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Alain Badiou Pequeno manual de inestética Tradução Marina Appenzeller Sistema Alexandria AL: 1099120 Tombo:1737497 11111111111111I11111111111111111111111111111I r--":'<t~"'''Ql •• _~~.~~ I: '"'CC:P J ,; v ....., .. ",. ••••• f""!, ••••• ,I '''I'I~aode "'!hi'r"pi''1t'''.' .lI\ ''', U,l.illv,vVCl;:>It,....•._, .•,.... ".~.••~1l'•••...:.:_ .•;~~.,..,,7'" Título original: Petitmanueld'inesthétique Copyright© Éditions du Seuil, Paris, outubro de 1998 © EstaçãoLiberdade,2002,para estatradução SUMÁRIO Revisão Composição Assistênciaeditorial Capa Ilustraçãoda capa Traduçãocomplementar Marcelo Rondinelli e Tereza Lourenço Pedro Barros I EstaçãoLiberdade Flávia Moino Isabel Carballo FernandLéger.LesDisquesdansIa ville. Óleo si tela, 130x 160em, 1920. Centre Pompidou-MNAM-CCI, Paris. © Documentaçãofotográficado MNAM/CCI Angel Bojadsen 1.Arte- Filosofia2.Críticaliterária3.Estética I. Título. DadosInternacionaisde CatalogaçãonaPublicação(CIP) (CâmaraBrasileirado Livro,SP,Brasil) Titulooriginal:Petitmanueld'inesthétique Bibliografia. ISBN85-7448-069-X Badiou,Alain,1937- Pequenomanualde inestética/ AlainBadiou; traduçãoMarinaAppenzeller.- SãoPaulo:Estação Liberdade,2002. 11 29 43 53 65 79 97 103 117 163 189 1 Artee filosofia 2 O queé umpoema,e o quepensadelea filosofia 3 Um filósofofrancêsrespondeaumpoetapolonês 4 Umatarefafilosófica:sercontemporâneodePessoa 5 Umadialéticapoética:LabidbenRabi'ae Mallarmé 6 A dançacomometáforado pensamento 7 Tesessobreo teatro 8 Os falsosmovimentosdo cinema 9 Ser,existência,pensamento:prosae conceito 10 Filosofiado fauno Anexo CDD-701 Índicesparacatálogosistemático: 1.Artee filosofia 701 2.Filosofiae arte 701 02-6136 ESTE LIVRO, PUBLICADO NO ÂMBITO DO PROGRAMA DE PARTICIPAÇÂO À PUBLICAÇÃO, CONTOU COM o APOIO DO MINISTÉIUO fRANCÊS DAS RELAç6ES EXTERIORES. J AÃ.g S Todosos direitosreservadosà EditoraEstaçãoLiberdadeLtela. RuaDonaElisa,116• 01155-030·SãoPaulo-SP Te!.:(11)36612881 Fax:(11)38254239 e-mail:editora@estacaoliberdaele.com.br http://www.estacaoliberelade.com.br )C~ Monique Realce Monique Realce Monique Realce Monique Realce Monique Realce Monique Realce Por "inestética"entendoumarelaçãoda filosofiacom a arte,que,colocandoqueaarteé,por si mesma,produtora de verdades,não pretendede maneiraalgumatorná-Ia, paraa filosofia,umobjetoseu.Contraa especulaçãoesté- tica,a inestéticadescreveos efeitosestritamenteintrafilo- sóficosproduzidospelaexistênciaindependentedealgumas obrasde arte. Alain Eadiou,abril de1998 1 ARTE E FILOSOFIA Laçoquedesdesempreé alteradopor um sintoma,o de uma oscilação,de umbatimento. Nasorigens,existeo repúdiosustentadopor Platãoacercado poema,do teatro,da música.De tudoisso,deve-sedizerque o fundadorda filosofia,evidentementerefinadoconhecedorde to- das as artesde seu tempo,só dá importância,na República,à músicamilitare ao cantopatriótico. Na outraextremidade,encontra-seumadevoçãopiedosaem relaçãoàarte,umajoelhar-secontritodo conceito,pensadocomo niilismotécnico,diantedapalavrapoéticaqueoferecesozinhao mundoaoAbertolatentede seuprópriodesamparo. Mas o sofistaProtágorasjá designava,afinal,o aprendizado artísticocomoa chaveda educação.Haviaumaaliançade Protá- gorase deSimônides,o poetacujaimposturao SócratesdePlatão tentafrustraresujeitaraseusprópriosfinsa intensidadepensável. Vem-meà menteumaimagem,umamatrizanalógicado sen- tido: filosofiae artesão historicamenteacopladastal qual são, segundoLacan,o MestreeaHistérica.Sabe-sequeahistéricavem dizeraomestre:"Averdadefalaporminhaboca,estouaqui,e tu, quesabes,diga-mequemsou."E adivinha-seque,por maiorque sejaa sutilezadoutada respostado mestre,a histéricalhe daráa entenderqueaindanãoé isso,queseuaqui escapaà apreensão, 11 PEQUENO MANUAL DE INESTÉTICA que se deveretomartudoe redobraresforçosparalhe agradar. Nessemomento,elarumaparao mestreetoma-sesuacortesã.E,da mesmamaneira,a artejáestásempreaqui,dirigindoaopensador a questãomudae cintilantede suaidentidade,enquanto,por sua constanteinvenção,porsuametamorfose,eladeclara-sedecepcio- nadacomtudoo queo filósofoenunciaa seurespeito. O mestredahistéricapraticamentenãotemoutraescolha,caso demonstremávontadeà servidãoamorosa,à idolatriaquedeve pagarcomumaproduçãode saberestafantee sempredecepcio- nante,anãoserlhepassaro cetro.E,damesmamaneira,o mestre filósofopermanecedividido,no quediz respeitoàarte,entreido- latriae censura.Ou diráaosjovens,seusdiscípulos,queo cerne dequalquereducaçãovirildarazãoé manter-seafastadodaCria- tura,ou acabarápor concederque só ela,essebrilho opacodo qualsó podemossercativos,nosensinesobreo viéspor ondea verdadecomandaqueo sabersejaproduzido. E, como o que nos solicitaé o entrelaçamentoda artee da filosofia,pareceque,formalmente,esseentrelaçamentoé pensado sobdoisesquemas. Chamareiao primeirode esquemadidático.Suateseé quea arteé incapazde verdadeou que todaverdadelhe é exterior. Decertoreconhecer-se-áquea arteapresenta-se(comoa histérica) soba aparênciadaverdadeefetiva,daverdadeimediata,ou nua. E queessanudezexpõeaartecomopuroencantodoverdadeiro. Maisprecisamente:queaarteéaaparênciadeumaverdadeinfun- dada,nãoargumentada,deumaverdadeesgotadaemseuestar-aí. Porém- eesseé todoo sentidodo processoplatõnico- rejeitar- se-áessapretensão,essasedução.O cernedapolêmicaplatônica relativaà mímesisdesignaa artenão tantocomo imitaçãodas coisas,mascomoimitaçãodo efeitode verdade.E essaimitação extraiseupoderde seucaráterimediato.Platãosustentaráentão que ser cativode uma imagemimediatada verdadedesviado desvio.Sea verdadepodeexistircomoencanto,entãoperdere- mosaforçado labordialético,dalentaargumentaçãoqueprepara 12 ARTE E FILOSOFIA o retornoaoPrincípio.Exige-se,portanto,quesedenuncieapretensa verdadeimediatadaartecomoumafalsaverdade,comoaaparên- ciaprópriado efeitodeverdade.E é estaa definiçãodaartee só dela:sero encantodeumaaparênciadeverdade. Dissoresultaquea artedevesercondenadaou tratadade ma- neirapuramenteinstrumental.Estritamentevigiada,a artepode ser o que proporcionaa umaverdadeprescritadefora a força transitóriada aparência,ou do encanto.A arteaceitáveldeveser submetidaàvigilânciafilosóficadasverdades.É umadidáticasen- sível cujo propósitonão poderiaserabandonadoà imanência. A normadaartedevesera educação.E a normadaeducaçãoé a filosofia.É o primeiroentrelaçamentodenossostrêstermos. Nessaperspectiva,o essencialé o controleda arte.Ora, esse controleé possível.Por quê?Porque,sea verdadedequea arteé capazlheé exterior,seaarteéumadidáticasensível,o resultado,e esteé umpontocapital,é queaessência"boa"daarteviránãona obradearte,masemseusefeitospúblicos.Rousseauescreve:"Os espetáculossãofeitosparao povo,esomenteporseusefeitossobre eleé queserápossíveldeterminarsuasqualidadesabsolutas." No esquemadidático,o absolutodaarteestá,portanto,sob o controledosefeitospúblicosda aparência,elesprópriosnorma- tizadospor umaverdadeextrínseca. A essainjunçãoeducativaopõe-seabsolutamenteo quecha- mareide esquemaromântico.Suateseé de que unicamentea arteestáaptaà verdade.E que,nessesentido,elarealizao que a filosofiapodeapenasindicar.Ou aindao queLacoue-Labarthe eNancychamaramdeabsolutoliterário.É patentequeessecorpo realé um corpoglorioso.A filosofiapode muitobemsero Pai afastadoe impenetrável.A arteé o Filho sofredorque salvae reergue.O gênioé crucificaçãoe ressurreição.Nessesentido,é a própria arteque educa,porque ensinao poder de infinidade contidonacoesãosupliciadadeumaforma.A arteentrega-nosa esterilidadesubjetivadoconceito.A arteéo absolutocomosujeito, é a encarnação. 13 / PEQUENO MANUAL DE INESTÉTICA Entreo banimentodidáticoeaglorificaçãoromântica(um"en- tre" que não é essencialmentetemporal),existe,no entanto, ao queparece,umaerade paz relativaentreaartee a filosofia. A questãodaartenãoatormentaDescartes,ouLeibniz,ouEspinosa. Aparentemente,essesgrandesclássicosnãotiveramdeoptarentre a rudezade um controlee o êxtasedeumafidelidade. Aristótelesjánãotinhaassinadoumaespéciedetratadodepaz entrea artee a filosofia?Sim,é maisdo queevidentequeexiste umterceiroesquema,o esquemaclássico,do qualdiremos,antes de maisnada,queele des-histerizaa arte. O dispositivoclássico,comoconstruídopor Aristóteles,cabe emduasteses: a)A arte- comosustentao esquemadidático- é incapazda verdade,suaessênciaé mimética,suaordem,a da aparência. b) Issonãoégrave(aocontráriodo queacreditaPlatão).Não égrave,porqueo destinodaartenãoé nemdelongeaverdade. É bemcertoquea artenãoé verdade,mastambémnãopreten- deser,sendo,portanto,inocente.Aristótelesclassificaaartecomo algomuitodiferentedoconhecimento,libertando-a,assim,dasus- peitaplatônica.Essealgodiferente,que eleàsvezeschamade catharsis,refere-seà deposiçãodaspaixõesnumatransferência sobrea aparência.A artetemumafunçãoterapêutica,e de ma- neiraalgumacognitivaou reveladora.Elanãodependedo teóri- co,masdo ético(no sentidomaisamplodo termo).Dissoresulta quea normada arteé suautilidadeno tratamentodasafecções da alma. Dasduastesesdo esquemaclássico,inferem-sede imediatoas principaisregrasrelacionadasà arte. Emprimeirolugar,o critériodaarteéagradar.O "agradar"não é de formaalgumaumaregrade opinião,umaregrada maioria. A artedeveagradar,porqueo "agradar"assinalaa efetividadeda catharsis,a embreagemrealdaterapêuticaartísticadaspaixões. Emseguida,o nomedaquiloa queo "agradar"remetenãoé a verdade.O "agradar"prende-seapenasàquiloque,deumaverdade, 14 ARTE E FILOSOFIA retéma disposiçãode LImaidentificação.A "semelhança"com o realsó é exigidanamedidaemqueenvolveo espectadordaarte no "agradar",ou seja,emumaidentificação,a qualorganizauma transferênciae, portanto,umadeposiçãodaspaixões.Essefarra- po deverdadeébemmaisoqueumaverdadecoageno imaginá- rio. Essa"imaginarização"deumaverdade,deslastreadadequalquer realidade,é chamadapelosclássicosde "verossimilhança". Finalmente,a pazentreartee filosofiarepousapor inteirona delimitaçãoentreverdadee verossimilhança.E é por issoque a máximaclássicapor excelênciaé: "o verdadeiropode às vezes nãoserverossímil",a qualenunciaa delimitação,reservando,ao lado da arte,os direitosda filosofia.Filosofiaque,como se vê, outorga-seapossibilidadedenãoserverossímil.Definiçãoclássica da filosofia:a inverossímilverdade. Qual o preçopagopor essapaz?A arteé decertoinocente, maspor ser inocentede todaverdade.Ou seja,elaé registrada no imaginário.Comtodorigor,no esquemaclássico,aartenãoé um pensamento.Estáinteiraem seu ato, ou em suaoperação pública.O "agradar"dispõea artecomoumserviço.Poder-se-ia dizero seguinte:navisãoclássica,a arteé serviçopúblico.É de fatoassim,aliás,queo Estadoaentende,tantono avassalamento daartee dosartistaspeloabsolutismoquantonachicanamoderna doscréditos.O Estado(salvotalvezo Estadosocialista,maisdidá- tico) é, quantoao entrelaçamentoque nos importa,essencial- menteclássico. Recapitulemos. Didatismo,romantismo,classicismosãoosesquemaspossíveis doentrelaçamentoentrearteefilosofia,o terceirotermocorrespon- dendoà educaçãodossujeitos,particularmentedajuventude.No didatismo,a filosofiaentrelaça-secom a artena modalidadede limavigilânciaeducativadeseudestinoextrínsecoaoverdadeiro. No romantismo,aarterealizanafinitudetodaaeducaçãosubjeti- V:l daquala infinidadefilosóficadaIdéiaécapaz.No classicismo, :1 artecaptao desejoe educasuatransferênciapelapropostade 15 PEQUENO MANUAL DE INESTÉTICA umaaparênciade seu objeto.Aqui, a filosofiasó é convocada enquantoestética- dásuaopiniãosobreasregrasdo "agradar". A meuver,o quecaracterizao finaldo séculoxxéqueelenão introduziuum novo esquemaemlargaescala.Emborase afirme que é o séculodos "fins",das rupturas,dascatástrofes,parao entrelaçamentoquenosdizrespeito,vejo-oantescomoumséculo conservadore eclético. Quaissão,noséculoxx,asdisposiçõesplenasdo pensamento? As singularidadessolidamentedestacáveis?Vejo apenastrês:o marxismo,a psicanálisee a hermenêuticaalemã. Ora, é claroque,em matériade pensamentoda arte,o mar- xismo é didático;a psicanálise,clássica;e a hermenêuticahei- deggeriana,romântica. Que o marxismosejadidaticistanãodeveserprovadoempri- meirolugarpelaevidênciadosucassesedasperseguiçõesdosEsta- dos socialistas.A provamaisseguraencontra-seno pensamento originale criativode Brecht.Paraele,existeumaverdadegerale extrínseca,uma verdadede carátercientífico.Essaverdadeé o materialismodialético,e Brechtjamaisduvidoude queeleconsti- tuíao alicercedanovaracionalidade.Essaverdade,emsuaessên- cia,é filosófica,e o "filósofo"é o personagem-guiados diálogos didáticosde Brecht;é elequeé encarregadodavigilânciadaarte pelasuposiçãolatentedaverdadedialética.Noqueporsinal,Brecht é stalinista,se compreendermospor stalinismo,comose deve,a fusãodapolíticae dafilosofiamaterialistadialéticasoba jurisdição daúltima.Ou digamosqueelepraticaumplatonismostalinizado. O objetivosupremodeBrechteracriaruma"sociedadedosamigos dadialética",eo teatroera,sobmuitosaspectos,o caminhoparatal sociedade.O distanciamentoéumprotocolodevigilânciafilosófica "emato"dosfinseducativosdo teatro.A aparênciadevesercolo- cadaà distânciadesi mesma,a fimdequesejamostrada,no pró- priodistanciamento,a objetividadeextrínsecado verdadeiro. 16 ARTE E FILOSOFIA No fundo,agrandezadeBrechté terbuscadocomobstinação asregrasimanentesdeumaarteplatônica(didática),emvezdese contentar,comofaz Platão,emclassificaras artesexistentesem boase ruins.Seuteatro"nãoaristotélico"(o quequerdizernão clássicoe, finalmente,platônico)é umainvençãoartísticade pri- meiragrandezano elementoreflexivode umasubordinaçãoda arte.Brechttornouteatralmenteativasasdisposiçõesantiteatrais de Platão.Fez issocentrandoa artenasformasde subjetivação possíveisdaverdadeexterior. Daí, aliás,a importànciada dimensãoépica,poiso épicoé o queexibe,no intervaloda representação,a coragemdaverdade. Para Brecht,a artenão produz nenhumaverdade,masé uma elucidação,supostamenteverdadeira,dascondiçõesdesuacora- gem.A arteé,sobvigilância,umaterapêuticadacovardia.Nãoda covardiaemgeral,masdacovardiadianteda verdade.É eviden- tementepor issoquea figurade Galileué centrale tambémpor issoqueessapeçaéaobra-primaatormentadadeBrecht,peçana qualgirasobresi mesmoo paradoxode umaepopéiainteriorda exterioridadedo verdadeiro. Que a hermenêuticaheideggerianaaindasejaromànticaé, a meuver,evidente.Aparentemente,elaexpõeumentrelaçamento indiscerníveldo dizerdo poetaedopensardo pensador.A vanta- gemcabecontudoao poeta,pois o pensadornão é outracoisa senãoo anúncioda reviravolta,a promessado adventoinespe- rado dos deusesno augeda aflição,a elucidaçãoretroativada dimensãohistóricado ser.Já o poetadesempenha,no quelhediz respeito,no cerneda língua,a funçãode guardiãoobliteradodo Aberto. Pode-sedizerque,no reversodo filósofo-artistadeNietzsche, Heideggerexibea figurado poeta-pensador.Maso quenos im- porta,ecaracterizao esquemaromântico,équeéa mesmaverda- dequecircula.O retraimentodoservemà mentenoconjuntamente do poemae de suainterpretação.A interpretaçãosó faz entregar ()poemaaotremordafinitude,emqueo pensamentoseexercita 17 PEQUENO MANUAL DE INESTÉTICA em suportarO retraimentodo sercomoesclarecido.Pensadore poeta,emseuapoiorecíproco,encarnamnapalavraaaberturade suaclausura.Nissoo poemapermanecedefatoinigualável. A psicanáliseé aristotélica,absolutamenteclássica.Para se convencerdisso,bastarelertantoos ensaiosde Freud sobrea pinturaquantoos de Lacansobreo teatroou a poesia.Neles,a arteé pensadacomo aquilo que organizaapenaso objeto do desejo,o qual é insimbolizável,seja ele subtraídodo próprio augede umasimbolização.A obrafaz desvanecer,emseuapa- ratoformal,a cintilaçãoindizíveldo objetoperdido,pelo queela prendeasi, irresistivelmente,o olharou o ouvidodaquelequeaelaseexpõe.A obradearteencadeiaumatransferência,porque exibe,emumaconfiguraçãosingulare tortuosa,o encetamento do simbólicopelo real,a extimidadedo objeto,causado desejo, ao Outro, tesourodo simbólico.Daí seu efeitoúltimo perma- necerimaginário. Eu diriaentão:o séculoxx,queessencialmentenãomodificou asdoutrinasdo entrelaçamentoentreartee filosofia,nempor isso deixoude sentira saturaçãodessasdoutrinas.O didatismoestá saturadopelo exercíciohistóricoe estatalda artea serviçodo povo.O romantismoestásaturadopeloquehádepurapromessa, sempreligadaà suposiçãodo retornodos deusesno aparato heideggeriano.E o classicismoestásaturado pelaconsciênciade si que a demonstraçãocompletade uma teoriado desejolhe proporciona:daí,casonãosecedaàsmiragensdeuma"psicaná- liseaplicada",aconvicçãoruinosadequea relaçãodapsicanálise coma arteé sempreapenasumserviçoprestadoà própriapsica- nálise.Um serviçogratuitodaarte. Que ostrêsesquemasestejamsaturadostendea produzirhoje uma espéciede desenlaçamentodos termos,um desrelaciona- mentodesesperadoentrea artee a filosofia,bemcomoa queda purae simplesdo quecirculavaentreelas:o temaeducativo. As vanguardasdo século,do dadaísmoao situacionismo,não passaramde experiênciasde escoltada artecontemporânea,e 18 ARTE E FILOSOFIA nãoadesignaçãoadequadadasoperaçõesdessaarte.Tiverammais um papelde representaçãodo quede entrelaçamento.É que as vanguardasforamapenasa buscadesesperadae instávelde um esquemamediador,deumesquemadidático-romântico.Foramdidá- ticaspor seudesejode darum fim à arte,peladenúnciade seu caráteralienadoe inautêntico.Românticastambém,pelaconvicção de quea artedeveriarenascerde imediatocomoabsolutez,como consciênciaintegraldesuasprópriasoperações,comoverdadeime- diatamentelegívelde si mesma.Consideradascomopropostade umesquemadidático-romântico,ou comoabsolutezdadestruição criadora,asvanguardaseram,antesdemaisnada,anticlássicas. Seulimitefoi quenãopuderamselaraliança,emcaráterdura- douro,nemcomasformascontemporâneasdo esquemadidático nemcomasdoesquemaromântico.Empiricamente,o comunismo de Bretone dossurrealistaspermaneceualegórico,assimcomoo fascismode Marinettie dosfuturistas.As vanguardasnão conse- guiramser,comoeraseu destinoconsciente,a direçãode uma frenteunidaanticlássica.A didáticarevolucionáriacondenou-as pelo quetinhamderomântico:o esquerdismodadestruiçãototal e da consciênciade si moldadaexnihilo,a incapacidadeparaa açãoampla,adivisãoemgrupúsculos.O romantismohermenêutico condenou-aspeloquetinhamdedidático:aafinidaderevolucioná- ria, o intelectualismo,o desprezopelo Estado.E sobretudopor- queo didatismodasvanguardasseassinalavaporumvoluntarismo estético.Ora,sabe-seque,paraHeidegger,avontadeéaderradeira representaçãosubjetivado niilismocontemporâneo. Hoje,asvanguardasdesapareceram.A situaçãoglobalé final- menteaseguinte:saturaçãodostrêsesquemasherdados,encerra- mentodequalquerefeitodoúnicoesquematentadonesseséculo, queerade fatoum esquemasintético,o didático-romantismo. A teseemtornodaqualestepequenolivronãopassade uma sC~riedevariaçõesseráentão:diantedeumasituaçãodesaturação 19 PEQUENO MANUAL DE INESTÉTICA e isolamento,deve-setentarproporumnovoesquema,umquarto modode entrelaçamentoentrefilosofiae arte. O métodode investigaçãoseráde início negativo:o que os trêsesquemasherdados,didático,românticoe clássico,têmem comum,e que seriao casohoje de se desfazer?Esse"comum" dos trêsesquemasdiz respeito,creio,à relaçãoda artecom a verdade. As categoriasdessarelaçãosãoa imanênciae a singularidade. "Imanência"remeteàseguintequestão:seráqueaverdadeé real- menteinteriorao efeitoartísticodasobras?Ou a obradeartenão passado instrumentode umaverdadeexterior?"Singularidade" remetea umaoutraquestão:a verdadetestemunhadapelaarteé absolutamenteprópriaaela?Ou podecircularemoutrosregistros do pensamentooperante? Ora,o queseconstata?Que,no esquemaromântico,a relação daverdadecoma arteé defatoimanente(aarteexpõea descida finitadaIdéia),masnãosingular(poissetratadaverdade,e o pen- samentodo pensadornão se coadunacomnadaque diferedo queo dizerdo poetadesvela).Que,no didatismo,a relaçãoé cer- tamentesirtgular(sóa artepodeexporumaverdadesobaforma deaparência),masdemodoalgumimanente,pois emdefinitivo aposiçãodaverdadeéextrínseca.E que,finalmente,noclassicismo, trata-seapenasdo queumaverdadecoageno imaginário,soba formado verossímil. Nos esquemasherdados,a relaçãodasobrasartísticascoma verdadejamaisconsegueseraomesmotemposingulare imanente. Afirmar-se-á,portanto,essasimultaneidade.O quetambémse diz: a própria arteé um procedimentode verdade.Ou ainda:a identificaçãofilosóficada artedependeda categoriade verdade. A arteéumpensamentocujasobrassãoo real(enãoo efeito).E esse pensamento,ou asverdadesqueeleativa,sãoirredutíveisàsou- trasverdades,sejamelascientíficas,políticasou amorosas.O que tambémquer dizer que a arte, como pensamentosingular,é irredutívelà filosofia. 20 ARTE E FILOSOFIA Imanência:aarteé rigorosamentecoextensivaàsverdadesque prodigaliza. Singularidade:essasverdadesnãosãodadasemnenhumoutro lugara nãoserna arte. Nessavisãodascoisas,o queocorrecomo terceirotermodo entrelaçamento,a funçãoeducativadaarte?A arteeducasimples- menteporqueproduzverdadese porque"educação"jamaisquis dizernadaalém(anãosernasmontagensopressivasou perverti- das) do seguinte:dispor os conhecimentosde tal maneiraque algumaverdadepossaseestabelecer. A coisapelaqualaarteeducaésimplesmenteasuaexistência. Trata-seapenasde encontraressaexistência,o que quer dizer: pensarumpensamento. A filosofiadeve,a partirdeentão,no quediz respeitoà artee a todoprocedimentodeverdade,mostrá-Iacomotal.A filosofiaé de fatoa intermediáriadosencontroscomasverdades,a alcovi- teirado verdadeiro.E damesmamaneiraquea belezadeveestar namulherencontrada,masnãoé absolutamenteexigidadaalco- viteira,asverdadessãoartísticas,científicas,amorosasou políti- cas,e nãofilosóficas. O problemaconcentra-se,então,na singularidadedo pro- cedimentoartístico,no queautorizasuadiferenciaçãoirredutível por exemplocomrelaçãoà ciência,ou comà política. Deve-severque,sobsuasimplicidademanifesta,eudiriaquase sobsuaingenuidade,atesesegundoaqualaarteseriaumprocedi- mentodeverdadesuigeneris,imanentee singular,é narealidade umapropostafilosóficaabsolutamenteinovadora.A maioriadas conseqüênciasdessateseaindaestávelada,e ela obrigaa um consideráveltrabalhodereformulação.Vê-seumsintomaquando seconstataqueDeleuze,por exemplo,continuaaconduziraarte parao lado do sensívelcomotal (afetoe objetode percepção), emcontinuidadeparadoxalcomo motivohegelianodaartecomo "formasensíveldaIdéia".Eleseparaassimaartedafilosofia(desti- nadaapenasà invençãodosconceitos),segundoumamodalidade 21 PEQUENO MANUAL DE INESTÉTICA quedeixaaindade todoinaparenteo verdadeirodestinoda arte comopensamento.É que,por nãoconvocarnessecasoa catego- riadeverdade,nãoseconsegueestabelecero planodeimanência no qualprocedea diferenciaçãoentrearte,ciênciae filosofia. A principaldificuldadepareceater-se,a meuver,ao seguinte ponto:quandosetratadepensara artecomoproduçãoimanente de verdades,qualéa unidadepertinentedoqueédenominado "arte'?É a obrade artea singularidadedeumaobra?É o autoro criador?Ou aindaoutracoisa? A essênciadaquestãotoca,narealidade,no problemadarela- çãoentreinfinitoe finito.Umaverdadeéumamultiplicidadeinfi- nita.Não possoaquiprovaressepontomediantedemonstração, comojá fiz emoutraparte.Digamosquefoi o quebemviramos adeptosdo esquemaromânticoparaimediatamenteobliterarsua descobertano diagramaestéticodafinitude,do artistacomoCristo daIdéia.Ou,parasermaisconceitual:a infinidadedeumaverdade éaquilopeloqueelaselivradesuaidentidadepurae simplesaos conhecimentosestabelecidos. Ora,umaobrade arteé essencialmentefinita.É finitaem um triplosentido.Emprimeirolugar,elaexpõe-secomobjetividadefinita no espaçoe/ouno tempo.Emsegundo,é semprenormatizadapor umprincípiogregodefinalização:move-senaplenitudedeseupró-priolimite,indicaqueexibetodaaperfeiçãodaqualé capaz.Final- mente,e sobretudo,instruipor si mesmaa questãode seupróprio fim,é o procedimentoconvincentede suafinitude.É porque,além disso,(outrotraçoquea distinguedo infinitogenéricodo verda- deiro),elaé,emtodososseuspontos,insubstituível:umavez"aban- donada"aseuprópriofimimanente,permanececomoéparasempre, e qualquerretoqueou modificaçãolheé inessencial,ou destrutivo. Eu sustentariaatédebomgradoquea obradearteé defatoa únicacoisafinitaqueexiste.Que a arteé criaçãode finitude.Ou seja,é criaçãode um múltiplointrinsecamentefinito,queexpõe suaorganizaçãono e pelo recortefinitode suaapresentação,e apostaemsuadelimitação. 22 ARTE E FILOSOFIA Se sustentarmos,portanto,que a obraé verdade,no mesmo movimentoserianecessáriosustentarque ela descedo infinito- verdadeiroparaafinitude.Masessafiguradadescidadoinfinitopara o finitoéprecisamenteo núcleodo esquemaromântico,quepen- saa artecomoencarnação.É impressionanteverqueesseesque- maaindasubsisteemDeleuze,paraquema artemantémcomo infinitocaóticoumarelaçãomaisfieldo quequalqueroutra,pre- cisamenteporqueelao configurano finito. Não pareceque o desejode propor um esquemade entre- laçamentofilosofia/arte,quenãosejanemclássiconemdidático nemromântico,sejacompatívelcomamanutençãodaobracomo unidadepertinentedeexamedaartesobo signodasverdadesda qualelaé capaz. Tantomaisporqueexisteumadificuldadesuplementar:toda verdadeorigina-sedeumacontecimento.Tambémaquideixoessa asserçãono estadode axioma.Digamosqueé vãoimaginarque sepossainventaro quequerqueseja(etodaverdadeéinvenção) senadaacontecee se"nadatevelugaranãosero lugar".*Porque seríamos,então,remetidosaumaconcepção"genial",ou idealista, dainvenção.O problemacomquedevemoslidaréqueéimpossível de dizer da obra que ela é aomesmotempoumaverdadee o acontecimentoquegeraessaverdade.Sustenta-secommuitafre- qüênciaquea obrade artedeveserpensadamaiscomosingula- ridadedo acontecimentodo quecomoestrutura.Mastodafusão entreacontecimentoeverdadereconduzaumavisão"crística"da verdade,porqueentãoumaverdadenãopassadeauto-revelação relativaao acontecimentodelamesma. O caminhoaseguirparece-mecaberemumpequenonúmero de proposições. • Comoregrageral,umaobranãoé umacontecimento.É um feitoda arte,é aquilocomqueo procedimentoartísticoé tecido. No original:"rienn'aeu lieu[ocorreu]quele lieu[lugar]".A traduçãoprocurou mantero jogoelepalavras. 23 PEQUENO MANUAL DE INESTÉTICA • Uma obra tampoucoé umaverdade.Uma verdadeé um procedimentoartísticoiniciadopor umacontecimento.Essepro- cedimentosó é compostopor obras.Mas não se manifesta- comoinfinidade- emnenhuma.A obraé,portanto,a instância local,o pontodiferencialde umaverdade. • Vamoschamaressepontodiferencialdoprocedimentoartís- tico de seusujeito.Umaobraé sujeitodo procedimentoartístico considerado,ou ao qualessaobrapertence.Ou ainda:umaobra de arteé um ponto-sujeitodeumaverdadeartística. • Umaverdadenãotemnenhumoutroserquenão obras,é ummúltiplo(infinito)genéricodeobras.Masessasobrassomente tecemo ser de umaverdadeartísticasegundoo acasode suas ocorrênciassucessivas. • Pode-sedizertambém:umaobraé umainvestigaçãosituada sobrea verdadeque ela atualizalocalmenteou da qual é um fragmentofinito. • A obraestáassimsujeitaa um princípiode novidade.Pois uma investigaçãoé retroativamentevalidadacomoobra de arte realenquantoé umainvestigaçãoquenãotevelugar,um ponto- sujeitoinéditoda tramade umaverdade. • Asobrascompõemumaverdadenadimensãopós-aconteci- mento,que instituia imposiçãode uma configuraçãoartística. Umaverdadeé, finalmente,umaconfiguraçãoartística,iniciada porumacontecimento(umacontecimentoéemgeralumgrupode obras,um múltiplosingularde obras),e arriscadamenteexposta soba formade obrasquesãoseuspontos-sujeitos. A unidadepertinentedo pensamentoda artecomo verdade imanentee singularé,portanto,definitivamente,nãoa obra,nem o autor,masaconfiguraçãoartísticainiciadaporumarupturarela- tivaaoacontecimento(queemgeraltornaumaconfiguraçãoante- riorobsoleta).Essaconfiguração,queé ummúltiplogenérico,não temnemnomepróprio,nemcontornofinito,nemmesmototaliza- ção possívelsob um único predicado.Não é possívelesgotá-Ia, apenasdescrevê-Iaimperfeitamente.É umaverdadeartística,e 24 ARTE E FILOSOFIA todossabemque não existeverdadeda verdade.É designada, geralmente,por conceitosabstratos(representação,tonalidade, tragédia,etc.). oquesedeveentender,maisprecisamente,por"configuração artística"? Umaconfiguraçãonãoénemumaarte,nemumgênero,nem um período"objetivo"da históriade umaarte,nemmesmoum dispositivo"técnico".É umaseqüênciaidentificável,iniciadapor umacontecimento,compostadeumcomplexovirtualmenteinfi- nito de obras,que nos permitedizerque ela produz,na estrita imanênciaà arteque estáemquestão,umaverdadedessaarte, umaverdade-arte.A filosofiatrarávestígiosdaconfiguraçãopelo fatode queteráde mostraremquesentidoessaconfiguraçãose deixa apreenderpela categoriade verdade.Além disso, inver- samente,a montagemfilosóficada categoriade verdadeserá singularizadapelas configuraçõesartísticasdo tempo. Desse modo, é certoque na maioriadas vezesuma configuraçãoé pensávelna junçãodo processoefetivoda artee dasfilosofias que a apreendem. Citemos,por exemplo,a tragédiagrega,muitasvezesapreen- didacomoconfiguração,de Platãoou deAristótelesa Nietzsche. O acontecimentoiniciadortemo nome,"Ésquilo",masessenome, comoqualqueroutrorelativoaacontecimentosé,antes,o indício deumvaziocentralnasituaçãoanteriordapoesiacantada.Sabe- seque,comEurípides,a configuraçãoestásaturada.Maisdo que o sistematonal,dispositivodemasiadamenteestrutural,citemos na músicao estiloclássico,no sentidoempregadopor Charles Rosen,seqüênciaidentificávelentreHaydne Beethoven.Dir-se-á decertoque, de Cervantesa ]oyce, o romanceé um nome de configuraçãoparaa prosa. Observe-sequea saturaçãodeumaconfiguração(o romance narrativopróximode]oyce,o estiloclássicopróximodeBeethoven, 25 PEQUENO MANUAL DE INESTÉTICA etc.)nãosignificadeformaalgumaqueaconfiguraçãoéumamul- tiplicidadefinita.Porquenada,do interiordelaprópria,delimita-a ou expõeo princípiodeseufim.A raridadedosnomespróprios,a brevidadeda seqüênciasãodadosempíricossemconseqüência. Ademais,alémdosnomesprópriosretidoscomoilustraçõessignifi- cativasda configuração,ou pontos-sujeitos"estrepitosos"de sua trajetóriagenérica,semprehá,defato,umaquantidadevirtualmente infinitade pontos-sujeitosmenores,ignorados,redundantes,etc., quenempor issodeixamde fazerpartedaverdadeimanenteda qualo seré a configuração.Acontece,decerto,quea configuração nãodámaislugara obrasnitidamenteperceptíveis,ou a investiga- çõesdecisivassobreelaprópria.Ocorretambémqueumaconteci- mentoincalculávelfaçaparecerretrospectivamentea configuração comoobsoleta,à vistadasimposiçõesdeumanovaconfiguração. Mas,emtodososcasos,àdiferençadasobrasquelheconstituema matéria,umaverdade-configuraçãoé intrinsecamenteinfinita.O que claramentequerdizerqueela ignoratodomáximointerno,todo apogeu,todaperoração.É semprepossível,ademais,queelatorne aserapreendidanasépocasdeincerteza,ou rearticuladanadeno- minaçãodeumnovoacontecimento. Vistóqueo desprendimentoimagináveldeumaconfiguraçãose fez muitasvezesnos limitesda filosofia- porquea filosofiaestá sobacondiçãodaarteenquantoverdadesingulare,portanto,dis- postaemconfiguraçõesinfinitas-, nãosedevesobretudoconcluir quecabeà filosofiapensara arte.Narealidade,umacoYffiguração pensa-sea si mesmanasobrasquea compõem.Pois,nãoesqueça- mos,umaobraé umainvestigaçãoinventivasobrea configuração, quepensa,portanto,o pensamentoquea configuraçãoterásido (soba suposiçãodesuaplenitudeinfinita).Emtermosmaispreci- sos:aconfiguraçãopensa-senaprovadeumainvestigação,queao mesmotempoaconstituilocalmente,esboçaseuadvire reflete,de modoretroativo,suacurvaturatemporal.Dessepontodevista,deve- sesustentarqueaarte,configuração"emverdade"dasobras,é em cadapontopensamentodo pensamentoqueelaé.26 ARTE E FILOSOFIA Herdamosentãoumtriploproblema: • Quaissãoasconfiguraçõescontemporâneas? • O queaconteceentãocomafilosofiasobacondiçãodaarte? • Ondeseencontrao temadaeducação? Vamosdeixarde lado o primeiroponto.Todo o pensamento contemporâneosobrea arteé repletode investigações,muitas vezescativantes,sobreasconfiguraçõesartísticasquemarcaramo século:serialismo,prosaromanesca,erados poetas,rupturada representação,etc. Sobreo segundoponto,sópossorepetirminhasprópriascon- vicções:a filosofia- ou melhor,uma filosofia- é semprea elaboraçãodeumacategoriadeverdade.Nãoproduzpor si mes- ma qualquerverdadeefetiva.Apreendeas verdades,mostra-as, expõe-nas,enunciaqueexistem.Ao fazerisso,voltao tempopara aeternidade,poisqualquerverdade,enquantoinfinidadegenérica, éeterna.Enfim,tornacompossíveisverdadesdísparese,portanto, enunciao que é essetempo,no qual opera como tempodas verdadesqueneleinfluem. Sobreo terceiroponto,lembraremosquesóháeducaçãopelas verdades.Todo o recorrenteproblemaé queháverdades;nasua falta,a categoriafilosóficadeverdadeé puramentevazia,e o ato filosófico,umaraciocinaçãoacadêmica. Esse"há"indicaumaco-responsabilidadedaarte,queproduz verdades,e da filosofia,que,soba condiçãode quehajaverda- des,tempor devere por difícil tarefamostrá-Ias.Mostrá-Iasquer dizer,essencialmente,distingui-Iasda opinião.De modo que a questãodehojeéúnicae exclusivamenteaseguinte:háalgoalém de opinião,querdizer,perdoar-se-á(ou não) a provocação,há outracoisaalémde nossas"democracias"? Muitosrespondem,e eu mejuntoa eles,quesim.Há confi- guraçõesartísticassim,há obrasquesãoseussujeitospensan- tes, há filosofia para separarconceitualmentetudo isso da 27 PEQUENO MANUAL DE INESTÉTICA opinião.Nossotempovalemaisquea "democracia"daqualele se vangloria. Como intuitode alimentarno leitoressaconvicção,passare- mosde início a algumasidentificaçõesfilosóficasdasartes.Poe- sia,teatro,cinemae dançaserãoos pretextos. 28 2 o QUE É UM POEMA, E O QUE PENSA DELE A FILOSOFIA A críticaradicaldapoesiano livroX daRepúblicamanifestaos limitessingularesdafilosofiaplatônicada Idéia?Ou é,ao contrá- rio,umgestoconstitutivodaprópriafilosofia,dafilosofia"talqual", quemanifestariaassim,originalmente,suaincompatibilidadecom o poema? Paranão tornara discussãoenfadonha,é importanteapreen- derqueo gestoplatônicocomrespeitoaopoemanãoé,aosolhos de Platão,secundárioou polêmico.É realmentecrucia!.Platão nãohesitaemdeclararo seguinte:"Acidadecujoprincípioacaba- mosdeestabeleceréamelhor,sobretudoemvirtudedasmedidas tomadascontraa poesia." Deve-sea qualquerpreçoconservarintactoo caráterincisivo desseenunciadoextraordinário.Ele nos diz, semrodeios,que o que servede medidaparao princípiopolíticoé propriamentea exclusãodo poema.Ou pelo menosdaquiloquePlatãochama a "dimensãoimitativa"dopoético.O destinodapolíticaverdadeira repousasobrea firmezadaatitudecomrelaçãoao poema. Ora,o queéapolíticaverdadeira,apolitéiabemfundamentada? É a própriafilosofia,desdequegarantao domíniodo pensamento sobrea existênciacoletiva,sobrea múltiplaconcentraçãodosho- mens.Digamosque a politéiaé o coletivovindo à suaverdade imanente.Ou ainda,o coletivocomensurávelcomo pensamento. 29 PEQUENO MANUAL DE INESTÉTICA SeseguirmosPlatão,devemosafirmaro seguinte:a cidade, que é o nome da humanidadeem sua concentração,só é pensávelna medidaemquesemantémseuconceitoprotegido do poema.Protegerasubjetividadecoletivado encantopoderoso do poemaé necessárioparaque a cidadese exponhaao pen- samento.Ou ainda:enquantofor "poetizada",a subjetividade coletiva tambémé subtraídaao pensamento,permanecendo heterogêneaa ele. A interpretaçãocomum- amplamenteautorizadapelo texto de Platão- é que o poema,situadocomoestáa umadistância dupladaIdéia(imitaçãosegundadessaimitaçãoprimeiraqueé o sensíveO,impedequalqueracessoao princípiosupremodo qual dependequea verdadedo coletivoadvenhaà suaprópriatrans- parência.O protocolode banimentodos poetasdependeriada naturezaimitativadapoesia.Umaúnicae mesmacoisaseriaproi- bir o poemae criticara mímesis. Ora, não me pareceque essainterpretaçãoestejaà alturada violênciado textode Platão.Violênciaa respeitoda qualPlatão nãodissimulaquetambémé dirigidacontraelemesmo,contrao poderincoercíveldopoemasobresuaprópriaalma.A críticarazoá- veldaimitaçãonãolegitimainteiramentequesejanecessárioarran- carde si os efeitosdetalpoder. Coloquemosque a mímesisnão é o âmagodo problema.O fatode sernecessário,parapensara cidade,interrompero dizer poético,requer,comono pontode partidada mímesis,um mal- entendidofundador. Parecehaver,entreo pensamentotalcomoa filosofiao pensa e o poema,umadiscordânciabemmaisradical,bemmaisantiga do quea quediz respeitoàsimagense à imitação. É aessadiscordânciaantigaeprofundaquePIatãoalude,creio, quando escreve:nuÀ-uux n,> ôtucP0pà cPtÀ.ooocPíu 1"E KUl. nOt'llnKij, "antigaé a discordânciada filosofiae do poético". Essaantigüidadeda discordânciarefere-seevidentementeao pensamento,à identificaçãodo pensamento. 30 o QUE É UM POEMA, E O QUE PENSA DELE A FILOSOFIA Ao queapoesiaseopõe,no pensamento?Nãoseopõedireta- menteao intelecto,ao vo-u'>,à intuiçãodasidéias.Nãoseopõeà dialéticacomoformasupremado inteligível.Platãoé muitoclaro nesseponto:o queapoesiadesorientaéo pensamentodiscursivo, a dianoia.O poema,diz Platão,é a "ruínada discursividadedos queo escutam".A dianoiaé o pensamentoqueatravessa,o pen- samentoque encadeiae que deduz.Já o poemaé afirmaçãoe deleite,nãoatravessa,mantém-seno limiar.O poemanãoé trans- posiçãoorganizada,masoferenda,proposiçãosemlei. Platãotambémdiráqueo verdadeirorecursocontrao poemaé "amedida,o númeroe o peso".E queaparteantipoéticadaalma é "o labordo lógoscalculador",1"àv À-oyta1"tKàvepyov. Diráain- da que,no poemateatral,o quetriunfaé o princípiodo prazere da dor,contraa lei e o lógos. A dianoia,o pensamentoqueencadeiaeatravessa,o pensamento que é um lógossubmetidoa umalei, possuium paradigma:é a matemática.É possívelsustentar,portanto,queaquiloaquenopensa- mentoo poemaseopõeépropriamenteàjurisdiçãosobreo próprio pensamentodarupturamatemática,dopoderinteligíveldomaterna. A oposiçãofundadoraé finalmentea seguinte:a filosofianão pode começarnemapoderar-sedo realpolítico,a não ser que substituaa autoridadedo poemapelado materna. O motivoprofundodessaoposiçãoentrematernae poemaé duplo. Por um lado,o maisevidente,o poemapermanecesujeitoà imagem,à singularidadeimediatada experiência.Já o materna tcmseupontodepartidanaidéiapura,eemseguidasóconfiana (Iedução.De modoqueo poemamantémcoma experiênciasen- sívelumlaçoimpuro,queexpõealínguaaoslimitesdasensação. I)cssepontodevista,é sempreduvidosoquehajarealmenteum pensamentodo poemaou queo poemapense. Maso queéparaPlatãoumpensamentoduvidoso,umpensa- 111CI1tOindiscerníveldo não-pensamento?É umasofística.O poe- 11I:1poderiaser,narealidade,o principalcúmplicedasofística. 31 PEQUENO MANUAL DE INESTÉTICA É exatamenteO que se sugereno diálogoProtágoras.Pois Protágorasrefugia-sepor trásda autoridadedo poetaSimõnides, e é ele quemdeclaraque, "paraum homem,a partecmcialda educaçãoé sercompetenteemmatériade poesia". Poderíamosafirmar,portanto,queapoesiaé parao sofistao quea matemáticaé parao filósofo.A oposiçãodo maternae do poemasustentaria,nasdisciplinasquecondicionama filosofia, o trabalhoincessanteda filosofiaparase separarde seuduplo discursivo,do que a ela se assemelha,e, por essasemelhança, corrompeseuatodepensamento:asofística.O poemaseria,como o sofista,um não-pensamentoqueseapresentano poderde lin- guagemdeumpensamentopossível.Interromperessepoderseria a funçãodo materna. Por outro lado, e maisprofundamente,supondo-seatéque existaum pensamentodo poema,ou queo poemasejaumpen- samento,essepensamentoé inseparáveldo sensível,éumpensa- mentoque não sepodediscernirou separarcomopensamento. Digamosqueo poemaéumpensamentoimpensável.Enquantoa matemáticaéumpensamentoqueseescreveimediatamentecomotal, um pensamentoque precisamentesó existena medidaem queé pensável. Poder-se-iaafirmar,do mesmomodo,que paraa filosofiaa poesiaé um pensamentoque não é pensamento,nem mesmo pensável.Masque,precisamente,a filosofiatemcomoúnicode- safiopensaro pensamento,identificaro pensamentocomopen- samentodo pensamento.E que deve,portanto,excluirde seu campoqualquerpensamentoimediato,apoiando-separaissonas mediaçõesdiscursivasdo materna. "Queninguémquenãosejageõmetraentreaqui":Platãofaza matemáticaentrarpelaportaprincipal,comoprocedimentoexplí- citodo pensamento,ou pensamentoquesópodeseexporcomo pensamento.A partirde então,é precisoque a poesia,sim, a poesia,saiapelaescadasecreta.Essapoesiaaindaonipresentena declaraçãode Parmênidese nassentençasde Heráclito,masque 32 o QUE É UM POEMA, E O QUE PENSA DELE A FILOSOFIA obliteraa funçãofilosófica,porquenelao pensamentoseoutorga o direitodo inexplícito,do queadquirepoderna línguade outra partequenãodo pensamentoqueseexpõecomotal. Essaoposiçãoentrea línguadatransparênciado maternae a obscuridademetafóricado poemacoloca,no entanto,paranós modernos,problemastemíveis. Platão,por suavez,nãoconseguesustentaressamáximaaté o final, essamáximaque promoveo maternae baneo poema. Não consegue,pois ele próprio exploraos limitesda dianoia, do pensamentodiscursivo.Quandose tratado princípiosupre- mo,doUno,oudoBem,PlatãodeveconvirqueestamosénéKetva 't'~':louaía':l,"alémdasubstância",e, conseqüentemente,forade tudo o que se expõeno recorteda Idéia.Ele devereconhecer quea doaçãoempensamentodesseprincípiosupremo,queé a doaçãoempensamentodo sermaisalémdo sendo,nãosedeixa atravessarpor nenhumadianoia. Ele próprio deverecorreràs imagens,comoa do sol; àsmetáforas,comoasdo "prestígio"e do "poder";ao mito,como o de Er, o panfiliano,que voltado reino dos mortos.Em suma:lá onde o que estáem jogo é a aberturado pensamentoao princípio do pensável,quando o pensamentodeve absorver-sena percepçãodo que o institui comopensamento,eisqueo próprioPIatãosubmetea línguaao poderdo dizerpoético. Nós,modernos,suportamos,no entanto,deumamaneiracom- pletamentediferentedadeumgrego,o intervalolingüísticoentre ()poemae o materna. Em primeirolugar,porque apreendemospor completonão :Ipenastudo o queo poemadeveao Número,massuavocação Ilropriamenteinteligível. Nesseponto,Mallarméé exemplar:o desafiodo.1ancededados Il( Jéticoé quesurja,"resultadoestelar",o queelechamade "único 111'11neroquenãopodeserumoutro".O poemaestánoregimeideal li:I Ilecessidade,relacionao desejosensívelaoadventoaleatórioda hh"ia. O poemaé um deverdo pensamento: 33 PEQUENO MANUAL DE INESTÉTICA Glóriado longodesejo,Idéias Tudoemmimexaltava-sedever A famíliadosirisados Surgirparaessenovodever.* Mas,alémdisso,o poemamodernoidentificaasimesmocomo pensamento.Não é apenasa efetividadede um pensamentoen- tregueno cernedalíngua,é o conjuntodasoperaçõespelasquais essepensamentosepensa.As grandesfiguraspoéticas- trate-se, paraMallarmé,daConstelação,do Túmuloou do Cisne;ou,para Rimbaud,do Cristo,do Operárioou do Esposoinfernal- não sãometáforascegas.Organizamum dispositivoconsistente,em queo poemavemmaquinara apresentaçãosensívelde umregi- me do pensamento:subtraçãoe isolamentoparaMallarmé,pre- sençae interrupçãoparaRimbaud. Simetricamente,nós,modernos,sabemosqueamatemática,que pensadiretamenteasconfiguraçõesdo ser-múltiplo,é atravessada por umprincípiodeerrânciae deexcessoquenãoconsegueava- liarsozinha.Os grandesteoremasde Cantor,de G6del,de Cohen assinalam,no século,asaporiasdo materna.O desacordoentreo axiomáticodosconjuntose a descriçãoporcategoriasestabelecea ontologiamatemáticanaimposiçãodeopçõesdepensamento,cuja escolhanenhumaprescriçãopuramentematemáticapodenormatizar. Ao mesmotempoem que o poemaadvémao pensamento poéticodo pensamentoqueeleé,o maternaorganiza-seemtorno deumpontodefugaemqueseurealseencontranumimpassede qualquerretomadaformalizante. Digamosque,aparentemente,a modernidadeidealizao poe- ma e sofisticao materna.Assimderrubao juízo platônicocom maissegurançado queNietzscheo desejariado viésda"transva- liaçãode todososvalores". Gloire elulong elésir,Ielées/ Tout en moi s'exaltaitelevoir / La familleelesirielées/ Surgir à ce nouveau elevoir. 34 O QUE É UM POEMA, E O QUE PENSA DELE A FILOSOFIA Disso resultaum deslocamentocrucialda relaçãoda filosofia como poema. Não é, pois, da oposiçãodo sensívele do inteligível,ou do belo e do bem,ou da imageme da Idéia,que tal relaçãopode doravantesesustentar.O poemamodernoé menosa formasen- sívelda Idéiae bemmaiso sensívelqueseapresentacomonos- talgiasubsistente,e impotente,da idéiapoética. Em A tardedeumfauno,de Mallarmé,o "personagem"que monologapergunta-seseexistenanatureza,napaisagemsensí- vel,um vestígiopossívelde seusonhosensual.A águanão tes- temunhariaa friezade uma das mulheresdesejadas?O vento não se lembrados suspirosvoluptuososda outra?Se é preciso afastaressahipótese,é porquea águae o ventonadasão em relaçãoao poder de suscitaçãopela arteda idéia da água,da idéiado vento: no frescordamanhãquandoluta, Nãorumorejanenhumaáguaqueminhaflautanãodespeja No bosqueregadodeacordes;e somenteo vento Foradosdoistubosdispostoaexalar-seantes Quedisperseo burburinhoemchuvaárida, É no horizontequenenhumarugaremexeu, O visíveleserenosoproartificial Da inpiração,quevoltaaocéu.* Pormeiodavisibilidadedoartifício,queétambémo pensamen- h) do pensamentopoético,o poemaultrapassaempoderaquilo (Il'queo sensívelécapaz.O poemamodernoéo contráriodeuma IlIímesis.Por suaoperação,exibeumaIdéiadaqualo objetoe a t ,I>jctividadenãopassamde pálidascópias. Il' matin frais s'i! lutte, / Ne murmure point el'eauque ne verse ma flQte / Au I)"squetarroséel'accorels;et le seulvent/ Hors eleseleuxtuyauxpromptà s'exhaler :lvanl / Qu'i! elispersele son elansune pluie ariele,/ Cest, à l'horizon pas remué (l'unedele,/ Levisibleetsereinsouffleartifidel/ De l'inspiration,qui regagnele de!' 35 PEQUENO MANUAL DE INESTÉTICA A filosofianãopode,portanto,apreendero parpoemaematerna na oposiçãosimplesda imagemdeleitávele da idéiapura.Por ondefazentãopassara disjunçãodessesdoisregimesdo pensa- mentona língua?Eu diria que é no ponto em que um e outro dessespensamentosencontramseuinominável. Coloquemos,transversalmenteaobanimentoplatônicodospoe- tas,essaequivalência:poemae materna,examinadosdo pontode vistada filosofia,tantoum quantooutro,sãoinseridosna forma geralde umprocedimentode verdade. A matemáticatornaverdadedo múltiplopuro comoinconsis- tênciaprimordialdo serenquantoser. A poesiatornaverdadedo múltiplocomopresençavindaaos limitesdalíngua.Observe-seo cantodalínguacomoaptidãopara tornarpresentea noçãopurado "há"no própriodesvanecimento de suaobjetividadeempírica. Quando Rimbaudenunciapoeticamenteque a eternidadeé "marquepartiu/como sol",ou quandoMallarméresumetodaa transposiçãodialéticadosensívelemIdéiapelastrêspalavras"noite, desesperoe pedraria",ou "solidão,recife,estrela",fundemno cadinhoda denominaçãoo referenteque adereaos vocábulos parafazerexistirintemporalmenteo desaparecimentotemporal do sensível. Dessemodo,continuasendoverdadequeum poemaé uma "alquimiadoverbo".Essaalquimia,porém,diferentementedaou- tra,é um pensamento,o pensamentodo que há enquanto"lá", doravantesuspensonospoderesdeesvaziamentoe desuscitação da língua. Do múltiplonãoapresentadoe insensívelcomo quala mate- máticageraverdade,o símboloé o vazio,o conjuntovazio. Do múltiplo dado ou desabrochado,mantidono limite de seudesaparecimento,como queo poemafazverdade,o símbolo é a Terra, essaTerra afirmativae universalda qual Mallarmé declara: 36 o QUE É UM POEMA, E O QUE PENSA DELE A FILOSOFIA Sim,seiqueaolongedessanoite,aTerra Lançacomumgrandebrilhoo insólitomistério.* Ora, todaverdade,estejaelaencadeadaao cálculoou sejaela extraídadocantodalínguanatural,é,antesdemaisnada,umapotên- cia.Tempodersobreseuprópriodevirinfinito.Podeantecipar-lhefragmentariamenteo universoinacabável.Podeforçarasuposição doqueseriao universoseosefeitoscompletosdeumaverdadeem cursoneleseexibissemsemlimite. É assimque,de um teoremanovoe poderoso,computam-se as conseqüênciasque reorientamo pensamentoe ordenam-lhe exerCÍcioscompletamentenovos. Maséassimque,deumapoéticafundadora,extraem-senovos métodosdopensamentopoético,umanovaprospecçãodosrecur- sosda língua,enãoapenaso deleitedeum brilhodepresença. Não é à toaqueRimbaudexclama:"Afirmamosa ti,método!", ou declara-se"apressadoemencontraro lugare a fórmula".Ou queMallarmésepropõea instalaro poemacomociência: Poisinstalo,pelaciência, O hinodoscoraçõesespirituais Naobrademinhapaciência Atlas,herbáriose rituais.** Ao mesmotempoemqueé umaaçãoimediata,comopensa- mentodapresençanumaperspectivadedesaparecimento,o poe- ma,comotodarepresentaçãolocal de umaverdade,é também umprogramadepensamento,umaantecipaçãopoderosa,umfor- çarda línguapeloadventodeuma"outra"línguatantoimanente comocriada. Qui, je saisqu'aulointaindecettenuit,IaTerreI ]etted'ungrandéclatl'insolite mystere. •• Carj'installe,parIascience,I L'hymnedescceursspirituelsI En j'ceuvrede ma patienceI Atlas,herbierset rituels. 37 PEQUENO MANUAL DE INESTÉTICA Mas,aomesmotempoemqueépotência,todaverdadeéuma impotência.Poisaquilosobreo queelatemjurisdiçãonãopode- riaserumatotalidade. Verdadee totalidadeseremincompatíveisé, decerto,o ensi- namentodecisivo- ou pós-hegeliano- damodernidade. JacquesLacanexprimeessaidéiaemseuafotismofamoso:aver- dadenãopodesedizer"porinteiro",sópodesemeio-dizer.Mallarmé, porsuavez,criticavaospamasianos,que,comodizia,"tomamacoisa por inteiroe mostram-na".Poraí,acrescentava,"perdemo mistério". Como quer que sejaque umaverdadesejaverdade,não se poderiapretenderqueelaa investisse"porinteiro",quefossesua mostraçãointegral.O poderderevelaçãodeumpoemaenreda-se emtornodeumenigma,demodoquea verificaçãodesseenigma façatodoo realde impotênciada potênciado verdadeiro.Nesse sentido,o "mistérionasletras"éumverdadeiroimperativo.Quando Mallarmésustentaque "sempredevehaverenigmaem poesia", fundaumaéticado mistérioqueé o respeito,pelopoderdeuma verdade,de seupontode impotência. O mistérioé de fatoque todaverdadepoéticadeixeemseu centroo queelanãotemo poderde fazervir à tona. Maisgeralmente,umaverdadesempreencontra,emumponto do que investe,o limiteemquese provaqueelaé estaverdade singular,e nãoa consciênciade si do Todo. O fatode que todaverdadeé sempreum processosingular, emboraela procedaindefinidamente,é atestadono realpor ao menosum ponto de impotência,ou, comodiz Mallarmé,"uma rocha,falsosolarde imediatoevaporadoembrumasque impôs umlimiteno infinito". Umaverdadesedeparacoma rochade suaprópriasingulari- dade,e é apenasaí quese enuncia,comoimpotência,queuma verdadeexiste. Chamemosessedepararo inominável.O inominávelé aquilo cujanomeaçãoumaverdadenãopodeforçar.Aquilo cujatrans- formaçãoemverdadeelanãopodeantecipar. 38 o QUE É UM POEMA, E O QUE PENSA DELE A FILOSOFIA Todo regimedaverdadebaseia-seno realemseuinominável próptio. Sevoltarmosagoraparaa oposiçãoplatônicaentreo poemae (l matema,façamo-nosa seguintepergunta:o quediferencia"no rcal"e, portanto,quantoa seuinominávelpróptio,as verdades matemáticase asverdadespoéticas? O quecaracterizaa línguamatemáticaé a fidelidadededutiva. Compreendamospor issoa capacidadede encadearenunciados demodoqueesseencadeamentosejaobtigatórioe queo conjunto dos enunciadosobtidossustentevitoriosamentea provada con- sistência.O efeitode obrigatotiedadeprocededacodificaçãoló- gicasubjacenteà ontologiamatemática.O efeitodeconsistênciaé ccntral.O queé de fatoumateoriaconsistente?É umateoriana qualexistemenunciadosimpossíveisnateoria.Umateoriaé con- sistentese existirpelo menosumenunciado"correto"da lingua- gemdessateoriaquenãosejapassívelde inscriçãonateoria,ou (luea teotianãoadmitacomoverídico. Dessepontodevista,a consistênciaatestaa teoriacomopensa- IIwntosingular.Afinal,sequalquerenunciadofosseadmissívelteori- ('amente,issosignificatiaquenãoexistenenhumadiferençaentre "cnunciadogramaticalmentecorreto"e"enunciadoteoricamenteverí- dico".A teotianãopassariaentãodeumagramática,enadapensaria. O princípiode consistênciaé o que destinaa matemáticaa limasituaçãode serdo pensamento,o que faz queelanão seja 11111 simplesconjuntode regras. Massabemos,desdeGbdel,quea consistênciaéprecisamente ()j)ontodo inominávelda matemática.Paraumateoriamatemá- I iC:I, nãoé possívelestabelecercomoverídicoo enunciadodesua Ilr()priaconsistência. Senosvoltarmosagoraparaapoesia,veremosqueoquecaracte- riZ:lseuefeitoé amostraçãodaspotênciasdapróprialíngua.Todo Il( lcmafazumpodervir à língua,o poderdefixareternamenteo (k'saparecimentodo que se apresenta.Ou de produzira próptia I,rcsençacomoIdéiapelaretençãopoéticadeseudesaparecer. 39 PEQUENO MANUAL DE INESTÉTICA Essepoderdalínguaé,contudo,precisamenteo queo poema nãopode denominar.Efetua-o,extraindo-oda músicalatenteda língua,do infinitodeseurecurso,danovidadede suaunião.Po- rém,precisamenteporqueé ao infinitodalínguaqueo poemase dirigedemodoaorientar-lheo seupoderrumoà retençãodeum desaparecimento,elenãoconseguefixaressepróprioinfinito. Digamosquea línguacomopotênciainfinitaordenadaà pre- sençaé precisamenteo inomináveldapoesia. O infinito lingüísticoé a impotênciaimanenteao efeitode poderdo poema. Esseponto de impotência,ou do inominável,é representado por Mallarmépelomenosde duasmaneiras. Emprimeirolugar,pelofatodequeo efeitodopoemasupõeuma garantiaqueelenãoconstituinempodevalidarpoeticamente.Essa garantiaéa línguaapreendidacomoordemousintaxe:"Quesupor- te,escuto,nessescontrastes,à inteligibilidade?É necessáriaurnagaran- tia- A sintaxe."A sintaxeé,no poema,o poderlatenteemqueo contrastedapresençaedodesaparecimento(osercomonada)pode apresentar-seaointeligível.Masasintaxenãoé poetizável,pormais queeuexageresuadistorção.Elaoperasemseapresentar. Em seguida,Mallarméindicaclaramentequenãopoderiaha- verpoemado poema,metapoema.É o sentidodo famoso"ptyx', essenomequenadanomina,queé "bibelôabolidode inanidade sonora".Decertoo ptyxseriao nomedaquilode queo poemaé capaz:fazersurgirdalínguaumvir à presençaanteriormenteim- possível.Excetoque,justamente,essenomenãoéumnome,esse nomenãodenomina.De modoqueo poeta(o Mestredalíngua) carregaconsigoessenomefalsoquandomorre: Poisfoi o MestrebuscarlágrimasnoEstige Comesseúnicoobjetodo qualo Nadaseenaltece.* CarleMa'1treestallépuiserdespleursauStyx/ AvecceseulobjetdontleNéant s'honore. 40 o QUE É UM POEMA, E O QUE PENSA DELE A FILOSOFIA o própriopoema,namedidaemqueefetualocalmenteo infi- Ililo da língua,permaneceinominávelparao poema.O poderda illlgua,o poema,cujaúnicafunçãoé manifestá-Ia,é impotente I';ILI nomeá-Iaveridicamente. l~tambémo queRimbaudquerdizerquandotachaseuempreen- (Iilll~ntopoéticode "loucura".O poemadecerto"anotao inex- Ilrimível",ou "fixavertigens".Masa loucuraé acreditarquepode Lllnbémrecuperarenomearo refúgioprofundoegeraldessasanota- V)CS,dessasfixações.Pensamentoativoquenãoconseguenomear :;\Iaprópriapotência,o poemapermaneceinfundadoparasempre. I': o que,aosolhosde Rimbaud,aparenta-oao sofisma:"Euexpli- (':Ivameussofismasmágicoscoma alucinaçãodaspalavras." Desdeo iníciodesuaobra,Rimbaudobservava,ademais,que ('~islc no poema,concebidosubjetivamente,uma irresponsabi- Iidade.O poemaé comoum poderqueatravessaa línguainvo- itllllariamente:"azardamadeiraquesevêviolino",ou "seo cobre d,'spcrtaclarim,nãoé absolutamenteculpasua".* Nofundo,paraRimbaud,o pensamentopoéticotemporinomi- Il;ivc!esseprópriopensamentoemsuaeclosão,emseuadvento. ( ) queé tambémo adventodo infinitonalínguacomocanto,ou :;illl'oniaqueenfeitiçaa presença:"assistoà eclosãode meupen- ::;lllIcnto:fito-o,escuto-o;atacocomo arco:a sinfoniaremexe-se II:ISprofundezas,ou surge,deumsalto,no palco". I)igamosqueo inominávelprópriodomatemaéaconsistência(l:Ilíngua,enquantoo inominávelprópriodopoemaésuapotência. 1\ filosofiavai igualmentecolocar-sesoba duplacondiçãodo 1)( ll'mae do matema,tantodo ladode seupoderde veracidade (11 1;11110 do ladodaimpotência,do inominávelqueexisteneles. 1\ filosofiaé teoriageraldo ser e do acontecimento,como ('Illrdaçadospelaverdade.Pois umaverdadeé o trabalhojunto ,11) serdeumacontecimentodesvanecidodo qualsórestao nome. Traduçãoliteralde "tantpis pour le boisqui se trouveviolon"e "sele cuivre :;'c"vdllec1airon,il n'ya riende safaute". 41 PEQUENO MANUAL DE INESTÉTICA A filosofiareconheceráque toda nominaçãode um aconte- cimento,convocandoaretençãodoquedesaparece,todanomina- çãodapresençade acontecimento,é de essênciapoética. Elareconhecerátambémquetodafidelidadeaoacontecimento, todo trabalhojuntoao serguiadopor umaprescriçãoque nada fundamenta,deveterumrigorcujoparadigmaématemático,deve submeter-seà disciplinadeumaimposiçãocontínua. Elaconservará,porém,dofatodeaconsistênciasero inominável do materna,a impossibilidadedeumafundaçãoreflexivaintegral, e do fato de todo sistemacomportarum ponto de início, uma subtraçãoaospoderesdo real.Um pontorealmentenão-forçável pelo poderde umaverdade,qualquerqueseja. E deapotênciainfinitadalínguasero inomináveldo poema,a filosofiaconservaráque,pormaisfortequepossaserumainterpre- tação,o sentidoqueatingejamaisexplicaacapacidadeaosentido. Ou, quejamaisumaverdadepodeentregaro sentidodo sentido. Platãobaniao poemaporquesuspeitavaqueo pensamentopoé- ticonãopodiaserpensamentodopensamento.Quantoanós,acolhe- remoso poema,porquenosevitasuporquesepossasubstituira singularidadedeumpensamentopelopensamentodestepensamento. Entrea consistênciado maternae a potênciado poema,esses dois inomináveis,a filosofiadesistede estabeleceros nomesque vedamo quesesubtrai.Elaé,nessesentido,apóso poema,após o materna,e sob a condiçãopensantedeles,o pensamentosem- pre lacunardo múltiplodospensamentos. A filosofiaunicamenteo é, no entanto,enquantoevitadejul- garo poemae,principalmente,aindaqueporexemplosextraídos desteou daquelepoeta,querendoministrar-lheliçõespolíticas. O quesignificana maioriadasvezes,e é bemnessesentidoque Piarão compreendiaa lição filosóficadadaao poema,exigira dissipaçãode seumistério,fixarde antemãolimitesao poderda língua.O queequivaleaforçaro inominável,a "platonizar"contra o poemamoderno.E ocorreatémesmode grandespoetaspla- tonizaremnessesentido.Dareium exemplo. 42 3 UM FILÓSOFO FRANCÊS RESPONDE A UM POETA POLONÊS Há algunsanos,quandoos Estadossocialistascomeçarama ruir,um poeta,umverdadeiropoeta,veiodo Leste.Reconhecido peloseupovo.Reconhecidopeloprêmioque,todososanos,sob agarantiadaneutralidadedoNorte,designasolenementeaomundo seusGrandesEscritores. Essepoetaquisnosdarumaliçãofraternal.Nós,quem?Nós,as pessoasdo Ocidente,e maisespecificamenteosfranceses,presos no laçodo idiomaa nossospoetasmaisrecentes. CzeslawMiloszdisse-nosque,desdeMallarmé,estávamos,e o Ocidenteconosco,encerradosemum hermetismosemespe- rança.Que secáramosa fontedo poema.Que a abstraçãodo filósofo era comoumaglaciaçãodo territóriopoético.E que o Leste,armadode seugrandesofrimento,guardiãode suapala- vraviva,podianos devolvero caminhode umapoesiacantada por todo um povo. Ele tambémnos disse,essegrandepolonês,quea poesiado Ocidentesucumbiraa um fechamentoe a umaopacidadecuja origemeraumexcessosubjetivo,umesquecimentodo mundoe do objeto.E queo poemadeviaretereoferecerumconhecimento dedicadoà riquezasemretençãodo queseapresenta. Convidadoa dizer o que sentiaa respeitodaquilo,elaborei estebrevetríptico,quededicoa todosos pontoscardeais. 43 PEQUENO MANUAL DE INESTÉTICA a) Hermetismo Mallarméé um poetahermético?É bastanteinútil negarque existaumasuperfícieenigmáticado poema.Masa queesseenig- manosconvidasenãoà partilhavoluntáriadesuaoperação? Essaidéiaé capital:o poemanão é nemumadescrição,nem umaexpressão.Tampoucoé umapinturacomovidada extensão do mundo.O poemaé umaoperação.O poemanosensinaqueo mundonãoseapresentacomoumacoleçãodeobjetos.O mundo não é aquilo que colocaobjeçãoao pensamento.É - paraas operaçõesdo poema- aquilocujapresençaémaisessencialque a objetividade. Parapensara presença,é necessárioque o poemaprepare umaoperaçãooblíquadecaptura.Somenteessaobliqüidadedes- tituiráa fachadadeobjetosquecompõeo engododasaparências e da opiniãogeral.O procedimentooblíquodo poemaé o que exigeneleentrar,maisdo queserapanhadopor ele. QuandoMallarmépedequeseprocedapor termos"alusivos, jamaisdiretos",trata-sedeumimperativodedesobjetivação,para queadvenhaumapresençaque ele denominade "noçãopura". Eiso queescreveMallarmé:"O momentodaNoçãodeumobjeto é, portanto,o momentoda reflexãode seupresentepuro nele mesmoou de sua purezapresente."O poemaconcentra-sena dissoluçãodo objetoemsuapurezapresente,é a constituiçãodo momentodessadissolução.O quesebatizoude"hermetismo"não passado momentâneodo poema,momentâneosó acessívelpor umaobliqüidade,obliqüidadeassinaladapeloenigma.O leitordeve envolver-seno enigmaparachegarao pontomomentâneodapre- sença.Senãoo poemanãotemefeito. Naverdade,só é lícitofalardehermetismoquandohá ciência secreta,ou oculta,e necessitamoscompreenderaschavesdeuma interpretação.O poemadeMallarménãopedequeseo interprete, edissonãoexistequalquerchave.O poemapedequeseentreem suaoperação,e o enigmaé o pedidoemsi. 44 UM FilÓSOFO FRANCÊS RESPONDE A UM POETA POlONÊS A regraé simples:envolver-secomo poema,nãoparasaber do quefala,masparapensarno queneleacontece.Comoo poe- maé umaoperação,é tambémumacontecimento.O poematem lugar.O enigmasuperficialé a indicaçãodesseter-lugar,oferece- nos umter-lugarna língua. Eu oporiadebomgradoa poesia,queé poetizaçãodo quese passa,e o poema,que é ele próprioo local ondeissose passa, queé umapassagemdo pensamento. Essapassagemdo pensamento,imanenteaopoema,é chama- da de "transposição"por Mallarmé. A transposiçãoorganizaumdesaparecimento,odopoeta:"aobra pura implicao desaparecimentodo poetana elocução".Obser- vemosde passagemcomoé inexatodizerquedeterminadopoe- maé subjetivo.Mallarméquero contrário,um anonimatoradical do sujeitodo poema. A transposiçãoproduz,no vaziodalinguagem,deformaalgu- maumobjeto,masumaIdéia.O poemaé um"alçarvôo tácitode abstraçôes"."Alçarvôo"designaseumovimentosensível;"tácito", que todatagarelicesubjetivaé eliminada;"abstração",quesurge no final, umanoçãopura,a idéiade umapresença.O símbolo dessaidéiaseráaConstelação,ouo Cisne,ouaRosa,ouoTúmulo. A transposiçãodispõe,enfim,entreo desaparecimentodopoeta naelocuçãoe anoçãopura,aprópriaoperação,atransposição,o sentido,queagemdeformaindependentenasvestesdo enigma, que é seupedido.Ou, comodiz Mallarmé:"O sentidoocultose movee dispõe,emcoro,asfolhas." "Hermetismo"nãoé umbomtermoparadesignaro seguinte: queo sentidoseadquirecomo moverdo poema,emsuadispo- sição,e não em seu supostoreferente;que essemoveropera entreo eclipsedo sujeitoe a dissipaçãodo objeto;queo que o produzé umaIdéia. "Hermetismo",manejadocomoacusação,é a palavrade or- demdeumaincompreensãoespiritualdenossotempo.Essapala- vra de ordemdissimulauma novidademaior:que o poemaé 45 PEQUENO MANUAL DE INESTÉTICA simultaneamenteindiferenteaotemadosujeitoedo objeto.A ver- dadeirarelaçãodo poemaseestabeleceentreo pensamento,que nãoé de um sujeito,e a presença,queultrapassao objeto. Quantoao enigmada superfíciedo poema,ele deveria,de preferência,seduzirnossodesejodeentrarnasoperaçõesdopoe- ma.Secedemosnessedesejo,seaobscuracintilaçãodoversonos repele,é porquedeixamostriunfaremnósumoutroquerersus- peito,no dizerde Mallarmé,o de "exibirascoisasemumimper- turbávelprimeiroplano,comocamelôsativadospelapressãodo instante". b) A quem o poema se dirige? O poemadestina-se,exemplarmente,a nós.Tantoquantoa matemáticanos é destinada.Justamenteporquenem o poema, nemo maternafazemacepçãodepessoas,representam,nasduas extremidadesda linguagem,auniversalidademaispura. É possívelqueexistaumapoesiademagoga,queacreditadirigir- seatodosporquedetémaformasensíveldasopiniõesdomomento. E é possívelqueexistaumamatemáticaabastardada,porqueestáa serviçodasoportunidadesdo comércioe datécnica.Masessassão figurasestreitas,quedefinemaspessoas- aquelasaquemnosdiri- gimos- porseualinhamentoàscircunstâncias.Sedefinimosaspes- soas,igualitariamente,pelo pensamento,e esseé o únicosentido assinaláveldaigualdademaisestrita,entãoasoperaçõesdopoemae asdeduçõesdamatemáticasãooparadigmadoquesedirigeatodos. Esse"todos"igualitárioé chamadodemultidãopor Mallarmé, e seufamosoLivroinacabadotinhacomoúnicodestinatárioessa multidão. A Multidãoécondiçãodapresençadopresente.Mallarméindica comrigorquesuaépocaestádesprovidadepresentepor motivos quese devemà ausênciade umamultidãoigualitária:"Nãoexiste Presente,não,nãoháumpresente.CulpaqueaMultidãoassume." 46 UM FILÓSOFO FRANCÊS RESPONDE A UM POETA POLONÊS Sehojeexiste,comoo veremos,comoaindateremosde ver, umadiferençaentreLestee Oestequantoaofundamentodo poe- ma,certamentenãoé aosofrimentoquesedeveatribuí-Io,masa que,deLeipzigaPequim,amultidãotalvezsedeclare.Essadecla- raçãoou essasdeclarações,históricas,constituemum presentee talvezmodifiquemas condiçõesdo poema.Suaoperaçãopode captaro latenteda multidãona denominaçãode um aconteci- mento.O poemaé entãopossívelcomoaçãogeral. Se,comoerao casodo Ocidentena tristedécadade 1980,e comoerao casono tempodeMallarmé,a multidãonãosemani- festa,entãoo poemasó é possívelna formado que Mallarmé chamade açãorestrita. A açãorestritanãoalterade formaalgumaqueo destinatário do poemasejaa multidãoigualitária.Masela tempor ponto de partida,emvezdo acontecimento,suaausência.É assim,de seu mal,desuaausência,e nãodesuasuscitaçãodeclaradanamulti- dão,queo poemareúnematerialparao surgimentodeumacons- telação.O poetadeveselecionaremumasituaçãopobrecom o quemontaracomédiasacrificaI deumagrandeza.Suasdefecções mais íntimas,seuslugaresmaisindiferentes,suasalegriasmais breves,a açãorestritaexigequeelelhesassumao teatro,anteci- pandoa Idéia.Ou, comodizsoberbamenteMallarmé:"O escritor, de seusmales,dragõesqueacarinhou,ou deumcontentamento, deveinstituirparasi, no texto,o histriãoespiritual." Se há talvezhoje umadiferençaentreo Lestee o Ocidente, não é certamenteno ponto de chegada,quantoao destinatário do poema,que é sempree emtodaparte,por direito,a Multi- dão. É no pontode partida,nascondiçõesdo poema,autoriza- do, talvez,no Leste,à açãogeral,obrigadano momento,no Ocidente,à açãorestrita.É tudoo quetenhocondiçõesde con- cederaMilosz,supondo-sequesuasprediçõespolíticasseconfir- mem,o quenãoé garantido. Essadistinçãoafetamenosa idéiaque seu material.Separa menosasoperaçõesdo poemaqueasdimensõesda línguaque 47 PEQUENO MANUAL DE INESTÉTICA essasoperaçõescolocamemjogo.Ou, pararetomarumacatego- riadeMichelDeguy,trata-sede sabersobreo quesepodedizer, no âmbitodo poema,queistoé comoaquilo.O campode exer- cíciodo "como",que dá origemà noçãopura,é restritono Oci- dente,e possivelmentegeneralizadono Leste. Toda diferençano poemase estabelece,pois, menoscomo diferençaentreaslínguasdoquecomodiferença,nalíngua,entre os registrosque, nesteou naquelemomento,as operaçõesdo poemasãocapazesde tratar. c) Paul Celan É doLesteessePaulAntschel,nascidoem1920emTchernovtsy? É do OcidenteessePaulCelan,casadocomGiselede Lestrange, mortoem 1970em Paris,onde vivia desde1948?É da Europa Centralessepoetade línguaalemã?É de outrolugar,ou de toda parte,essejudeu? O que nos diz essepoeta,o último,acreditode toda uma épocado poema,cujoprofetamaisdistanteé Holderlin,queco- meçacomMallarmée Rimbaud,e queincluisemnenhumadúvi- daTrakl,Pessoae Mandelstam? Celannos diz, em primeirolugar,queum sentidode pensa- mentoparanossaépocanãopoderesultardeumespaçoaberto, deumaapreensãodoTodo.Nossaépocaestádesorientadae não temnomegeral.É necessárioqueo poema(tornamosaencontrar o temadaaçãorestrita)sedobrea umapassagemestreita. Paraque o poemapassepela estreitezado tempo,deve,no entanto,marcare romperessaestreitezaporalgofrágile aleatório. Nossaépocasupõe,paraqueumaIdéiaadvenha,umsentido,uma presença,a conjunção,nasoperaçõesdo poema,daestreitezaen- trevistadeum atoe dafragilidadeao acasodeumamarca.Ouça- mosCelan: 48 UM FILÓSOFO FRANCÊS RESPONDE A UM POETA POLONÊS Umsentidosobrevémigualmente Pelaveredamaisestreita, quefratura a maismortaldenossas marcaserigidas.* Celandiz-nosem seguidaque,por maisestreitoe aleatório quesejao caminho,delesabemosduascoisas: • Primeiroque,inversamenteàsdeclaraçõesdasofísticamo- derna,há um ponto fixo. Tudo nãopassade deslocamentosde jogosde linguagem,ou variabilidadeimaterialdascircunstâncias. O sere a verdade,mesmoarrancadosde qualquerapreensãodo Todo,nãodesvaneceram.Havemosdeencontrá-Ios,precariamente arraigadosjustoondeo Todo propõeseunada. • Emsegundolugar,sabemosquenãosomosprisioneirosdas ligaçõesdo mundo.Maisessencialmente,a idéiadeligação,ou de relação,é falaciosa.Umaverdadeé des-ligada,e é emdireçãoa essedesligado,emdireçãoaessepontolocalondeumáligaçãose desfaz,queo poemaopera,rumoà presença. OuçamosCelandizer-noso queé fixo,o queresisteeperdura, e o arrebatamentorumoao desligado: O caniço,queseenraízaaqui,amanhã aindaresistirá,paraondequerquesejas, conformeavontadedetuaalma,arrebatado,aonão-ligado.** Celanensina-nos,enfim,naconseqüênciado domíniodo des- ligado,queaquiloemqueumaverdadeseapóianãoé a consis- tência,masainconsistência.Nãosetratadeformularjuízoscorretos, trata-sede produziro murmúriodo indiscernível. Un senssurvientaussi/ parIa laieplusétroite,/ quefracture/ Iaplusmortelle de nos/ marquesérigées.(traduçãoparao francêsdeMartineBroda) •• Leroseau,qui prendpiedici,demain/ tiendraencare,ou quetusois,/ augré de tonâme,emporté,dansle non-lié.Ctrad.MartineBroda) 49 PEQUENO MANUAL DE INESTÉTICA o queé decisivonessaproduçãode um murmúriodo indis- cernívelé a inscrição,a escrita,ou, pararetomarumacategoria caraa ]ean-ClaudeMilner,a letra.A letrasozinhanão discerne, masefetua. Eu acrescentaria:háváriostiposde letras.Há, de fato,aspe- quenasletrasdo materna,mastambémo "mistérionasLetras"do poema;háo queumapolíticalevaaopédaletra,háasletrasque formamcartasde amor. A letradirige-sea todos.O saberdiscerneascoisase impõeas divisões.A letra,quesuportao murmúriodoindiscernível,édirigida semdivisão. Todo sujeitoé passívelde seratravessadopelaletra,todosu- jeitoé transliterável.Essaseriaminhadefiniçãoda liberdadeno pensamento,liberdadeque é igualitária:um pensamentoé livre quando é transliteradopelas letrinhasdo materna,pelas letras misteriosasdo poema,pelo levarascoisasaopé da letradapolí- tica,e pelasletrasdacartade amor. Paraserlivrecomrespeitoaomistérionasletras,queé o poe- ma,bastao leitorse disporàsoperaçõesdo poema,dispor-sea elasliteralmente.É precisoquerersuaprópriatransliteração. Esseentrelaçamentodainconsistência,do indiscernível,dale- trae davontade,Celandenomina-oassim: Sobreasinconsistências apoiar-se: piparote noabismo,nos cadernosderabiscos o mundosepõesussurrar,dependeapenas deti.* Sur les inconsistances/ s'appuyer:/ chiquenaude/ dans]'ablme,dansles / carnetsdegribouillages/ lemondesemetà bruire,il n'entient/ qu'àtoi.(trad. MartineBrada) 50 UM FILÓSOFO FRANCÊS RESPONDE A UM POETA POLONÊS O poemaformulaaquiumaelevadadiretrizparao pensamento: quea letra,dirigidauniversalmente,interrompaqualquerconsis- tência,paraqueadvenhao sussurrodeumaverdadedo mundo. Podemosdizer-nospoeticamenteuns aos outros:"depende apenasde ti".Tu, eu,convocadosàsoperaçõesdo poema,ouvi- moso murmúriodo indiscernível. Maspor ondesereconheceo poema?Nossasorteé que,como sublinhaMallarmé,aúltimapalavranãoé nemdo Ocidente,nem do Leste:"Umaépocasabe,porobrigaçãodo ofício,daexistência do poeta." Devemosconcordar,no entanto,queàsvezestardamosemani- marnossopensamentocomessasorte.Milosz,decerto,também tocavanesseponto.Todasaslínguasrecuperaramseupoderem admiráveispoemas,e sóé demasiadoverdadequenós,franceses, por muitotempocertosdenossodestinoimperial,porvezesleva- mosunsbonsanos,ou atéalgunsséculos,paradescobririsso. Parahomenageara universalidadedo poemanosváriosidio- mas, direi agoracomo termineiconcebendoa extraordinária importânciadeumpoetaportuguês,e bemmaisdistanteno pas- sado,de um poetaárabe.Mostrareique,tambémdessespoetas, se compõemnossopensamento,nossafilosofia. 51 4 UMA TAREFA FILOSÓFICA: SER CONTEMPORÂNEO DE PESSOA FernandoPessoa,que morreuem 1935,só se tornouconhe- cidonaFrança,demaneiraumpoucomaisampla,cinqüentaanos depois.Incluo-menesseatrasoescandaloso.Afinal,trata-sedeum dospoetasdecisivosdo século,sobretudoquandosetentapensá- 10 comocondiçãopossívelda filosofia. A perguntapodeserformulada,defato,daseguintemaneira:a filosofiadoséculoxx, inclusiveadosúltimosdezanos,conseguiu, ou soube, colocar-seà alturado empreendimentopoético de FernandoPessoa?Heideggercertamentetentousituarsuaespe- culaçãosoba tutelapensantedeH6lderlin,deRilkeou deTrakl. Lacoue-Labartheestá envolvido em uma revisãoda tentativa heideggeriana,revisãocujo desafioé H6lderline da qual Paul Celané um operadorcrucial.Eu própriodesejeiquea filosofia fosseenfimcontemporâneadasoperaçõespoéticasdeMallarmé. Mas... e Pessoa?DigamosqueJosé Gil empenhou-senão exata- menteeminventarfilosofemasquepudessemacolhere sustentar a obrade FernandoPessoa,maspelo menosem verificaruma hipótese:a compatibilidadeentreessaobra- maisparticular- mentea deÁlvarode Campos- e certasproposiçõesfilosóficas deDeleuze.Queeumelembre,JudithBalsofoiaúnicaaenvolver- seemumaavaliaçãodo conjuntodapoesiadePessoano quediz respeitoàquestãodametafísica.Maselaprocedeaessaavaliação 53 PEQUENO MANUAL DE INESTÉTICA noâmbitodaprópriapoesia,enãoemummovimentodiretamen- te internoà remodelaçãodastesesde filosofia.Deve-seconcluir, portanto,que a filosofianão está,ou não estáainda,no mesmo níveldeFernandoPessoa.ElanãopensaaindaàalturadePessoa. Evidentemente,há de se perguntar:por que deveriaestar? Que "altura"é essaqueatribuímosao poetaportuguês,e quem impõe que se estabeleçacomo tarefaà filosofiamedir-secom relaçãoa ela?Responderemospor umdesvioqueimplicaa cate- goriademodernidade.Defenderemosquea linhade pensamento singulardesenvolvidapor FernandoPessoaé tal que nenhuma das figurasestabelecidasda modernidadefilosóficaestáaptaa sustentarsuatensão. Tome-secomodefiniçãoprovisóriadamodernidadefilosófica apalavradeordemdeNietzsche,assumidaporDeleuze:dermbada do platonismo.Digamoscom Nietzscheque todo o esforçodo séculoé "curara doençaPlatão". Não há dúvidade que essapalavrade ordemestabeleceas basesdeumaconvergênciadastendênciasheteróclitasdafilosofia contemporânea.O antiplatonismoé, no sentidoestrito,o lugar- comumde nossaépoca. Em primeirolugar,ele é centralna linhade pensamentodos filósofosdavida,ou do poderdo virtual,do próprioNietzschea Deleuze,passandopor Bergson.Paraessespensadores,a idea- lidade transcendentedo conceitoé dirigidacontraa imanência criadoradavida:aeternidadedoverdadeiroéumaficçãomortífera, queseparacadasendodaquiloqueé capazsegundosuaprópria diferenciaçãoenergética. O antiplatonismoé,contudo,igualmenteativonatendênciaopos- ta,a dasfilosofiasgramaticistase da linguagem,todo essevasto aparatoanalíticomarcadopor nomescomoWittgenstein,Carnap ou Quine.Paraessacorrente,a suposiçãoplatônicada existência efetivadasidealidadese danecessidadede umaintuiçãointelec- tualao princípiode qualquerconhecimentoé purocontra-senso. Poiso "há"emgeralsóé compostodedadossensíveis(dimensão 54 UMA TAREFA FILOSÓFICA empirista)e da organizaçãodessesdadospor esseverdadeiro operadortranscendentalsemsujeitoqueé a estmturada lingua- gem(dimensãológica). Sabe-se,ademais,queHeideggeretodaacorrentehermenêutica queo reivindicavêemnaoperaçãoplatônica,queimpõeaopen- samentodo sero recorteprimeirodaIdéia,o começodo esqueci- mentodo ser,o envio do que há de niilistana metafísica,em últimolugar.A Idéiajá é recobrimentoda eclosãodo sentidodo serpelasupremaciatécnicadosendo,talcomodispostoearrazoado por um entendimentomatemático. Os própriosmarxistasortodoxosnãonutriamnenhumaestima por Platão,tratadoindulgentementepelodicionáriodaAcademia dasCiênciasdafinadaURSScomoideólogodosproprietáriosde escravus.Paraeles,Platàoencontrava-sena origemdatendência idealistana filosofia,e preferiamde longeAristóteles,maissensí- velà experiência,maispropensoaoexamepragmáticodassocie- dadespolíticas. Os antimarxistasobstinadosdosanos1970e 1980,os adeptos dafilosofiapolíticademocráticaeética,os"novosfilósofos",como Glucksmann,essesviamemPlatão- quequersubmetera anar- quia democráticaao imperativoda transcendênciado Bem,pela intervençãodespóticado rei-filósofo- o típicomestre-pensador totalitário. Issomostraatéqueponto,qualquerquesejaa direçãoondea modernidadefilosóficaprocurasuasreferências,encontrar-se-á sempreo estigmaobrigatórioda "derrubadade Platão". Nossaquestãorelativaa Pessoatorna-se,então,a seguinte:o que ocorrecomo platonismo,emsuasdiferentesacepções,em suaobrapoética?Ou, maisprecisamente:aorganizaçãodapoesia comopensamentoemPessoaé modernaconsiderando-sea der- mbadado platonismo? Lembremosqueumasingularidadefundamentaldapoesiade FernandoPessoaé queelapropõeasobrascompletasde quatro poetas,e nãode um só. É o famosodispositivoda heteronímia. 55 PEQUENO MANUAL DE INESTÉTICA SobosnomesdeAlbertoCaeiro,ÁlvarodeCampos,RicardoReise Pessoa-ele-mesmo,dispomosdequatroconjuntosdepoemasque, emboraescritospelamesmamão,sãotãodiferentesquantoaos motivosdominantese ao compromissode linguagem,quecom- põempor si só umaconfiguraçãoartísticacompleta. Dir-se-á,então,queaheteronímiapoéticaé umainflexãosin- gulardo antiplatonismoe que é nessesentidoque participade nossamodernidade? Nossarespostaseránão.SeFernandoPessoarepresenta,para a filosofia,um desafiosingular,se suamodernidadeaindaestá maisànossafrente,e,sobcertosaspectos,aindaseencontrainex- pIorada,issoocorreporqueseupensamento-poemaabreumca- minhoqueconseguenão sernemplatônico,nemantiplatônico. Pessoadefinepoeticamente,semqueatéhojeafilosofialhetenha dadoo devidovalor,umlocaldepensamentopropriamentesub- traídodapalavradeordemunânimedaderrubadado platonismo. Umprimeiroexameparecemostrar,contudo,quePessoaé an- testransversala todasastendênciasdo antiplatonismodo século, queeleasatravessou,ou antecipou-as. Encontra-seno heterônimoÁlvarode Campos,sobretudonas principaisodes,e issoé o queautorizaahipótesedeGil, aaparên- ciadeumvitalismodesenfreado.A exasperaçãodasensaçãoparece sero procedimentofundamentaldainvestigaçãopoética,e aexpo- siçãodo corpoa seudesmembramentomultiformeevocaa identi- dadevirtualdo desejoedaintuição.UmaidéiagenialdeCamposé tambémmostrarquea oposiçãoclássicado maquinismoe do im- pulsovitalé bemrelativa.Camposé o poetado maquinismomo- dernoedasgrandesmetrópoles,oudaatividadecomercial,bancária, lisineira,concebidoscomodispositivosdecriação,comoanalogias naturais.Bemantesde Deleuze,elepensaquehá no desejouma espéciedeunivocidademaquinal,cujaenergiao poemadevecap- tarsemsublimá-Iaou idealizá-Ia,nemtampoucodispersá-Iaemum equívocoambíguo,masnelaapreenderdiretamenteos fluxose os cortesqualumaespéciedefurordo ser. 56 UMA TAREFA FILOSÓFICA Já, afinal,a escolhado poemacomo vecçãolingüísticado pensamentonãoé intrinsecamenteantiplatõnica?Pois, talcomo o utiliza, Pessoainstalao poemanos procedimentosde uma lógicadistendida,ou invertida,quenãoparececompatívelcom a clarezada dialéticaidealista.Assim,comomostrouJakobson embelíssimoartigo,o empregosistemáticodo oxímorodesequi- libra todasas atribuiçõespredicativas.Como chegarà Idéia se quasequalquertermopode receberquasequalquerpredicado na forte coerênciado poema,principalmenteaqueleque tem com o termo que afeta unicamenteuma
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