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1 PARA APRENDER POLÍTICAS PÚBLICAS – Volume 1 SUMÁRIO INTRODUÇÃO .................................................................................................................... p. 4 1. POLÍTICA E POLÍTICA PÚBLICA ...................................................................................p. 5 2. OS ATORES NAS POLÍTICAS PÚBLICAS (STAKEHOLDERS): o que são, quem são e como se classificam ...........................................................................................................p. 13 3. O COMPORTAMENTO DOS ATORES: escolha racional, ação coletiva e padrões de interação ............................................................................................................................p. 20 4. AS RELAÇÕES DE PODER ENTRE OS ATORES POLÍTICOS ..................................p. 25 4.1 Triângulos de Ferro, Redes de Políticas Públicas, Comunidades de Políticas e Coalizões de Defesa ..........................................................................................................................p. 26 5. ABORDAGENS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS. POLÊMICA ENTRE A ABORDAGEM SISTÊMICA E A ABORDAGEM DAS ARENAS POLÍTICAS ............................................p. 30 5.1 A Política (Politics) Define as Políticas Públicas (Policies)? Ou São as Políticas Públicas Que Definem a Política (Politics)? .....................................................................................p. 30 5.2 A Abordagem Sistêmica ..............................................................................................p. 30 5.2.1 O Processamento dos Inputs Pelo Sistema Político ................................................p. 34 5.3 A Abordagem das Arenas Políticas .............................................................................p. 36 6. TIPOLOGIAS E TIPOS DE POLITICAS PÚBLICAS .....................................................p. 48 7. A CONCEPÇÃO DO CICLO DE POLÍTICAS PÚBLICAS .............................................p. 55 7.1 Algumas Alternativas ao Policy Cycle Para a Análise de Políticas Públicas ...............p. 59 8. FORMAÇÃO DA AGENDA E FORMULAÇÃO DA POLÍTICA PÚBLICA ......................p. 60 8.1 Demandas, Estados de Coisas e Problemas Políticos ................................................p. 60 8.2 Agenda Governamental: o que é e seus tipos .............................................................p. 62 8.3 Teorias de Formação da Agenda de Política Pública ..................................................p. 63 8.3.1 A Teoria da Não-Decisão .........................................................................................p. 64 8.3.2 O Modelo dos Múltiplos Fluxos .................................................................................p. 67 8.3.3 O Modelo do Equilíbrio Pontuado .............................................................................p. 73 8.4 O Modelo Garbage Can – Lata de Lixo .......................................................................p. 77 8.5 O Modelo das Coalizões de Defesa ............................................................................p. 80 8.6 As Polêmicas Sobre o Processo Decisório nas Políticas Públicas ............................ p. 82 9. A IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS ........................................................p. 92 9.1 Modelos de Implementação .........................................................................................p. 94 9.1.1 O Modelo Top-Down .................................................................................................p. 94 9.1.2 O Modelo Bottom-Up …............................................................................................p. 98 2 PARA APRENDER POLÍTICAS PÚBLICAS – Volume 1 9.1.3 As Teorias “Híbridas” ..............................................................................................p. 102 9.2 Considerações a Respeito da Implementação ..........................................................p. 105 10. MONITORAMENTO E AVALIAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS E PROGRAMAS GOVERNAMENTAIS .......................................................................................................p. 109 10.1 Conceitos Básicos: monitoramento, avaliação, acompanhamento, pesquisa avaliativa. Insumos, pressupostos, produtos, processos, efeitos, impactos .....................................p.112 10.2 Tipologias de Avaliação: ex-ante, ex-post, intermediária; de conformidade, formativa, somativa; interna, externa, mista; centrada em objetivos, independente de objetivos, baseada em análise de custo-benefício; por pares ou especialistas, adversários ou participantes.....................................................................................................................p. 118 10.3 Modelos ou Abordagens na Avaliação: Teoria do Programa; Teoria da Implementação, Teoria da Mudança do Programa ....................................................................................p. 123 10.4 Os Métodos Experimental e Quasi-Experimental para Avaliação de Impacto ........p. 125 10.5 O Planejamento do Monitoramento e da Avaliação: definição de objetivos, de critérios, de métodos, de perguntas avaliativas, de indicadores e seus padrões. Fontes, instrumentos e técnicas de coleta e análise de dados primários e secundários ...................................p. 129 10.6 Cuidados para Assegurar a Qualidade da Avaliação ..............................................p. 140 10.7 A Situação do Monitoramento e da Avaliação de Políticas Públicas no Brasil ........p. 141 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...............................................................................p. 144 INTRODUÇÃO 3 PARA APRENDER POLÍTICAS PÚBLICAS – Volume 1 A área de estudos e pesquisa denominada “Políticas Públicas” constitui um dos campos de estudo e pesquisa da Ciência Política, que compreende diferentes correntes teóricas e distintas abordagens analíticas. Após as décadas de 1960, no mundo ocidental, e de 1980, no Brasil, a Ciência Política incluiu entre as suas ênfases as políticas públicas. O tema é comumente tratado, pela sociedade em geral, ora como a razão para as dificuldades econômicas, sociais e políticas do País, ora como uma espécie de panaceia capaz de resolver problemas os mais variados, em especial, aqueles ligados à capacidade de gestão da coisa pública. Essa obra tem como referência os temas de políticas públicas recorrentemente inseridos nos editais de concursos públicos dos últimos dez anos. O texto se dedica, por inteiro, à questão das políticas públicas, perpassando cada uma das fases do ciclo de políticas públicas, da formação da agenda governamental à avaliação, sem deixar de mencionar os processos de sua formulação e de sua implementação (Volume 1). Tópicos bastante atuais, como intersetorialidade, accountability, conselhos gestores e algumas das principais políticas públicas em andamento no Brasil, são detalhados, além de constarem exercícios de concursos anteriores (Volume 2). São apresentados os conceitos consolidados e as teorias mais relevantes desse campo de estudo e são exploradas as polêmicas mais importantes na literatura recente. Destaca-se que alguns conceitos encontram-se replicados propositalmente em mais de uma seção do livro. A aparente redundância possui a finalidade didática de abordar uma mesma temática segundo diferentes ângulos. O método foi adotado também para que o assunto de cada capítulo seja tratado por completo, sem que o leitor precise ir e vir, percorrendo trechos distintos do livro para esgotar cada tema de estudo. Leia cuidadosamente cada parágrafo e não deixe de observar as notas de rodapé: elas trazem esclarecimentos importantes para a melhor compreensão do conteúdo. Cada um dos assuntos aqui elencados foi planejado e escrito com o intuito de proporcionar aos estudantes, aos acadêmicos, aos servidores públicos, à sociedade e aos demaisinteressados o instrumental necessário para melhor entender e lidar com o universo das políticas públicas. 4 PARA APRENDER POLÍTICAS PÚBLICAS – Volume 1 1. POLÍTICA E POLÍTICA PÚBLICA O que é “Política Pública”? Em primeiro lugar, deve-se ter em mente que o conceito é impreciso, admite muitas definições e algumas polêmicas. Essas polêmicas revelam discussões teóricas inconclusas, com autores importantes defendendo pontos divergentes e, na maioria das vezes, irreconciliáveis. A postura adotada nesse texto é a de relatar os lados de cada polêmica e, quando couber, indicar como autores relevantes têm procurado relativizá-las. Ao evidenciar a imprecisão do conceito, Celina SOUZA (2006) comenta que a expressão “políticas públicas” pode referir-se a diferentes objetos: um campo de atividade governamental, como exemplifica a política agrícola; uma situação social desejada, como a política de igualdade de gênero; uma proposta de ação específica, como a política de ações afirmativas; uma norma quanto ao tratamento de determinado problema, como a política de fontes de energia renováveis; ou mesmo um conjunto de objetivos e programas que o governo possui em um campo de ação, como a política de combate à pobreza. As diversas definições conceituais encontradas na literatura mostram-se aparentemente semelhantes. Entretanto, essa aparência é somente ilusória, pois os elementos nelas presentes e ausentes revelam entendimentos muito diversos entre os principais autores. Nos enunciados (a), (b), (c) e (d), a seguir, a ênfase das definições recai sobre a finalidade das políticas públicas e as decisões nelas envolvidas. Política pública seria: a) “Um curso de ação escolhido para lidar com um problema ou uma questão de interesse comum”. b) “Um conjunto de decisões inter-relacionadas referentes à seleção de objetivos e dos meios para atingi-los”. c) “Um conjunto de decisões adotado e posto em prática mediante processos selecionados que definem os recursos necessários, sua distribuição e gestão”. d) “Estratégias que apontam para diversos fins, todos eles, de alguma forma, desejados pelos diversos grupos que participam do processo decisório” (SARAVIA, 2006, p. 28-29). Dos enunciados (e) e (f) constam explicitamente dois elementos a mais: o governo e a sociedade, os agentes públicos e os agentes da sociedade. e) “O conjunto das atividades de um governo, diretamente realizadas por agentes públicos ou por agentes da sociedade, e que influenciam a vida dos cidadãos”. f) “Um curso de ação produzido por um governo (Executivo, Legislativo e/ou Judiciário) que satisfaz uma necessidade e que se expressa na forma de objetivos estruturados em um conjunto de diretrizes, de caráter imperativo, aceitos pela coletividade”. Já nos enunciados (g) e (h), além da declaração do caráter público das decisões tomadas, o foco se transfere para a ideia de que a política pública apresenta a natureza de uma intervenção na realidade. Observa-se, ainda, que o enunciado (h) inclui tanto as ações como as omissões do governo. g) “Fluxo de decisões públicas, orientado para manter o equilíbrio social ou a introduzir desequilíbrios destinados a modificar essa realidade” (SARAVIA, 2006, p. 28). 5 PARA APRENDER POLÍTICAS PÚBLICAS – Volume 1 h) “Sistema de decisões públicas que visa a ações ou omissões1, preventivas ou corretivas, destinadas a manter ou modificar a realidade de um ou vários setores da vida social, por meio da definição de objetivos e estratégias de atuação e da alocação dos recursos necessários para atingir os objetivos estabelecidos” (SARAVIA, 2006, p. 29). Na ausência de um consenso conceitual, um recurso para entender o que vem a ser “política pública” é pensar sobre o contexto no qual elas ocorrem: as sociedades modernas. As sociedades modernas têm, como principal característica, a diferenciação social. Isso significa que seus membros não apenas possuem atributos diferenciados (idade, sexo, religião, estado civil, escolaridade, renda, setor de atuação profissional, etc.), como também possuem ideias, valores, interesses e aspirações diferentes e desempenham papéis distintos no decorrer da sua existência. Isso faz com que a vida em sociedade seja complexa e compreenda diferentes padrões de interação: cooperação, competição, conflito. Enquanto a cooperação e a competição são dinâmicas interacionais agregadoras, o conflito desagrega e pode levar à ruptura dos laços de coexistência coletiva. Isso ocorre, porque ao conflito está intrinsecamente associada à possibilidade de uso da violência. Por isso, para que a vida em sociedade permaneça viável, o conflito deve ser mantido dentro de limites administráveis: os indivíduos podem divergir, podem competir e podem até se confrontar (e com frequência, o fazem), porém, devem obedecer a algumas regras e a alguns limites necessários ao bem-estar coletivo. Isso não acontece naturalmente. Para que suceda, há apenas dois meios: a coerção pura e simples, de um lado; e a política, de outro. Aplicada a fim de administrar o conflito, a coerção refere-se ao conjunto de atividades de repressão e de punição das transgressões às normas, mediante a aplicação, potencial ou efetiva, da violência física. Do ponto de vista estratégico, a coerção é uma alternativa de utilização restrita, já que, quanto mais utilizada, menor a sua efetividade e mais elevado resulta o seu custo. Resta, então, a política. A política envolve coerção em potencial, mas não se limita a ela. Ao contrário: admite vários outros mecanismos, destinados a tornar desnecessária a própria coerção. Cabe indagar, afinal, o que é política. Phillippe SCHMITTER (1979, p. 38) oferece uma definição para o preceito, ressaltando sua função: “a função da política é a de resolver conflitos entre indivíduos e grupos, sem que este conflito destrua um dos partidos em conflito”. Em palavras bastante simples, para o autor, política é a resolução pacífica de conflitos. Esse conceito, no entanto, é demasiado amplo, discrimina pouco. É possível delimitar um pouco mais e estabelecer que a política consiste no conjunto de procedimentos formais e informais que expressam relações de poder e que se destinam à resolução pacífica dos conflitos quanto a bens públicos. Não se deve perder de vista, contudo, que “política” não é a mesma coisa que “política pública”. Como distinguir política de política pública? Por que é que a discussão chegou ao conceito de “política”, sem chegar ao de “política pública”? Em parte, isso se deve ao fato de a língua portuguesa utilizar a mesma palavra para se referir a duas coisas 6 PARA APRENDER POLÍTICAS PÚBLICAS – Volume 1 1 A literatura não exibe um consenso quanto às omissões, uma vez que é bastante razoável o argumento de que, se todas as omissões dos atores públicos fossem consideradas políticas públicas, absolutamente tudo seria política pública. Tende a ser mais comum a interpretação de que as políticas públicas distinguem-se como tais na medida em que reúnem decisões e ações. Porém, autores como Celina SOUZA (2006) lembram que, há mais de 40 anos, BACHRACH e BARATZ (1962, 1970) mostraram que a imposição de obstáculos à inserção de uma demanda na agenda governamental é uma forma de lidar politicamente com um problema, desde então conhecida como “não-decisão” (ver capítulo 8.3.1). distintas: política e política pública. Quando recorremos à língua inglesa fica mais fácil perceber as diferenças. Segundo Klaus FREY (1999, p. 4): “A literatura sobre 'policy analisis' diferencia três dimensões da política. Para a ilustração dessas dimensões tem se adotado na ciência política o emprego dos conceitos em inglês de 'polity' para denominar as instituições políticas, 'politics' para os processos políticos e, por fim, 'policy' para os conteúdos da política. • a dimensão material'policy' refere-se aos conteúdos concretos, isto é, à configuração dos programas políticos, aos problemas técnicos e ao conteúdo material das decisões políticas; • no quadro da dimensão processual 'politics' tem-se em vista o processo político, frequentemente de caráter conflituoso, no que diz respeito à imposição de objetivos, aos conteúdos e às decisões de distribuição; • a dimensão institucional 'polity' se refere à ordem do sistema político, delineada pelo sistema jurídico, e à estrutura institucional do sistema político-administrativo”. Também SOUZA (2006) busca a língua inglesa para estabelecer distinções conceituais, embora se diferencie de FREY por inserir as “instituições” numa quarta dimensão. Consoante a autora (p. 40), são quatro os elementos no estudo das políticas públicas: “a própria política pública (policy), a política (politics), a sociedade política (polity) e as instituições onde as políticas públicas são decididas, desenhadas e implementadas”. Com acepções um tanto distintas daquelas consagradas na literatura da área2, como se pode verificar abaixo, Carlos T. A. PINHO (2011, slide 8) menciona os seguintes termos: • “Política (Politics) – caracteriza as ações e negociações dos representantes da sociedade nos diferentes fóruns, nas diferentes esferas e Poderes. • Política (Policy) – curso de ação deliberado que guia as decisões na direção de resultados racionais. Ciência da organização, direção e administração de nações ou Estados; aplicação desta ciência aos negócios internos (política interna) ou externos (política externa). • Pública (Public) – aquilo que pertence ou afeta não apenas uma pessoa (física ou jurídica) específica, mas toda a sociedade”. Para avançar na compreensão desses conceitos, é útil esclarecer as diferenças entre política pública e decisão política. Uma política pública geralmente envolve mais do que uma decisão isolada, além de requerer diversas ações estrategicamente selecionadas para implementar as decisões tomadas. A título de exemplos, a privatização de estatais, a reforma agrária, o Sistema Único de Saúde (SUS), ou os programas de transferência de renda, relacionam-se a políticas públicas. A decisão política, por sua vez, corresponde a uma escolha entre várias alternativas, segundo a hierarquia das preferências dos atores envolvidos, expressando – em maior ou menor grau – certa adequação entre os fins pretendidos e os meios disponíveis num contexto de relações de poder e conflito. Exemplos de decisões políticas que não representam política pública seriam: uma reforma ministerial, uma emenda constitucional para reeleição presidencial ou a criação de um fundo para uma finalidade qualquer. Trata-se de decisão, mas não de política pública. 7 PARA APRENDER POLÍTICAS PÚBLICAS – Volume 1 2 O autor caracteriza politics não como um processo marcado por interações diversas, entre as quais se destacam a competição e o conflito, mas como “ações e negociações”; além disso, estabelece que tais interações se dariam entre os “representantes da sociedade” e não entre interesses específicos e fragmentados presentes na sociedade; e trata os Poderes como se fossem apenas loci das “ações e negociações” e não como se fossem também atores dotados de interesses próprios. Quanto ao conceito de policy, PINHO enfatiza o seu caráter “racional” e relativo à “ciência”. Finalmente, atribui ao termo “público” ou “public” o significado de coletivo, esvaziando a dimensão do poder imperativo do Estado. Portanto, embora uma política pública implique decisão política, nem toda decisão política chega a constituir uma política pública. A essa altura, faz-se necessário perguntar por que nos referimos às políticas qualificando-as como “públicas”. Ou seja: o que é que torna uma política, política pública (policy)? Esse é um ponto polêmico existente nesse campo de estudo, no qual se contrapõem a Abordagem “Estatocêntrica” e a “Policêntrica”, também chamada “Multicêntrica”. De acordo com a Abordagem Estatocêntrica, a dimensão “pública” de uma política (policy) é dada pelo fato de ela consistir em decisões e ações revestidas do poder extroverso e da autoridade soberana do Estado. Conforme essa Abordagem, a dimensão “pública” de uma política advém não do tamanho do agregado social (grandes ou pequenos grupos) sobre o qual ela incide, nem do tipo de problema ao qual pretende oferecer resposta, mas sim do seu caráter jurídico “imperativo”. Isso quer dizer que uma das características centrais que tornam uma política “pública” é o fato de que as decisões e ações que a compõem são amparadas na lei, logo, fundamentadas na autoridade do Poder Público. Pretende-se frisar, na vertente Estatocêntrica, que a política pública, em última instância, depende de uma estrutura legal de procedimentos e de processos institucionais governamentais. Esse aspecto não é próprio das entidades privadas, sem embargo de elas, por vezes, agirem visando o benefício público ou agregarem a participação de amplas coletividades. Atores diversos podem estar envolvidos, em maior ou menor grau, nas diversas fases e atividades da política pública, embora até o seu envolvimento dependa de decisões imperativas do Estado. De certa forma, esse caráter imperativo se expressa muito claramente nos próprios instrumentos de políticas públicas: legislação, recursos financeiros e humanos, serviços, linhas de crédito, tributos3, subsídios, incentivos diversos e, por último, mas não menos importante, a coerção. Os principais instrumentos de políticas públicas, conforme pondera PINHO (2011, slide 21), são: • “Legislação: instrumento que cria obrigações e molda ações e comportamentos. • Fornecimento de Produtos e Serviços: provisão direta ou indireta de produtos (estradas, delegacias, postos de saúde, praças de esporte etc.) ou serviços (controle de tráfego aéreo, policiamento, fiscalização etc.). • Recursos financeiros: transferências de dinheiro a entidades, instituições ou mesmo pessoas (Bolsa Família, benefícios de prestação continuada, convênios para qualificação profissional etc.). • Impostos e Taxas: incentivam ou constrangem a atividade econômica como, por exemplo, a elevação ou dedução de impostos sobre bebidas, cigarros, importações, etc. • Outros: subsídios para manutenção de atividades de interesse coletivo, concessão de crédito educativo”. As políticas públicas não se confundem com atividades coletivas. Existem várias coletividades de natureza privada, como clubes e associações civis, que oferecem 8 PARA APRENDER POLÍTICAS PÚBLICAS – Volume 1 3 Os tributos compreendem os impostos, taxas, contribuições e empréstimos compulsórios, que formam a receita da União, dos estados e dos municípios. Eles podem ser diretos ou indiretos. No primeiro caso, os contribuintes arcam com os tributos ao pagá-los, como ocorre com o Imposto de Renda, o IPVA, o IPTU, o ITR, as taxas de lixo e de iluminação pública, etc. Já os tributos indiretos incidem sobre o preço das mercadorias e serviços, como o IPI, o ICMS, o ISS, a CIDE, entre outros. benefícios por decisão própria, com exclusividade para seus associados, ou não. Coletivo não é o oposto de privado e não é o mesmo que público. A Abordagem Policêntrica ou Multicêntrica percebe a política pública como não condicionada, nem subordinada ao poder do Estado. Em vez de focalizar no protagonismo do Estado na produção das políticas públicas, ela enfatiza a capacidade de atuação pluralista dos atores sociais: como “policy networks” (redes de políticas públicas, que serão estudadas adiante), organizações não-governamentais (ONGs) e organismos internacionais, etc. Esses seriam protagonistas das políticas públicas tanto quanto os atores estatais. De acordo com Francisco HEIDEMANN e José Francisco SALM (2009, p. 31 apud SECCHI, 2010, p. 4): “A perspectiva de políticapública vai além da perspectiva de políticas governamentais, na medida em que o governo, com sua estrutura administrativa, não é a única instituição a servir à comunidade política, isto é, a promover ‘políticas públicas’”. Para Leonardo SECCHI (2010, p. 4), a essência conceitual das políticas públicas é o problema público. Nesse sentido, o que determina se uma política é pública, ou não, seria a sua intenção de responder a um problema “público” (não um problema político), independentemente de o tomador de decisão ter personalidade jurídica estatal ou não estatal. Nota-se, assim, que na Abordagem Multicêntrica o conceito de políticas públicas passa a ter como foco o “problema público”, em lugar do ator responsável por elas. E o que seria um problema “público”? Segundo SECCHI (2010, p. 7), um problema expressa a diferença entre a situação atual (um status quo ‘inadequado’) e uma situação ideal possível. Um problema público seria “a diferença entre a situação atual e uma situação ideal possível para a realidade pública” (Ibidem, p. 7). Soma-se que “para um problema ser considerado ‘público’ este deve ter implicações para uma quantidade ou qualidade notável de pessoas” (Ibidem, p. 7). Consoante o autor (Ibidem, p. 3), “a interpretação do que seja um problema público (...) aflora nos atores envolvidos com o tema (...)”. Já a Abordagem Estatocêntrica refere-se a problema “político”, definindo-o como uma situação à qual os governos se veem constrangidos a dar algum tipo de resposta, vale dizer: a indicar à sociedade o que pretendem fazer a respeito. Isso ocorre, porque, mesmo que sua resposta seja puramente simbólica, o custo político de se omitir frente ao problema pode ser demasiado elevado para os governantes (perda de legitimidade, fragilização frente às forças de oposição, etc.). A proposição de Leonardo SECCHI distingue-se do que foi proposto por Janice MERIGO e Marlene M. de ANDRADE (2010, não paginado), cujo critério para definição de políticas públicas baseia-se, nomeadamente, na personalidade jurídica dos formuladores e executores: “Podem existir políticas públicas não-governamentais. (...) São políticas que atendem ao interesse público, tendem a responder a necessidades sociais, são submetidas ao debate e participação popular, mas que são propostas, formuladas e executadas por organizações não pertencentes ao aparelho de Estado. Ex. as várias políticas de proteção ao ambiente, em sua maior parte coordenadas por Organizações Não-Governamentais (ONGs)”. Aparentemente, a posição das autoras ampara-se no conceito do “público não- estatal”, caracterizado por BRESSER PEREIRA e Nuria Cunill GRAU (1999, p. 16-17) nos seguintes termos: 9 PARA APRENDER POLÍTICAS PÚBLICAS – Volume 1 “O setor produtivo público não-estatal é também conhecido por ‘terceiro setor’, ‘setor não-governamental’, ou ‘setor sem fins lucrativos’. Por outro lado, o espaço público não- estatal é também o espaço da democracia participativa ou direta, ou seja, é relativo à participação cidadã nos assuntos públicos. (...) a expressão ‘público não-estatal’ que define com maior precisão do que se trata: são organizações ou formas de controle ‘públicas’ porque estão voltadas ao interesse geral; são ‘não-estatais’ porque não fazem parte do aparato do Estado, seja porque não utilizam servidores públicos ou porque não coincidem com os agentes políticos tradicionais. (...) O que é estatal é, em principio, público. O que é público pode não ser estatal, se não faz parte do aparato do Estado”. A despeito do reconhecimento do papel crucial dos atores não estatais nas políticas públicas, é possível sustentar que predomina, na Ciência Política, a compreensão de que o fator decisivo para uma política ser “pública” está em seu respaldo pela autoridade do Estado – não a personalidade jurídica dos que nela atuam, tampouco a natureza do problema em que se circunscreve. Essa é a posição assumida por Enrique SARAVIA (2006, p. 31) quando nomeia os componentes comuns das políticas públicas, colocando a autoridade pública em primeiro lugar: “a) Institucional: a política é elaborada ou decidida por autoridade formal legalmente constituída no âmbito da sua competência e é coletivamente vinculante; b) Decisório: a política é um conjunto de decisões, relativo à escolha de fins e/ou meios, de longo ou curto alcance, numa situação específica e como resposta a problemas e necessidades; c) Comportamental: implica ação ou inação, fazer ou não fazer nada; mas uma política é, acima de tudo, um curso de ação e não apenas uma decisão singular; d) Causal: são os produtos de ações que têm efeitos no sistema político e social”. Compartilham a ênfase no papel crucial da autoridade do Estado para a definição do caráter público de uma policy, entre outros, David EASTON (1970), ao definir política pública como “a alocação imperativa de valores”; Guillermo O’DONNELL (1989), ao propor que a política pública permite observar “o Estado em ação”; e Celina SOUZA4 (2006, p. 36), ao sustentar que a política pública “permite distinguir entre o que o governo pretende fazer e o que, de fato, faz”. A excessiva ênfase no protagonismo dos atores sociais como critério de conceituação do caráter público de uma policy contou com grande receptividade na década de 1990, quando as análises da interdependência econômica dos países no sistema internacional previam e propunham a redução do papel do Estado, ao passo que ressaltavam a função dos investidores globais, das corporações transnacionais ou simplesmente da ação autônoma dos atores organizados da sociedade. Na segunda década do terceiro milênio, porém, novas gerações de teorias não somente desafiam as concepções da diluição e da negação do Estado, como reafirmam a sua especificidade e a centralidade do seu papel nas políticas públicas. Seja qual for a abordagem adotada, é preciso ter em mente as características do que se entende como policy, ou seja, política pública. Para Celina SOUZA (2006, p. 36), toda política pública apresenta as seguintes características: 10 PARA APRENDER POLÍTICAS PÚBLICAS – Volume 1 4 SOUZA (2003, p.15) sustenta ainda que “Apesar do reconhecimento de que outros segmentos que não os governos se envolvem na formulação de políticas públicas, tais como os grupos de interesse, os movimentos sociais e as agências multilaterais, por exemplo, com diferentes graus de influência segundo o tipo de política formulada e das coalizões que integram o governo, e apesar de uma certa literatura argumentar que o papel dos governos tem sido encolhido por fenômenos como a globalização, a diminuição da capacidade dos governos de intervir, formular políticas públicas e governar não está empiricamente comprovada. Visões menos ideologizadas defendem que apesar de limitações e constrangimentos, a capacidade das instituições governamentais de governar a sociedade não está inibida ou bloqueada (PETERS, 1998, p. 409)”. • “É ação intencional, com objetivos a serem alcançados. • Permite distinguir entre o que o governo pretende fazer e o que, de fato, faz. • Envolve processos subsequentes após sua decisão e proposição, ou seja, implica também implementação, execução e avaliação. • Envolve vários atores e níveis de decisão, embora seja materializada através dos governos. • Não se restringe aos participantes formais, já que os informais são também importantes. • É abrangente e não se limita a leis e regras (envolve procedimentos, recursos, etc.). • Ocorre no longo prazo, embora possa ter impactos no curto prazo”. Renato D’AGNINO (2009, p. 134) propõe o seguinte decálogo para entender o que é policy ou política pública: “i) A distinção entre política e decisão: a política é gerada por uma série de interações entre decisões mais ou menos conscientes de diversos atores sociais (e não somente dostomadores de decisão); ii) A distinção entre política e administração; iii) Que política envolve tanto intenções quanto comportamentos; iv) Tanto ação como não-ação, podendo assumir, inclusive, o caráter de política simbólica; isto é, que uma política cujo objetivo é mais gerar um impacto político favorável para quem a formula do que ser implementada de fato; v) Que a política pode determinar impactos não esperados; vi) Que seus propósitos podem ser definidos ex post: racionalização; vii) Que ela é um processo que se estabelece ao longo do tempo; viii) Que envolve relações intra e inter-organizações; ix) Que é estabelecida no âmbito governamental, mas envolve múltiplos atores x) Que é definida subjetivamente segundo as visões conceituais adotadas”. Antes de prosseguir, cumpre enfatizar a complexidade do campo de estudo das políticas públicas. Diferentes autores defendem perspectivas analíticas diversas, algumas das quais se distinguem apenas marginalmente, enquanto outras se contrapõem de forma radical. Muitas abordagens têm sido recombinadas, a fim de ganhar poder explicativo sobre as políticas públicas. É possível organizar de variadas formas as diversas vertentes analíticas. Peter JOHN (1998) reconhece as seguintes abordagens: • as que têm como foco as instituições formais e informais na determinação das decisões e dos resultados nas políticas públicas; • as que enfatizam a racionalidade, especialmente a teoria da escolha racional; • as que atribuem aos fatores socioeconômicos o poder de determinar as decisões dos atores e os resultados das políticas públicas; • as que se centram nos grupos e redes e nas interações dos atores nos processos das políticas públicas; • as que destacam o papel das ideias e crenças como fatores independentes capazes de influenciar decisivamente os processos das políticas públicas. 11 PARA APRENDER POLÍTICAS PÚBLICAS – Volume 1 2. OS ATORES NAS POLÍTICAS PÚBLICAS (STAKEHOLDERS): o que são, quem são e como se classificam Conforme visto anteriormente, a política (politics) é um processo que compreende a operação de vários mecanismos e procedimentos destinados a resolver pacificamente os conflitos quanto à alocação de bens e recursos públicos. Quem são os envolvidos nesse processo? São aqueles cujos interesses serão afetados, positiva ou negativamente, pelas decisões e ações, chamados pela literatura de "atores políticos". Os atores políticos são inúmeros e variam segundo cada tipo de política pública no qual estão envolvidos, ou seja, são específicos. Cada ator político pode exibir lógicas próprias de comportamento, interesses próprios e recursos de poder próprios. Por “recursos de poder” entendem-se os variados instrumentos mediante os quais os atores podem tentar influir no curso das decisões e negociar politicamente, como: recursos financeiros, posições de autoridade, capacidade de mobilização política, reputação, vínculos com outros atores relevantes, habilidades estratégicas, conhecimento, informação, etc. 12 PARA APRENDER POLÍTICAS PÚBLICAS – Volume 1 A academia frequentemente se refere aos atores políticos como “stakeholders”. O termo designa os portadores de um interesse que está a ponto de ser decidido de forma definitiva, e que pode perder ou ganhar, a depender de qual decisão seja tomada5. Na esfera das políticas públicas, não se costuma falar em atores políticos em termos gerais e abstratos, haja vista esses atores estarem comumente vinculados a uma determinada área de políticas públicas, a uma questão de políticas públicas ou a uma política pública em si. Acrescenta-se que os atores operam em todo o processo da política pública, guiados por seus interesses e valores, sejam eles quais forem. A menção a atores políticos abarca desde tomadores de decisão até beneficiários e não beneficiários, financiadores, implementadores e fornecedores que participam direta ou indiretamente da política pública. Cumpre salientar que não se deve tratar a sociedade e o governo, genericamente considerados, como atores políticos. Como se afirmou, a denominação requer mais detalhamento. A despeito dessas considerações, PINHO (2011, slide 14) define os “principais atores” de uma forma bastante ampla, na qual se confunde a condição de ator com a de lócus institucional, incluindo até certos resultados, como “acordos”, do modo que se pode constatar na citação seguinte: PRINCIPAIS ATORES “Principais Atores: • Poder Executivo: tido como o principal lócus de formulação e gestão de políticas públicas, a ponto de ser considerado por alguns como o único. • Poder Legislativo: senadores, deputados e vereadores, além de conselheiros dos tribunais de contas, tem importância fundamental na análise, legitimação e fiscalização de políticas públicas. • Poder Judiciário: decisões de juízes das diferentes instâncias podem alterar por completo uma política pública estabelecida (saúde, p.e.). • Outras esferas de governo: estadual e municipal. • Organizações da sociedade civil: ONGs, entidades de classe, sindicatos, associações, grupos de interesse etc. influenciam na formulação e fiscalização. • Organismos e acordos internacionais”. Para iniciar o estudo dos atores nas políticas públicas, pode-se distinguir entre atores públicos e atores privados. Os atores públicos são aqueles que exercem funções públicas, calculam suas ações regidos por essas funções e mobilizam os recursos de poder a elas 13 PARA APRENDER POLÍTICAS PÚBLICAS – Volume 1 5 Apropriado pela Ciência Política, o conceito de “stakeholder” provém de uma abordagem que vicejou no campo da Administração, a Teoria do Stakeholder. A teoria neoclássica apresentava uma visão bastante restrita, ao estabelecer que os stakeholders eram os agentes econômicos que deveriam ser levados em consideração nas tomadas de decisão da empresa e compreenderiam somente quatro tipos: os investidores (os proprietários), os fornecedores (de terra, de instalações, de equipamentos, de matéria-prima, de tecnologia, etc.) os trabalhadores e os consumidores. A Teoria do Stakeholder foi mais além, ao defender que existem muitos outros componentes da sociedade que devem ser levados em conta nos processos decisórios das empresas: organismos governamentais, grupos políticos, ONGs, associações de empresas, empresas competidoras, sindicatos de trabalhadores, associações de consumidores, potenciais empregados, potenciais clientes, comunidades em que elas existem ou das quais obtêm recursos e, na verdade, a sociedade como um todo. A Teoria do Stakeholder adota uma perspectiva de complexidade do ambiente e propõe somar a visão econômica dos recursos à visão econômica de mercado, ao mesmo tempo em que incorpora uma visão sociológica e política da sociedade – o sistema maior em que a empresa está situada – para as tomadas de decisão. Numa abordagem com grande destaque nas modernas teorias éticas e da responsabilidade social, a Teoria do Stakeholder enxerga a empresa como centro de uma ampla constelação de interesses de indivíduos e grupos, os quais afetam ou podem ser afetados pela atividade da empresa, e que legitimamente procuram influenciar os processos de decisão, com o objetivo de obter benefícios para os interesses que defendem ou representam (FREEMAN, 1984; FRIEDMAN; MILES, 2002). associados. Entre os atores públicos, por seu turno, pode-se diferenciar, grosso modo, duas categorias: os políticos e os burocratas6. Na definição clássica de Max WEBER (1970), os políticos modernos são “empresários do voto”. Em princípio, portanto, são atores cuja posição resulta da conquista de mandatos eletivos. Por essa razão, sua atuação nas políticas públicas é condicionada principalmente pelo cálculo eleitoral: eles avaliam como suas decisões poderão lhes render votos ou apoios para conquistar eleitores. No entanto,variando conforme cada sistema político, também pesa em sua atuação o pertencimento a partidos políticos, ou seja: seu próprio empoderamento dentro dessas organizações que disputam o preenchimento de cargos públicos. São exemplos: os parlamentares, governadores, prefeitos, membros eleitos do Executivo federal. Nem todos os cargos públicos são preenchidos mediante competição eleitoral. Por isso, é possível distinguir os políticos eleitos – aqueles escolhidos pelo voto em eleições periódicas – e os políticos designados. Esses são designados pelos políticos eleitos para ocupar determinados cargos na Administração Pública. Tipicamente, são lideranças que ocupam posições na estrutura organizacional dos seus partidos ou são políticos que ficaram provisoriamente sem mandato. São exemplos: secretários municipais e estaduais, diretores e presidentes de empresas estatais, ministros de Estado, entre outros. Os burocratas, diferentemente dos políticos, devem sua posição à ocupação de cargos situados em sistemas de carreira pública, que exigem conhecimento especializado. Controlam, principalmente, recursos de autoridade, posições organizacionais e informação. São conhecidos na literatura especializada como “profissionais do conhecimento” e, como tais, nem sempre suas relações com os políticos são harmoniosas. Isso ocorre, uma vez que o que move os burocratas é o interesse pela progressão em sua carreira, a qual não está sujeita à responsabilização política (prestação de contas ao eleitorado e possibilidade de ser eleito/reeleito), mas apenas técnica. Os políticos, ao contrário, têm de se preocupar, o tempo todo, com o eleitorado. Como foi relatado, os políticos, por vezes, exercem cargos em organizações burocráticas. Da mesma forma, burocratas envolvem-se em atividades políticas, de maneira que a linha demarcatória desses diferentes papéis institucionais pode ser bastante imprecisa. Além disso, embora não disponham de mandato eletivo, os burocratas frequentemente possuem (e cultivam) clientelas com as quais compartilham afinidades setoriais. Essas clientelas podem se organizar, ou não, em grupos e redes, que podem proporcionar importante base de sustentação e de legitimação política aos burocratas. Enquanto atores públicos, os burocratas exercem seus papéis no âmbito de organizações públicas. Essas são conjunto de indivíduos, regidos por estatutos formais, que perseguem determinados objetivos organizacionais, de acordo com uma divisão de trabalho, uma estrutura de comando hierárquico e um conjunto de rotinas de procedimentos. As organizações são dotadas de permanência e promovem, entre seus membros, espírito de pertencimento, ideias, crenças e valores compartilhados. Os membros das organizações procuram mobilizar seus quadros para se fortalecerem institucionalmente, por intermédio da expansão de seus recursos humanos e orçamentários e de seu controle sobre sua área de atividade e do entorno dessa. 14 PARA APRENDER POLÍTICAS PÚBLICAS – Volume 1 6 Outro tipo de ator – que tanto pode ser público como privado – são os tecnocratas. A palavra tecnocracia tem sido usada para indicar qualquer tipo de administração feito por especialistas de qualquer campo e que atuam em diversos contextos, sem terem cumprido uma trajetória em carreiras públicas regulares. Possuem excelente formação técnica, grande experiência em sua área de atuação, reconhecida competência executiva e geralmente transitam entre as organizações do setor público e privado com facilidade. Exemplo: ministros, secretários na estrutura dos ministérios, altos diretores de empresas públicas (estatais), etc. Como mostra a literatura pós-weberiana sobre a burocracia, os agentes burocráticos são capazes de desenvolver projetos políticos, visando promover interesses pessoais ou as solidariedades organizacionais (como a fidelidade aos valores da instituição, o fortalecimento da organização à qual pertencem, etc.). Por esse motivo, é comum haver disputas não apenas entre políticos e burocratas7, mas também conflitos entre organizações burocráticas em diferentes setores do governo. Uma importante vertente teórica da Ciência Política, a “Teoria da Escolha Pública” (“Public Choice”), analisa especialmente o comportamento dos políticos e dos funcionários governamentais enquanto agentes auto-interessados (dotados de interesses próprios e não subordinados aos interesses dos eleitores) e suas interações nas políticas públicas. Essa Teoria procura explicar como as decisões de políticos e burocratas podem contrariar as preferências do público em geral para atender a “interesses especiais”. Outra abordagem, conhecida como “Teoria dos Comportamentos Rentistas” ou “Rent-Seeking”, focaliza as ações auto-interessadas de indivíduos ou grupos que buscam obter, por meio da política (politics), rendimentos superiores aos que conseguiriam em um contexto de mercado concorrencial. Em suma, essa Teoria sustenta que quando uma economia de mercado e um governo estão presentes, os agentes do governo são fonte de inúmeros privilégios especiais de mercado. Tanto os agentes do governo como os participantes do mercado procurarão esses privilégios, a fim de se beneficiar da renda monopolista que eles fornecem. Quando esses privilégios são concedidos, o sistema econômico perde em eficiência e os recursos que, em outras circunstâncias, poderiam ser empregados em benefício da sociedade, são desviados para favorecer interesses particulares. Não se trata de simples corrupção, mas sim, do uso de instrumentos legítimos de políticas públicas (como isenções, incentivos, subsídios, regulamentos diversos, etc.) para privilegiar grupos específicos8. O debate da Teoria da Escolha Pública normalmente focaliza os agentes governamentais situados na esfera decisória. Todavia, o papel da burocracia não se limita a essa esfera. Estudos de implementação das políticas públicas têm chamado a atenção para o papel dos servidores públicos que operam nos escalões mais baixos do sistema político, atuando diretamente junto ao público afetado (e não apenas beneficiários) das políticas públicas: são agentes de fiscalização, policiais, bombeiros, professores e diretores de escolas, atendentes de hospitais, etc. Esses atores, que a literatura denomina “burocracia de nível de rua” (“street-level bureaucracy”), possuem recursos de poder político, já que sua atuação é que define como a política pública (e, portanto, a ação governamental) se apresenta aos cidadãos. Os estudos mostram que os funcionários de nível de rua realmente fazem escolhas políticas em vez de simplesmente aplicar as decisões das autoridades eleitas e, assim, são capazes de mudar as políticas públicas no momento da sua implementação. Em decorrência disso, a implementação de políticas públicas depende de uma negociação permanente com a burocracia de nível de rua, na medida em que suas relações com clientes e seus preconceitos influenciam o tratamento dado aos cidadãos. 15 PARA APRENDER POLÍTICAS PÚBLICAS – Volume 1 7 Sobre as relações entre políticos e burocratas, ver: RUA, Maria das Graças; AGUIAR, Alessandra T. A Política Industrial no Brasil, 1985-1992: políticos, burocratas e interesses organizados no processo de policy-making. In: SARAVIA, Enrique; FERRAREZI, Elisabete (Orgs.). Políticas Públicas: coletânea. Volume 2. Brasília: ENAP, 2006, p. 127-146. 8 Um conceito associado aos comportamentos rentistas é designado na literatura da Ciência Política como “triangulo de ferro” significando a interação promíscua existente entre agência administrativa governamental, comissões parlamentares e um específico grupo de interesse afetado pela regulação e pelo controle governamental (ver capítulo 4.1). Os atores privados são aqueles entes que operam na esfera privada, seja na vida econômica, seja em atividades extra-materiais (como religião,valores éticos e morais, questões étnicas, de gênero, de orientação sexual, etc.). Compreendem empresários, trabalhadores formais ou informais, grupos de interesses, associações civis, religiosas, sindicatos, ONGs, partidos políticos, movimentos sociais e suas diversas lideranças. Esses atores privados podem ser identificados no âmbito internacional (por exemplo: as corporações financeiras internacionais; o movimento ambientalista); nacional (por exemplo: movimento negro no Brasil); regional (por exemplo: Federação das Indústrias de São Paulo; Associação dos Empresários da Zona Franca de Manaus); e setorial (por exemplo: produtores de autopeças, sanitaristas, ruralistas). Deve sublinhar-se que os atores privados podem atuar como atores formais, quando são indivíduos ou organizações que desempenham papéis predeterminados, segundo estatutos públicos ou privados (a exemplo de um representante da indústria de fármacos no Conselho Nacional de Saúde). Podem atuar também informalmente mediante participação em redes de políticas públicas (“policy networks”) e coalizões de defesa, que serão tratadas em breve, nesse livro. Entre os atores privados destacam-se os empresários. Sem qualquer sombra de dúvida, são atores dotados de grande capacidade de influir nas políticas públicas, devido à sua capacidade de afetar a economia do país: controlam as atividades de produção, parcelas do mercado e a oferta de empregos. De acordo com os analistas de relações entre economia e política, os empresários são atores de particular relevância não somente pelo que podem fazer, como especialmente pelo que podem deixar de fazer: investir na atividade produtiva. Os empresários podem influir nas policies em vários momentos e em diferentes instâncias políticas por meio de suas entidades patronais, suas associações civis e instituições especializadas em lobbying. Os empresários podem atuar como atores individuais isolados, com acesso privilegiado às autoridades políticas e burocráticas; ou como atores coletivos, vocalizando os interesses de sua categoria. Outro importante ator privado são os trabalhadores. Sua capacidade de influenciar é proporcional à sua organização. Portanto, atuam mediante seus sindicatos, que podem, eventualmente, estar ligados a partidos políticos, movimentos sociais, ONGs e até mesmo igrejas. Sua capacidade de pressão política pode variar também conforme a relevância estratégica do setor em que atuam. Por exemplo, uma greve de controladores de tráfico aéreo pode provocar o caos em um país ou mesmo em um continente. Da mesma maneira, caso uma greve de metroviários em uma metrópole como São Paulo se estenda por mais do que um ou dois dias, os prejuízos a todas as atividades daquele centro urbano terão grande magnitude. Observa-se, contudo, que a greve é apenas um dos instrumentos usados pelos trabalhadores para pressionar em uma situação de negociação política. Empresários e trabalhadores são atores demasiado relevantes e não somente porque a maior parte das políticas públicas mobiliza, de alguma forma, o capital e o trabalho. Esses atores se destacam, ainda, por serem elementos constitutivos do mais importante arranjo de intermediação de interesses, de formulação, decisão e implementação de políticas públicas das sociedades contemporâneas: o corporativismo, particularmente em sua versão societal. Phillipe SCHMITTER (1974) definiu o corporativismo como um sistema de representação de interesses, um modelo específico de organização institucional para 16 PARA APRENDER POLÍTICAS PÚBLICAS – Volume 1 articular os interesses associativos organizados da sociedade civil com as estruturas de decisão do Estado9. Nas palavras do autor (p. 85), o corporativismo consiste em “Um sistema de representação de interesse no qual as unidades constituintes são organizadas em um número limitado de categorias singulares, compulsórias, não competitivas, hierarquicamente ordenadas e funcionalmente diferenciadas, reconhecidas ou licenciadas (se não criadas) pelo Estado, que lhes concede o monopólio de representação dentro de suas respectivas categorias em troca da observância de certos controles sobre a seleção de suas lideranças e a articulação de suas demandas e apoios”. Devem ser levados em consideração, ainda, os diversos atores internacionais que, a depender do tipo e do objeto de cada política pública específica, podem assumir papel crucial. Atores internacionais podem ser governos de países com os quais um país mantém relações de troca importantes e que podem afetar não apenas a economia, como também a política interna do país. Um exemplo foi a atuação dos EUA diretamente junto ao governo brasileiro nas questões da Lei de Patentes, na década de 1990. Outro exemplo é observado nas relações entre os governos dos países da União Europeia/Zona do Euro na crise pós-2008, sobretudo nas relações entre as economias que se encontram fragilizadas – Grécia, Espanha, Portugal, Itália – e as economias que têm conseguido se manter estáveis, como Alemanha e França. Outra forma de atuação dos atores internacionais que afeta as políticas públicas é o estabelecimento de “regimes internacionais”. Esses consistem em princípios, normas, regras e procedimentos de tomada de decisão, implícitos ou explícitos, em torno dos quais convergem as expectativas dos atores em uma determinada área das relações internacionais (KRASNER, 1983). Os regimes internacionais exprimem comportamentos pactuados e coordenados, estabelecidos entre os governos10 dos países em uma área de interesse comum. Quando um país adere a um regime internacional, tal adesão deve ser ratificada por autoridades nacionais e devem ser adotadas medidas internas para implementar as decisões que foram acordadas no contexto internacional. Ou seja, por intermédio dos regimes internacionais originam-se diversas políticas públicas internas aos países. Além disso, atores internacionais podem ser países cujo peso se destaca na economia global, por suas consequências. Pode-se lembrar, a propósito, a crise da economia americana, em 2008, que atingiu as políticas públicas do conjunto dos países capitalistas, desenvolvidos e emergentes. O governo brasileiro, por exemplo, teve de adotar diversas medidas para proteger sua economia dos impactos dessa crise. Também se destaca a China, que – com seu espetacular crescimento econômico e utilização de medidas controvertidas em política cambial – levou vários países a adotar medidas que afetam suas políticas públicas internas. No Brasil, por exemplo, há pouco tempo se recorreu a barreiras não alfandegárias a fim de conter a entrada de veículos chineses. Entre os atores internacionais, merece destaque o que se conhece como “Sistema Nações Unidas”. Esse reúne, além de um amplíssimo conjunto de agências 17 PARA APRENDER POLÍTICAS PÚBLICAS – Volume 1 9 O conceito de “corporativismo societal”, mais comumente designado pela expressão “neocorporativismo”, está associado a diversos cenários políticos da social-democracia (Estado de bem-estar social), distinguindo-se do corporativismo estatal, associado aos regimes autoritários. 10 Os regimes internacionais, quando formalmente organizados, podem ser considerados organizações intergovernamentais na esfera internacional. Não são atores subnacionais, nem ONGs. Exemplos de regimes internacionais: Regime da Mudança Climática Global, Regime Internacional para Refugiados, Regime de Combate à Lavagem de Dinheiro, etc. especializadas11, agentes financeiros como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (FIDA) e o Grupo Banco Mundial, cuja importância é óbvia no que diz respeito às questões econômicas. Deve considerar-se, inclusive, a atuação de ONGs que formam redes transnacionais, como a Transparência Internacional (com especialfoco na transparência de governos e sociedades, e ênfase nas questões de corrupção), a Anistia Internacional (com reconhecida atuação em direitos humanos) e as organizações ambientalistas, como a WWF (World Wide Fund for Nature), em torno de problemas como a preservação da Amazônia. Para concluir o estudo dos atores internacionais, é preciso lembrar outro tipo existente no cenário internacional: os chamados atores transnacionalizados, que atuam em escala global e concentram, atomizadamente, vastas parcelas de poder, notadamente no mercado financeiro, nas telecomunicações e no mercado de armas. E ainda, os agentes do terrorismo e o crime organizado. Finalmente, apesar de não atuar diretamente, não se pode ignorar o papel da mídia – impressa ou eletrônica. Os jornais, a internet e a televisão são importantes agentes formadores de opinião, que possuem capacidade de mobilizar a ação de outros atores. Na verdade, a televisão, em especial, tem um grande poder de formar a agenda de demandas públicas, de chamar a atenção do público para problemas diversos, de mobilizar a indignação popular, enfim, de influir sobre as opiniões e os valores da massa da população. Cumpre assinalar que a mídia impressa e/ou eletrônica pode ser, simultânea ou alternativamente, um ator político, um recurso de poder e um canal de manifestação de interesses. Com o propósito de complementar esse estudo dos atores políticos, vale lembrar que uma mesma policy abrange, em geral, diferentes atores e distintos níveis de atuação; e que a política como politics envolve mecanismos e procedimentos formais e informais, visíveis e invisíveis. Essa observação remete aos estudos de John W. KINGDON (1984), que discrimina os atores nas políticas públicas, quanto à sua visibilidade: “visíveis” e “invisíveis”. “Atores visíveis” são os que costumam estar presentes na mídia e na percepção do público, como: presidente da República, governadores, burocratas do alto escalão e parlamentares. São eles que mais atuam para a inserção de temas na agenda governamental, definindo qual demanda receberá atenção do governo. Em contrapartida, os “atores invisíveis” aparecem muito pouco, só pontualmente, perante o grande público. Sua influência ocorre nos processos de identificação e de caracterização dos problemas de política pública, bem como na escolha de alternativas para certa política. São burocratas de carreira, acadêmicos e consultores de dentro ou de fora do governo, assessores do Congresso Nacional, etc. KINGDON (1984) também se refere a atores que são “empreendedores de políticas públicas” (“policy entrepreneurs”). São indivíduos dispostos a investir seus recursos de poder, seu tempo e energia em uma proposta de policy, com vistas à sua concretização. Os 18 PARA APRENDER POLÍTICAS PÚBLICAS – Volume 1 11 O que se conhece como sistema da Organização das Nações Unidas é uma estrutura de excepcional complexidade que conta, no que interessa diretamente às políticas públicas, com vários programas e órgãos (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados; Centro de Comércio Internacional; Programa Mundial de Alimentação; Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos; Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento; Programa das Nações Unidas para a Fiscalização Internacional de Drogas; Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente; Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento; Fundo das Nações Unidas para a Infância; Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher; Voluntários das Nações Unidas), além de organismos especializados, diretamente voltados para áreas específicas de políticas públicas, entre os quais sobressaem: Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura; Organização da Aviação Civil Internacional; Organização Internacional do Trabalho; Organização Mundial da Propriedade Intelectual; Organização Mundial da Saúde; Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial; União Internacional de Telecomunicações; Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. empreendedores de políticas públicas são hábeis negociadores e estão muito atentos às janelas de oportunidade, quando estabelecem uma ligação entre os problemas e as propostas de solução a eles. Como identificar os atores em uma política pública? Para tanto, há critérios variados. O mais simples e eficaz deles, no entanto, é perguntar: quem tem alguma coisa em jogo na política pública em questão. Ou seja, quem estará preocupado em ganhar ou perder, direta ou indiretamente, com uma policy? Que indivíduos, grupos, órgãos públicos, entidades privadas, setores da vida econômica ou social têm seus interesses efetiva ou potencialmente afetados pelas decisões e ações que compõem a política pública em tela? 19 PARA APRENDER POLÍTICAS PÚBLICAS – Volume 1 3. O COMPORTAMENTO DOS ATORES: escolha racional, ação coletiva e padrões de interação Na política (politics) e nas políticas públicas (policy), os atores possuem interesses a realizar, quaisquer que sejam12 ; e é razoável supor que o fazem racionalmente, ou seja, mediante a escolha de meios adequados à consecução das suas preferências (finalidades). Esse é o ponto de partida de toda a “Teoria da Escolha Racional”, que opera com a ideia de escolhas individuais ainda que em contextos grupais ou organizacionais. Resumidamente, a Teoria da Escolha Racional propõe que todos os indivíduos, dentro de determinados limites, sabem o que querem, qual é o seu interesse ou quais são as suas preferências; são capazes de ordenar hierarquicamente suas preferências; têm informação sobre as alternativas para realizá-las; e procuram escolher – entre as alternativas de ação disponíveis – as que forem mais satisfatórias, isto é, mais compatíveis com o que preferem, tanto em termos de custos como de benefícios. O conjunto de alternativas disponíveis aos indivíduos é limitado por restrições externas; essas, porém, não obrigam ninguém a escolher uma dada alternativa em lugar de outra. A escolha existe e quem a faz é o indivíduo. O comportamento racional, portanto, implica fazer escolhas. Escolher, por sua vez, significa renunciar. Ou seja, em qualquer situação de escolha sempre há pelo menos uma alternativa à qual será necessário renunciar quando o indivíduo decide o que deseja fazer. Por essa razão é que se diz que toda escolha tem seu custo13 (renúncia). Como as escolhas apresentam custos, o comportamento racional significa que o indivíduo escolhe as alternativas cujos benefícios esperados sejam maiores que os custos estimados. Logo, o comportamento racional se deriva, em termos bastante simples, de uma avaliação das vantagens e desvantagens de cada alternativa e da seleção daquela alternativa que reúne mais vantagens e acarreta menos desvantagens. Assim, cada ator maximizará sua satisfação, escolhendo mais do que quer e menos do que não quer. Ao fazer suas escolhas, os indivíduos levam em conta a natureza do bem desejado14. Quando o bem desejado é um bem público, não há possibilidade de excluir do seu desfrute nenhum dos membros de um grupo: todos os membros do grupo podem desfrutar dele, mesmo que não tenham enfrentado os custos de obtê-lo. O problema maior com a provisão de bens públicos decorre justamente de suas características, do fato de os indivíduos agirem racionalmente de acordo com suas 20 PARA APRENDER POLÍTICAS PÚBLICAS – Volume 1 12 A Teoria da Escolha Racional não se detém ao exame dos fins. Esses podem variar infinitamente entre os atores, não cabendo a sua discussão em termos do exercício da racionalidade. 13 O conjunto das alternativas é limitado conforme seus respectivos custos: há alternativas cujos custos são tão altos que elas se tornam inadmissíveis. Custo, para a Teoria da Escolha Racional, não se limitaao custo financeiro (dinheiro gasto com algo). Abrange também o chamado “custo real” ou “custo de oportunidade”: aquilo a que se renuncia ou que se deixa de ter pelo mesmo valor. Toda ação tem um custo real ou custo de oportunidade, desde que haja escolha. Só não há custo quando a escolha não ocorre. Como a escolha envolve um leque limitado de alternativas, dados os custos envolvidos, há sempre uma tensão entre liberdade e restrição. Essa tensão se resolve pelo cálculo de custo-benefício: a avaliação dos custos da ação frente aos seus benefícios, das renúncias a serem feitas para que determinados ganhos sejam obtidos. Esse cálculo é sempre pessoal, subjetivo. 14 Um bem é privado quando seus benefícios são exclusivamente desfrutados por quem o possui (indivíduo, empresa, etc.). Um bem é semi-público quando o escopo do benefício é limitado, permitindo a exclusão dos que não participaram de sua consecução (caronas). preferências, estimando os custos da participação15 e do tamanho dos grupos dos quais fazem parte. Sendo o bem público não-exclusivo, o mais racional para cada membro de um grande grupo é evitar o custo (participação) e somente desfrutar dos benefícios. Quem arca com os custos? Cada indivíduo acredita que, sendo o grupo tão grande, sempre haverá outros membros a assumirem os custos e que o bem público será obtido e o seu interesse realizado. Esse é o comportamento de “carona” ou “free-rider” (OLSON, 1999). Embora o cálculo individual seja racional, o resultado agregado é totalmente irracional. Nem o indivíduo, nem o (grande) grupo realizam seu interesse, porque o bem público não será conquistado. Esse é o chamado problema da “lógica da ação coletiva” ou “problema de Olson”, que sustenta que os grandes grupos tendem a ter provisão sub-ótima de bens públicos. Os pequenos grupos não estão sujeitos aos mesmos insucessos dos grandes grupos devido ao menor custo de coordenação e de controle das ações dos seus membros (OLSON, 1999). A consequência prática disso é que as políticas públicas tendem a beneficiar desproporcionalmente os pequenos grupos. Consoante Pedro L. B. SILVA (2013), é possível identificar alguns padrões de interação dos atores quando procuram influenciar e se beneficiar das políticas públicas. A cooperação seria a forma de atuação dos atores com elevada quantidade de recursos estratégicos para definir em seu favor o processo decisório na área específica em que atuam. A oposição seria a forma de atuação dos atores com elevada quantidade de recursos estratégicos para interferir no processo decisório na área específica em que operam e com valores e recursos para agir, como o poder de veto. A conformidade seria o modo de atuação dos atores com reduzida quantidade de recursos estratégicos para intervir no processo decisório na área específica em que interagem, ainda que possuam valores favoráveis às iniciativas em debate e em disputa. O desinteresse seria o principal padrão assumido pelos atores com reduzida quantidade de recursos estratégicos para influenciar no processo decisório na área específica em que atuam e com valores contrários às questões em jogo. Esses atores estariam pouco dispostos a se antagonizar com quaisquer outros por não perceberem uma relação compensadora entre a utilização de seus poucos recursos e os benefícios que podem ser obtidos. Os atores buscam realizar seus interesses em diferentes contextos16. N a política (politics), os contextos são interativos ou, em outras palavras, envolvem interdependência. Isso significa que, ao escolher os meios para realizar seus interesses, qualquer ator depara-se com vários outros atores, que também perseguem objetivos, sejam esses idênticos, apenas semelhantes ou distintos. Como se argumentou acima, ao escolher o seu curso de ação (meios) para realizar suas preferências (finalidades), os atores levam 21 PARA APRENDER POLÍTICAS PÚBLICAS – Volume 1 15 Diferentemente do que muitos pensadores propunham, quando sustentavam que o homem é naturalmente participativo, bastando haver os canais adequados à participação, OLSON (1999) argumenta que a participação tem custos (renúncias a tudo que qualquer indivíduo deixa de fazer para participar, inclusive não fazer nada). 16 Os atores podem simplesmente fazer escolhas em situações que não envolvem cálculos interpessoais, como ocorre, por exemplo, quando alguém cujo objetivo é descansar escolhe entre dormir, assistir a um filme ou ouvir música. Nessa hipótese, trata-se de uma modalidade de escolha racional abordada mediante a “Teoria da Utilidade” ou “Teoria da Utilidade Esperada”. Trata-se, de maneira simplificada, da avaliação da estrutura de preferências – ou seja, o que o ator prefere mais em relação ao que ele prefere menos – em face da estrutura de oportunidades – vale dizer, o que o ator poderá fazer para obter a maior satisfação, com o menor custo. em consideração também as preferências e as decisões dos outros envolvidos. Essas situações são abordadas pela “Teoria dos Jogos”. Segundo Anatol RAPOPORT (1980), grosso modo, a dinâmica das relações entre os atores pode obedecer a três padrões: lutas, jogos e debates. As lutas são padrões de interação extremamente conflituosos, que acontecem quando as preferências dos atores são inconciliáveis e a vitória dos interesses de cada um corresponde à derrota dos demais. O objetivo da luta é eliminar o inimigo. Essa situação caracteriza um jogo de soma-zero ou de soma nula, que é aquele no qual o que um ator ganha corresponde exatamente ao que o outro, ou outros, perde(m)17. A luta também pode se caracterizar como um jogo de soma negativa18, no qual todos perdem, embora uns possam perder mais do que outros. Um ator prejudica os demais e é por eles prejudicado, de modo que, ao final, todos perdem. Esse é o caso exemplificado pela “guerra fiscal” ocorrida no contexto do federalismo brasileiro19. A luta é a pior de todas as situações em política (politics), podendo ocorrer nas arenas redistributivas (ver capítulo 5.3). Todavia, mesmo nesses casos, a depender daquilo que esteja em jogo e a depender do custo do confronto para os atores envolvidos, é possível haver uma acomodação entre os interesses em conflito: pode ter-se uma situação na qual um lado não ganhe tudo, nem o outro lado perca tudo. Cada um cede um pouco para resolver o conflito sem enfrentamentos radicais, cujos custos podem ser elevados para todos20. Por outro lado, a acomodação pode subentender uma estratégia de algum ator interessado em adiar o confronto para o momento da implementação da política pública, quando a situação política e a correlação de forças podem lhe ser mais favoráveis. Os jogos são as situações mais habituais na política (politics). Sua lógica é a de competir e vencer o adversário em uma circunstância específica, sem eliminá-lo do 22 PARA APRENDER POLÍTICAS PÚBLICAS – Volume 1 17 Um jogo de soma zero é um jogo cuja soma da utilidade obtida por todos os seus participantes, para cada combinação de estratégias, sempre é igual a zero, isto é, um jogo em que o que um jogador recebe é diretamente proporcional ao que os demais perdem, portanto, a soma resulta em zero. 18 Nos jogos de soma negativa, o valor total (a soma das utilidades) é negativo. Há um terceiro tipo de jogo, oposto ao de soma negativa: é o jogo de soma positiva. Nele todos ganham, mesmo que uns ganhem mais do que outros. Consiste em situações nas quais o valor total do jogo (a soma das utilidades) aumenta a cada iteração. Por exemplo, se uma pessoa ajudar outra, e depois for ajudada, ambas ganhariam mais do que se cada uma delas estivesse operando sozinha. 19 Guerra fiscal é a disputa, entre municípios ou estados, para checar quem oferece melhores incentivos para que as empresas se instalem em seus territórios, inclusive com retaliações mútuas. Aovisar atrair investimentos e, consequentemente, mais riqueza e geração de renda para sua região, vários governos competem acirradamente oferecendo incentivos variados às empresas, sem exigir contrapartidas. Isso vai desde isenção de impostos e oferta de infraestrutura até a cessão gratuita dos terrenos para instalação, o financiamento a juros negativos e a própria construção das instalações da empresa com dinheiro público. Exemplo: a montadora Ford, que, após acirrada disputa entre os estados da Bahia e do Rio Grande do Sul, para saber quem oferecia maiores vantagens fiscais, decidiu se instalar na Bahia. A guerra fiscal prejudica os que nela se envolvem (estados e municípios deixam de arrecadar e até perdem dinheiro público) e beneficia quem fica de fora (a empresa privada). Além disso, o consumidor que adquire bens ou serviços de outro estado, quando usufrui de incentivos fiscais no seu estado de origem, pode sofrer sanções, como restrições ao crédito do ICMS. Adaptado de: <http:// www.brasilescola.com/economia/guerra-fiscal.htm>. Acesso em: 29 abr. 2013. 20 Quando essa situação ocorre, o jogo de soma zero se transforma em um jogo de soma variável, no qual nenhum dos jogadores ganha tudo, nem o outro perde tudo: várias distribuições alternativas são possíveis. processo, de tal modo que ele possa se tornar um aliado num momento posterior21. Os jogos implicam um consenso prévio a respeito das regras que irão reger a disputa. Esse padrão de interação é exemplificado pelas negociações e barganhas, observáveis em contextos pluralistas e, principalmente, em arenas regulatórias (ver capítulos 4 para pluralismo e 5.3 para arenas regulatórias). Por fim, os debates são circunstâncias nas quais cada um dos atores procura convencer o outro da superioridade dos seus argumentos22 e da adequação de suas propostas, de tal maneira que vence o debate aquele que se mostrar capaz de mudar a preferência do seu o adversário, transformando-o em um aliado. Aqui, a lógica é a da persuasão. Os debates caracterizam-se como contextos nos quais o conhecimento, a informação e a capacidade argumentativa desempenham o papel mais relevante. De acordo com Charles E. LINDBLOM (1981), nos jogos de poder, as táticas ou os procedimentos utilizados pelos atores políticos são múltiplos. A persuasão seria apenas um deles e se limitaria à tentativa de buscar a adesão pela avaliação e pela argumentação em defesa de um determinado curso de ação. Além da persuasão, geralmente os atores recorrem ao chamado "intercâmbio", que significa a troca de favores, de apoios e até mesmo de benefícios, como dinheiro, cargos, bens, etc. Quando nem a persuasão nem o intercâmbio funcionam, há atores que se utilizam de ameaças. As ameaças podem se referir à imposição de danos ou prejuízos, ou à suspensão de favores ou benefícios por parte de um ator à sua contraparte. Uma quarta forma de atuação é a pressão pública, que pode ser realizada por atores individuais ou coletivos. Inclui desde manifestações pela imprensa, até atitudes radicais (como greves de fome, etc.), além de manifestações coletivas – pacíficas ou violentas – capazes de causar constrangimento, de mobilizar a opinião pública e de chamar a atenção da imprensa e, eventualmente, de atores internacionais, para o problema político. Resta possível, ainda, o exercício da autoridade, que pressupõe, de fato, a exigência da obediência. Esse exercício pode ser direto (“A” ordena e “B” obedece) ou pode ser indireto (“A” ordena a “B”, que ordena a “C”, e então “C” obedece). Por derradeiro, pode adotar-se a negociação e o compromisso. Eles são considerados tentativas de encontrar soluções negociadas nas quais todas as partes sintam-se mais ou menos satisfeitas com o que obtiveram, de forma tal que todos saiam do processo acreditando que ganharam alguma coisa e ninguém saia com a convicção de ter perdido tudo. Obviamente, esses são apenas os procedimentos mais comuns, podendo haver outros. Importa observar, no entanto, que pode existir outro comportamento: a obstrução. Trata-se do emprego de recursos estratégicos para impedir, atrasar, confundir, etc., de sorte que o custo de determinadas alternativas torna-se tão elevado que os atores acabam por se desgastar e por abandonar, ao menos temporariamente, a luta em torno de uma demanda ou de uma alternativa. Nesse caso, a obstrução implicará paralisia, porquanto a decisão 23 PARA APRENDER POLÍTICAS PÚBLICAS – Volume 1 21 Os jogos não abrangem interesses inconciliáveis, nem persuasão, nem conflito, muito menos argumentação: sua finalidade é a de que, ao usar sua melhor estratégia, cada parte procure obter as vantagens necessárias para ganhar o prêmio. Sua lógica é a de competição, mas pode incluir também a cooperação como elemento estratégico. Jon ELSTER (1989) comenta haver duas categorias de jogos: (a) Jogos de Dois Jogadores, que podem ser jogos de soma zero ou jogos de soma variável; (b) Jogos de Vários Jogadores, compreendendo as seguintes configurações: (1) Dilema do Prisioneiro; (2) Jogo da Galinha; (3) Jogo da Garantia ou Jogo da Certeza; (4) Jogo do Imperativo Categórico ou Jogo do Otário. 22 Segundo a concepção clássica de RAPOPORT (1980), os debates têm por finalidade atingir um grau de persuasão tal que os discordantes não tenham como deixar de aderir aos argumentos apresentados. emperra de tal forma que todos os atores ficam impossibilitados de alcançar qualquer solução admissível para aquele problema23. Cabe lembrar que, devido às normas legais ou ao próprio curso dos eventos, por si só, a delonga na tomada de decisão pode conduzir ao resultado desejado. 24 PARA APRENDER POLÍTICAS PÚBLICAS – Volume 1 23 Vale salientar que a obstrução pode ocorrer até mesmo antes da inserção do problema na agenda de decisões, impedindo que ele seja reconhecido como problema político. E pode ocorrer também depois da formulação, de maneira que as decisões não sejam transformadas em ações, no momento da implementação da política pública. Na política (politics) são frequentes as situações nas quais se observa que determinados atores se opõem a uma política pública por princípio (por conta de suas crenças). Nesse caso, eles podem se envolver no processo de formulação com o intuito deliberado de impedir que se chegue a uma decisão - qualquer que seja ela. É de seu interesse que a política pública não seja decidida e que as coisas continuem como estão. Assim, é relativamente fácil perceber quando a estratégia de obstrução é adotada: alguns atores se comportam propondo medidas extremamente radicais, recusando-se a negociar, fazendo exigências descabidas, etc. 4. AS RELAÇÕES DE PODER ENTRE OS ATORES POLÍTICOS As características dos atores que interagem nas políticas públicas foram examinadas nos parágrafos antecedentes. Cumpre agora estudar as interpretações acerca das relações de poder existentes entre eles. Alguns dos elementos do poder que afetam as políticas públicas e, por consequência, as conexões entre os atores políticos são: os recursos de poder, as habilidades no uso desses recursos, os modos de exercício do poder e os comportamentos dos atores. Os recursos de poder são definidos por SILVA (2013, não paginado) como “a forma pela qual os diferentes grupos políticos – estatais ou societais – usam sua capacidade política de ação e uma gama diferenciada de recursos para influenciar a formação da agenda do Estado e para participar das arenas decisórias (...), de modo a viabilizar a concretização de seus interesses políticos, econômicos e sociais”. Esse autor sustenta que os recursos de poder dos atores políticos podem ser analisados a partir de três dimensões: (1) Áreas específicas em que atuam, considerando especialmente suas características setoriais sob uma perspectiva que ultrapassa aspectos meramente administrativos.
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