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Kanaví ll il Rajagopalan Dina Maria Martins Ferreira Organizadores h:\M Editora\!2J Mackenzie I POLlTICAS EM LINGUAGEM I SILVA,T. T. (Org.) Identidade e diferença. Petrópolis: Vozes, 2000. VEIGA ETO, A. Incluir para excluir. In: LARROSA,].; SKlIAR, C. Habitantes de Babel: políticas e poéticas da diferença. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. WOODWARD, K. Identidade e diferença. Uma introdução teórica e con- ceitual. In: SILVA,T. T. (Org.). Identidade e diferença. Petrópolis: Vozes, 2000. XIMENES, D. Modernidade reflexiva e aualiaçâo no contexto das transforma- ções do ensino superior. 2001. Tese (Doutorado) - Universidade de Brasília, Brasília, 2001. 140 PARTE 2 POR UMA ANÁLISE CRíTICA o ENSINO DE lÍNGUA PORTUGUESA E A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES MARIA LUIZA M. S. COROA*l o CENÁRIO DA REFLEXÃO Neste artigo, procuro focalizar alguns aspectos relativos às contribuições que as teorias lingüísticas podem dar ao exer- cício das práticas sociais e discursivas - e, conseqüentemente, da construção de identidades - que ocorrem em um espaço institucional bem demarcado: a sala de aula. Maria Luiza M. S. Coroa é doutora em Lingüística, com pós-doutorado pela Universidade Estadual de Campinas, e docente da Universidade de Brasília. Além de vários artigos na área de Linguagem e Educação, publicou O tempo nos verbos do português - uma introdução à sua interpretação semântica, com reeclição pela Editora Parábola. As reflexões aqui apresentadas fazem parte de um projeto de pesquisa mais amplo, Discurso e ensino: contextos em construção de identidades. Por isso, algumas das idéias abordadas já foram objeto de apresentações em congres- sos, cursos e eventos semelhantes; outras ainda estão sendo objeto de análise mais detalhada. 143 I POLlTICAS EM LINGUAGEM I Nesse contexto, discutir sobre a construção de ide tid.n 1 a- des reveste-se de um duplo valor. Ao mesmo tempo que as identidades são construídas (como quaisquer outras) em espa- ços ideológicos e sociais afetados pela plurissignificação dos discursos, elas também são tomadas como objeto de um fazer pedagógico - sendo, portanto, identidades construídas a par- tir de escolhas até certo ponto conscientes. Nestes últimos anos, qualquer discussão a respeito do objeto a ser ensinado nas escolas sob o rótulo de "Língua Por- tuguesa" evoca seu documento norteador: os Parâmetros Curri- culares Nacionais (PCN). Dentre outras modificações de fundo para a educação brasileira, esse documento deu feição oficial e nacional a uma abordagem que já vinha sendo amplamente discutida nas pesquisas lingüísticas: considerar o texto como a unidade privilegiada no trabalho pedagógico. O vínculo entre o ensino de Língua Portuguesa e o percurso histórico da pes- quisa lingüística é reconhecido em todos os documentos dos Parâmetros Curriculares Nacionais. Estabelecemos, neste texto, uma interlocução entre o do- cumento norteador dos ciclos de 5a a 8a séries e as abordagens teóricas aí implicadas. Nesse documento, encontramos, por exemplo, uma reflexão: A nova crítica do ensino de Língua Portuguesa, no en- tanto, só se estabeleceria mais consistentemente no iní- cio dos anos 80, quando as pesquisas produzidas por uma lingüística independente da tradição normativa e filológica e os estudos em variação lingüística e psicolin- güistica, entre outras, possibilitaram avanços na área da educação e psicologia da aprendizagem, principalmente 144 I o ENSINO DE LlNGUA PORTUGUESA E A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES I no que se refere à aquisição da escrita ['..l (BRASIL, 1998, p. 17)2. Após reconhecer essa vinculação, devemos nos questio- nar sobre o que significa uma tomada de posição "independen- te da tradição normativa e filológica". Não podemos chegar a uma resposta adequada a essa pergunta esquivando-nos da re- flexão sobre as conseqüências de diferentes concepções de lín- gua para as estratégias a ser adota das no processo de ensino- aprendizagem. O corpo de conceitos básicos que servem de ligação entre a pesquisa teórica e a prática do professor - es- pecialmente do professor de ensino fundamental e médio - direciona o trabalho docente, mesmo que disso não tenham plena consciência os atores envolvidos. Esses conceitos básicos dão sustentação tanto à formação do professor quanto aos di- plomas legais que servem de parâmetro para as práticas peda- gógicas. É principalmente para esse segundo aspecto que diri- gimos o início desta reflexão. Como resultado do referencial teórico utilizado, percebe- mos que os objetivos e as atividades de ensino são conseqüên- cia de como entendemos o objeto de trabalho denominado Língua Portuguesa: as diferentes concepções resultam em dife- rentes práticas", Uma proposta que privilegia o ensino da unidade texto, como a dos PCN, compromete-se com um corpo de "verdades teóricas" que implicam o redirecionamento tanto da postura do 2 Tanto essa citação quanto as demais extraídas dos PCN referem-se ao volume de apresentação da área de Língua Portuguesa. 3 Este tema já foi mais desenvolvido em outros trabalhos apresentados pela autora em congressos, como em Contribuições de uma teoria lingüística para o ensino de Língua Portuguesa e em Diferentes concepções de língua na prá- tica pedagógica. 145 I POlfTICAS EM LINGUAGEM I professor quanto de sua prática em sala de aula, porque entram em ação novos conceitos, novos relacionamentos, além de "no- vos" conhecimentos. Ou seja, com a proposta dos PCN não há apenas um novo "corte" nas maneiras de ver os saberes acumu- lados e legitimados, mas, sobretudo, novos "modelos" nas cons- truções das identidades envolvidas com o processo escolar. Considerar o texto como unidade de trabalho pedagógi- co em Língua Portuguesa enfatiza a natureza da língua como atividade simbólica e dialógica. Dessa forma, mais do que "am- pliar" o objeto de trabalho da palavra ou da sentença, isso re- presenta reconhecer que a língua - além de uma estrutura - é um trabalho de construção (de sentidos, de identidades) e que o texto é o ponto de encontro, e também de dispersão, das diversas habilidades que conduzem a essa construção. O texto não é apenas uma unidade lingüística linear, uma seqüência de sentenças compostas de palavras, mas um entre- cruzamento histórico de coesão interna e coerência textual. Há nele uma incompletude constitutiva -- o que não representa falta, mas potencialidade. Assim compreendido, o texto é uma unidade significativa que se constitui historicamente e, nesse processo, incorpora os papéis sociais do contexto e dos inter- locutores. Como professores de língua materna, já podemos antever implicações mais profundas na prática pedagógica do que a mera substituição da ênfase na gramática ou na sentença para o enfoque de uma unidade mais complexa, como é o texto. Devemos reconhecer, então, que o ensino da gramática, da lei- tura e mesmo da produção de textos é recolocado sob diferen- tes focos e perspectivas. Uma ciência crítica deve dar suporte justamente a esses novos modos de focalizar o que seja o obje- to de trabalho do professor de Língua Portuguesa; porque, se- 146 I o ENSINO DE LlNGUA PORTUGUESA E A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES I gundo Goody 0995, p. 161, tradução nossa), "soluções não- satisfatórias são freqüentemente provocadas por formulações não-satisfatórias" . o CONCEITO DE LíNGUA(GEM) São inúmeras as passagens em que os PCN demonstram reconhecer que o objeto de ensino-aprendizagem Língua Por- tuguesa é muito mais um fenômeno de linguagem permeando práticas sociais e discursivas do que uma estrutura de língua pronta e autônoma: Pode-se dizer que, apesar de ainda imperar no tecido social uma atitude "corretiva" e preconceituosa em rela- ção às formas não canônicas de expressão lingüística, as propostas de transformação do ensino de Língua Portu- guesaconsolidaram-se em práticas de ensino em que tanto o ponto de partida quanto o ponto de chegada é o uso da linguagem [".) (BRASIL, 1998, p. 18). Mais que isso, é um fenômeno de linguagem inequivoca- mente reconhecido como atividade discursiva e cognitiva com compromissos sociais: o domínio da linguagem, como atividade discursiva e cognitiva, e o domínio da língua, como sistema simbóli- co utilizado por uma comunidade lingüística, são condi- çôes de possibilidade de plena participação social. Pela linguagem os homens e as mulheres se comunicam, têm acesso à informação, expressam e defendem pontos de vista, partilham ou constroem visões de mundo, produ- zem cultura [.,,) (BRASIL, 1998, p. 19). 147 · I POLITICAS EM LINGUAGEM I Por isso, explicitam os PCN que: Nessa perspectiva, língua é um sistema de signos espe- cífico, histórico e social, que possibilita a homens e mu- lheres significar o mundo e a sociedade. Aprendê-Ia é aprender não somente palavras e saber combiná-Ias em expressões complexas, mas apreender pragmaticamente seus significados culturais e, com eles, os modos pelos quais as pessoas entendem e interpretam a realidade e a si mesmas (BRASIL, 1998, p. 20). Ao observar O ensino de Língua Portuguesa sob essa pers- pectiva interacional ou discursiva de linguagem, considera-se a língua como uma estrutura que serve de veículo comunicati- vo e, sobretudo, como algo que constrói visões de mundo e identidades - ou seja, que faz aderir o sujeito a papéis sociais. Nesse sentido, para se trabalhar efetivamente no âmbito do texto e haver verdadeira interação, várias condições devem ser reunidas, como: os interlocutores devem aceitar, além do códi- go lingüístico, um conjunto mínimo de normas de comporta- mento lingüístico. Isso significa extra polar o mero ensino de uma estrutura ou de um código; significa incorporar regras que governam a produção apropriada desses atos lingüísticos, lem- brando que esses atos devem satisfazer certas condições de emprego para se tornar apropriados. Os atos lingüísticos são, portanto, atos políticos ou ideo- lógicos", e, como tais, têm vários de seus aspectos apagados da consciência; pois é inerente ao ato político - nessa concepção, 4 Não consideramos relevante, aqui, discorrer sobre a distinção (ou a classifica- ção) entre o que seja político ou ideológico. Para os efeitos dessa argumenta- ção, consideramos os dois rótulos como recobrindo conceitos semelhantes. 148 I O ENSINO DE LíNGUA PORTUGUESA E A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES I de acordo com Ingleby (1972) - o apagamento de algumas de suas motivações. Na prática de sala de aula, isso significa ter de lidar não apenas com os chamados aspectos canônicos da lin- guagem, mas sobretudo com os desvios', com os imprevistos, com o movimento, com a incompletude, seja da norma lingüís- tica seja da interação discursiva e social. Segundo Ingleby (1972, p. 2), mais importante e mais difícil do que praticar atos de "desvio" das normas aceitáveis é a tarefa de reconhecer e mostrar como essas normas atendem ou refletem objetivos políticos. Por exemplo, é um ato político - mais do que pedagógico ou acadêmico - a maneira como um corpo teórico considera os "desvios": são erro ou diversida- de? Os PCN se posicionam nessa segunda possibilidade ao in- corporar, sistematicamente, a diversidade e a variação: A variação é constitutiva das línguas humanas, ocorren- do em todos os níveis. Ela sempre existiu e sempre exis- tirá, independentemente de qualquer ação normativa. Assim, quando se fala em "Língua Portuguesa" está se falando de uma unidade que se constitui de muitas va- riedades L ..] (BRASIL, 1998, p. 29). As conseqüências didático-pedagógicas dessa opção tam- bém são visíveis na crítica à postura pedagógica anterior: L..] A imagem de uma língua única, mais próxima da modalidade escrita da linguagem, subjacente às prescri- 5 O termo desvio não tem aqui o compromisso técnico e estruturalista de repre- sentar uma deriva de norma considerada ideal; é tomado como no senso comum, como consta dos dicionários: afastamento de posição normal ou pre- vista. 149 I POLfTICAS EM LINGUAGEM I ções normativas da gramática escolar, dos manuais e mesmo dos programas de difusão da mídia sobre "o que se deve e o que não se deve falar e escrever", não se sustenta na análise empírica dos usos da língua (BRASIL, 1998,p. 29). o tratamento que os PCN dão à língua(gem) não se es- quiva de mostrá-Ia ideológica, como também são ideológicos os atores históricos que a constituem e que por ela são consti- tuídos nas práticas sociais da sala de aula. Por isso, refletir so- bre o ensino de Língua Portuguesa, de acordo com os PCN, im- plica discutir sobre a interferência de ideologias reconhecidas - e desconhecidas - que "habitam" o universo escolar. E essas ideologias não estão apenas na abstração das decisões políticas dos dirigentes ou de documentos que registram fria- mente os planos de ensino: concretizam-se nOSpapéis do pro- fessor e dos alunos, na interlocução entre seres humanos, so- cial e discursivamente situados. OS SUJEITOS DO ATO DE APRENDER Mesmo quando considerada crítica, toda ciência conduz seu "olhar", sua teoria, a partir de um certo conjunto de postu- lados que, necessariamente, toma como primitivos. Mas os con- ceitos subjacentes às práticas previstas nos PCN requerem um "olhar" que possibilite desenvolver uma metodologia de auto- reflexão. Ou seja, ao mesmo tempo que estão em curso as prá- ticas sociais e discursivas, deve estar em curso uma análise des- sas práticas, conforme o exemplo dessa postura que citamos a seguir: 150 I o ENSINO DE LfNGUA PORTUGUESA E A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES I Tomando-se a linguagem como atividade discursiva, o texto como unidade de ensino e a noção de gramática como relativa ao conhecimento que o falante tem de sua linguagem, as atividades curriculares em Língua Portu- guesa correspondem, principalmente, a atividades discur- sivas: uma prática constante de escuta de textos orais e leitura de textos escritos e de produção de textos orais e escritos, que devem permitir, por meio da análise e reflexão sobre múltiplos aspectos envolvidos, a expan- são e construção de instrumentos que permitam ao aluno, progressivamente, ampliar sua competência dis- cursiva (BRASIL,1998,p. 27). A partir dessa posição de fazer ciência, diluem-se dicoto- mias (como sujeito-objeto) e oposições (como teoria e prática). Segundo Goody (995), só assim fica favorecido o avanço inte- lectual. Podemos considerar como uma das primeiras dicotomias "diluídas" a da oralidade-escrita. A tessitura textual na escrita é construída por estratégias - lingüísticas ou sociocomunicativas - diferentes daquelas usadas na oralidade e vice-versa. Mas as competências para adquirir, dominar e usar adequadamente essas estratégias estão afetas ao sujeito que produz esses textos. Esse é um sujeito que deve aprender (na escola ou fora dela) a fazer escolhas, porque: l...l quando um sujeito interage verbalmente com outro, o discurso se organiza a partir das finalidades e inten- ções do locutor, dos conhecimentos que acredita que o interlocutor possua sobre o assunto, do que supõe se- rem suas opiniões e convicções, simpatias e antipatias, da relação de afinidade e do grau de familiaridade que têm, da posição social e hierárquica que ocupam L..l Em 151 I POLfTICAS EM LINGUAGEM I geral, é durante o processo de produção que as escolhas são feitas, nem sempre (e nem todas) de maneira cons- ciente (BRASIL,1998, p. 21). Questionar a dicotomia não significa, contudo, desconhe- cer que a escrita, atividade discursiva privilegiada na escola, coloca uma distância entre o homem e seus atos verbais. Como afirma Goody (1995), os sujeitos podem ter um certo distancia- mento de sua palavra escrita - comentar sobre as idéias,a sin- taxe; distanciamento que não podem ter de sua palavra oral. Portanto, a atitude de escrever difere daquela do desempenho oral. Os processos cognitivos e sociais envolvidos nas duas prá- ticas são diferentes: até uma certa magia de que podemos reves- tir o ato da oralidade tende, em nossas práticas discursivas, a ser substituída pela busca da cientificidade no ato da escrita. Em uma sociedade letrada como a nossa, não podemos desvincular ambos os processos: é inegável que a oralidade apresenta diferentes contornos por exercer distintas funções diante da escrita e que, por sua vez, a escrita também é afeta- da pelas posições que ocupa diante da oralidade (cf. GOODY, 1995), Com isso, estamos pontuando: não apenas a relação en- tre os interlocutores é dialógica6, mas também é dialógica a re- lação entre oralidade e escrita em cada sociedade que, cultural- mente, lhes atribui papéis e funções. Por isso, transitar pela variedade de habilidades envolvi- das nas práticas da escrita e da oralidade é um complexo tra- balho discursivo; implica reconhecer e utilizar as "fórmulas" 6 Sobre essa relação dialógica entre o eu e o outro, não podemos desconside- rar as contribuições fundadoras de M. Bakhtin (1995), embora, no momento, optamos por não nos aprofundar nessa direção. 152 I O ENSINO DE LfNGUA PORTUGUESA E A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES I de comportamento lingüístico adequado, tanto para a escrita quanto para a oralidade. O conjunto de tais habilidades pode fazer parte da construção da textualidade, mas, sem dúvida, é da competência de sujeitos; além disso, é trabalho língüístico, é construção do conhecimento, diferindo de apropriação ou de transmissão do conhecimento. A esse respeito, fazemos uso das palavras de Olinto (2002, p. 263) para dizer que "vale lembrar uma longa tradição filosó- fica construtivista baseada na suposição de que o conhecimen- to não é reprodução da realidade mas depende da posição do observador". Essa característica de conhecimento construído a partir de posições de sujeitos-observadores está explícita nos PCN: Uma rica interação dialogal na sala de aula, dos alunos entre si e entre o professor e os alunos, é uma excelente estratégia de construção do conhecimento, pois permite a troca de informações, o confronto de opiniões, a nego- ciação de sentidos, a avaliação dos processos pedagógi- cos em que estão envolvidos [...] (BRASIL,1998, p. 24). Do caráter dialógico de todas essas práticas, mediadas pelo professor, ressalta a necessidade de incorporar às práticas pedagógicas o conceito de sujeito da ação de aprender, aquele que age com (e sobre) o objeto do conhecimento - que é co- mo os PCN identificam o aluno (cf BRASIL, 1998, p. 22). En- contramos, nesse contexto, o reconhecimento da construção de identidades: A busca de reinterpretação das experiências já vividas e das que passa a viver a partir da ampliação dos espaços de convivência e socialização possibilita ao adolescen- 153 I POLíTICAS EM LINGUAGEM I te a ampliação de sua visão de mundo, na qual se in- cluem questões de gênero, etnia, origem e possibilida- des sociais e a rediscussão de valores que, reinterpreta- dos, passam a constituir sua nova identidade (BRASIL, 1998, p. 46). Para estar teoricamente coerente com essa construção de identidades, os PCN incorporam (como um de seus temas prio- ritários) a questão da diversidade e da diferença; pois é no jogo entre o igual e o diferente que se constrói o conceito de identi- dade. De acordo com Bauman (1993, p. 14, tradução nossa), "é sendo diferentes que nos parecemos uns com os outros: eu não posso respeitar minha própria diferença se não respeitar a dife- rença do outro". Como no nível do eu um componente importante é a es- colha (cf. GIDDENS, 2002), nem assuntos (conteúdos de ensi- no) nem parceiros na interlocução estão completamente isen- tos de compor uma variedade de possibilidades. Mas a tradição e a história estabelecem "caminhos" mais ou menos fixos para que essas escolhas não sejam completamente aleatórias e não provoquem o "indesejável" ou o caos. Do ponto de vista do texto, esses caminhos constituem os gêneros textuais; do ponto de vista da interlocução, constituem as identidades historica- mente cristalizadas. É importante reconhecer que, apesar das escolhas - his- toricamente condicionadas -, os limites do eu estão nos limi- tes do outro, e a necessidade de traçar limites ao mesmo tempo que os indivíduos são expostos a uma grande variedade de es- colhas é uma das características das sociedades modernas (cf. GIDDENS, 2002). Nessa mesma direção conceitual, Olinto (2002), citando Luhmann, diz que sistemas sociais "precisam de fronteiras - ou 154 I O ENSINO DE LfNGUA PORTUGUESA E A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES I seja, formas de sentido - de relativa invariância, que garantem certa estabilidade em função da generalização - temporária - de expectativas em relação a condutas institucionalizadas". Desse ponto de vista conceitual, podemos entender não como incoerente, mas como dialógica, a abordagem dos PCN, quando propõem, simultaneamente, o estímulo à construção de sujeitos críticos e o respeito às normas lingüísticas legitima- das pela tradição histórica e cultural, bem como às normas ins- titucionais que ainda organizam burocraticamente as relações escolares. Em lugar de contradição e incoerência, as articula- ções dos PCN passam, então, a ser vistas como dialogia e am- bivalência. Assim, podemos ver a tecnologia como um dos mecanis- mos dessa dialogia e dessa ambivalência. Em toda sua abran- gência conceitual, a tecnologia ocupa, cada vez mais, espaços importantes na vida escolar e cria as possibilidades de intera- ção, colocando os limites nessas possibilidades. Conviver com os resultados instrumentais da tecnologia (como computadores e máquinas sofisticadas) ou com suas conseqüências didático- pedagógicas, que organizam atividades sob o rótulo de tecno- logias do texto, por exemplo, é uma demanda das sociedades contemporâneas, e é nelas que os sujeitos do ato de aprender emergem. A convivência, nada pacífica, entre o compromisso com uma tradição lingüística e o respeito às escolhas personalizadas de sujeitos estimulados a construir a própria identidade consti- tui uma das características identificadoras da filiação ideológica dos PCN. Mais do que mera característica, essa é uma marca que os insere - e atualiza - na tendência predominante do fazer científico da atualidade. 155 I pmiTICAS EM LINGUAGEM I o MEDIADOR DAS PRÁTICAS DISCURSIVAS No contexto da filiação teórica dos PCN às abordagens discursivas de linguatgem), nada é mais reflexivo, dialógico e ambivalente do que o papel que se destina ao professor. Pri- meiramente, caracterizado como mediador entre sujeitos e objetos do conhecimento (BRASIL, 1998, p. 22), cabe ao pro- fessor a responsabilidade de legitimar os processos de constru- ção de identidades, que - apenas aparentemente - não o afeta. Seu papel, de acordo com os PCN, é ('..lmostrar ao aluno a importância que, no processo de interlocução, a consideração real da palavra do outro as- sume, concorde-se com ela ou não. Por um lado, por- que as opiniões do outro apresentam possibilidades de análise e reflexão sobre as suas próprias; por outro lado, porque, ao ter consideração pelo dizer do outro, o que o aluno demonstra é consideração pelo outro (BRASIL, 1998, p. 47). Conseqüentemente, a tarefa de mediação do professor é ('..l organizar ações que possibilitem aos alunos o conta- to crítico e reflexivo com o diferente e o desvelamento dos implícitos das práticas de linguagem, inclusive sobre aspectos não percebidos inicialmente pelo grupo - intenções, valores, preconceitos que veicula, explicita- ção de mecanismos de desqualificação de posições - articulados aos conhecimento dos recursos discursivos e lingüísticos(BRASIL,1998, p. 48). Na responsabilidade desse conjunto (ideológico) de ações, fica claramente estabelecido o compromisso político desse 156 I o ENSINO DE LiNGUA PORTUGUESA E A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES I "mediador". Mas compromissos políticos não são individuais; são inerentes a sujeitos historicamente situados. A tarefa de mediar, portanto, não pode ser exercida de forma mecânica, automática; mesmo se acreditássemos em um sujeito completa- mente apassivado, assujeitado, apenas suporte de forças histó- rico-sociais, isso não se tornaria possível, pois a "explicitação de mecanismos de desqualificação" requer um mínimo de posi- cionamento crítico. Como nessa posição teórica adotada, não trabalhamos com a hipótese de uma máquina discursiva unifor- me, concebemos os sujeitos como portadores de atividades, como constituidores de relações dialéticas, que constroem e nas quais são construídos díscursivarnente". Tal sujeito é compatível com as possibilidades e exigên- cias de escolhas que os PCN lhes impõem - e apóia, necessa- riamente, sua relativa estabilidade sobre o fio condutor de sua auto-identidade (que é reflexivamente construída, além de afe- tada social e historicamente). Nas palavras de Giddens (2002, p. 55-56), lal identidade de uma pessoa não se encontra no com- portamento nem - por mais importante que seja - na reação dos outros, mas na capacidade de manter em andamento uma narrativa particular. Nessa "narrativa particular", o professor vai tecendo suas habilidades e competências para "desvelar os implícitos" das práticas de linguagem. Não é possível pensar em um sujeito crí- 7 Esse tema é abordado, com maiores detalhes, em trabalho que foi apresenta- do no II Encontro do GELCO,em outubro de 2003, em Goiânia, e será publi- cado nos anais correspondentes. 157 I PQLlTICAS EM LINGUAGEM I tico - como demandam os PCN - que não lance as raízes de suas práticas na própria história pessoal. Assim, para ter com os outros, no cotidiano, uma interação regular, com certa estabili- dade e razoavelmente coerente na construção dos sentidos do discurso, nossa biografia não pode ser fictícia (cf. GIDDENS, 2002). Em conseqüência, para uma interação baseada na critici- dade - como propõem os PCN - as relações pedagógicas também não podem ser fictícias, mas devem respeitar as bio- grafias que as estabelecem: seja do professor seja do aluno. Por isso, a gama de escolhas que a cada tempo, em cada espaço, se coloca é sempre nova, imprevisível, não controlável. São esco- lhas de sujeitos, e esses se desdobram nas escolhas inerentes aos atos lingüísticos que redundam em textos. Parecemos entrar aqui em uma reflexividade da reflexividade da reflexivi- dade ... Ainda podemos encontrar um aspecto dessa reflexivida- de que é necessária ao exercício da subjetividade do professor- mediador na sua relação com o objeto de ensino: o texto. Os PCN demandam desse sujeito a necessidade de desenvolver suas próprias competências textuais, bem como tarefas de ana- lista e pesquisador: Ao organizar o ensino, é fundamental que o professor tenha instrumentos para descrever a competência dis- cursiva de seus alunos, no que diz respeito à escuta, lei- tura e produção de textos, de tal forma que não planeje o trabalho em função de um aluno ideal para o ciclo, muitas vezes padronizado pelos manuais didáticos, sob pena de ensinar o que os alunos já sabem ou apresentar situações muito aquém de suas possibilidades e, dessa forma, não contribuir para o avanço necessário L..l (BRASIL, 1998, p. 48). 158 I o ENSINO DE LlNGUA PORTUGUESA E A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES I A ambivalência aí é visível: à flexibilidade do desempe- nho dos alunos corresponde um preparo discursivo do media- dor que, por ser um dos atores da interlocução, também vai construindo sua identidade no espaço discursivo e social da sala de aula. Mas, como um interlocutor privilegiado (BRASIL, 1998, p. 22), assume responsabilidades pela mediação de práti- cas discursivas que se propõem a "formar" sujeitos: cabe a ele o reconhecimento e a descrição das competências textuais des- ses sujeitos referentes a seus próprios atos de aprender. Para manter uma certa estabilidade discursiva e um relativo contro- le das situações discursivas, o professor precisa ter consciência dessa construção; portanto, constrói sua auto-identidade. Conforme Giddens (2002, p. 78), a "linha de desenvolvi- mento do eu é internamente referida - o único fio significati- vo de conexão é a trajetória da vida como tal". Nesse sentido, é fundamental, portanto, que a construção da(s) identidade(s) - seja do professor seja do aluno - respeite as experiências individuais e as histórias de vida de cada um. Diante das escolhas integrantes do desenvolvimento das habilidades e competências dos alunos, os PCN colocam algu- mas "escolhas" de estratégias didáticas do professor que não são por ele "escolhidas": Vale considerar que a inclusão da heterogeneidade tex- tual não pode ficar refém de uma prática estrangulada na homogeneidade de tratamento didático, que subme- te a um mesmo roteiro cristalizado de abordagem uma notícia, um artigo de divulgação científica e um poema [' . .J (BRASIL, 1998, p. 26). A preparação para esse tratamento didático pode não ter feito parte da "biografia" do professor. Isso pode ser entendido 159 I PO~ITICAS EM LINGUAGEM I como uma espécie de não-escolha: a recomendação para um comportamento que - por mais adequado e teoricamente coe- rente que seja - não pertence (ou não pertenceu) ao livre- arbítrio do professor; ou seja, desse sujeito que compõe com o sujeito-aluno a articulação fundamental nas construções discur- sivas da sala de aula. O professor parece não ser aí considera- do sujeito do ato de ensinar como foi o aluno sujeito do ato de aprender. Os condicionantes históricos que permitem compreender as práticas sociais e discursivas apresentam-se aqui, na caracte- rização desse sujeito, muito mais determinísticos. Sem o instru- mental teórico adequado, as tarefas de mediação tendem a não ser bem-sucedidas; essa não será uma falha de responsabili- dade de um ou de outro sujeito da interação, nem das propos- tas pedagógicas ideologicamente situadas, mas será, muito provavelmente, responsabilidade da fragilidade das posições discursivas pouco afeitas à instabilidade da incompletude, do sempre-refazer que acompanha a opção pelo ensino focalizado nos textos. Abordagens de ensino de Língua Portuguesa que focali- zem as estruturas lingüísticas, descolando-as das práticas em que são veiculadas, são qualitativamente inadequadas - não apenas insuficientes - , não só para tratar dos objetos de ensi- no, mas também para tratar dos sujeitos envolvidos nessas prá- ticas, e ainda para tratar das identidades que as propostas dos PCN levam a construir no âmbito escolar. Para uma abordagem de fundamentação estruturalista, esse desencontro de demandas conceituais tende a ser visto co- mo incoerência ou contradição. Contudo, sob um ponto de vis- ta crítico, ambivalência não é incoerência. E para lidar com a construção de sua própria identidade nas práticas escolares, é 160 I o ENSINO DE LlNGUA PORTUGUESA E A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES I mais produtivo colocar o professor em um ponto de vista con- ceitual que não se fundamente em dicotomias, mas em um pon- to de vista no qual as dicotomias sejam superadas e a ambiva- lência seja instrumental de trabalho e de análise. O conjunto de conhecimentos teóricos (que devem dirigir a análise, a explicação e a compreensão dos fenômenos envol- vendo o trabalho com a linguagem na escola) reveste-se ainda de maior importância se considerarmos práticas discursivas mais amplas do que essas que constituem o âmbito escolar de ensi- no fundamental; se consideramos as que envolvem as institui- ções em uma sociedade letrada em geral. Um dos traços característicosdas sociedades letradas é concentrar nas mãos - ou nas mentes - de alguns o poder de decidir sobre o que é bom e o que não é em questões do saber e do conhecimento considerado legítimo (d. GOODY, 1995), Nesse aspecto, o professor funciona como o "arauto do saber"; ele é colocado, nas palavras de Ingleby (972), como um dos "gerenciadores da realidade". De acordo com os PCN, Ao professor cabe planejar, implementar e dirigir as ati- vidades didáticas, com o objetivo de desencadear, apoiar e orientar o esforço de ação e reflexão do aluno, procu- rando garantir aprendizagem efetiva. Cabe também assu- mir o papel de informante e de interlocutor privilegiado, que tematiza aspectos prioritários em função das neces- sidades dos alunos e de suas possibilidades de aprendi- zagem (BRASIL, 1998, p. 22). Nessa função, cabe a ele também a responsabilidade de propiciar a construção de sujeitos "desejáveis" para os objetivos dos diplomas legais vigentes: 161 · I POLITICAS EM LINGUAGEM I No processo de ensino-aprendizagem dos diferentes ci- clos do ensino fundamental, espera-se que o aluno am- plie o domínio ativo do discurso nas diversas situações comunicativas, sobretudo nas instâncias públicas de uso da linguagem, de modo a possibilitar sua inserção efeti- va no mundo da escrita, ampliando suas possibilidades de participação social no exercício da cidadania (BRA- SIL, 1998, p. 32). A inserção efetiva no mundo da escrita representa uma inserção nas práticas sociais da escrita, do modo como as socie- dades modernas as concebem, com todas as implicações dis- cursivas e ideológicas daí advindas. Inerentes a essa inserção surgem os modelos para o exercício da cidadania, um conceito também tão caro aos PCN. Nesse sentido, reforça-se a necessidade da relativa esta- bilidade conduzida pela construção de uma identidade (auto- referida) de professor compatível com todos os pressupostos teóricos considerados. Entram aí valores de julgamento, sob o disfarce de descrições e decisões objetivas (cf. INGLEBY,1972), como mais um exemplo de ambivalência no papel destinado ao professor. Ao mesmo tempo que é estimulada a liberdade de escolha aos sujeitos das práticas escolares propostas nos PCN, pouca ajuda sobre as opções (e suas conseqüências) é oferecida - o que, para Giddens (2002), é típico da moderni- dade. Como espaço de contradições (também típicas da moder- nidade), a escola não se desvincula das práticas sociais institu- cionais e, por isso, as condições para que as propostas dos PCN se realizem com sucesso extrapolam os muros escolares, mesmo se considarmos que 162 I o ENSINO DE LlNGUA PORTUGUESA E A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES I A escola deve assumir o compromisso de procurar ga- rantir que a sala de aula seja um espaço onde cada sujei- to tenha o direito à palavra reconhecido como legítimo, e essa palavra encontre ressonância no discurso do outro l...] (BRASIL,1998, p. 48). As condições ideológicas, discursivas, sociais e pedagógi- cas para efetivar as respectivas ressonâncias nos discursos do outro apóiam-se no reconhecimento de que, segundo Giddens (2002, p. 80), falar de multiplicidade de escolhas não é o mesmo que supor que todas as escolhas estão abertas a todos, ou que as pessoas tomam todas as decisões sobre as op- ções com pleno conhecimento da gama de alternativas possíveis. Nesse sentido, o conjunto de práticas a ser desenvolvidas no âmbito escolar apresenta dois aspectos em tensão sob res- ponsabilidade do mediador: a perpetuação (estabilidade) dos conhecimentos, convertidos em conteúdos de ensino, bem co- mo as relações historicamente construídas diante do rompi- mento dessa perpetuação com o sempre-refazer (instabilidade) dos textos e das identidades. AS CONSEQÜÊNCIAS DIDÁTICO-PEDAGÓGICAS A escola como instituição representativa de uma socieda- de altamente afetada pelas relações e características da moderni- dade revela-se, mais do que nunca, um espaço de contradições. A opção pela unidade texto no ensino de Língua Portuguesa é apenas uma das faces externas dessas contradições. No entanto, 163 I POLfTICAS EM LINGUAGEM I alinhar propostas curriculares com práticas sociais e discursivas atuais torna, de certa maneira, inevitáveis os redirecionamentos propostos pelos PCN, porque as práticas pedagógicas não se excluem das práticas sociais e discursivas que conformam uma sociedade. A escolha pelo privilégio do texto, nas práticas pedagógi- cas, incorpora ao fazer pedagógico conceitos que as práticas anteriores deixavam encobertos. Explicitar a formação de sujei- tos críticos como objetivo, bem como considerar o discurso em toda sua plenitude provoca desdobramentos didático-pedagógi- cos que extrapolam os recortes lingüísticos tradicionais. A fun- damentação científica para essas práticas exige um novo "olhar" conceitual não apenas sobre como agir, mas também sobre como ser (ser professor e ser aluno) na interação de sala de aula. Para as atividades didático-pedagógicas no cotidiano es- colar não são pequenas as conseqüências de incorporar a di- mensão histórica e a incompletude, pois tanto os objetos de aprendizagem (gramática, leitura e escrita, em sentido amplo) são profundamente afetados por esse "deslocamento" teórico, como o professor e os alunos precisam se reconhecer em dife- rentes papéis sociais, em diferentes identidades. Assim, para o professor, os redirecionamentos teóricos dos PCN significam a necessidade de assumir posturas teóricas - de língua e também de ensino - menos estruturalistas e mais desafiadoras, já que os tradicionais "conteúdos" (ou obje- tos do conhecimento) deixam de ter referência estática e cate- gorizada a priori; ou seja, são concebidos dinamicamente e construídos na interação entre agentes do processo de ensino- aprendizagem - os alunos e o professor. Além disso, é relevante mencionar que abordagens de educação (que consideram o compromisso do profissional para 164 I o ENSINO DE LfNGUA PORTUGUESA E A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES I além de sua formação técnica) constituem a contrapartida pe- dagógica adequada para essa concepção de língua que se cons- trói dialogicamente, reconhece-se histórica e caracteriza-se por uma incompletude de sentidos. essas abordagens pedagógi- cas, o contexto apropriado não apenas é reconhecido pelos interlocutores, mas também se torna elemento fundamental do fazer pedagógico e do fazer lingüístico. Portanto, é por meio da interação que se constroem as "cornpletudes na incompletude" dos sujeitos e dos textos. Dessas necessárias mudanças de postura decorrem, na prática, outras mudanças de estratégias, propostas nos mais atualiza dos currículos escolares e também nas reflexões teóri- cas mais atuais sobre o caráter simbólico e dialógico da lingua- gem. Podemos dizer que a grande mudança é que a palavra do professor não é somente uma palavra "diante" da classe, é uma palavra "dentro, com e para" a classe, conforme os termos de Gusdorf 0995, p. 31). Esse encontro entre teorias lingüísticas e abordagens pe- dagógicas, além de ressaltar tendências do fazer científico liga- do a nosso tempo, tem implicações que de imediato se fazem notar na prática escolar e representam um imenso desafio a todos nós, que convivemos e que nos preocupamos com o en- sino de Língua Portuguesa, Esse desafio torna-se maior quando reconhecemos que, para tratar com a incompletude da lingua- gem em sala de aula, faz-se necessária uma real interação entre os agentes do processo educativo; faz-se, sobretudo, necessária uma reflexão sobre a constituição dos discursos da educação. Tal desafio agrava-se ainda mais por estar permeado por tantas e tão intensas mudanças nas instituições escolares. As- sim, a opção teórica da escolha do texto como unidade de tra- balho implica reconhecer que todo ato lingüística traz em si a 165 I POLITICAS EM LINGUAGEMI possibilidade de ser diferente e, mesmo assim, de ser "correto" - o que significa reconhecer não só o uso da língua como cons- trução, mediação simbólica, mas também a educação como processo de uma construção de identidades. lÍNGUA, LITERATURA E IDENTIDADE DE CLASSE NA INGLATERRA DOS SÉCULOS XIX E XX MARCELO ROCHA BARROS GONÇALVES* REFERÊNCIAS BAKHTIN, M. Marxismo efilosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1995. BAUMAN, Z. Posmodernity, or Living with Ambivalence. In: A Postmodern Reader. New York: State of New York Press, 1993. BRASIL, Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Na- cionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: Língua Portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1998. GIDDENS, A. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. GOODY, J. The Grand Dichotomy Reconsidered. 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São elas: Língua(gem) e identidade- elementos para uma discussão no campo aplicado, organizada por Inês Signorini (2001), financiada pela Apesp; Identidades - recortes multi e interdisciplinares, organizada por Luiz Paulo da Moita Lopes e Liliana Cabral Bastos (2002), financiada pelo CNPq; e Lingua- Marcelo Rocha Barros Gonçalves é doutorando na Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, e docente no curso de Letras da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, campus de Coxim. 166 167 I POLfTICAS EM LINGUAGEM I gem, identidade e memória social- novas fronteiras, novas ar- ticulações, organizada por Lúcia M. A. Ferreira e Evelyn G. D. Orrico (2002), financiada pela Faperj. Tais publicações parecem ser bons indícios de que, quando o assunto é identidade, dife- rentes disciplinas, em distantes lugares do solo pátrio, se afi- nam orquestradamente para tocar e conduzir os debates. Psicólogos, geógrafos, comunicadores sociais, educado- res, lingüistas e outros, todos estão empenhados em trazer à tona a mesma pergunta - "Quem somos ou quem estamos nos tornando a cada momento na vida social?" - e, para debater esse tema, reúnem-se em congressos e eventos da área. A respeito do construto de identidade, faço minhas as palavras de Moita Lopes e Bastos (2002, p. 14): L ..] o construto da identidade possibilita a compreensão de como as mudanças que vivemos têm afetado a vida em comunidade e a vida íntima contemporâneas (WOOD- WARD, 1997; GIDDENS, 1992), assim como tem também permitido que se reexaminem outros períodos da histó- ria ou tópicos já investigados a partir desse mesmo cons- truto L ..] Para completar o conceito de identidade, cito também Kanavillil Rajagopalan (2002, p. 77): L ..] que a identidade, seja dos indivíduos (por definição, seres não divididos e indivisiveis), seja das agremiações com o estado e nação, seja dos objetos de estudo e aná- lise - e, com freqüência, defendida com amor e paixão como língua e pátria -, é um construto e não algo que se encontra por aí in natura, já se transformou em lu- gar-comum nos círculos acadêmicos, graças aos escritos 168 I LfNGUA, LITERATURA E IDENTIDADE DE CLASSE NA INGLATERRA DOS SÉCULOS XIX E xx I de estudiosos como Erick Hobsbawm (987), Michael Oakeshott (981), Anthony Giddens (981), Charles Tay- lor (992), Homi Bhabha (990) e outros. Com certeza, esta nova percepção significa uma guinada radical na forma como a identidade era pensada até então. Restam-me ainda, contudo, algumas ressalvas. A primeira delas: é preciso fugir de todos os essencialismos estratégicos a fim de discutirmos a conceituação do termo identidade; pois entender o hibridismo dessa conceituação é, em certo sentido, nos aproximarmos da forma como as transformações agem so- bre a vida íntima e social dos seres humanos de hoje e de tem- pos passados. Outra ressalva diz respeito a como o presente texto! trata de um caso específico da história da literatura inglesa e de como realiza um diálogo com o texto de Patrick joyce denomi- nado "O Inglês do Povo: língua e classe na Inglaterra 0840- 1920)", publicado em Linguagem, indivíduo e sociedade, de Peter Burke e Roy Porter (993). Por meio da literatura produzida em dialeto popular, nesse período de 1840 a 1920 nas cidades industriais de Lanca- shire e Yorkshire, podem ser reveladas - segundo joyce (993) - as posturas em relação à língua e às classes predo- minantes na sociedade britânica da época, tornando possível também especular sobre a criação de identidades sociais entre os trabalhadores pobres. Se a literatura é a reveladora da identidade das classes trabalhadoras pobres inglesas e se a identidade aqui é tomada 1 Este texto é fruto da apresentação de um seminário do qual participei em um curso de extensão na Universidade de Brasília (UnB), proferido pelo então professor visitante Kanavillil Rajagopalan. 169 I POLITICAS EM LINGUAGEM I como um construto - ou melhor, em construto, por querer ver não os pólos, mas a passagem de um ao outro -, padecerei voluntariamente da idéia de que uma crise tomou mesmo à força o estudo da conceituação de identidade. Isso significa en- tender a produção literária da época não como pólos estan- ques que representam duas distintas classes e, por oposição, as revela, as cria; significa trazer à tona a idéia de que a produção literária é aquela que permite revelar, na troca, no jogo de ne- gociações entre os pólos, as diferentes representações de que fazem as classes inglesas - trabalhadora e dominante - delas e entre elas mesmas. O estudo de dialetologia, embebido já pelos ideais de uma sociolingüística recente, torna, se não mais instigante, mais produtivo o estudo da relação entre: línguatgern) e os dialetos; literatura e as identidades latentes das classes que os produzem - sobretudo se os dialetos forem pensados como revelado- res da própria cultura local em negociação com a cultura real. Em outras palavras: ao estudar a produção dialetal inglesa dos séculos XIX/XX, é possível estabelecer um paralelo entre lín- gua e literatura e ver como esses fenômenos eveladamente de cunho cultural) reivindicam versões de nação e povo. Nessas situações, o poder inverso ao da exclusão faz dos dialetos o símbolo das classes trabalhadoras pobres, que compõem suas versões de identidade. Como nota de um epitáfio desses escólios preliminares, cito novamente Rajagopalan e2002, p. 85), acrescentando que, se vivemos em um período de "crise na identidade", que esse seja, epistemologicamente, intérmino: Há quem diga que, no cenário acadêmico, estamos pre- senciando no momento uma certa "crise na identidade" - não no sentido familiar de não saber "quem somos 170 I LlNGUA, LITERATURA E IDENTIDADE DE CLASSE NA INGLATERRA DOS SÉCULOS XIX E xx I nós", mas no sentido de não poder conceituar a própria noção de identidade com o mínimo de rigor e consis- tência. DA LITERATURA À DIALEClTURA PARA VOLTAR À LITERATURA Nós, os alegres moradores de Cotton Fowd, uns errados, outros não, somos apenas humanos, afi- nal, nenhum de nós é excepcional. (Sam Fitton) Lancashire e Yorkshire guardavam, na velha Inglaterra de 1840, boasparticularidades em relação à produção literária em dialeto, sobretudo sob a óptica do grande público leitor que se estabelecia em torno dos textos de Edwin Waugh, Bem Brier- ley, john Hartley e Bem Preston, dentre outros, publicados nos almanaques, anuários e periódicos da época. Também havia um alastramento dos dialetos por vias orais em declamações e diálogos, quase inatingíveis 150 anos depois. Provérbios, histó- rias e estórias, paródias, poemas compunham fundamental- mente as formas como os temas integravam esses arremedos de textos para a/da classe trabalhadora. Assim, a literatura produzida no condado do Norte da Inglaterra acabava por revelar uma infinitude de questões sobre os relacionamentos entre as classes, e como essas construíam as próprias e as demais identidades sociais. Na perspectiva aqui escolhida, os dialetos funcionariam como o resgate do passado dessas classes trabalhadoras e seriam as línguas dessas agremia- ções nos movimentos de identificação mediante uma literatura , uma escritura, um marcadamente impresso. Se voltássemos os olhos especialmente para as transfor- mações ocorridas no gênero literário utilizado pelos dialetura- 171 I POLfTICAS EM LINGUAGEM I tos da época (modificações no cenário, no enredo, nos prota- gonistas e na própria língua), perceberíamos uma nova postu- ra literária por parte dos escritores de Lancashire e Yorkshire- ou, segundo Bakhtin (1997, p. 279), uma instabilidade nos "tipos relativamente estáveis de enunciado" não tarde. No "todo do enunciado" (conforme termos de Bakhtin, 1997), o dialeto permite simbolizar uma identificação de inclusão (e não mais de exclusão) da classe trabalhadora; ou seja, o dialeto afeta o conteúdo temático, o estilo e a construção composicional - novos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais. A linguagem, no movimento de identificação em si, re- presenta as identidades dos gêneros literários na passagem de uma literatura a uma Dialecitura; representa as variadas simbo- lizações no movimento das negociações entre os distintos pó- los que tornam possíveis as identidades da classe trabalhadora pobre inglesa. O estudo dos elementos constitutivos do gênero literário faz aparecer novos rostos e lugares do condado Norte da Ingla- terra, que constituíam verdadeiros túneis de acesso ãs próprias simbolizações que esse investimento artístico, político e social passava a apresentar como vias diretas às formas de inclusão. O cenário e os protagonistas são modificados: a mercearia e o mercador; a escola dominical, a catequese e os alunos; a loja, o dono da loja, os clientes da loja - tais espaços e pessoas, atra- vés da literatura em dialeto, servem como novas peças de re- presentação das classes trabalhadoras industriais no condado Norte da Inglaterra da época. Como outra nova peça de representação manifesta, o en- redo acaba por acompanhar as mudanças que permitiram à li- teratura tratar Cotton Fowd como um espaço literário de acon- tecimentos, e fazer circular nesse espaço personagens (como 172 I LfNGUA, LITERATURA E IDENTIDADE DE CLASSE NA INGLATERRA DOS SÉCULOS XIX E xx I Bob'o Sups, Rovin joe e outros), contados pela voz de um poeta mendigo: Bem, em primeiro lugar, na casa do meio, Na porta ao lado de Rovin joe, Mora um sujeito bem vivo, Ele pensa que tem tudo. Ele nunca dá duro, Ele é um gabola, todos podem ver É chamado de folgazão Acho que esse mendigo sou eu. (Sam Fitton) A vida cotidiana dos cortiços, das ruas e das casas dos trabalhadores de Lancashire e Yorkshire podia agora ser retra- tada (e por que não negociada) pela nova língua da literatura - o dialeto -, que tornava os autores (escritores) e os milha- res de operários (leitores e ouvintes) consumidores da produ- ção literária que os identificava como classe social. E a figura do herói, já muito esboça da na imagem de um indivíduo deten- tor das melhores virtudes, ali fazia o heroísmo residir: L..] numa simbolização da constância, da inteligência e flexibilidade dos pobres. Acima de tudo L..] tratava-se da descoberta de conhecimento e amor-próprio. Sua ironia era atenuada e indireta, e, no exemplo inglês, o modo cômico era muito importante 00YCE, 1993, p. 227). Mas se a instabilidade é constatada no movimento de uma literatura (menor) a uma Dialecitura, esta, agora não mais em movimento, repousa em um conceito de parada e se faz como Literatura (maior). Se, por um lado, se enriquecem as ne- gociações no fenômeno de identificação no combate entre os 173 I POLfTICAS EM LINGUAGEM I gêneros literários (possíveis apenas pela relação travada entre o dialeto e a língua e a literatura), por outro, acaba por repou- sar, estavelmente, depois, em um cânone a ser seguido, em uma nova norma padrão. O próprio Joyce (993) aponta para as pistas que indicia- riam esse movimento de repouso da Dialecitura em uma Litera- tura, pistas aqui tratadas separadamente por meras imposições expositivas: a) A primeira versa sobre a forma como a língua(gem) - o dialeto - dos trabalhadores era encarada como o aspecto central de sua própria cultura: ['..l o emprego da língua falada mostrava como as iden- tidades sociais são criadas nos contextos cotidianos de uso. De uma maneira mais consciente e proposital do que essa, os trabalhadores na época identificavam sua língua como, talvez, o aspecto central de sua cultura OOYCE, 1993, p. 232). b) A segunda - a de que a língua(gem) dos trabalhadores ser- via como comentário social e como guia da moralidade social - une-se à primeira, tornando possível a próxima pista. c) A terceira é olhar para a língua(gem) dos trabalhadores no momento em que é abstratizada, ou seja, utilizada como fruto de um fenômeno metalingüístico. É na montagem de "a", "b" e "c" que se evidencia o repouso do movimento de identificação da classe trabalhadora inglesa. 174 I LfNGUA. LITERATURA E IDENTIDADE DE CLASSE NA INGLATERRA DOS SÉCULOS XIX E xx I No movimento que vai do Inglês Real ao Inglês do Povo, através do uso de ocorrências lingüísticas populares e significa- tivos ajustes do gênero literário, a tomada de consciência da classe trabalhadora inglesa tornou-se capaz pela vasta e larga propagação de uma literatura de amplos alcances populares. Isso significa dizer que o movimento da literatura à Dialecitura para voltar à Literatura também pode ser lido como a passagem de uma norma padrão real a uma norma padrão popular, só possível pelo uso do dialeto para a expressão da literatura. Terminarei com as idéias proferidas por Patrick Joyce 0993, p. 239): o "Inglês do Povo" era uma afirmação da integridade da cultura e da própria língua de um povo, feita por uma classe, contra a condescendência das classes superiores, e, ao mesmo tempo, uma reflexão sobre a natureza popular da classe. Tanto quanto o Inglês do Rei ou da Rainha, o Inglês do Povo teve um papel fundamental na criação de uma perspectiva que permanece entre aque- las com maior consciência de classe de todas as nações. A língua revivia os tempos da Inglaterra vitoriana, dos pe- ríodos da própria constituição da classe trabalhadora e estava ali sendo reencarnada em finais do século XIX para estabelecer a passagem de uma norma que excluía a classe trabalhadora an- tes da inclusão possibilitada pela Dialecitura a uma norma outra também excludente, agora capaz de trazer ao centro o conteú- do temático, o estilo e a construção composicional, característi- cas daquelas agremiações de Lancashire e Yorkshire, afastando para a periferia a norma e a forma da literatura do rei. 175 I pOLfTICAS EM LINGUAGEM I REFERÊNCIAS BAKHTIN, M. Estética da criação uerbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997. BURKE, P.; PORTER, R. (Org.) Linguagem, indivíduo e sociedade: história social da linguagem. São Paulo: Ed. Unesp, 1993. 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Sage, 1997. 176 SER E NÃO SER: EIS A QUESTÃO - AS MINORIAS SEXUAIS ENTRE A LEGITIMIDADE DA DIFERENÇA E O PERIGO DA SUA ONTOLOGIZAÇÃO RUBERVAL FERREIRA * o GRITO DOS OUTROS OU A IRRUPÇÃO DOS NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS Para muitos estudiosos das questões sociais, uma das ca- racterísticas mais acentuadas atualmente é o problema da crise de identidade. Autores como Giddens (1990) argumentam que, no mundo contemporâneo, esse problema está relacionado com o surgimento de uma modernidade tardia. Segundo esse autor, a compreensão da importância e da centralidade dessa questão depende da observação do conjunto das transforma- ções que o mundo vem sofrendo nos últimos tempos. Ou seja, Ruberval Ferreira é doutorando em Lingüística na Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, e professor do curso de Letras da Universidade Estadual do Ceará. 177 I POLíTICAS EM LINGUAGEM I I SER E NÃO SER: EISA QUESTÃO I é preciso que observemos de perto o conjunto das transforma- ções globais para entendermos as razões dessa "crise". Ao abordar as questões da identidade e da diferença na perspectiva dos estudos culturais, Kathryn Woodward (2000) lembra que, nas últimas décadas, temos assistido a mudanças radicais nas formas como representamos a nós mesmos. Além das identidades, o que essa autora denomina "lealdades políti- cas" tem sofrido mudanças. As chamadas "lealdades tradicio- nais", fundadas na idéia de classe social, foram substituídas pe- la concepção de escolha de "estilos de vida" e pela emergência de uma "política de identidade". Nesse sentido, argumenta ainda Woodward (2000), ques- tões ligadas à etnia, "raça", gênero, sexualidade, idade, justiça social, preocupações ecológicas revelaram um conjunto de no- vas necessidades, produziram novas formas de identificação e geraram uma nova onda de movimentos que ficaram conheci- dos como os novos movimentos sociais. Uma das preocupações centrais desses movimentos era a questão da identidade. O apa- gamento das fronteiras entre a esfera do pessoal e a esfera do político - ou seja, o apagamento dos limites entre o privado e o público - era uma questão primordial para esses movimen- tos. O pessoal passou, então, a ser da ordem do político. Esses novos movimentos sociais surgiram nos anos 1960, mais especificamente a partir do agitado maio de 1968, com o movimento estudantil, as manifestações antibélicas e as lutas por direitos civis. Eles surgiram à revelia de referências político- ideológicas que tinham como fundamento a idéia de divisão de classe. As identidades particulares eram o alvo dessas emergen- tes mobilizações. Surgiram, então, o feminismo, o movimento dos direitos civis dos negros e o movimento ga)J-lésbico, que colocavam em discussão a necessidade de uma urgente políti- ca sexual. Esses movimentos, motivados fundamentalmente pela vontade de afirmação da identidade de seus pares, reivin- dicavam direitos a partir daquilo que, segundo esses grupos, constituía sua singularidade. A luta para a legitimação de identidades tornava-se, assim, um importante fator de mobilização política e social cuja preo- cupação era não só celebrar as particularidades culturais dos grupos oprimidos, mas, principalmente, garantir-lhes direitos previstos até então apenas para a(s) identidade(s) dominante(s). Ernest Laclau (1990), por exemplo, vê o surgimento des- sas novas identidades como fenômenos sociais resultantes do que ele chama de "deslocamento" produzido por novas formas de antagonismos sociais. Esse "deslocamento social" é, segun- do esse autor, compatível com a construção de novos centros de poder. O social passa a ser pensado como uma pluralidade de centros de poder, cada um com uma capacidade diferente de intervenção. A essa pluralidade de centros de poder, Laclau (1990, p. 40) chama de "estrutura social descentrada". Ele lem- bra ainda que o sentido dessa estrutura descentrada não seria exatamente "a ausência de um centro, mas a prática do des- centramento através do antagonismo", sendo que as relações sociais contemporâneas não são mediadas por uma única força, mas por uma multiplicidade de centros, geradores, por sua vez, de novas posições de poder. Laclau (1990) - destacando o que o diferencia da tradi- ção marxista sobre a possibilidade de transformação democráti- ca da sociedade - defende que essa transformação só será pos- sível a partir da proliferação de novos sujeitos de mudança provenientes dos novos antagonismos que configuram as socie- dades contemporâneas. De acordo com esse autor, os novos centros indicam a existência de outros lugares a partir dos quais esses novos sujeitos podem surgir, constituindo assim novas are- nas de luta. Tal visão do social opõe-se à visão da tradição mar- 178 179 I POLíTICAS EM LINGUAGEM I I SER E NÃO SER: EISA QUESTÃO I xista segundo a qual a classe social seria não só a força maior em torno da qual se davam as relações sociais, mas também o lugar por excelência da transformação. Laclau (1990, p. 40) insiste, pois, na idéia de que existem "novas possibilidades de ação his- tórica que são o resultado direto de um deslocamento estrutural". De acordo com esse raciocínio, como as novas arenas de conflito social se constituíram em torno de questões ligadas a gênero, raça, etnia, sexualidade, dentre outras, o movimento gay-Iésbico - uma dessas arenas de luta e conflito social - seria, pois, uma das evidências dessa falta de um centro único ou desse deslocamento estrutural que constitui, nas palavras de Laclau (1990), um traço definidor das novas relações nas socie- dades contemporâneas. o PROBLEMA DA IDENTIDADE COMO LUGAR DE REIVINDICAÇÃO ria é dado em razão de uma certa forma de organização das relações sociais, cuja base de sustentação é exatamente a fron- teira entre um nós e um eles, ou seja, entre uma mesmidade (posta como representante de uma normalidade) e um conjun- to de alteridades (que teoricamente escapariam à ordem dessa normalidade), restando a tais grupos habitar suas margens? Isso poderia ser visto como uma estratégia, uma necessidade ou co- mo algo que, dado o grau de fetichização da diferença e do corporativismo das relações sociais contemporâneas, não con- segue ir além disso? A noção de identidade tem sido outra importante catego- ria em torno da qual os novos movimentos vêm se estruturan- do. O surgimento de novas formas de identificação, de novos estilos de vida e a emergência de uma política da identidade fi- zeram do conceito de identidade uma forte alavanca para esses novos movimentos. Os estudos culturais sobre identidade têm mostrado - como lembra Woodward (2000) - que sua reivindicação tem sido empreendida basicamente por duas vias: uma baseada em caracteres biológicos, a outra em elementos históricos. Tanto uma forma quanto a outra configuram uma tendência que con- cebe a identidade em termos essencialistas. Se, por um lado, a identidade tem sido compreendida em termos essencialistas,por outro, existe uma tendência contrária que entende a iden- tidade como construção e, por isso, como algo fluido, não rela- cionado a essências fixas nem a condicionamentos materiais. O conceito de identidade ganhou o status de uma noção sem a qual uma série de questões importantes não podem ser pensadas. Considerar isso passou a ser uma necessidade im- posta por problemas de várias ordens nas sociedades contem- porâneas. A reivindicação de direitos para os grupos marginali- zados, por exemplo, não pode ser pensada sem o suporte de Uma das categorias que têm servido não só para caracte- rizar, mas sobretudo para alavancar os novos movimentos sociais é a noção de minoria. Esse rótulo constitui não uma descrição objetiva de um grupo, mas uma forma de avaliação resultante de uma relação de dominância de um grupo que se enuncia como representante legítimo de uma normalidade sobre os demais, posicionados como alteridades e condicionados a se enunciar como tal. Apoiados nesse rótulo, os novos movimen- tos sociais vieram à baila com o intuito de legitimar as diferen- ças que os constituíam e de conquistar direitos políticos antes reservados às identidades dominantes. Embora a conquista de direitos e de espaços seja absolu- tamente legítima e necessária aos que são forçados a habitar as margens do stablishment, acho importante levantar a seguinte questão: como devemos encarar a reivindicação de espaço pe- los grupos considerados minoritários, se seu estatuto de mino- 180 181 I POLíTICAS EM LINGUAGEM I I SER E NÃO SER: EISA QUESTÃO I tal conceito. Então, a questão que nos colocamos é: como ele deve ser pensado? Todas as questões que levanto sobre a relação entre iden- tidade, diferença e reivindicação têm como referência a crítica desconstrutiva proposta por Derrida (1981). Ele afirma a neces- sidade de se considerar conceitos importantes - como o de identidade, por exemplo - sob rasura. O que significa isso? Significa não conceber um conceito em sua totalidade; ou melhor, não cair na ilusão de que os conceitos existem em uma totalidade, um fechamento. Significa entender que, embora eles não encerrem totalidades fixas nem possam falar das coisas em termos definitivos ou categóricos, não podemos pensar sem eles; porque os herdamos de uma tradição de pensamento que não nos coloca outra forma de pensar as coisas. Apesar de essa tradição não nos colocar uma forma dife- rente de pensar o mundo e as coisas, é possível pensá-Ias sem cair na ilusão de que os conceitos encerram suas totalidades. Os conceitos não conseguem abarcar a totalidade das coisas, dado o caráter inescrutável e inefável da complexidade que as constitui (ou seja, de sua alteridade), mas sem os quais não é possível falar sobre essas mesmas coisas. Pensar isso é tomar os conceitos sob rasura (DERRIDA, 1981). Para Derrida (1981), como os conceitos nem encerram totalidades nem dão conta da alteridade das coisas, eles não podem ser considerados a partir da perspectiva da matriz na qual eles foram originalmente pensados. Tomá-Ias sob rasura é a saída que esse filósofo encontra para "pensar de uma outra forma", ou seja, caracteriza-se como uma forma de "pensar no limite" ou de "pensar no intervalo" (DERRIDA, 1981). Pensar os conceitos herdados da tradição de pensamento que nos foi im- posta "no intervalo" é pensá-Ias de uma forma deslocada, redi- mensionada. Essa forma de tomar o conceito produz, na verda- de, a emergência de um novo conceito, que não se deixa mais subsumir pelo regime de pensamento no qual foi gerado. A crítica proposta por Derrida (1981) sobre a necessidade de deixarmos em suspenso conceitos importantes - mas sem os quais não é possível pensar as coisas - tem servido de su- porte para as mais diversas abordagens dos fenômenos sociais. Stuart Hall (2000), por exemplo, é um dos autores que também coloca a necessidade de considerarmos o conceito de identida- de sob rasura. O principal argumento é que, embora esse con- ceito seja bastante problemático, a necessidade de considerá-Ia na discussão de problemas de várias ordens obriga-nos a fazer referência a tal conceito, que não pode mais ser pensado como era antes. Mesmo considerado em termos provisórios, o conceito de identidade tem sido objeto de fortes divergências entre os teóricos que pensam a questão da identidade. Rajagopalan (2002), por exemplo, afirma que os teóricos que problernati- zam o conceito de identidade - tais como Bhabha, Anzal- dúa, Gilroy, Spivak, Grossberg, Clifford, dentre outros - es- tão sujeitos a essa crítica: embora não assumam uma postura relativista na forma de compreender a questão da identidade, acabam se rendendo a uma espécie de "essencialismo estraté- gico". Esses autores apóiam-se na afirmação de que, apesar da precariedade ontológica, existem identidades que atendem a metas político-ideológicas interessantes, devendo ser, por is- so, cultivadas. Segundo Rajagopalan (2002, p. 86), alguns teóricos res- pondem ao "essencialismo estratégico" com um "antiessencia- lismo crítico" e defendem que é preciso expurgar todas as identidades, conceitos e categorias que não servem a nenhum propósito a não ser ratificar 182 183 I POLlTICAS EM LINGUAGEM I ideologias nocivas, porém tão bem incrustadas a ponto de parecerem parte da própria ordem natural. Esse autor argumenta em favor de tal posição, porque percebe, em todo movimento social que luta contra a hegemonia de um centro, "um certo conflito entre a meta político-transformadora e aquilo que podemos chamar de um resquício da velha preo- cupação metafísica" (RAJAGOPALA , 2002, p. 86). Para esse autor, a insistência no hibridismo, na mestiçagem, na heteroge- nia, no entanto, não é, em si e por si só, nem uma ban- deira política nem um slogan vazio - pelo contrário, trata-se de algo que sempre foi e sempre será a forma mais espontânea de a natureza evoluir (RAJAGOPALAN, 2002, p. 86). Rajagopalan (2002) acrescenta ainda que a principal im- plicação dessa posição foi colocar em xeque o que ele chama de "tese da homogeneidade, da pureza e, principalmente, da propalada inviolabilidade e imutabilidade de identidades", que tem servido de bandeira política ao longo da história. Para esse autor, essa é a principal razão pela qual a questão da política da representação adquire sua importância, uma vez que é por meio da representação que novas identidades são reivindicadas e afirmadas continuamente. Para encerrar essa seção, gostaria de levantar uma ques- tão que acompanha a reivindicação de qualquer identidade: a sua reconfiguração e a relação disso com as redes de poder que lhes subjazem. Para isso, volto a Stuart Hall. Em um ensaio intitulado "Cultural identity and diaspora" (1990), esse autor in- daga sobre a questão de quem e o que representamos no mo- 184 I SER E NÃO SER: EISA QUESTÃO I mento de nossa fala, além de discutir a construção da identida- de cultural. De acordo com Hall (1990), duas são as formas de pensar essa construção: uma é remetendo a um passado histó- rico, na tentativa de se buscar sua "verdade", e a outra é consi- derando a identidade como algo tanto da ordem do "tornar-se" quanto da ordem do "ser". Nesse trabalho, Hall (1990) admite que o gesto de se rei- vindicar uma identidade abre espaço para a própria reconstru- ção - tanto da identidade reivindicada, quanto do passado que serve de suporte para seu resgate e reconstrução. Esse au- tor pensa a identidade não em termos de uma rígida fronteira entre um nós e um eles, mas como uma construção fluida. Ele argumenta que os grupos que reivindicam uma identidade não se limitam a ser apenas posicionados por ela; as identidades, portanto, sofreriam transformações em seus processos de afir- mação (aqui, Hall fala em termos de identidades culturais pro- priamente ditas). Acredito que o que Hall fala sobre as identidades culturais vale para qualquer construçãoidentitária. Ou seja, um perma- nente movimento de reconfiguração caracterizaria os processos de afirmação da identidade de qualquer grupo. As questões que surgem seriam: 1. Em que níveis ocorre essa reconfiguração? 2. Quais seriam suas motivações nos diferentes processos? 3. Que implicações éticas e políticas as transformações sofri- das nos diferentes processos de afirmação identitária fazem emergir? 4. Para que perspectivas apontam essas reconfigurações em termos da definição de um novo quadro de relações de força? 185 I POlíTICAS EM LINGUAGEM I Se pensarmos essas questões em termos dos processos de afirmação das chamadas identidades homoeróticas, é possí- vel argumentar que as transformações globais também afetaram sobremaneira a forma como esses grupos vêm se representan- do nos últimos tempos. O próprio surgimento de novos este- reótipos no interior de uma multifacetada identidade homoeró- tica (refiro-me, neste momento, aos homossexuais masculinos) é reflexo das transformações que vêm afetando a(s) identida- de(s) desse(s) grupo(s). Aliás, é muito complicado falar de uma identidade homoerótica, mesmo quando nos referimos apenas aos homossexuais masculinos, dada a pluralidade que marca esse grupo. Isso já mostra de cara o quanto é problemático fa- lar de uma identidade homoerótica, seja em referência aos ho- mens ditos homossexuais seja em referência às mulheres. Hall (1990) afirma que qualquer grupo que reivindica uma identidade não se limita apenas a ser posicionado por ela, sendo capaz de posicionar a si próprio, transformando e recon- figurando essa identidade que está sendo afirmada. Ao destacar essas palavras de Hall, minha intenção é perguntar: no caso das identidades homoeróticas, como a reivindicação dessas identi- dades e a conquista dos direitos que deveriam lhes ser garanti- dos por lei poderiam operar uma reconfiguração nas relações de força e nos processos que fizeram emergir essas mesmas identidades, tendo em vista que tais sujeitos não se limitam ape- nas a assumir as posições identitárias que lhes são reservadas pelos processos históricos? Ao pensar nessa questão, resolvi fazer alguns comentá- rios sobre a estratégia de despistamento empreendida na nova versão do Projeto de Lei nQ 1.151, de autoria da ex-deputada Marta Suplicy, posteriormente assumido pelo deputado federal Roberto ]efferson, que busca a disciplina da união civil entre pessoas do mesmo sexo. 186 I SER ENÃO SER: EISA QUESTÃO I Considero tais indagações oportunas para começar uma discussão em que pretendo problematizar o que considero ser o grande paradoxo de todo projeto político que reivindica o di- reito à diferença em um quadro de relações de força que se sustenta na produção de fronteiras estabeleci das por uma certa forma de marcação das relações sociais ou, em outras palavras, por uma certa forma de produção da diferença. Nesse sentido, levanto algumas questões sobre a proble- mática da reivindicação do direito à diferença a partir de uma prática discursiva legitimadora e cristalizadora de uma forma específica - e, por isso mesmo, nem necessária nem única - de produção da diferença. O material empírico considerado é, portanto, a reivindicação da legitimidade jurídica da relação dita homossexual enunciada através do Projeto de Lei anterior- mente referido. Este trabalho é parte de um estudo mais amplo em que procuro investigar as formas de significação e de representação das chamadas minorias sexuais na construção de um perfil identitário, a apropriação dessas formas e desse perfil na reivin- dicação de seus direitos, e os perigos e as contradições de todo discurso de reivindicação que se pauta (e não há como fugir a isso) por formas de significação resultantes do estabelecimento de uma rígida fronteira entre um nós e um eles, ou entre um mesmo e seus outros. Para ilustrar, apresento, na última seção deste texto, algu- mas questões relativas a possíveis implicações das formas como os grupos em questão são significados e representados no dis- curso do Projeto de Lei em questão. A discussão envereda pela complicada questão da exacerbação e fetichização da diferença enquanto mecanismos de divisão e controle social, cujo funcio- namento produz a crença de que as diferenças estão ligadas a 187 I f>OLITICAS EM LINGUAGEM I verdades essenciais e de que os indivíduos têm identidades prontas e acabadas. SOBRE O MESMO E SEU(S) OUTRO(S) E O PROBLEMA DA (I)LEGITIMIDADE DESSAS INSTÂNCIAS Considero os conceitos de mesmidade e alteridade co- mo instâncias definidas fundamentalmente por uma relação de poder. Estamos inseridos no quadro de relações de força e, dependendo dos traços que o caracterizam, um indivíduo po- de ser posicionado dentro de uma instância ou de outra. O comportamento sexual dos indivíduos, por exemplo, é histo- ricamente um traço que serve à prática da exclusão em diver- sas culturas. Ou seja, serve para definir uma fronteira entre uma identidade dominante - a heterossexual - e outras identidades não-dominantes, construídas, por sua vez, à mar- gem e que tomam a identidade dominante como referência de alteridade. O mesmo (a identidade dominante) funciona nesse caso, , como o outro dos eus marginais, cuja "percepção de si" ocorre em referência àquilo que tem o status de normalidade. Nesse sentido, o mesmo é aquela instância que, por se colocar como maioria, se coloca também como representante do que se acre- dita constituir um certo estado de normalidade. Tudo aquilo que escapa à sua ordem é alteridade. Podemos também enten- der a categoria de mesmo como tudo aquilo que faz parte da "ordem das coisas" tais como elas nos são apresentadas. No caso de nossa experiência cultural, por exemplo, tra- ços como ser homem, branco, heterossexual e católico (se bem que hoje essa característica está mais enfraquecida) enquadra- riam qualquer indivíduo à instância de um mesmo. Acho tam- 188 I SER E NÃO SER: EIS A QUESTÃO I bém que podemos pensar em níveis de mesmidade. Caracterís- ticas como ser mulher, branca, heterossexual e católica também constituem um tipo de mesmidade se comparadas a: ser mu- lher, branca, homossexual e (ser ou não) católica, e assim por diante. Além disso, é importante lembrar: o que leva um indiví- duo a se identificar com um grupo é, ao mesmo tempo, um sentimento de pertença ou de mesmidade em relação a esse grupo e um sentimento de alteridade em relação ao que lhe é diferente. O sentimento de identidade confunde-se, portanto, com o de mesmidade; o mesmo é constituído por aqueles indi- víduos que são idênticos, ou seja, que acreditam compartilhar um mesmo traço, uma certa singularidade. Nesse caso, aquele que - na relação identidades domi- nantes versus identidades não-dominantes - é visto como anormal, vê a si como normal, uma vez que tal sentimento é construído pela consciência de sua singularidade (ou melhor, pela sua ilusão). Em uma relação de poder, aquele que é signi- ficado e representado como outro, do seu ponto de vista, se percebe como mesmo. Os conceitos em questão não são toma- dos como realidades em si, mas como construções que resul- tam de uma relação dialógica. São construções simultâneas que se tornam possíveis mediante a percepção da diferença (ou seja, por meio de um certo tipo de investimento ideológico da dife- rença); ou na perspectiva de Derrida (971), de um jogo, que institui e instaura um conjunto de oposições a partir das quais se dão os recortes socioculturais e as fronteiras que separam os grupos e que lhes conferem um determinado status. Essas questões fazem da relação entre tais instâncias uma relação de permanente tensão. É o que afirmam, por exemplo, autores como Geraldi (2003, p. 41), ao defender que 189 I POL!TICAS EM LINGUAGEM I assumir a relação dialógica como essencial na constitui- ção dos seres humanos não significa imaginá-Ia sempre
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