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CURSO DE DIREITO PENAL (Salvo Automaticamente)

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DIREITO PENAL
A Criminalidade na História
1 - Introdução
O tema da criminalidade nunca esteve tão em voga no Brasil. A ação de organizações criminosas no estado de São Paulo, a eterna luta entre policiais e traficantes de drogas no Rio de Janeiro, a corrupção no seio da política nacional ("mensaleiros e sanguessugas") estão fazendo com que o tema da criminalidade se torne recorrente no ambiente acadêmico, na mídia, e até em conversas entre amigos e familiares.
Mas, será que essa situação sempre foi assim? Será que a criminalidade vem aumentando desde que a humanidade passou a conviver em sociedade?
Utilizar-se-á, como objeto de comparação, apenas os dados relativos à criminalidade violenta. Isso porque essa forma de criminalidade é aquela que possui uma maior gama de dados disponíveis e confiáveis, ao contrário, por exemplo, dos chamados crime do colarinho branco.
Afinal, a criminalidade violenta, em especial os delitos de agressão e homicídio (relacionados ou não aos crimes patrimoniais), é chamada de criminalidade visível, sendo mais facilmente descoberta e reportada, constando, portanto, das estatísticas oficiais.
2 - Povos Antigos
É extremamente árdua a tarefa de investigar a criminalidade nos povos antigos. Afinal, não existia à época um poder centralizado, capaz de coletar dados referentes à ocorrência de fatos delituosos. Até porque muitas dessas comunidades antigas sequer possuíam normas (ainda que consuetudinárias) definindo com clareza as condutas consideradas como crimes pelo corpo social.
Todavia, um fato curioso é que nas comunidades mais primitivas, onde todos produziam e repartiam o produto de seu trabalho, a criminalidade se quedava em níveis extremamente baixos. Apesar das parcas condições de vida, olhando-se pelo prisma da sociedade moderna, quase não havia desigualdade entre as pessoas. Em virtude disso, também a criminalidade quase não existia.
A partir dessa observação, a criminologia pôde concluir que não é a pobreza por si só que constitui um fator criminógeno, mas sim, a desigualdade social.
3 - Idade Média
De início, cumpre ressaltar que França e Inglaterra são os países nos quais se encontra uma maior gama de dados referentes à criminalidade na Idade Média.
A realidade da Idade Média inglesa, no que tange à criminalidade, difere bastante da realidade brasileira atual. Afinal, naquela época, a maioria esmagadora dos crimes violentos (agressões e homicídios) devia-se a brigas entre vizinhos. Apenas 10 a 20 % eram provocados pelos "bandidos", em situações de crimes contra o patrimônio.
Ressalte-se que a população europeia da época era predominantemente rural (90%). As cidades existentes eram, em geral, bastante pequenas, sendo que a taxa de homicídios variava brutalmente de uma para outra.
Oxford era uma das cidades europeias mais violentas da época. O perfil das vítimas de homicídio era bastante semelhante ao atual: pessoas do sexo masculino, oriundas das camadas sociais mais baixas. Havia poucos crimes familiares e, da mesma forma, ao contrário do que se imagina, poucos envolviam estrangeiros.
Entretanto, inclusive em Oxford, uma cidade violenta, poucos dos homicídios envolviam roubos e assaltos. A existência desses crimes estava, na verdade, ligada a uma ausência de restrição à utilização da violência e ao pouco controle do homem sobre seus próprios impulsos.
O século XIV, no entanto, na virada da Idade Média para a Idade Moderna, pode ser entendido como um século atípico, em que as taxas de crimes violentos estiveram em níveis bem superiores aos do restante do período. A explicação para isso reside na Guerra dos Cem Anos, bem como nos efeitos da peste negra, que dizimou quase que um terço da população europeia. A superveniência desses dois fenômenos causou uma enorme desorganização social, bem como uma grave crise econômica, o que propiciou um aumento anormal da criminalidade.
Na Idade Moderna, como se verá a seguir, a criminalidade violenta passou a cair de forma relativamente estável.
4 - Idade Moderna
As armas de fogo começam a aparecer a partir do início do século XVII. Cerca de 7% dos homicídios da Inglaterra passaram a ter como causa a utilização de armas de fogo.
A proporção de crimes contra o patrimônio dentro da criminalidade total aumenta, chegando a 69 %. Uma das causas apontadas para tanto é a Revolução Inglesa, que aumentou as desigualdades sociais existentes na época, se tornando um grande fator de insatisfação social.
Para se ter uma ideia, a taxa de crimes contra o patrimônio, atualmente, chega a 90% em vários países do mundo. As desigualdades sociais oriundas do sistema capitalista de produção, por certo, contribuíram para esse aumento tão drástico dessa espécie de criminalidade.
A taxa de crimes contra a pessoa, no entanto, sofre uma considerável redução, atingindo um percentual de apenas 12 % do total na Inglaterra. O declínio, porém, aumenta com o passar dos anos, sendo que na virada do século XIX para o século XX as taxas de crimes envolvendo violência interpessoal chegam a 7,7 %.
A explicação encontrada pelos sociólogos para explicar tais reduções encontra suas raízes nos efeitos civilizadores da religião, educação e movimentos políticos e sociais. O século XIX, por exemplo, ficou marcado por movimentos da sociedade civil buscando diminuir o consumo do álcool, bem como por reformadores que buscavam alocar cada vez mais crianças na escola.
Não há como negar a influência do movimento civilizatório na queda da criminalidade violenta observada na Idade Moderna. O processo civilizatório marca a emergência de ideais cavalheirescos. Valores como o autocontrole, a primazia da intelectualidade sobre a força bruta, as crenças na disputa política como forma de resolução de conflitos, dentre outros, passaram a estar cada vez mais arraigados na população. Diante disso, houve uma diminuição considerável nas taxas de violência.
Outro aspecto importante do processo civilizatório, no que se refere à diminuição da criminalidade, foi a centralização do poder. A partir daí, aumentaram a vigilância e o controle, exercidos muitas vezes (como na França) através de uma urbanização que propiciava um controle visual (panóptico) sobre as chamadas "classes perigosas", os extratos mais baixos da sociedade.
5 - Idade Contemporânea
A desigualdade social, a emersão de valores individualistas, a falta de acesso à educação, a concentração exagerada de população em áreas urbanas, as migrações, a ineficácia das instituições encarregadas do combate ao crime, os crimes organizados, dentre outros vários fatores, contribuíram para um avanço na taxa de criminalidade violenta. Assim, a Idade Contemporânea, ou Pós-Moderna, está marcada por um novo aumento da criminalidade violenta.
Atualmente, tem-se que é muito difícil traçar um parâmetro geral para a criminalidade no mundo. Não existe fórmula mágica. Cada região deve traçar sua própria estratégia de combate à criminalidade violenta, de acordo com as suas próprias peculiaridades.
5 – Conclusão
Conforme foi possível observar, da Idade Média até os dias atuais, as taxas de criminalidade violenta sofreram alterações. A criminalidade, ao contrário do que muitas vezes se pensa, não veio aumentando uniformemente com o passar dos séculos. Muitos sociólogos, inclusive, analisando as taxas da criminalidade violenta concluíram que um gráfico sobre o tema ao longo dos séculos teria a foram de um U: mais alta na Idade Média; caí durante a Idade Moderna; volta a subir na Idade Contemporânea, mormente a partir da década de sessenta do século passado.
O Direito Penal na História
1. Introdução
Foram os romanos quem pela primeira vez disseram a célebre frase "onde há sociedade, há o Direito". E eles estavam certos. Afinal, seria impossível que os seres humanos se organizassem sem que houvesse um conjunto de princípios e regras pautando-lhes a conduta. A organização social de acordo com os preceitos do Direito é inerente à natureza humana.
Dentro desse contexto é que buscaremos discorrer sobre a evolução doDireito, mais precisamente do Direito Penal, ao longo dos séculos. A partir de tal estudo, poderemos conhecer, ainda que sucintamente, como surgiram, se aperfeiçoaram e foram extintos vários institutos de Direito Penal, bem como quais os reflexos desse desenvolvimento que podem ser vislumbrados atualmente.
1.1 - Direito Penal dos Povos Antigos
Num primeiro momento, quaisquer fenômenos da natureza que viessem a se mostrar agressivos ao homem eram entendidos como manifestações dos deuses, revoltados contra a pratica de um crime. A punição do criminoso era uma foram de apaziguar a ira da divindade ofendida.
Em seguida, a vingança privada passou a tomar contornos mais definidos. Aquele que fosse vítima de um crime passava a ter o direito de vingar-se de seu ofensor. Na verdade, não só a vítima, mas toda a sua família ou tribo poderia se organizar de forma a punir o criminoso, ou seu grupo social. Não era exigida uma proporcionalidade entre o fato delituoso praticado e a sua punição. Não existiam limites à vingança.
Como visto, essa fase da vingança privada permitia que uma enorme gama de pessoas se engajasse dentro do aparato punitivo. Dessa forma, ocorreram diversas guerras grupais, verdadeiras batalhas sangrentas em que vários grupos foram exterminados. Essa "vingança de sangue" era uma questão de honra para os povos da época.
A evolução social, porém, encarregou-se de mudar o panorama da vingança privada, como meio de evitar a dizimação de diversas tribos e grupos étnicos. Surgia, então, a lei de Talião, um verdadeiro instrumento moderador da pena. Tal instrumento estabelecia o tratamento igualitário entre autor e vítima; a aplicação ao ofensor de mal proporcional ao sofrido pelo ofendido. Significou uma verdadeira tentativa de humanizar a sanção criminal, partindo do princípio da proporcionalidade: "olho por olho, dente por dente".
A presença da pena de Talião pode ser observada, por exemplo, no Código de Hamurábi (Mesopotâmia), no Alcorão e na Bíblia Sagrada:
Código de Hamurabi:
"Art. 209 - Se alguém bate numa mulher livre e a faz abortar, deverá pagar dez siclos pelo feto".
Alcorão
"Art. 210 - Se essa mulher morre, então deverá matar o filho dele".
Bíblia Sagrada:
"Levítico 24, 17 - Todo aquele que ferir mortalmente um homem será morto".
Porém, com o tempo, a Lei de Talião também se mostrou maléfica aos anseios das crescentes populações. Afinal, em virtude do grande número de infratores existentes, proliferava o número de pessoas com deformidades, sem um membro ou sentido, isso sem falar no grande número de execuções que ocorriam a cada ano.
Com isso, adveio a composição, que constituiu a última fase da evolução da vingança privada. Em tal fase, o homem comprava a não aplicação da pena. Para tanto, se utilizava de bens de valor na época, como terras, gado, armas, dentre outros. Essa compra da liberdade, por meio da composição, foi um instituto bastante conhecido dos povos hebreus, babilônios e indianos, pelo que se tem notícia.
1.2 - Direito Penal Romano
Em Roma ocorreu a gênese de grande parte dos institutos conhecidos pelo Direito atualmente. E, dentro da seara do Direito Penal, não poderia ser diferente. Os romanos se primaram pela separação operada entre o religioso e o laico, fazendo surgir, pela primeira vez na história, a pena como integrante do direito público.
O direito romano, desde seus primórdios, operava a distinção entre crimes públicos e crimes privados. Os primeiros eram infrações de cunho social, como a traição e conspiração política contra o Estado. A persecução penal, bem como a pena, tinha caráter público. Os últimos, como o próprio nome indica, tinham o indivíduo como ofendido. Temos como exemplo desses delitos as figuras da injúria, da lesão corporal, do furto, etc.
A punição dos acusados pela prática de crimes públicos ficava a cargo de um magistrado, representante do poder estatal. Eram limitados em sua atividade pelo Talião e por alguns diplomas legais escrito, como a lei das XII Tábuas. A punição por crime privado era reservada ao ofendido. Por serem fontes de obrigações, os crimes privados tinham apenas seu exercício regulado pelo poder estatal. Essas formas de punir constituíam uma influência remanescente do período da vingança privada.
Com o passar dos séculos, a punição pelos particulares foi sendo substituída gradativamente pela concentração integral do poder punitivo nas mãos da administração estatal (com respeito ao poder do pater familiae, muito presente dentre os romanos).
Apesar de tantos avanços, os romanos não operaram uma sistematização de seu Direito Penal da mesma forma como fizeram com seu Direito Civil. Apesar de terem desenvolvido e aprimorado diversos institutos de Direito Penal, os juristas da época não se preocuparam em defini-los, conceitua-los, categorizá-los, estabelecer-lhes funções ou criar uma Teoria do Direito Penal. Trabalhavam o Direito caso a caso, de maneira isolada.
1.3 - Direito Penal Canônico
Com a queda do Império Romano e a instituição do feudalismo como sistema político-social, a Igreja Católica consolidou-se como a grande instituição da Idade Média. Favorecida por um cenário onde o religioso e o laico ainda se misturavam, a Igreja possuía poder suficiente para ditar um conjunto de regras jurídicas que se destacaram em decorrência dos fatores a seguir:
a) As penas canônicas tinham como objetivo promover o arrependimento e a correção do delinquente. Pela primeira vez na História fala-se em pena como meio para corrigir o cidadão.
b) Com suas ideias sobre a reforma do delinquente, o direito canônico contribuiu para o surgimento da prisão nos moldes em que é entendida hoje.
c) Existiam três tipos de delitos: aqueles punidos apenas pela Igreja; aqueles punidos apenas pela ordem laica; aqueles que ofendiam ambas as ordens e eram punidos por quem primeiro tomasse ciência deles.
d) Contribui para reduzir em muito o alcance da vingança privada, fortalecendo uma punição central de caráter público.
e) Voltou a ressaltar o dolo e a culpa, elementos subjetivos, como essenciais na criminalização de uma conduta.
1.4 - Direito Penal Comum
Consistia em uma grande miscelânea entre normas de Direito Romano, Direito Germânico, Direito Canônico, bem como de normas dos Estados Nacionais então em formação, por volta do século XII.
Caracterizou-se pela crueldade com que as penas eram executadas. Girava em torno dos aplicadores da lei um ambiente de insegurança, e principalmente de terror. Afinal, a grande maioria das penas impostas importava em castigos corporais horríveis, aflitivos. A função exordial a ser exercida pela pena era a intimidação das pessoas. Como exemplo dessas penas, tem-se o afogamento, a forca, a roda, as mutilações, a castração, a fogueira.
Esse clima de terror gerou uma oposição, uma força totalmente contrária, representada pela Revolução Francesa, e que se manifestou posteriormente com o movimento humanitário.
O movimento humanitário foi a raiz de uma profunda modificação dentro do Direito Penal. O reconhecimento dos direitos humanos abrandou as penas; foi também reconhecida a necessidade de um devido processo legal como única forma de se legitimar uma punição criminal.
A temática do Direito Penal mudou radicalmente a partir da Revolução Francesa. Entendemos que a melhor maneira de se visualizar tal mudança é através do estudo dos princípios atualmente inerentes ao Direito Penal.
A IMPUTAÇÃO OBJETIVA NA PARTICIPAÇÃO
1 – Introdução
Imagine o leitor a seguinte situação: Tício vai até a padaria ao lado de sua casa. Naquele mesmo quarteirão, em outra esquina, existe mais uma padaria. Após pedir meia dúzia de pães de sal, Tício comunica ao padeiro que, por já estar farto de sua mulher, decidiu matá-la, e, para tanto, envenenará os pães que estão prestes a serem adquiridos. O padeiro, mesmo assim, efetua a venda. Tício injeta veneno nos pães, sendo que sua esposa, Marta, morre poucas horas após a ingestão do alimento. Diante disso, pergunta-se: é punível, a título de participação,a conduta do padeiro?
Se a resposta à pergunta proposta tomasse por base uma visão clássica sobre a relação de causalidade, encarando esse fenômeno a partir de uma perspectiva puramente naturalista, centrado apenas no raciocínio hipotético de Thyrén, não há dúvida de que a resposta seria afirmativa. Afinal, o pão de sal vendido pelo padeiro foi envenenado por Tício e utilizado no homicídio praticado contra Marta. Tratar-se-ia, a partir de um ponto de vista estritamente natural, de um antecedente do resultado ocorrido e, consequentemente, de uma conduta punível. O padeiro, sabendo da intenção de Tício ao comprar o pão, e não se importando com a provocação do resultado, teria agido com dolo eventual, respondendo, portanto, pelo crime de homicídio qualificado perpetrado contra Marta.
O sentimento de estranheza, quiçá injustiça, que muitos dos leitores podem estar sentindo nesse momento se justifica. Esse mesmo sentimento levou (e continua levando) a doutrina a buscar na política criminal um fundamento de punibilidade, ou não punibilidade, daquele agente cujo comportamento, dentro de um contexto delitivo, se resume a uma ação cotidiana, aparentemente normal, não manifestamente punível.
Esta Coordenadoria propõe-se a responder ao problema partindo da função precípua do Direito Penal, qual seja a de proteção aos bens jurídicos mais importantes existentes dentro da sociedade. Para tanto, inicialmente, serão desenvolvidos, ainda que sucintamente, os conceitos de imputação objetiva e ações neutras. Em seguida, passar-se-á ao estudo do fundamento da não punibilidade de determinadas condutas tidas por neutras, concomitantemente com o oferecimento de uma resposta ao questionamento proposto.
2 - Teoria da Imputação Objetiva
A doutrina vem encontrando dificuldades em pacificar os pilares sobre os quais deve ser construída a teoria da imputação objetiva. O conceito, as características principais, a aplicabilidade, a sua relação para com a causalidade tradicional, enfim, é inúmera as questões envolvendo a teoria da imputação objetiva que ainda geram profundas divergências entre os autores. Não configuraria exagero, talvez, afirmar que se o leitor abrir dez diferentes manuais de Direito Penal, em cada um deles encontrará autores se manifestando de forma diferente a respeito do tema.
Adotaremos, para firmar um ponto de partida, diante de tamanha indefinição, a posição defendida pelos autores Fernando Galvão (Imputação Objetiva), Luís Greco (Funcionalismo e Imputação Objetiva) e Rogério Greco (Curso de Direito Penal, Parte Geral), dentre outros, segundo a qual a teoria da imputação objetiva surge com o escopo de limitar o alcance da teoria da conditio sine qua non, agregando a normatividade à causalidade material. Em outras palavras, a teoria da imputação objetiva completa a causalidade clássica, sem que a adoção de uma implique na refutação da outra.
A verdade é que a realidade fática apresenta determinados casos nos quais a aplicação isolada dos preceitos da causalidade clássica levaria a alguns absurdos. Suponha-se que A seja alvejado por B, que lhe dispara um tiro contra o coração. C, que se encontrava próximo, empurra A, de forma que o projétil lhe atinge o ombro. Aplicando ao exemplo o raciocínio hipotético de Thyrén, ter-se-ia que C haveria, com sua conduta, contribuído para que A recebesse um tiro no ombro. Sua conduta, portanto, seria típica (note-se, típica, e não criminosa, pois o crime é uma conduta típica, ilícita e culpável).
Já para a teoria da imputação objetiva, da forma como é aceita principalmente pela parte da doutrina que segue os ensinamentos de Roxin, a conduta em questão seria atípica. Afinal, a partir do momento em que o agente se comporta de forma a reduzir o risco de lesão ao bem jurídico tutelado pela norma (a vida de A), sua conduta não viola nenhuma norma. Logo, não havendo, a violação de norma alguma, não se lhe pode objetivamente imputar delito algum, importando na atipicidade da conduta.
Com esse exemplo, essa Coordenadoria pretende ter ilustrado a importância da adoção da teoria da imputação objetiva como imperativo dentro de um Estado Democrático de Direito, pois que sendo a vedação penal de uma conduta somente legítima a partir da necessidade de proteção dos bens jurídicos mais importantes de uma sociedade, a inexistência de risco a um determinado bem deve ser entendida como um indiferente penal.
Já dissemos que cada autor oferece um conceito diferente de imputação objetiva. Alguns, por sinal, calcam os pilares dessa teoria não na teoria do risco, mas na separação de papéis dentro de uma sociedade, como faz Jakobs (A Imputação Objetiva no Direito Penal). Contudo, como o objetivo deste estudo não reside na análise da teoria da imputação objetiva em si, mas de sua aplicação no que tange ao problema da cumplicidade, esta Coordenadoria se reserva a eleger, dentre as várias conceituações existentes, a fornecida pelo mestre alemão Roxin, adotando-a no restante do trabalho:
"A teoria da imputação objetiva tenta resolver os problemas que decorrem destes e de outros grupos de casos, ainda a serem examinados. Em sua forma mais simplificada, diz ela: um resultado causado pelo agente só deve ser imputado como sua obra e preenche o tipo objetivo unicamente quando o comportamento do autor cria um risco não permitido para o objeto da ação (1), quando o risco se realiza no resultado concreto (2) e este resultado se encontra dentro do alcance do tipo penal (3)" (Roxin, Claus. Estudos de Direito Penal. Renovar. Pg. 104)
3 - Ações Neutras
Mais tormentoso que definir uniformemente a teoria da imputação objetiva é apresentar um conceito pacífico do que sejam ações neutras. Isso porque se trata de tema novo, praticamente inexplorado pelos juristas pátrios. Na doutrina estrangeira, apesar de existirem já algumas obras sobre o assunto, são poucas as que se aprofundam no tema.
Em virtude disso, essa Coordenadoria adotará o conceito de ações neutras fornecido pelo autor Luís Greco que, em sua obra Cumplicidade Através de Ações Neutras, fornece aquele que talvez seja o melhor título disponível no mercado sobre a matéria. Define o eminente autor que:
Proporemos, assim, a seguinte definição de ações neutras: chamaremos ações neutras aquelas contribuições a fato ilícito alheio que, à primeira vista, pareçam completamente normais. (...) Poderíamos, assim, reformular a definição dada de forma a compreender tanto a regra geral quanto a regra para o tratamento de casos duvidosos numa única formulação: ações neutras seriam todas as contribuições a fato ilícito alheio não manifestamente puníveis". (Greco, Luiz. Pg. 110)
A principal virtude do mencionado autor é não elaborar um conceito pautado por uma vinculação ab initio entre as ações neutras e a questão da punibilidade. O mesmo não busca, por exemplo, propor assertivas como "toda ação neutra é punível", ou "as ações neutras são aquelas impuníveis por natureza". Pelo contrário, sua definição não objetiva encontrar a natureza jurídica da ação neutra, mas apenas fornecer um conceito descritivo, que funcionará como auxílio ao desenvolvimento do trabalho do intérprete.
É partir dos já expostos conceitos de ações neutras e imputação objetiva que se proporá uma solução para o caso do padeiro.
4 - Solução do Caso Proposto
Voltando ao questionamento inicialmente proposto, pode-se punir o padeiro que vende pão ao agente que dele pretende se valer para envenenar sua esposa, sabendo dessa especial condição?
Antes de responder a essa questão, faça-se uma breve reflexão a respeito do conceito de participação.
Participação é uma atividade acessória, sempre dependente da atividade principal, de acordo os ditames da adotada teoria do domínio do fato. Logo, se a atividade principal não se verifica, não há que se falar em participação.
A definição das formas de participação em um comportamento principal varia de autor para autor. Esta Coordenadoria adota o critério bipartido para a definição das formas de participação: a instigação e a cumplicidade.
A instigaçãoé uma forma mais grave de participação, pois nela o instigador incute no espírito do agente a decisão de praticar o fato. A cumplicidade, por sua vez, é uma mera contribuição para o fato do agente principal.
O caso proposto nesse curso configura hipótese de cumplicidade, ou seja, de mera contribuição para fato principal de outrem. As conclusões alcançadas, portanto, não poderão ser estendidas às hipóteses de instigação, pois que essa, por sua própria definição, não pode ser encarada como um fato cotidiano, normal. Não se pode dizer que, à primeira vez, pareça impunível o agente que possui por função habitual a instigação de terceiros à prática de delitos.
Em suma, as conclusões desse estudo somente se aplicam às hipóteses de cumplicidade, e não às de instigação.
Voltando, portanto, ao problema do padeiro, pode-se definir, já neste primeiro momento, constitui o seu comportamento uma ação neutra. Afinal, a atividade de vender pães é cotidiana, normal, e à primeira vista não parece punível.
Ocorre que o padeiro fora informado por Tício de sua intenção de envenenar o pão comprado como meio de matar Marta, sua mulher.
Ora, punir a conduta do padeiro não parece adequado a proteger o bem jurídico no caso concreto. Isso porque, se o mesmo se recusasse à venda, Tício somente iria à padaria situada no mesmo quarteirão, compraria pão, o envenenaria, praticando o desejado homicídio contra Marta. Vender o pão não melhora a situação do bem jurídico vida de Marta, pois que essa prestação pode ser facilmente obtida em qualquer outro lugar.
Vale lembrar que a proibição penal de uma conduta em um Estado Democrático de Direito somente se justifica a partir de uma visão político criminal centrada na necessidade proteção aos bens jurídicos mais importantes da sociedade. Sendo inócua a proibição, afasta-se a punibilidade. No caso concreto, sendo a conduta do padeiro uma ação neutra, inidônea a proteger o bem jurídico no caso concreto, por se tratar de prestação facilmente obtida em padaria situada naquele mesmo quarteirão, há de se concluir pela impossibilidade de imputação objetiva do delito ao padeiro. Esse, aliás, constitui o fundamento que não permite punir o cúmplice de determinadas ações neutras.
Sendo impossível a imputação objetiva do resultado ao cúmplice, tem-se por desnecessário auferir se o mesmo agiu ou não com dolo eventual, vez que sua conduta já é considerada atípica.
Conclui essa Coordenadoria, portanto, seguindo o entendimento exposto na já mencionada obra de Luís Greco, que muito inspirou esse trabalho, que uma conduta somente poderá ser imputável ao cúmplice caso a proibição apresente alguma melhoria para a situação do bem jurídico. Ou, como define Luís Greco, 
"à exigência da idoneidade da proibição significa que só haverá risco juridicamente desaprovado se a não prática da ação proibida representar uma melhora relevante na situação do bem jurídico concreto" (Págs. 142 e 143).
Teoria da Imputação Objetiva em um Caso Concreto
1 - Transcrição do Acórdão
Relator: MARIA CELESTE PORTO
Relator do Acórdão: SYDNEI ALVES AFONSO
Data do acórdão: 02/04/2004
Data da publicação: 17/04/2004
E M E N T A: 
HOMICÍDIO CULPOSO - ACIDENTE DE TRÂNSITO - COMPENSAÇÃO DE CULPA - INADMISSIBILIDADE.
Em acidente de trânsito onde se verifica a morte da vítima, por culpa concorrente da vítima e do acusado, deve ser proferido decreto condenatório, pois não é permitida em nosso sistema penal a compensação de culpas.
V.v.: HOMICÍDIO CULPOSO - ABSOLVIÇÃO - POSSIBILIDADE - AUSÊNCIA DE CULPA DO AGENTE -RECURSO PROVIDO.
I - Pode-se definir a ação culposa como lesão do dever de cuidado objetivo exigido em ações socialmente perigosas.
II - A tipicidade do crime culposo não pode estar no resultado que está fora da ação. A tipicidade deve estar no comportamento proibido pela norma, e, considerando que nos crimes culposos a vontade não é dirigida ao resultado antijurídico (mas a outros fins, em sua maioria lícitos), a ação delituosa incriminada pela norma seria aquela praticada com imprudência, negligência ou imperícia, violando um dever objetivo de cuidado.
V O T O S 
A Sr.ª JUÍZA MARIA CELESTE PORTO: 
(...)
Quanto ao pleito absolutório de AAAAAAA AAAAAAA AAAAAAAAAA, vejo que razão lhe assiste.
Segundo a denúncia, no dia 7 de outubro de 2001, por volta das 6h00, no Município de Coronel Fabriciano/MG, referido nacional trafegava por uma avenida local em velocidade acima da permitida, motivo pelo qual colidira de frente com a bicicleta de BBBBBB BBBBB BBBBB, causando-lhe lesões corporais, causa eficiente de sua morte.
Autoria e materialidade encontram-se sobejamente comprovadas, motivo pelo qual não são necessárias maiores considerações a respeito.
Na verdade, o cerne da questão encontra-se na comprovação da culpa do apelante, notadamente na modalidade por imprudência, descrita no emprego de velocidade excessiva para o local.
Assim, nos crimes culposos o agente atua de modo desatento, sem observar o cuidado objetivo exigível na espécie (que é fixado de modo objetivo e geral), acabando por causar o resultado antijurídico.
Nesses, a lei descreve o resultado, mas não descreve a ação típica, limitando-se às adjetivações de imprudência, negligência ou imperícia, como qualidades da ação. Como a natureza polimorfa dessas ações torna impossível sua descrição legal, o tipo é construído com sinal contrário: descreve positivamente a ação prudente como modelo de avaliação da ação concreta.
Com base no exposto, a partir de minuciosa análise dos autos, vejo que não ficou comprovada a prática de uma conduta imprudente, por parte do apelante.
Ora, observa-se que o recorrente trafegava em sua mão-direcional quando, repentinamente, a vítima, que conduzia sua bicicleta na mesma pista, porém na contramão, de inopino realizou uma manobra brusca, na tentativa de transpor a via.
Nesse sentido baseou-se a Defesa de AAAAA, sendo corroborado pela testemunha presencial CCCCC CCCCC CCCCC:
"... que no dia dos fatos, por volta de 06 horas, estava em seu local de trabalho, posto Ipiranga, quando viu um ciclista que transitava pela contra mão de direção, do lado oposto ao canteiro central, olhando para trás e aparentando estar xingando alguém e atravessou a pista de rolamento em direção ao canteiro central, quando foi atropelado pelo veículo branco... - f. 19/20.
Elidindo qualquer dúvida, o laudo pericial de f. 30-35, chegou à conclusão que:
 "considerando-se as trajetórias descritas e ensejadas pelos condutores, a localização da região do ponto de choque, as posições finais de imobilização dos veículos, pode-se concluir que o acidente foi motivado pelo condutor do veículo 02 (bicicleta), sr. BBBBB BBBBB BBBBB, ao adentrar sua unidade em contramão direcional, motivando a interceptação da regular trajetória desenvolvida em sentido oposto pelo segundo automotor."
(...)
Entretanto, cumpre destacar que no local não havia placa da velocidade máxima permitida, sendo a desenvolvida pelo recorrente em aproximadamente 87 km/h.
A testemunha DDDDD DDDDD DDDDD, que se encontrava no ônibus coletivo que vinha logo em seguida, enfatizou em seus depoimentos que a velocidade desenvolvida pelo apelante era compatível para o local.
A meu ver, a velocidade imprimida no momento do atropelamento não contribuiu para o acidente, uma vez que nas condições em que ocorreu, ninguém seria capaz de evitá-lo, ainda que estivesse em velocidade inferior à permitida para vias arteriais.
Data máxima vênia, tenho para mim que o apelante não tinha como prever concretamente a possibilidade de ocorrência do resultado final, qual seja, o atropelamento e consequente morte da vítima, posto que não podia prever que a mesma iria transpor a via de supetão.
Logo, como o julgador deve ficar adstrito às provas carreadas aos autos, não podendo fundamentar a decisão em elementos estranhos a eles, não vejo como manter o decreto condenatório.
As circunstâncias conhecidas e apuradas nos autos não indicam, suficientemente, a prática de uma conduta imprudente por partedo apelante, motivo pelo qual o absolvo nos termos do art. 386, inciso IV do Código de Processo Penal.
Ante tais fundamentos, DOU PROVIMENTO ao recurso.
É como voto.
Custas ex lege.
O SR. JUIZ SIDNEY ALVES AFFONSO: 
(...)
Todavia, no que se refere ao pleito absolutório, divirjo do brilhante voto proferido pela i. Relatora, pois entendo que, no presente caso, houve culpa concorrente e, neste caso, não pode ser proferida uma absolvição.
A materialidade e a autoria são incontestes, não havendo inconformismo quanto a este fato. A controvérsia se restringe à ocorrência ou não de culpa por parte de AAAAA.
Trata-se a espécie de homicídio culposo, onde se deve averiguar se o acusado agiu com imprudência, negligência ou imperícia, as três modalidades da culpa em sentido estrito.
Para que se configure a culpa é mister que o agente ativo tenha desobedecido a uma norma de cuidado objetivo e que esta desobediência tenha causado um resultado danoso e que este fosse previsível nas condições em que se encontrava.
Há que se verificar se a conduta do acusado se encontrava nesse quadro, e se de sua ação ocorreu um nexo causal com o resultado e, ainda, se era previsível o resultado.
E, realmente, consta nos autos que houve culpa por parte da vítima, em grande proporção, que, abruptamente, adentrou a pista onde trafegava o veículo do apelante, tentando fazer a travessia da via, e, ainda, parece que estava olhando para trás e discutindo com alguém.
No entanto, não obstante tenha a vítima contribuído para o acidente, entendo que o apelante também teve sua parcela de culpa e, neste caso, não havendo compensação de culpas no direito penal, a condenação se impõe.
A culpa do apelante se restringe à sua imprudência ao conduzir o seu veículo em velocidade incompatível com o local e, se caso estivesse em velocidade inferior, poderia não ter evitado o acidente, mas poderia ter minorado suas consequências.
O laudo pericial, f. 32, TA, afirma que não havia placa de sinalização de velocidade no local, mas, por ser uma via arterial, de acordo com o CTB, a velocidade máxima ali permitida é de 60 Km/H.
Sendo assim, é forçoso concluir que o apelante agiu imprudentemente ao não se acautelar com os cuidados exigíveis quando na direção do veículo, trafegando em velocidade superior à permitida.
Ademais, o apelante viu a bicicleta, que estava à sua frente, e não foi prudente o suficiente para reduzir a velocidade, deixando de ater ao seu dever de cuidado objetivo, ocorrendo a previsibilidade.
Se tivesse observado com o cuidado exigível, teria evitado o acidente ou, ao menos, minorado suas consequências.
Não há, aqui, que se falar em absolvição, já que pela análise acima feita, se o apelante estivesse em velocidade inferior, teria evitado o acidente. (...)
Diante de tais considerações, divirjo parcialmente da em. Relatora e dou parcial provimento ao recurso para reduzir o prazo de suspensão da habilitação para dois meses.
É como voto.
O SR. JUIZ ANTÔNIO ARMANDO DOS ANJOS: 
Não obstante as ponderações da ilustre Juíza Relatora, merece plena acolhida o entendimento externado pelo ilustre Juiz 1.º Vogal - Dr. Sidney Alves Affonso - não havendo que se falar em absolvição do apelante AAAAA AAAAA AAAAA.
Com efeito, o acervo probatório colacionado, principalmente o laudo pericial de f. 29-35, aliado às próprias declarações do recorrente, demonstram a perfeita subsunção entre sua conduta e a previsão legal do crime previsto no art. 302 do CTB, que lhe fora imputado, pois no local e hora do sinistro, imprimia a seu automotor velocidade superior à permitida para o local.
De outro lado, a perícia técnica, levando em consideração aspectos fáticos dolocus comissi delicti, conclui que a velocidade empregada pelo apelante era de 87 Km/h.
Ressalte-se, também, que não obstante o réu ter percebido que a vítima estava a discutir com outra pessoa, com sinais de anormalidade, ainda assim não adotou medidas preventivas para evitar um sinistro, concorrendo, deste modo, para o incremento da situação de perigo.
Destarte, pedindo vênia à ilustre Relatora, estou a acompanhar o eminente Juiz 1º Vogal, mantendo a condenação do apelante AAAAA AAAAA AAAAA.
É como voto.
2 - Análise do Acórdão
O acórdão transcrito condenou o réu à pena de dois anos de detenção pela prática do crime de homicídio culposo no trânsito. A decisão foi tomada por maioria, vencida a desembargadora relatora. Interessante observar que no corpo do referido acórdão foi debatido a fundo o elemento subjetivo do tipo penal, ou seja, se o agente teria ou não laborado culposamente. Contudo, nenhum dos votos fez menção à aplicação da teoria da imputação objetiva, que, a nosso ver, seria aplicável ao caso e levaria a uma solução diferente, conforme será exposto a seguir.
A teoria da imputação objetiva é um modelo. Um modelo que busca explicar uma determinada realidade, que é o fato típico. Sua elaboração surgiu de uma necessidade, visto que a teoria da equivalência dos antecedentes passou a não explicar satisfatoriamente os fenômenos observados na realidade social. Diante de tais dificuldades, a teoria da imputação objetiva surgiu com a finalidade de limitar o alcance do modelo hipotético de eliminação de Thyrén, adequando novamente a teoria do crime à realidade social.
A teoria da equivalência dos antecedentes trata a causalidade como uma relação naturalística. Comprovado que sem a conduta de determinado agente o resultado não teria ocorrido, conclui-se que tal conduta é causa do referido resultado. Trata-se de um mero juízo hipotético de eliminação em que se examina a causalidade de forma empírica.
A teoria da imputação objetiva não busca substituir a teoria da equivalência dos antecedentes. Pelo contrário. A causalidade natural continua a ser um dado essencial para a imputação do resultado ao agente. Entretanto, essa relação naturalística passa a ser uma condição mínima, apenas o primeiro requisito a ser observado dentro da relação de causalidade. O que a teoria da imputação objetiva propõe é que a causalidade seja analisada também sob um prisma jurídico, normativo, em que será agregado valor à parte objetiva do tipo penal.
O importante é asseverar que a teoria da imputação objetiva se presta a ponderar acerca da possibilidade de imputação do resultado previsto na parte objetiva do tipo penal. Logo, essa análise antecede à análise do elemento subjetivo do tipo penal.
Exatamente em virtude disso é que entendemos, data vênia, que pecaram os eminentes desembargadores que proferiram os votos transcritos. Afinal, antes mesmo de perquirir acerca da possibilidade de imputação do resultado ao agente em uma análise objetiva do tipo penal, os julgadores passaram a ponderar acerca do elemento subjetivo do tipo, se o agente teria ou não laborado com culpa. Contudo, não se pode fazer essa inversão no estudo do tipo penal, visto que se o resultado não puder ser imputado ao agente objetivamente, não será sequer necessário examinar o elemento subjetivo do tipo. Em outras palavras, não cabendo a imputação objetiva do resultado ao agente, o tipo penal não poderá se perfazer, pelo que ser torna inócuo o estudo do dolo ou da culpa.
No caso relatado, tem-se que o agente trafegava em via pública a 87 km/h, em um local onde a velocidade máxima permitida seria de 60 km/h. Ao dirigir, em sua mão direcional, foi surpreendido quando a vítima, que estava na contra mão de direção, olhando para trás, de inopino, realizou uma manobra brusca na tentativa de transpor a via. Os eméritos desembargadores entenderam que o agente deveria ser condenado, visto que tanto ele quanto a vítima obraram culposamente. Destarte, como não existe compensação de culpa em direito penal, foi-lhe imposta a condenação.
Data vênia, esse não é o melhor entendimento. Conforme foi exposto, a análise da imputação objetiva antecede o estudo acerca do tipo subjetivo. Portanto, o que deveria ter sido analisado, antes de tudo, seria a possibilidade do resultado, objetivamente, ser imputado ao agente.
Ocorre que a análiseda causalidade, a partir da teoria da imputação objetiva levaria o julgamento a um outro desfecho. Vejamos porquê.
Claus Roxin, um dos maiores penalistas do nosso tempo, elaborou quatro vertentes da teoria da imputação objetiva, tendo o princípio do risco como fundamento. São elas: a diminuição do risco; a criação de um risco juridicamente relevante; aumento do risco permitido; esfera de proteção da norma como critério de imputação. Interessa-nos em particular a vertente definida como aumento do risco permitido.
Jakobs, ao estudar a teoria da imputação objetiva, assevera que não existe uma sociedade em que não haja qualquer risco. E cita como exemplo o tráfego de veículos, uma atividade por si só arriscada, mas socialmente aceita, já que se trata de um risco necessário para impulsionar o progresso da própria sociedade.
Assim, como ponto de partida, tem-se que o tráfego de veículos constitui uma conduta arriscada. Portanto, para analisar se o resultado atropelamento, nesse caso concreto, pode ser imputado ao agente, deve-se perquirir se ele, com seu comportamento, aumentou o risco de ocorrência do resultado. Em outras palavras, deve-se perquirir se o resultado teria ocorrido ainda que o agente tivesse obrado de forma diversa, observando o dever objetivo de cuidado.
No presente caso, a conclusão é que mesmo que o agente estivesse manejando o veículo dentro da velocidade permitida, de 60 km/h, o resultado aconteceria. Isso porque mesmo a essa velocidade o condutor não teria podido evitar a colisão, visto que a vítima, de inopino, jogou a bicicleta à sua frente. Logo, a conduta do agente, ao manejar a 87 km/h, não pode ser considerada causa do resultado, uma vez que sua conduta não incrementou o risco da ocorrência do resultado. O resultado teria ocorrido de qualquer forma, estivesse o agente a 60 km/h ou a 87 km/h.
Conclui-se, portanto, que, em virtude da impossibilidade de imputação objetiva do resultado ao condutor, o mesmo deveria ter sido absolvido.
Outra vertente da teoria da imputação objetiva que pode ser aplicada ao presente caso foi bastante desenvolvida por outro célebre penalista alemão, Gunther Jakobs. Trata-se da auto-colocação em perigo, ou auto-exposição a risco. Ao dirigir uma bicicleta em via pública à noite, na contramão, e ainda olhando para trás, a vítima sabe que está desenvolvendo uma atividade arriscada. E o faz a seu próprio risco.
Assim sendo, tendo a própria vítima violado seus deveres de proteção, a ocorrência do resultado não pode ser imputada ao agente, mormente quando o próprio ciclista foi quem realizou a manobra perigosa, imprudentemente tentando atravessar a via pública.
Também pode se aplicar ao presente caso o chamado princípio da confiança. De acordo com esse princípio, inicialmente desenvolvido para ser aplicado aos delitos de trânsito, não se imputará objetivamente o resultado ao agente que obrou confiando que os outros também se manteriam dentro dos limites do risco permitido. No presente caso, o agente até teria violado as normas de circulação de trânsito. Contudo, conforme assevera Fernando Galvão, citando Roxin, "nem mesmo a violação à infração das regras de circulação impede a aplicação do princípio da confiança, desde que tal violação não tenha repercutido no sinistro". E, conforme já foi analisado, ainda que o condutor estivesse à velocidade permitida, 60 km/h, o acidente teria acontecido da mesma forma, já que foi o movimento brusco e de inopino do ciclista que deu origem ao choque.
Assim, aplicando-se o princípio da confiança, novamente se pode concluir que o resultado não pode ser objetivamente imputado ao agente.
Ressalte-se que entendemos correta a exposição feita pelos eméritos desembargadores com relação à impossibilidade de compensação de culpa no direito penal. No entanto, data venia, essas considerações são desnecessárias para o deslinde do caso concreto, já que se o resultado não pode ser objetivamente imputado ao agente não será necessário perquirir acerca do elemento subjetivo do tipo.
Concluímos, portanto, que o acórdão transcrito pecou por analisar os fatos a partir de uma concepção meramente naturalística, o que induziu a um exame desnecessário do tipo subjetivo, a uma condenação injusta e, data venia, juridicamente incorreta. Condenação essa que poderia ter sido evitada se tivessem sido aplicadas as premissas da teoria da imputação objetiva.
As Qualificadoras no Crime de Homicídio
1 – As qualificadoras dos Crimes de Homicídio
O tipo penal pode ser definido como a descrição precisa de um comportamento humano que o ordenamento jurídico de um país busca coibir ou fomentar.
Por tipo básico entende-se a forma mais simples através da qual a lei penal descreve a conduta proibida. Desse tipo básico podem se originar outras previsões legais, os chamados tipos derivados. Tal fenômeno ocorre em decorrência do acréscimo de determinadas circunstâncias àquele tipo fundamental, que podem aumentar ou diminuir a pena originalmente prevista.
Uma das espécies de tipo penal derivado recebe o nome de privilégio. De acordo com Rogério Greco, "o legislador, em consequência da ocorrência de determinados dados, faz com que a pena aplicada seja menor do que aquela prevista na modalidade mais simples da infração penal". (Greco, Rogério. Curso de Direito Penal. 2006. Editora Impetus).
Esse curso, todavia, cuidará apenas da modalidade qualificada do tipo penal que define o crime de homicídio, previsto no art. 121 do Código Penal. Nessas hipóteses, o legislador, exercendo um juízo de culpabilidade prévio à edição da própria lei, entendeu que se o agente cometer o delito através de determinados meios de execução, ou imbuído de motivações específicas, conforme se verá adiante, deverá ser punido com penas mais severas pelo órgão estatal.
2 - As Qualificadoras
O crime de homicídio está previsto no art. 121 do Código Penal. O §2° do referido artigo define a modalidade qualificada do delito, senão vejamos:
Art. 121 - Matar alguém:
Pena - reclusão, de 6 (seis) a 20 (vinte) anos.
Homicídio qualificado
§ 2º - Se o homicídio é cometido:
I - mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe;
II - por motivo fútil;
III - com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum;
IV - à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido;
V - para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime:
Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.
a) Paga ou promessa de recompensa, ou qualquer outro motivo torpe.
De acordo com Guilherme de Souza Nucci, "torpe é atributo do que é repugnante, indecente, ignóbil, logo, provocador de excessiva repulsa na sociedade". (Nucci, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 2005. RT). Na verdade, o homicídio praticado mediante promessa de recompensa constitui um mero exemplo, uma espécie, vamos dizer, do gênero torpeza.
O homicídio cometido mediante recebimento de prêmio ou promessa de prêmio é a conhecida morte encomendada a um mercenário, vulgo matador de aluguel. Por se tratar de circunstância elementar do delito, a mesma se comunica, de forma que tanto aquele que ordenou a prática do crime quanto aquele que executou o ato em si respondem pela infração penal do art. 121 em sua forma qualificada.
A jurisprudência vem entendendo, como espécies de motivo torpe, por exemplo, o delito cometido por vingança, por rejeição amorosa ou em razão de disputa de terras. Por outro lado, os Tribunais, de forma majoritária, já sustentam que o ciúme não pode ser considerado como torpeza, por se tratar de sentimento que age de modo intenso e negativo no controle emocional.
"PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL HOMICÍDIO E LESÕES CORPORAIS. QUALIFICADORAS. PRONÚNCIA. I - A qualificadora de homicídio, para ser admitida na pronúncia (iudicium accusationis), exige a existência de indícios e sobre eles, sucintamente, deve manifestar-seo magistrado (Precedente). II - O ciúme, por si só, sem outras circunstâncias, não caracteriza o motivo torpe". (STJ. REsp 171627 / GO. Ministro FELIX FISCHER. DJ 18.10.1999)
b) Motivo Fútil
De acordo com a doutrina, "motivo fútil significa que a causa fomentadora da eliminação da vida alheia calcou-se em elemento insignificante se comparado com o resultado provocado. Portanto, é flagrante a desproporção entre o motivo e o resultado obtido" (Nucci, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. São Paulo. RT. 2005. Pág. 564). (Grifo nosso)
Assim, no crime de homicídio, pode-se falar em motivo fútil quando a razão que motivou o comportamento do agente é de menor ou nenhuma importância quando comparado com o resultado obtido, qual seja a morte da vítima.
A prática forense revela várias situações em que o agente se encontra incurso nas iras do art. 121, §2° em razão de conduta movida por motivação fútil. Assim, vêm sendo considerados como fúteis os crimes cometidos após discussão de casal, em virtude de insignificante dívida, e até pela própria ausência de motivos. Para exemplificar essa última hipótese, veja-se esclarecedor acórdão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais:
"Para fins legais, a ausência de motivo, para fins de qualificação do delito de homicídio tentado, se equipara plenamente com o motivo fútil, pois, além de ser tal situação moralmente mais condenável, é inaceitável que alguém que matasse uma pessoa sem qualquer motivo pudesse receber uma pena menor do que aquela pessoa que matou por um motivo fútil." (TJMG. Número do processo: 1.0301.01.003607-9/001. Des. Rel. BEATRIZ PINHEIRO CAIRES. Data da publicação: 04/10/2006) (grifo nosso)
c) Meio insidioso, cruel, ou que provoque perigo comum, tais como veneno, fogo, explosivo, asfixia ou tortura.
A utilização de veneno constitui a mais didática hipótese de homicídio praticado através de meio insidioso. Afinal, conceitua-se meio insidioso como sendo algo camuflado, uma conduta verdadeiramente traiçoeira, como ocorre no referido caso do emprego de substância venenosa.
De acordo com o Dicionário Aurélio, cruel é vocábulo sinônimo de duro, insensível, desumano, cruento. Logo, conceitua-se meio cruel como aquele que causa na vítima desnecessário sofrimento. Tem-se por cruéis os homicídios cometidos com fogo, asfixia, ou através da prática de tortura. Ressalte-se que asfixia não se confunde com enforcamento. Asfixia se refere à suspensão de respiração por qualquer meio. Logo, o enforcamento pode ser considerado como uma forma de asfixia, mas não é a única. O afogamento, por exemplo, traduz forma recorrente de asfixia, conforme ilustra o acórdão abaixo:
"Quem, movido pela vingança, por causa de uma agressão sofrida três dias antes, elimina o ofendido com golpes de pedaços de pau e, em seguida, asfixia-o nas águas de um rio, comete um crime de homicídio qualificado, pelo motivo fútil e pelo meio cruel" (TJMG. Número do processo: 1.0000.00.304442-7/000. Rel. Des. Edelberto Santiago. Data do acordão: 11/03/2003) (grifo nosso)
Meio capaz de provocar perigo comum é aquele em que o agente, além de atingir seu objetivo de ceifar a vida da vítima, pode ainda provocar outros resultados danosos, como lesões corporais e até outros homicídios, tendo por sujeitos passivos cidadãos diversos. Pode-se fornecer como exemplo clássico dessa hipótese o homicídio perpetrado através da explosão de uma bomba.
d) Meio que impossibilitou ou dificultou a defesa da vítima: traição, emboscada e dissimulação.
A traição, a emboscada e a dissimulação são exemplos trazidos pela lei penal de situações em que a vítima, surpreendida pelo comportamento sorrateiro do agente, tem sua possibilidade de reação reduzida ou até eliminada por completo. Todos os exemplos mencionados possuem entre si uma característica em comum, qual seja a surpresa.
Logo, seguindo a ideia de que a mens legis do dispositivo legal enfocado reside na punição do comportamento inesperado do agente, esta Coordenadoria entende que a utilização de arma, por si só, não se enquadra dentro do conceito legal de meio que dificultou a defesa da vítima. Contudo, se o comportamento do sujeito ativo armado ocorre de inopino, abre-se a possibilidade de que venha a ser reconhecida a qualificadora:
"Uma pessoa armada, investindo contra outras desarmadas, e de inopino, possivelmente configura a qualificadora do recurso que impossibilitou ou dificultou a defesa da vítima". (TJMG. Número do processo: 1.0086.05.010458-6/001. Relator: Antônio Carlos Cruvinel. Data do acordão: 31/01/2006). (grifo nosso)
e) Finalidade de ocultação de outro crime
Leciona Mirabete que essa qualificadora se divide em casos de conexão teleológica e consequencial. De acordo com o eminente autor, "ocorre a conexão teleológica quando o homicídio é meio para executar outro crime, finalidade última do agente. É consequencial quando praticado para ocultar a prática de outro ilícito ou para assegurar a impunidade ou vantagem do produto, preço ou proveito dele" (Mirabete, Júlio Fabbrini. Código Penal Interpretado. 2001. Atlas)
Logo, essa hipótese, última qualificadora prevista pela lei penal, se verifica quando o agente comete o homicídio com o fim de assegurar a impunidade, a execução, a ocultação ou a vantagem de outro crime. Apenas a título de ilustração transcreve-se o aresto que se segue:
"Pronúncia - Tentativa de homicídio qualificado para assegurar a impunidade por outro crime - Resistência - O agente que resiste com tiros a revista pessoal por policiais, temendo ser preso por porte ilegal de armas, pratica crime de tentativa de homicídio simples em concurso material com resistência e não de homicídio qualificado para assegurar a impunidade por outro crime - É que, tanto o delito de resistência, quanto a qualificadora do homicídio para assegurar a impunidade por outro crime, tutelam, em última análise, o mesmo bem jurídico - a administração pública - e seria um absurdo lógico conceber que o agente, com uma única conduta, lesasse duas vezes o mesmo bem jurídico - Recurso ministerial desprovido" (TJMG. Número do processo: 1.0105.04.112954-2/001. Relator Desembargador ERONY DA SILVA. Data da publicação: 20/04/2005)
Conflito Aparente de Normas Penais
1 - Concurso Aparente de Normas Penais
Considerações Gerais
Estuda-se em Teoria Geral do Direito que o ordenamento jurídico constitui um todo harmônico, uno e coerente, de forma a garantir a segurança jurídica, essencial para a vida em sociedade. Em virtude disso, alguns autores, como Damásio de Jesus, criticam a expressão concurso aparente de normas. Para esse doutrinador, "as denominações são inadequadas, pois não há conflito ou concurso de disposições penais, mas exclusividade de aplicação de uma norma a um fato, ficando excluída outra em que também se enquadra". (Damásio de Jesus. Direito Penal. Parte Geral).
Todavia, data venia, esse não é o melhor entendimento. Parte substancial da doutrina entende não haver qualquer problema técnico na utilização da nomenclatura concurso (ou conflito) aparente de normas. Para expor esse posicionamento, faz-se necessária uma definição do que seja concurso aparente de normas. Para isso, válidas as palavras de Rogério Greco, "fala-se em concurso aparente de normas quando, para um determinado fato, aparentemente, existem duas ou mais normas que poderão sobre ele incidir" (Rogério Greco. Curso de Direito Penal. Parte Geral).
Assim, em um primeiro momento, em um juízo inicial, tem-se a impressão de que existe mais de uma norma aplicável ao caso concreto. Contudo, após uma análise mais profunda, essa impressão inicial vê-se afastada de forma a concluir que existe apenas uma norma aplicável ao caso. Logo, o concurso de normas no caso, como o próprio nome diz, é apenas aparente. Por isso mesmo, não existe qualquer equívoco na denominação. Haveria, por certo, se fosse utilizada a expressão "concurso de normas penais", ou "concurso efetivo de normas penais".
Adotando sem ressalvas a denominação concurso aparente de normas penais, Luiz Régis Pradoensina que: "Verifica-se na situação em que várias leis são aparentemente aplicáveis a um mesmo fato, mas, na realidade, apenas uma tem incidência. Sendo assim, não há verdadeiramente concurso ou conflito, mas tão-somente aparência de concurso" (Luiz Régis Prado. Curso de Direito Penal Brasileiro. V.1). Ora, se existe aparência de conflito, não há que se falar em equívoco técnico na expressão já há muito consagrada pela doutrina.
A doutrina entende que existem dois pressupostos para a que ocorra um concurso aparente de leis. São eles:
a) a unidade de fato;
b) a pluralidade de normas que (aparentemente identificam o mesmo fato delituoso). Tais requisitos são importantes, vez que a existência de uma pluralidade de fatos poderia originar um concurso material de crimes. Nesse caso, haveria uma concorrência efetiva, e não apenas aparente de crimes.
A incidência de duas normas incriminadoras não tem cabimento dentro do Direito Penal Moderno. Afirma Mirabete que "é impossível que duas normas incriminadoras venham a incidir sobre um só fato natural, o que é vedado pelo princípio do non bis in idem, (...) indispensável que se verifique qual delas deve ser aplicada no caso concreto". (Mirabete. Manual de Direito Penal. Parte Geral)
Para solucionar o concurso aparente de normas, e definir qual o tipo penal que se amolda à conduta perpetrada pelo agente, a doutrina elaborou alguns princípios, critérios aplicáveis aos casos concretos. Tais princípios permitem eleger qual a norma penal verdadeiramente aplicável à situação, afastando a incidência das demais, evitando a ocorrência do chamado bis in idem. São eles os princípios da especialidade, da subsidiariedade, da consunção e da alternatividade.
Princípio da Especialidade
O princípio da especialidade é tido por grande parte da doutrina como o mais importante dos princípios utilizados para sanar o conflito aparente de normas penais. Bittencourt chega a afirmar que se trata do princípio fundamental para a solução do conflito aparente de normas, de forma que os demais princípios "somente devem ser lembrados quando o primeiro não resolver satisfatoriamente o conflito" (Cezar Roberto Bittencourt. Tratado de Direito Penal. V1)
Rogério Greco, versando sobre o princípio da especialidade, define que "a norma especial afasta a aplicação da norma geral" (idem). Isso porque a norma especial reúne todos os elementos da norma geral, mas acrescidos de outros, denominados elementos especializantes. Com isso, o tipo penal considerado especial derroga (para utilizar o vocábulo romano) a lei geral.
Em outras palavras, o princípio da especialidade determina a prevalência da norma especial sobre a geral, pois esta, em virtude da presença dos elementos especializantes, se amolda melhor ao caso concreto. Evita-se, assim, a ocorrência de bis in idem.
Pode-se falar de especialidade na relação existente entre o tipo básico e o qualificado, ou entre aquele e a sua forma privilegiada. Também se fala em especialidade quando determinada lei descreve como crime autônomo um outro delito já presente no ordenamento jurídico, adicionado de alguns elementos ditos especializantes. Nos dizeres de Bittencourt: "Há igualmente especialidade quando determinada lei descreve como crime único dois pressupostos fáticos de crimes distintos, como, por exemplo, o crime de roubo, que nada mais é do que o furto praticado com violência ou grave ameaça à pessoa". (idem).
Princípio da Subsidiariedade
A relação ditada pelo princípio da subsidiariedade ocorre entre a norma principal e a norma subsidiária. Aplica-se esse princípio quando duas normas estabelecem diferentes graus de violação de um mesmo bem jurídico.
De fato, existem normas que tipificam condutas que são mais ofensivas a um determinado bem jurídico que outras, sem que exista no caso uma relação de especialidade. Tal situação ocorre, por exemplo, na relação existente entre a violação de domicílio e o furto realizado em uma residência, ou entre o crime de dano e o furto mediante rompimento de obstáculo. Nesses casos, a segunda conduta se apresenta como mais ofensiva ao patrimônio, bem jurídico tutelado, de forma que a primeira será considerada como norma subsidiária.
Ao versar sobre o princípio da subsidiariedade, o mestre Nelson Hungria estabelece de forma elucidativa as diferenças entre o mesmo e o princípio da especialidade:
"...a diferença que existe entre especialidade e subsidiariedade é que, nesta, ao contrário do que ocorre naquela, os fatos previstos em uma e outra norma não estão em relação de espécie e gênero, e se a pena do tipo principal (sempre mais grave que a do tipo subsidiário) é excluída por qualquer causa, a pena do tipo subsidiário pode apresentar-se como soldado de reserva, e aplicar-se pelo residuum". (Nelson Hungria. Comentários ao Código Penal. V.1)
Importante asseverar, a partir da lição de Nelson Hungria, que somente se pode falar em princípio da subsidiariedade quando a norma principal for mais grave que a subsidiária. Inclusive, trata-se de consequência oriunda da própria essência do princípio, caracterizado pela descrição de diferentes graus de violação ao bem jurídico tutelado. O mesmo, porém, não ocorre com o princípio da especialidade. Afinal, nada impede que o elemento especializante, que afasta a aplicação da norma geral, seja tal que represente um minus de severidade, diminuindo a reprimenda abstratamente prevista ao delito.
Princípio da Consunção
Pelo princípio da consunção ou da absorção, um determinado crime é entendido como fase de preparação ou de execução de um outro delito, chamado crime fim. Além disso, fala-se em aplicação do princípio da consunção nos casos de antefato e pós-fato impuníveis. Nas palavras de Cezar Roberto Bittencourt: "Pelo princípio da consunção, ou absorção, a norma definidora de um crime constitui meio necessário ou fase normal de preparação ou execução de outro crime". (idem)
O pós-fato impunível pode ser considerado como um exaurimento do crime anterior. O delito principal já se encontra consumado, de forma que o mero exaurimento da conduta não deve ser punido. Fragoso defende que "os fatos posteriores que significam um aproveitamento e por isso ocorrem regularmente depois do fato anterior são por este consumidos. É o que ocorre nos crimes de intenção, em que aparece especial fim de agir". O mesmo autor traz, ainda, exemplos para ilustrar a questão: "A venda, pelo ladrão da coisa furtada como própria não constitui estelionato. Se o agente falsifica moeda e depois a introduz em circulação pratica apenas o crime de moeda falsa". (Heleno Cláudio Fragoso. Lições de Direito Penal)
Assim, em suma, o pós-fato é considerado impunível pois, sendo o mesmo uma consequência lógica dos atos anteriores, há no caso apenas uma conduta. E, havendo apenas uma conduta, deve haver apenas uma punição, sob pena de configuração de bis in idem.
Princípio da Alternatividade
Se a aceitação do princípio da especialidade para solucionar o conflito aparente de normas constitui uma unanimidade entre a doutrina, o mesmo não se pode dizer do princípio da alternatividade. Trata-se, ao revés, de princípio cuja aplicabilidade é questionada por vários doutrinadores, como Luiz Régis Prado, influenciado pelas ideias de Maurach, e Cezar Roberto Bittencourt.
Contudo, entendemos que o princípio da alternatividade constitui critério idôneo para solucionar o conflito aparente de normas. Tal princípio deverá ser aplicado nos crimes de ação múltipla, em que um tipo penal possui vários verbos como núcleo do tipo penal. Dessa forma, um agente que guarda, expõe à venda e vende substância entorpecente comete apenas um único delito de tráfico de drogas.
Nada impede que o juiz, ao analisar as circunstâncias judiciais para fixar a pena base, venha a fixá-la em patamar afastado do mínimo legal, visto ser maior a culpabilidade do agente que realiza vários núcleos do tipo penal. Tal posição é defendida por vários doutrinadores, como Rogério Greco, Damásio de Jesus e Júlio Fabbrini Mirabete.
Descriminantes Putativas1 - Muitos doutrinadores entendem que a tipicidade da conduta, ou seja, o fato do comportamento em concreto se adequar à previsão abstrata da lei, constitui um verdadeiro indício da ilicitude da mesma[1]. Em outras palavras, o fato típico, em regra, também será considerado antijurídico, a menos que se verifique a incidência de uma causa excludente da ilicitude, tal como o estado de necessidade ou a legítima defesa.
Nota-se, portanto, que dentro do complexo quadro que compõe a Teoria do Crime, existem determinadas hipóteses em que, apesar de objetivamente a conduta do agente se adequar ao tipo penal, não se verifica a prática de um delito. O ordenamento jurídico, considerado globalmente, permite que o agente labore tipicamente. Daí se falar na existência de descriminantes, ou seja, causas que transformam o fato em um indiferente penal[2].
Putativo, nos termos do Dicionário Aurélio, se define como o "que aparenta ser verdadeiro, legal e certo, sem o ser; suposto". Logo, quando se pensa em putatividade, no Direito Penal, deve-se ter em mente uma situação falsa, imaginária, que existe somente na ideia do agente.
Combinando os dois conceitos ora definidos, conclui-se que a descriminante putativa se configura, no caso concreto, quando o agente supõe, equivocadamente, agir amparado por uma excludente de ilicitude. O ordenamento jurídico, na verdade, não considera seu comportamento como lícito e, consequentemente, permitido.
O agente pode agir putativamente em qualquer uma das hipóteses de justificação. Assim, considerando as causas justificantes previstas no art. 23 do Código Penal, ter-se-ia o estado de necessidade putativo, a legítima defesa putativa, o exercício regular de um direito putativo e o estrito cumprimento do dever legal putativo, dependendo da hipótese sobre a qual recaía o erro do agente.
Pode-se afirmar, diante do exposto, que o agente que se comporta sobre a égide de um descriminante putativa encontra-se, na verdade, em erro. Portanto, o ordenamento jurídico nacional, positivando postulados da Teoria do Crime, confere a essas situações um tratamento diferenciado, peculiar, que agora se passa a estudar.
2 - Legítima Defesa Putativa
Por razões didáticas, o estudo de todas as hipóteses de descriminantes putativas dar-se-á através de exemplos:
Ex: Na pequena cidade de Goiabal, Maria vinha mantendo uma relação duradoura com o vizinho Robério. Alguns meses após o inicio desse relacionamento, Vivaldo, marido de Maria, conhecido nas redondezas como homem violento e de personalidade agressiva, toma conhecimento da traição enquanto viajava a trabalho a Milharal, cidade vizinha. Vivaldo somente chega em casa pelas altas horas da madrugada, chamando aos berros o nome de sua mulher. Quando Maria chega, ele diz, furioso, que aquela seria a primeira e única vez em que ela o trairia. Coloca, então, as mãos em direção à sua cintura. Nesse momento, Maria, imaginando que o marido sacaria o revólver para matá-la, rapidamente agarra a faca que estava sobre a pia e desfere uma punhalada mortal na jugular de Vivaldo. Posteriormente, descobre-se que, na verdade, Vivaldo estava retirando da cintura papéis referentes ao pedido de separação judicial, que lhes haviam sido entregues pelo advogado que consultara em Milharal, razão pela qual, inclusive, chegara em casa tão tarde.
Observe-se que, no exemplo transcrito, não existe situação de agressão injusta atual ou iminente que justificasse a conduta de Maria. Em outras palavras, a mesma não agiu amparada pela excludente de ilicitude da legítima defesa.
Contudo, o Código Penal Brasileiro, em seu art. 20, §1°, dispõe ser isento de pena aquele que, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. No exemplo em análise, tem-se que as peculiaridades que cercavam a ocasião são suficientes para, tendo como parâmetro um homem médio, justificar a conduta de Maria. Logo, tem-se que a mesma não comete o crime de homicídio.
3 - Estado de Necessidade Putativo
Ex: Quatro amigos, Paulo, Carlos, Otávio e Alberto curtem férias nos Estados Unidos, apesar de nenhum dos mesmos deter qualquer conhecimento sobre o idioma. Um dia, quando estavam no restaurante do hotel, escutam o alarme de incêndio e veem uma nuvem de fumaça se aproximando. Desesperado, Otávio empurra seu amigo Alberto, que estava diante da janela, e pula tentando salvar-se. Ao cair, Alberto sofre lesões corporais leves na perna e braço esquerdos. Posteriormente, os quatro amigos vêm a descobrir que aquilo não passava de um treinamento contra incêndios, que não havia fogo algum. E que, inclusive, a direção do hotel havia mandado avisos escritos a todos os quartos. Avisos esses que forem recebidos por todos os amigos, que somente não sabiam do evento porque não compreendem o idioma.
Percebe-se, no caso, que não havia qualquer perigo atual que justificasse o sacrifico de um bem jurídico menor (a integridade física de Alberto) para salvaguardar o bem jurídico de maior valor (a vida de Otávio). Tal situação ameaçadora existia apenas na mente de Otávio.
Entretanto, o comportamento de Otávio será considerado como isento de pena, vez que as situações fáticas que cercavam o exemplo, tais como o desconhecimento da língua, a fumaça e o alarme, são suficientes para que um agente médio se considere em estado de necessidade.
4 - Exercício Regular de um Direito Putativo
Ex: Caio estaciona seu veículo Uno, cor prata, na porta clínica médica em que iria se consultar, no centro da grande cidade de Megalópole. Duas horas depois, Caio retorna, e se depara com Hugo, que naquele momento abria a porta de seu veículo. Buscando evitar que fosse esbulhado em sua posse, Caio agride Hugo pelas costas, através de dois fortes socos. Com a força dos golpes, Hugo acaba caindo e sofrendo fraturas em duas costelas. Logo após tais fatos, Caio é alertado pelo porteiro do prédio vizinho que seu carro havia sido rebocado pelos fiscais da Prefeitura, em razão da ausência de talão de estacionamento rotativo em veículo estacionado na região central. E, na verdade, aquele veículo Luno, cor prata, parado, naquele momento, em frente ao consultório, pertencia, deveras, a Hugo. Em razão da agressão sofrida, Hugo, bailarino, permanece afastado de suas funções por 31 dias.
O exemplo acima constitui uma hipótese induvidosa de exercício regular de um direito putativo. O Código Civil Brasileiro confere ao cidadão o direito de defender sua posse contra turbações (art. 1210, §1°). Ao verificar que Hugo entrava naquele que supunha ser automóvel de sua propriedade, Caio imaginou que sua conduta estaria amparada pela causa justificante do exercício regular de um direito. Logo, verificada a incidência de uma descriminante putativa, tem-se que o agente não comete o crime de lesão corporal grave.
5 - Estrito Cumprimento de Dever Legal Putativo.
Ex: Jonas, policial militar, escuta gritos apavorados vindos de dentro de uma casa, já no período de descanso noturno, em um bairro conhecido na cidade pela grande incidência de assaltos em residências. Imaginando-se tratar de um assalto, Jonas pula o muro e invade o domicílio. Entretanto, em lá chegando, o policial descobre que se tratava apenas de duas amigas assistindo sozinhas a um filme de terror.
Jonas não comete o delito de violação de domicílio. Afinal, o mesmo, na condição de policial, possui o dever legal de agir no sentido de impedir práticas criminosas. Tendo imaginado, no caso, em virtude dos gritos que ecoavam em um lugar ermo, conhecido pela alta incidência de assaltos em residências, estar diante de um crime patrimonial, Jonas age em estrito cumprimento de um dever legal putativo.
6 - As Descriminantes Putativas na Teoria do Crime
O CP, ao versar sobre as descriminantes putativas, utiliza a expressão "é isento de pena", como forma de estabelecer que não comete crime o agente que age naquelas situações. Entretanto, considerando que a descriminante putativa torna a conduta do agente um indiferente penal, importante saber como essaexpressão utilizada pela lei se encaixa dentro da Teoria do Crime. Em outras palavras, qual dos elementos do crime se considera excluído quando o agente age em erro sobre uma causa excludente de ilicitude: a tipicidade, a ilicitude ou a culpabilidade?
Para os adeptos da Teoria Extremada do Dolo, qualquer erro que recaia sobre uma causa de justificação configura um erro de proibição, por faltar-lhe potencial consciência da ilicitude de sua conduta. Logo, tratar-se-ia de uma hipótese excludente da culpabilidade.
Não existem hoje grandes defensores dessa teoria no Brasil, mormente após a adesão do eminente autor Assis Toledo[3] à Teoria Limitada da Culpabilidade, que será exposta a seguir.
A Teoria Limitada da Culpabilidade, amplamente majoritária, estabelece que o erro do agente pode recair tanto sobre a situação fática quanto sobre os limites ou a própria existência de uma causa de justificação.
Caso o agente erre sobre uma situação fática, a hipótese será de exclusão do dolo. Para chegar a essa conclusão, a teoria sugere que tipicidade e ilicitude sejam entendidos como um só ente. Há uma norma que proíbe a conduta (tipicidade), e outra, excepcional, que a permite (ilicitude). Da união desses dois elementos surge uma outra figura, chamada injusto penal. Quando o agente tem plena consciência em relação aos elementos objetivos do tipo, mas erra sobre o contexto fático que lhe permitiria agir amparado sobre uma excludente de ilicitude, não se pode falar que o mesmo agiu dolosamente. Afinal, para que o injusto doloso se configura, necessário é que exista consciência e vontade em relação aos elementos do tipo penal, bem como consciência e vontade de infringir o ordenamento jurídico.
Em suma, para que o injusto se configure, o agente tem de agir dolosamente no sentido de lesar o ordenamento jurídico. O agente precisa saber que sua conduta não é permitida, e ainda assim desejar executar seu plano finalístico. Destarte, o erro sobre situação fática, excluindo o dolo, afasta consequentemente a tipicidade da conduta, pelo que a doutrina a ele se refere como erro de tipo permissivo.
Por outro lado, se o erro do agente recair sobre os limites ou a existência de uma causa de justificação, o erro passa a ser, agora, o de proibição. Explicaremos essa hipótese através de um exemplo.
Ex: Josiel é lavrador na minúscula cidade de Pequelândia. Na localidade, prevalece o coronelismo, com séculos de submissão do poder judiciário aos interesses dos grandes proprietários de terra. Inclusive, existe na cidade uma certeza quanto ao direito do marido eventualmente matar a mulher em caso de traição. Afinal, foram seis os poderosos julgados por esse crime ao longo dos anos, tendo todos sido absolvidos. Quando Josiel flagra sua esposa na cama com um amante, o mesmo não tem dúvidas: dispara contra a mulher, matando-a. Logo após, dirige-se à Delegacia e se apresenta espontaneamente à autoridade policial, contando o que acontecera e dizendo que sabia estar agindo em legítima defesa da honra.
Note-se que, no exemplo acima, não existe qualquer dúvida ou engano com relação à situação fática. Houve a traição. O adultério estava configurado. Logo, o erro do agente não recai sobre os fatos, mas sim, sobre a existência de uma causa justificante, a legítima defesa da honra.
Ao entender estar amparado por uma causa de justificação, inexiste para o agente potencial consciência da ilicitude de sua conduta, motivo pelo qual o crime será excluído pela ausência de culpabilidade. Inclusive o erro, nesse caso, é considerado como uma hipótese de erro de proibição.
Ressalte-se que a Exposição de Motivos do Código Penal admite expressamente que o ordenamento jurídico nacional adota a Teoria Limitada da Culpabilidade.
Sumarizando todo o exposto, tem-se que:
- erro sobre situação fática: afasta-se a tipicidade.
- erro sobre a existência ou os limites da causa justificante: afasta-se a culpabilidade.
7 - Diminuição de Pena
Não é qualquer erro sobre causa excludente de ilicitude que terá o condão de isentar o agente de pena. Caso o erro não seja plenamente justificável pelas circunstâncias, deverá o agente ser punido por crime culposo, se houver previsão da figura culposa.
Assim, em suma:
- erro plenamente justificável pelas circunstâncias (invencível ou escusável): o agente não responde criminalmente, seja a título doloso ou culposo. - erro não justificável plenamente pelas circunstâncias (vencível ou inescusável): delito culposo, se houver previsão.
[1] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal, Parte Geral. São Paulo: Ed. Saraiva. 2006. Pg. 269.
[2] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal, Parte Geral. Rio de Janeiro: Ed. Impetus, 2006. Pg. 324.
[3] TOLEDO, Francisco Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. São Paulo: Ed. Saraiva. 1990. Pg. 274.
Entenda a Ação Penal
1 - Ação Penal
1.1 - Introdução
A vingança privada constituiu o principal instrumento de composição de conflitos dos povos antigos. Antes de existir um Estado organizado, com o monopólio da jurisdição, o poder punitivo se encontrava difundido entre os particulares, que exerciam a justiça com as próprias mãos. Não havia um poder que centralizasse o direito/dever de punir.
O ofensor não era o único ser punido. Sua família, seus amigos, outros membros de seu clã, enfim, todas as pessoas de seu círculo de convivência poderiam acabar sendo alvo da vingança privada. Dessa forma, uma desavença pessoal poderia acabar se tornando uma verdadeira guerra tribal. Não havia limites para a vingança privada.
Em um segundo momento, a vingança privada passou a atingir apenas o infrator, na proporção da conduta por ele perpetrada. O indivíduo que furtava, por exemplo, poderia ter suas mãos decepadas. A pena para o assassinato era a morte. Em virtude disso, diz-se que o Direito Penal da época se caracterizava pelo bordão "olho por olho, dente por dente".
Não é sequer necessário dizer que essa espécie de punição foi sendo gradualmente abolida em virtude dos gravames que provocava, como a redução da população adulta (o que era péssimo em regiões suscetíveis a guerras) e o aumento de pessoas com alguma deficiência física.
Com o surgimento do Estado, a situação mudou. O Estado centralizou o poder de punir, retirando-o das mãos da população. Em compensação, obrigou-se a fornecer segurança ao povo e a punir os que infringissem a lei, acabando com a antiga vingança privada.
Assim, o homem trocou o direito de se vingar pessoalmente pelo direito de ação. O direito de ação pode ser definido como o direito subjetivo público do indivíduo de exigir do Estado a prestação jurisdicional. Jurisdição essa que pode ser conceituada como a solução definitiva de conflitos de interesses mediante a aplicação da lei ao caso concreto.
O exercício do direito de ação, que implica na prestação jurisdicional do Estado, se dá através do processo, que é o instrumento moderno de resolução de conflitos de interesses.
O direito de ação penal, de acordo com a obra do mestre Cezar Roberto Bittencourt, "consiste na faculdade de exigir a intervenção do poder jurisdicional para que se investigue a procedência da pretensão punitiva do Estado-Administração, nos casos concretos".
Existem dois importantes binômios que gravitam em torno da ideia de ação penal.
O primeiro binômio que pode ser apontado tem relação com o poder de punir do Estado. De fato, o Estado é o responsável por processar e punir aqueles que atentam contra sua ordem. Todavia, tal poder não constitui um mero direito de punir. Trata-se de um poder dever! Inclusive, essa é a base do contrato social, filosoficamente um dos pilares do Estado moderno. Ao passo que o cidadão transfere ao Estado o poder de punir, esse se obriga a resolver os conflitos de interesses. Logo, trata-se de uma obrigação, de um poder dever de punir do Estado.
O segundo binômio que pode ser observado existe entre o direito/dever do Estado de punir o cidadão e os direitos assegurados pela lei ao mesmo cidadão. Para garantir o equilíbrio entre esses interesses conflitantes

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