória contemporânea em qualquer tempo e lugar. É preciso ter em mente que a arte é feita antes de tudo para deliciar os olhos e o espírito. É por meio desse apelo intuitivo que ela nos arrebata e conduz, no fim das contas, a um conhecimento mais profundo de nossa nature/a. Veja — Qual o papel das artes plásticas na formação cultural de uma pessoa? Hughes — Não recomendo que se olhe para os grandes artistas com o intuito de atingir um nível cultural superior, pois, como já disse, o objetivo maior da arte é dar prazer. Mas posso falar de seu ca- ráter enriquecedor pela minha própria experiência. Muito antes de eu me tornar um crítico, a arte desempenhou urn "Vivemos numa era muito pobre em matéria de artes visuais. Hoje se podem encontrar bons escultores e pintores, mas a ideia de que a arte atual possa se igualar às enormes realizações do passado, entre os séculos XVI e XIX, é um disparate" papel fundamental em minha vida. na medida em que me fez entender certas questões existenciais mais claramente do que qualquer livro ou aula teórica o fariam. Seria um exagero dizer que se pode educar alguém por meio da arte. Mas ela é capaz de fazer de nós pessoas melhores e mostrar que existem muitos mundos além do nosso umbigo. Veja — Certas correntes do modernismo difundiram a ideia de que o passado é um peso do qual a arte precisa se livrar. O que o .senhor pensa disso? Hughes — A noção de que há uma oposição entre o presente e o passado é estúpida. Trata-se de uma deturpação vulgar do ideário modernista de primeira hora. Ele consistia em questionar o tradicionalismo. mas não a herança dos antigos mestres. Os futuristas ita- lianos, é verdade, chegaram a propor a destruição das obras de arte criadas no passado — como se fosse possível apagar sua influência apenas com sua extinção por meios físicos. Mas o fato é que toda arte digna de nota feita no sé- culo XX se baseou no passado. Os mo- dernistas que realmente importam, co- mo Matisse e Picasso. nunca se pauta- ram por sua rejeição. Muito pelo con- trário: as fontes de que extraíram sua inspiração foram os artistas da Renas- cença e do século XVIII. Veja — O senhor teve contato pessoal com artistas como o americano Andv Warhol. Quais suas impressões dele? Hughes — Warhol foi uma das pessoas mais chatas que já conheci, pois era do tipo que não tinha nada a dizer. Sua obra também não me toca. Ele até pro- duziu coisas relevantes no começo dos anos 60. Mas, no geral, não tenho dú- vida de que é a reputação mais ridicu- lamente superestimada do século XX. Veja — E quanto ao francês Mareei Duchamp? Hughes — Foi um prazer conhecê-lo, embora certamente não seja o primeiro artista em minha lista dos mais im- portantes de sua época. Sua elevação à condição de figura "seminal" nunca me convenceu. Já vi de perto todos os trabalhos que ele fez e nunca obtive nenhum prazer com eles. Duchamp não foi um grande artista, e sim um homem de ideias notáveis. Pessoal- mente, prefiro um pintor como o francês Pierre Bonnard. Muita gente considera Duchamp um deus e Bonnard um impressionista enfadonho. Mas eu gostaria muito mais de ter em casa um de seus belos quadros do que um tra- balho de Duchamp. Além disso, a in- fluência de Duchamp sobre a arte con- temporânea foi liberadora, mas tam- bém catastrófica. Veja — Por quê? Hughes — Porque ser o pai dessa boba- gem chamada arte conceituai não é uma distinção de que se orgulhar. Para com- preender o tamanho do estrago, basta dizer que sem ele hoje não haveria as chamadas instalações, aquelas obras tolas em que o espectador é convidado a passar por túneis e outros recursos in- fantis. Ou precisa ler uma bula para en- tender o que o artista quis dizer. Veja — Nos últimos anos, obras de grandes artistas atingiram preços as- tronómicos em leilões. O que explica que se paguem 104 milhões de dólares por uma tela de Picasso? 14 25 de abril, 2007 veja
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