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Hughes — Francamente, não consigo 
imaginar uma boa razão. Os preços se 
tornaram tão obscenos e sem sentido que. a 
meu ver, só podem ser resultado de algum 
tipo de doença social. As pessoas que se 
sujeitam a pagar tanto por um quadro são 
movidas por motivações ridículas, como 
ostentar seu prestígio e poder. Não 
compactuo com essa insanidade. 
Veja — Não há arte que valha tanto 
assim ? 
Hughes — Para mim. nem a maior obra-
prima. A supervalorização atende aos 
interesses de certos marchands e cole-
cionadores, mas é danosa para a arte. 
Passa-se a valorizar um artista ou ten-
dência em função de seu cacife no mer-
cado, e não da importância de suas rea-
lizações. Além disso, sua transformação 
em bem de consumo de luxo muitas vezes 
dificulta que um dia o grande público 
possa contemplá-las em museus. 
Veja — Nas últimas décadas, o inte-
resse pelas artes plásticas parece ter 
diminuído — desde sua saída da Time, 
por exemplo, a revista não tem dado o 
mesmo destaque ao tema. A arte perdeu 
sua centralidade? Hughes — É triste, 
mas o fato de as pessoas terem 
obsessão pêlos altos preços pagos por 
quadros famosos não significa que elas 
queiram saber algo mais sobre arte em 
si. Ela passou a ser vista apenas corno 
um item a mais no cardápio do 
entretenimento, como as atrações do 
cinema e da TV. E tambe'm a ser 
avaliada com base nos mesmos 
parâmetros. Fala-se de um artista não 
por sua relevância, e sim pelo valor 
que suas obras atingem — como se 
fosse o orçamento milionário de um fil-
me. Ou então por sua popularidade — 
como se fosse o índice de audiência de 
um programa. É uma visão distorcida. 
Veja — Em suas memórias, o senhor 
comenta que os 3 200 dólares atingidos 
por um trabalho de Robert Raus-
chenberg nos anos 60 não dariam para 
pagar dois drinques de Damien 
Hirst, o mais incensado artista inglês 
atual. A arte contemporânea está su-
pen>alori~ada? 
Hughes — É claro que sim. Daqui a 
vinte anos, veremos quanto se pagará 
pelas obras de um sujeito como Hirst 
— que, aliás, não me interessam nem 
um pouco. Hirst e outros de sua gera- 
ção fazem do escândalo uma arma de 
marketing. Mas um renascentista co-
mo Piero delia Francesca conseguiu 
ser radical num nível que ele nunca 
passou nem perto de alcançar. 
Veja — O que o senhor pensa desse es-
forço dos curadores de museus para 
"Não ligo a mínima para 
bienais. Elas hoje têm 
relevância só para os 
negociantes de arte. Por 
baixo da fachada 
novidadeira, a maioria 
desses eventos 
se transformou em 
feiras vulgares. 
A atmosfera do 
circuito internacional 
de arte é corrupta, 
vive de criar modismos 
para faturar" 
transformar as exposições em entrete-
nimento para as massas? Hughes — 
Não sou contra o entretenimento, em 
princípio. Só penso que não é função 
do museu preocupar-se em produzir 
eventos com esse fim. Há mostras 
maravilhosas que calham de ser 
realmente populares. Só que pode 
haver outras também maravilhosas, 
mas que não têm tanto apelo — e é 
saudável que os museus continuem 
lhes dando espaço. É impossível deter-
minar a qualidade de uma exposição 
em função de seu sucesso de público. 
Veja — Para alguns especialistas, 
eventos como as bienais de São Paulo 
e Veneza tornaram-se obsoletos. O se-
nhor concorda? 
Hughes — Não ligo a mínima para bie-
nais, trienais, quadrienais ou coisas que 
o valham. Elas hoje têm relevância apenas 
para os negociantes de arte. Por baixo da 
fachada novidadeira, a maioria desses 
eventos se transformou em feiras 
vulgares. Nunca estive na Bienal de São 
Paulo. Mas a de Veneza eu conheço 
bem. Alguns anos atrás, fui convidado a 
colaborar com seus organizadores e me 
vi em tal pesadelo que renunciei a meu 
posto. Já que é tudo comércio, melhor 
deixar para quem entende disso. 
!$a — Países relativamente novos como o 
Brasil e a Austrália estão destinados a ter 
sempre um papel secundário na arte? 
Hughes — Não direi que será sempre 
assim. Mas eles enfrentam um problema 
e tanto: não têm controle sobre o 
mercado. Parece-me inusitado que a 
Austrália amargue uma presença pró-
xima do zero na arte mundial enquanto 
qualquer porcaria que se produz na 
Califórnia logo alcança visibilidade. A 
atmosfera do circuito internacional de 
arte é corrupta, já que se vive de criar 
modismos e falsos novos génios para 
faturar. Essa é uma das razões pelas 
quais eu me aposentei como crítico. 
Prefiro me concentrar em alguns artistas 
cujo trabalho realmente importa a ver 
minhas resenhas sendo usadas para inflar 
as cotações alheias. O presente, em arte, 
é sempre um terreno pantanoso e sujeito 
aos golpes de marketing. Tome-se como 
exemplo o carnaval que se faz no 
momento a respeito da arte chinesa. A 
maior parte do que se convencionou 
rotular de pós-modernismo chinês é apenas 
uma empulhação bem promovida pêlos 
marchands e casas de leilões. As vítimas 
deles são os colecionadores no-vos-ricos 
que pululam pelo mundo afora e 
compram tudo o que vêem pela frente. 
Eles podem ter dinheiro, mas não pas-
sam de idiotas e vítimas da moda. 
Veja — Antes de se tornar um crítico, 
o senhor atuou como cartunista e tam-
bém pintava. Há alguma verdade no 
velho cliché de que todo crítico é um 
altista frustrado ? 
Hughes — Absolutamente nenhuma. 
Eu me considero um artista completo, 
nem um pouco frustrado. Minha arte é 
escrever. Nunca tive inveja dos artistas 
nem escrevi nada com o intuito de me 
vingar deles. 
Veja — O senhor coleciona arte? 
Hughes — Não, por incrível que pareça. 
Tenho algumas gravuras de Goya que 
adquiri ainda na juventude e também 
telas de minha mulher. Dons. Mas nun 
ca fui um colecionador. E vou lhe dizer 
por quê: logo descobri que. como críti 
co, isso não seria ético. • 
 
 
 
25 de abril, 2007 15

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