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O princípio de igual consideração em Peter Singer Everaldo Brito 1 1. Introdução Este breve ensaio tem como objetivo expor o pensamento do filósofo austra- liano Peter Singer sobre o princípio de igual consideração entre seres animais hu- manos e seres animais não humanos. Singer embasa a sua reflexão dentro da gran- de tradição utilitarista. Essa tradição, sobretudo nesse tema particular, terá em J. Bentham um dois seus maiores representantes. Singer, como será possível consta- tar no texto, irá recorrer constantemente ao auxilio do filósofo britânico. Nosso intuito é deixar claro como não há coerência no argumento dos que de- fendem haver uma grande diferença entre animais humanos e animais não huma- nos a ponto de justificar o uso ao bel prazer destes por aqueles. Evidentemente, tais argumentos estão fundamentalmente ligados a uma visão de mundo antropo- cêntrica, na qual o homem é sujeito dominador e tudo o mais tem unicamente a função de servi-lo. Singer se levanta contra essa visão, mostrando o quanto ela é frágil e abre a terrível possibilidade de justificação das mais variadas formas de dominação do homem sobre o próprio homem. Estando justificada a dominação do homem sobre os animais no princípio de que aqueles possuem inteligência e estes não, então teremos que inevitavelmente colocar em questão o fato de que a inteligência não está presente nos homens de modo igual. Essa forma de conceber a diferença entre homens e animais é, eviden- temente, problemática. A diferença que pode e, certamente, há entre homens e a- nimais não humanos não é suficiente para justificar os mais atrozes sofrimentos in- fligidos aos animais não humanos pelos homens. Nossa investigação ainda se debruçará sobre os mais sofisticados argumentos e exemplos apresentados pelo filósofo australianos para estender o princípio de i- gual consideração também aos animais não humanos. Ele reconhece que muitos e insignes filósofos já haviam acenado para esse princípio, mas como todos os que estão imerso numa cultura antropocêntrica, não alargaram os horizontes além do humano. O resultado disso é claro: o mais completo esquecimento do que, nas pa- 1 Everaldo Brito é graduando em Filosofia (Bacharelado) pela Pontifícia Universidade Ca- tólica do Rio Grande do Sul. lavras de Bentham, nunca lhes deveriam ter sido tirado a, não ser pela tirania dos homens: os seus direitos como ser que, embora sendo inferiores aos homens por não possuir a faculdade racional, não o são quanto à capacidade de sentir dor. 2. O princípio de igual consideração Peter Singer nasceu em 6 de junho de 1946 na Austrália, é neto de judeus austríacos.(Nedel, 2004, p. 104). Fez seus estudos nas Universidades de Melbour- ne e Oxford, onde foi aluno de R. M. Hare. Posteriormente lecionou em Oxford, Nova Iorque, Colorado em Boulder, Califórnia em Irvine e La trobe. É professor de Filosofia e vice-reitor do centro de Bioética Humana na Universidade de Mo- nasch, Melbourne (1997). Atualmente é professor na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. A área de atuação de Peter Singer é ética prática, tratando questões de Ética dentro de uma perspectiva utilitarista. Peter Singer é casado com Renata Diamond, com a qual tem três filhas. Sua produção filosófica conta com mais de 30 livros e temas afins que ele escreveu e coordenou. A imensa maioria de sua obra tem enfoque ético. Suas obras mais co- nhecidas são Ética prática, Libertação Animal e Como devemos viver? Sua obra Libertação animal é considerada uma grande referência para os movimentos que lutam a favor de uma ética que contemple também o direito dos animais. Singer é co-editor, com Helga Kushe, da revista Bioethics, uma publicação internacional da Basil Blackwell. O pensamento de Singer tem sofrido graves oposições e isso se deve ao cará- ter polêmico das ideias por ele defendidas. Em alguns lugares, Alemanha, por e- xemplo, suas palestras e conferências tiveram que ser canceladas. Até cursos que seriam ministrados em algumas Universidades alemães em que seriam usados seus livros foram cancelados. (Nedel, 2004) Um dos temas que mais levanta polêmica no pensamento de Singer é a sua defesa da moralidade para os animais, ou seja, Singer acredita que os animais tam- bém são objetos da moral e, por isso devem receber tratamento igual aos dos seres humanos. Nesse sentido, Singer defende a igualdade para os animais: Todos os a- nimais são iguais, diz Singer no primeiro parágrafo da sua Libertação animal e, completa; ou por que razão o princípio ético sobre o qual assenta a igualdade hu- mana nos obriga a ter igual consideração para com os animais. (Singer, 2004, p. 19). A defesa da igualdade dos animais emplacada por Singer é, na verdade, uma reivindicação que já havia sido feito pelos utilitaristas séculos antes. Singer bebe, portanto, dessa fonte. Para os utilitaristas clássicos o que tornava os animais iguais aos seres humanos era o fato de estes também serem capazes de sentir dor; por es- sa razão não há porque não considerar os interesses dos animais, que é não sentir dor. O princípio básico do utilitarismo é esse; a igualdade de interesse em não sentir dor. Singer assim se expressa: Mas o elemento básico - tomar em consideração os interesses do ser, se- jam estes quais forem - deve, segundo o princípio da igualdade, ser am- pliado a todos os seres, negros ou brancos, masculinos ou femininos, humanos ou não humanos.(2004, p. 22). Para Singer, bem como para toda a tradição utilitarista, o que põe os animais em igualdade com os seres humanos é o princípio de igual consideração, pois esse princípio não está baseado na faculdade da razão, ou na capacidade de linguagem, mas na capacidade de sentir dor. Para Singer um animal é tão capaz de sentir dor quanto um ser humano. Singer considera injustificável o uso dos animais pelos seres humanos, pois o que deve ser levado em conta não é a faculdade da razão, nem a capacidade de falar, mas a senciência, pelo que se pode então afirmar que não há superioridade dos humanos so- bre os animais. Portanto, usá-los como alimento e meio de transporte é um ato com- pletamente imoral. Singer argumenta que entre os seres humanos existem alguns que possuem um grau superior de razão. Isso, todavia, não lhes dá o direito de usar como bem entender quem possui um grau inferior de razão. Isso pode ser aplicado aos ani- mais, pois se eles possuem um grau inferior de razão, isso não significa que se possa utilizar deles como parecer melhor aos humanos: Se a possessão de um grau superior de inteligência não dá a um humano o direito de utilizar outro para os seus próprios fins, como é que pode permitir que os humanos explorem os não humanos com essa inten- ção?.(Singer, 2004, p. 22). Singer reconhece que muitos filósofos aplicaram o princípio de igual consideração, mas os mesmos não foram muito além e consideram dentro desse princípio somente os da própria espécie, ou seja, os seres humanos. Aos animais por não terem a faculdade da razão e da linguagem, seguin- do os juízos desses filósofos, não lhes foi conferido direito, mas eles foram relegados como proprie- dade dos seres humanos, podendo se utilizar dos animais como quisessem: Muitos filósofos e outros autores, de uma forma ou de outra, estabelece- ram o princípio da igual consideração de interesses como princípio moral básico; mas não foram muitos os que reconheceram que este princípio se aplica aos membros das outras espécies tal como à nossa própria. Jeremy Bentham foi um dos poucos que tiveram consciência deste fato.(2004, p. 23)Bentham foi um dos poucos filósofos que percebeu e estendeu o princípio de igual consideração também aos animais, posto que estes também podem sentir dor. Bentham argumenta que não é a razão ou capacidade da falar que confere aos a- nimais o direito ao princípio de igual consideração, mas a senciência, a capacidade de sentir dor. Segundo Bentham o direito dos animais não deveria jamais tê-los si- do tirado: Poderá existir um dia em que o resto da criação animal adquirirá aqueles direitos que nunca lhe poderiam ter sido retirados senão pela mão da tirani- a. Os franceses descobriram já que a negrura da pele não é razão para um ser humano ser abandonado sem mercê ao capricho de um algoz. Poderá ser que um dia se reconheça que o número de pernas, a vilosidade da pele ou a forma da extremidade do os sacrum são razões igualmente insuficien- tes para abandonar um ser sensível ao mesmo destino. Que outra coisa po- derá determinar a fronteira do insuperável? Será a faculdade da razão, ou talvez a faculdade do discurso? Mas um cavalo ou cão adultos são incom- paravelmente mais racionais e comunicativos do que uma criança com um dia ou uma semana ou mesmo um mês de idade. Suponhamos que eram de outra forma - que diferença faria? A questão não é: Podem eles raciocinar? Nem: Podem eles falar? Mas: Podem eles sofrer? (Singer, 2004, p.24). Nesta passagem, Bentham aponta a capacidade de sofrimento como caracte- rística vital que concede a um ser o direito a uma consideração igual. A capacidade de sofrer, ou mais estritamente, de sofrer ou de se alegrar ou estar feliz - não é a- penas mais uma característica como a capacidade da linguagem, ou de compreen- são da matemática avançada. Segundo Singer, a capacidade de sofrer e de sentir alegria é um pré-requisito para sequer se ter interesses, uma condição que tem de ser observada antes de podermos falar de interesses de um modo significativo. (Singer, 2004). É evidente que para se exigir igual consideração de interesse, deve- se estar falando de um ser senciente, com capacidade de sentir dor, de preferir en- tre isso e aquilo. Nesse sentido declara Peter Singer: Não faria sentido dizer que não é do interesse de uma pedra ser pontape- ada ao longo de uma rua por um rapaz de escola. Uma pedra não tem in- teresses porque não é capaz de sofrimento. Nada que lhe façamos fará a mais pequena diferença em termos do seu bem-estar. (Singer, 2004, p. 24). Singer entende que não se pode afirmar de seres incapazes de sentir dor, ale- gria, ou qualquer outro sentimento que possuem interesses, pois interesse supõe capacidade de sentir: A capacidade de sofrimento e alegria é, no entanto, não apenas necessá- ria, mas também suficiente para que possamos afirmar que um ser tem interesses - a um nível mínimo absoluto, o interesse de não sofrer. Um rato, por exemplo, tem interesse em não ser pontapeado ao longo da rua, pois sofrerá se isso lhe for feito. (2004, p.24) Na linha de reflexão de Bentham, Singer refuta o argumento segundo o qual os animais não teriam direito por não serem autônomos, ou membros de uma co- munidade. Segundo tais filósofos, os animais são incapazes de respeitar os direitos dos outros, não possuem, portanto, nenhum senso de justiça. Singer considera que esse argumento não é válido para a libertação animal, pois a linguagem dos direi- tos faz parte do código político que se utiliza por conveniência. (Singer, 2004). Segundo o filósofo, este argumento ainda é mais valioso na era dos anúncios pu- blicitários televisivos de trinta segundos, do que o foi na época de Bentham; mas, no argumento a favor de uma alteração radical das nossas atitudes em relação aos animais, não é de forma alguma necessário. Singer segue afirmando que se um ser sofre, não pode haver justificação mo- ral para a recusa de tomar esse sofrimento em consideração. Independentemente da natureza do ser, o princípio da igualdade exige que o sofrimento seja levado conta em termos igualitários relativamente a um sofrimento semelhante de qual- quer outro ser, tanto quanto é possível fazer comparações aproximadas. Se um de- terminado ser não é capaz de sofrer nem de sentir satisfação nem felicidade, não há nada a tomar em consideração É por isso que o limite da senciência (para usar o termo como uma abreviatura conveniente, ainda que não estritamente precisa, da capacidade de sofrer ou de sentir prazer ou felicidade) é a única fronteira defensá- vel da preocupação pelo interesse alheio. Marcar esta fronteira com alguma carac- terística como a inteligência ou a racionalidade seria marcá-la de modo arbitrário. (Singer, 1993, p.44). Para Singer a única diferença existente entre seres humanos e animais é a in- teligência, porém essa diferença não pode justificar a escravização da outra espé- cie. Singer entende que se utilizarmos essa regra como forma de justificação da exploração dos animais não humanos, teremos que consequentemente aceitar co- mo normal a escravização de seres humanos, uma vez que é comprovado não ha- ver um mesmo nível de inteligência entre os humanos. É claro que mesmo não ha- vendo o mesmo nível de inteligência entre os humanos, e isso é de consenso geral, não se admite a exploração de uns sobre os outros com base nesse dado. Esse mesmo raciocínio deveria ser empregado na questão dos animais não humanos, pois mesmo que eles não tenham o mesmo nível de inteligência que os seres hu- manos, não estamos de modo algum autorizados a explorá-los. A única explicação dada ao fato de não se considerar os interesses dos animais não humanos, segundo Singer, é o especismo. O especismo, segundo o autor, consiste em considerar uma espécie superior à outra, vale dizer aqui, a espécie humana. Um pouco depois de fazer um paralelo entre especismo e racismo, Singer afirma: Do mesmo modo, aqueles a quem chamo "especistas" atribuem maior peso aos interesses dos membros da sua própria espécie quando há um conflito entre esses interesses e os das outras espé- cies. Os especistas humanos não aceitam que a dor sentida por por- cos ou ratos seja tão má como a dor sentida por seres humanos. (1993, p.44) Os especista atribuem maior valor a dor sentida por um membro da sua espé- cie. Singer, todavia, considera que na realidade, este é o tipo de argumento com- pleto para alargar o princípio da igualdade aos animais não humanos. Mas ele também admite que podem surgir algumas dúvidas sobre o que esta igualdade im- plica na prática. Em particular, a última frase do parágrafo anterior pode levar al- gumas pessoas a responder: “é claro que a dor sentida por um rato não é tão má como a dor sentida por um ser humano. Os seres humanos têm maior consciência do que lhes está acontecendo e este fato torna o seu sofrimento mais intenso. Não se pode comparar a dor de uma pessoa, digamos, que morre de cancro numa ago- nia prolongada com a de um rato de laboratório que sofre o mesmo destino”. Na verdade, voltamos ao argumento anterior segundo o qual o especista atri- bui maior valor à dor sentida por um membro da sua espécie. Isso, na prática não é o que o torna um especista, pois Singer aceita perfeitamente que, no caso descrito acima, a vítima humana de cancro sofre mais que a vítima não humana. Para o eti- cista, este fato não põe em causa a igualdade na consideração de interesses dos não humanos. Significa antes que temos de ter cuidado quando comparamos os inte- resses de diferentes espécies. Em algumas situações, um membro de uma espécie sofrerá mais do que o de outra. Neste caso devemos continuar a aplicar o princípio da igualdade na consideração de interesses, mas o resultado dessa atitude consiste, é claro,em dar prioridade ao alívio do maior sofrimento. (Singer, 1993) Singer ilustra a situação com o seguinte exemplo: “se eu der uma forte pal- mada na garupa de um cavalo, este pode sobressaltar-se, mas é de presumir que sinta pouca dor. A sua pele é suficientemente espessa para o proteger de uma sim- ples palmada. Porém, se eu der a mesma palmada num bebê, este chorará e é de presumir que sinta dor, porque a sua pele é mais sensível. Logo, é pior dar uma palmada numa criança do que num cavalo, se ambas forem administradas com i- gual força. Mas tem de haver algum tipo de golpe – não sei o que poderá ser, mas talvez uma pancada com um pau pesado – que cause ao cavalo tanta dor como a que provocamos a uma criança com uma simples palmada. É isto que pretendo di- zer com "a mesma quantidade de dor". E, se considerarmos um mal infligir uma dada quantidade de dor a um bebê sem motivo, temos de considerar igualmente um mal infligir a mesma quantidade de dor a um cavalo sem motivo – a não ser que sejamos especistas”. (Singer, 1993, p.45) Singer considera ainda que entre os seres humanos e os animais há outras di- ferenças que causam outras complicações. Os seres humanos adultos normais pos- suem capacidades mentais que os levarão, em certas circunstâncias, a sofrer mais do que os animais nas mesmas circunstâncias. Se, por exemplo, decidirmos efetuar experiências científicas extremamente dolorosas ou letais em adultos: humanos normais, raptados para o efeito ao acaso em parques públicos, os adultos que en- trem nos parques terão medo de serem raptados. O terror resultante representará uma forma de sofrimento adicional à dor provocada pelas experiências. As mes- mas experiências executadas em animais não humanos provocariam menor sofri- mento, uma vez que os animais não antecipariam o pavor de serem raptados e ví- timas de experiências. (Singer, 1993) Porém, o autor antecipa que isto não significa que seria um “bem” realizar essas experiências em animais, mas apenas que existe uma razão não especista pa- ra preferir usar animais em vez de adultos humanos normais. Mas seria preferível não se ter que fazer essas experiências, afirma Singer. Em defesa dos animais e procurando mostrar a incoerência dos argumen- tos do especistas, Singer se utiliza de um argumento que causará, senão a completa rejeição do seu argumento em favor dos animais, pelo menos será responsável por uma boa parte dela. Segue o argumento da seguinte maneira: “Note-se, contudo, que este mesmo argumento nos dá razões para preferir utilizar bebês humanos – talvez órfãos – ou seres humanos com deficiências intelectuais profundas em vez de adultos, uma vez que os bebês e os seres humanos com deficiências intelectuais profundas não fariam nenhuma ideia do que lhes iria acontecer: No que diz respeito a este argumento, os animais não humanos, os bebês e os deficientes intelectuais profun- dos estão na mesma categoria; e, se usarmos este argu- mento para justificar experiências em animais não hu- manos, temos de perguntar a nós próprios se também es- tamos preparados para permitir experiências em bebês humanos e deficientes intelectuais profundos. (Singer, 1993, p.45) Na verdade, nesse argumento o que Singer faz é tirar todas as consequências das premissas dos especistas, ou seja, se fizermos uma distinção entre os animais e estes seres humanos, como poderemos fazê-lo senão com base numa preferência moralmente indefensável em favor dos membros da nossa espécie? Se a inteligên- cia e a capacidade de consciência é a base no qual se assenta o raciocínio especis- ta, como não defender pesquisas com bebês humanos, talvez órfãos, ou seres hu- manos com deficiências intelectuais profundas em vez de adultos? Uma vez que os bebês e os seres humanos com deficiências intelectuais profundas não fariam nenhuma ideia do que lhes iria acontecer. Singer compreende que há, de fato, muitas áreas em que as capacidades men- tais superiores dos seres humanos adultos normais fazem diferença: antecipação, memória mais pormenorizada, maior conhecimento do que está a acontecer, etc. Estas diferenças explicam por que motivo um ser que está morrendo de cancro so- fre provavelmente mais que um rato. É a angústia mental que torna a posição do ser humano muito mais difícil de suportar. No entanto, estas diferenças não apon- tam todas para um sofrimento maior por parte de um ser humano. Mas também, segundo o autor, deve-se considerar que por vezes, os animais podem sofrer mais devido à sua compreensão limitada. (Singer, 1993) Quando estamos em guerra, afirma o autor, podemos capturar um soldado i- nimigo e explicar que, embora ele venha a ser torturado será, todavia, liberado as- sim que a guerra terminar. No entanto, quando capturamos animais selvagens não podemos lhe explicar que não ameaçamos as suas vidas. Um animal selvagem não pode distinguir uma tentativa de subjugar e prender de uma tentativa de matar, pe- lo que tanto uma como outra provocam o mesmo terror. (Singer, 1993) Uma objeção que Singer reconhece que poderia ser feita é a seguinte: é im- possível comparar o sofrimento de diferentes espécies e que, por esta razão, quan- do os interesses de animais e de seres humanos entram em conflito, o princípio da igualdade não serve de orientação. É verdade que a comparação do sofrimento en- tre membros de diferentes espécies não se pode fazer com precisão. Nem se pode comparar com precisão, pelos mesmos motivos, o sofrimento de seres humanos di- ferentes. Singer reconhece que a precisão não é essencial. Mesmo que quiséssemos evitar infligir sofrimento aos animais apenas quando os interesses dos seres huma- nos não fossem afetados, seríamos forçados a efetuar mudanças radicais na forma como tratamos os animais, o que teria implicações relativamente à nossa alimenta- ção, aos métodos de criação de animais, aos processos experimentais em muitas áreas da ciência, à nossa atitude perante a vida selvagem e a caça, as armadilhas e o uso de peles e relativamente a certas áreas do entretenimento, como circos, tou- radas e jardins zoológicos. Em consequência disso, a quantidade total de sofrimen- to causada seria grandemente reduzida; seria tão reduzida que é difícil imaginar outra mudança de atitude moral que causasse uma redução tão grande da soma to- tal de sofrimento no universo. (Singer, 1993) De acordo com Singer, o especismo alcança o seu patamar mais alto na utiliza- ção da carne de animais não humanos como alimento. Segundo o autor, a utilização da carne dos animais não é uma necessidade, mas sim um simples capricho: “os ci- dadãos das sociedades industrializadas podem facilmente obter uma alimentação a- dequada sem a utilização da carne dos animais. O peso esmagador das provas médi- cas indica que a carne dos animais não é necessária para a boa saúde nem para a longevidade. Tão pouco é a produção de animais nas sociedades industrializadas uma forma eficiente de produção de alimentos, dado que a maioria dos animais con- sumidos foi engordada com cereais ou outros alimentos que poderíamos comer dire- tamente. Quando alimentamos esses animais com cereais, apenas cerca de 10% do valor nutritivo se conserva na forma de carne para consumo humano. Portanto, com exceção dos animais criados inteiramente à base de terras de pastagens impróprias para cultivo, os animais não são comidos por motivos de saúde nem para aumentar a nossa quantidade disponível de alimentos. A sua carne é consumida como um luxo, porque as pessoas apreciam o seu sabor. (Singer, 1993, p.47) Singer reconhece que existem ou existiram povos que precisavam matar ani- mais não humanos para se alimentar. O exemplo oferecido por Singer é ocaso dos Esquimós, que vivem num ambiente em que têm de matar animais para a sua ali- mentação ou morrer de fome; eles podem justificar-se dizendo que o seu interesse em sobreviver se sobrepõe ao dos animais que matam. Porém, para Singer a maio- ria de nós não pode defender a sua dieta deste modo. (1993) Singer afirma que a argumentação contra a utilização de animais para a ali- mentação ganha especial relevância quando os animais são submetidos a condi- ções de vida miseráveis, para os seres humanos disporem da sua carne ao mais baixo custo possível. As modernas formas de criação intensiva aplicam a ciência e a tecnologia em prol da atitude segundo a qual os animais são objetos para o nosso uso. Para ter carne na mesa a um preço acessível, a nossa sociedade tolera métodos de produção de carne em que se aprisionam animais sencientes em condições su- perlotadas inadequadas durante a totalidade da sua vida. Os animais são tratados como máquinas que convertem forragem em carne. Não precisamos ir muito longe para constatarmos empiricamente o fato, basta fazermos uma vista a uma granja, fazendas ou criadouro de porcos. Singer quando trata da questão do valor da vida de seres humanos e animais não humanos fala que quando se considera o valor da vida, já não se pode dizer com tanta confiança que uma vida é uma vida e que é igualmente valiosa quer se trate de uma vida humana, quer se trate de uma vida de outro animal. Segundo o filósofo, não seria especismo defender que a vida de um ser autoconsciente, capaz de pensamento abstrato ou de planear o futuro, de atos de comunicação comple- xos, etc., é mais valiosa que a vida de um ser sem essas capacidades. (Singer, 1993). Porém o filósofo deixa claro que não é seu interesse afirmar que esta pers- pectiva é justificável ou deixa de ser, mas apenas que não pode ser simplesmente rejeitada como sendo especista, porque não é com base na espécie em si que se pode sustentar que uma vida é mais valiosa que outra. De acordo com o pensamento de Singer, o valor da vida constitui um problema ético notoriamente difícil, de modo que só se pode chegar a uma conclusão racional sobre o valor comparativo da vida humana e da vida dos animais não humanos depois de se discutir o valor da vida em geral. (1993). Porém, o que é certo é que, e isso in- depende do valor que se possa atribuir à vida de humanos e animais não humanos, a dor e o sofrimento são maus e devem ser evitados ou minimizados, independentemen- te da raça, sexo ou espécie do ser que os sofrem, posto que o maior ou menor sofri- mento provocado por uma dor depende de quão intensa ela é e de quanto tempo dura, mas as dores da mesma intensidade e duração são igualmente más, quer sejam senti- das por seres humanos, quer sejam por animais não humanos. (Singer, 1993) O filósofo Carlos Naconecy no seu livro Ética e animais organizou o pensa- mento de Peter Singer do seguinte modo: I. O princípio moral fundamental é o de “igual consideração de interesses”: Ou seja, interesses semelhantes merecem consideração semelhante. II. A senciência 2 é um pré-requisito para se ter interesse. Dizer que uma cria- tura tem interesse significa supor que ela se importa com o que lhe acontece; que ela prefere experienciar satisfação à frustração – num nível mínimo, ela prefere não sofrer ou não reduzir seu bem-estar. III. Pelo menos todos os animais vertebrados são sencientes e, portanto, tem interesses. IV. O princípio de igual consideração de interesses, deve, então, se aplicar tanto a humanos quanto a animais, sendo que devemos dar prioridade para os inte- resses mais fortes e tratamento igual para interesses de mesma força. V. Somos moralmente obrigados a calcular os danos (custos) e benefícios das nossas ações, a fim de maximizar a satisfação dos interesses do maior número en- volvido. Esse cálculo pode vir a justificar o nosso uso de animais, desde que os benefícios para os humanos ultrapassem o custo para os animais. VI. Há limites éticos para a utilização de animais por nossa parte. Uma vez que os animais merecem um respeito moral mínimo, devemos abandonar as práti- cas que desconsideram ou desvalorizam seus interesses. VII. Animais não sencientes, vegetais e ecossistemas devem ser protegidos por razões indiretas, uma vez que sua condição pode afetar os indivíduos sencien- tes, atuais e futuros (em termos estéticos, científicos, simbólicos, de bem-estar e de sobrevivência). (Naconecy, 2006, p.173) 3. CONCLUSÃO Singer é considerado um dos maiores defensores do princípio de igual consi- deração entre animais humanos e animais não humanos. Essa sua fama não é sem motivo. De fato, ele representa uma visão completamente nova. De acordo com ele mesmo, muitos filósofos já haviam aventando a possibilidade de utilização do princípio de igual consideração, sobretudo os filósofos do utilitarismo. O que Singer faz, e isso ficou patente no texto, foi alargar o alcance de tal princípio, não mais só seres humanos serão beneficiados com a utilização desse principio, mas também os animais não humanos passarão a ter os seus direitos mo- rais reconhecidos. De acordo com o filósofo, também os animais são seres morais, não no sentido de que eles possam desenvolver uma moralidade, isso é propria- mente humano, mas no sentido de que eles também podem sofrer com as ações dos humanos. A possibilidade de que os animais não humanos podem ser afetados pelas a- ções humanas e muitas vezes essas ações podem provocar os mais terríveis des- confortos, os tornam seres morais. O mesmo não se pode dizer de uma pedra ou de uma mesa, já que estas são possuem senciência nem em maior nem em menor 2 Senciência, é a "capacidade de sofrer ou sentir prazer ou felicidade". Não inclui, necessariamente, a auto-consciência grau. Ter capacidade de sentir dor ou alegria é, segundo o filósofo, o que torna os animais sujeitos de direito. O princípio de igual consideração supõe que os envolvidos possam ter capa- cidades de sentir, de preferir sentir alegria a tristeza, porém não supõe que os en- volvidos sejam capazes de expressar tal desejo ou que o sujeito seja inteiramente inteligente como o são os seres humanos, pelo que o argumento em favor da capa- cidade de linguagem e inteligência como sendo o que garante o direito ao princípio de igual consideração resulta incompleto. De acordo com Singer, tratar os animais não humanos como se eles não fos- sem sujeitos morais é resultado de uma mentalidade antropocêntrica, porém mais do que nunca é preciso superar tal mentalidade. Por muitos anos os animais não humanos foram esquecidos e, por isso foram sempre tratados como coisas, objetos à disposição dos homens. Não é mais possível que essa situação se arraste por mais tempo. Tendo o homem alcançado uma maturidade ética considerável, deve ele, então, reconhecer a sua divida para com os animais não humanos e reconhecê- los como seres morais. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BENTHAM, Jeremy, 1748-1832. Uma introdução aos princípios da moral e da le- gislação / Jeremy Bentham; tradução de Luiz João Baraúna. Sistema de lógica dedutiva e outros textos/ John Start Mill; tradução de João Marcos Coelho, Pablo Rubén Mariconda. – 3. ed. – São Paulo: Abril Cultural, 1984. NACONECY, Carlos M. Ética e Animais: um guia de argumentação filosófica. Porto Alegre, RS: EDIPUCRS, 2006. NEDEL, Jose. Ética aplicada: pontos e contrapontos. São Leopoldo: EDITORA UNISINOS, 2004. SINGER, Peter. Libertação Animal. [tradução de Marly Winckler]. Porto Alegre: Lugano, 2004 ____________ Ética prática. [tradução ÁlvaroAugusto Fernandes]. Tipografia Lugo, Ltda. 1993
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