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Francisco Assis Toledo Crimes hediondos

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I,
FASCÍCULOS DE
CIÊNCIAS PENAIS
trimestral - ano 5 - v.s - n.2 - p.1-144 - abr/mai/jun - 1992
ÍNDICE
CORRÊA, Gilberto Niederauer - Aspectos penais e processuais no Có-
digo Eleitoral 3
CÂNDIDO, Joel José - Os direitos políticos, a condenação criminal irre-
corrível e o papel do Ministério Público Eleitoral na nova Constituição . 27
MENDES, Antonio Carlos - Da suspensão dos direitos políticos por efei-
to de condenação criminal . . . . . . . .. 35
FRANCO, Alberto Silva - Lei de crimes hediondos . . . . . . .. 43
TOLEDO, Francisco de Assis - Crimes hediondos . . . . . . . 58
BÁRTOLI, Márcio - Crimes hediondos (Lei 8.072 de 25-07-90) ..... 70
SANTOS, Gérson Pereira dos - Para repensar a parêmia "Societas delin-
quere 1l01l potest" 83
SANGUlNÉ, Odone - Prisão provisória e princípios constitucionais 96
DEL OLMO, Rosa - O Estado na América Latina: mitos e realidades na
legislação de drogas 125
I
I
I
I
il
JURISPRUDÊNCIA ANOTADA
TUCCI, Rogério Lauria - "Presunção de inocência" e prisão provisória 133
AZEVEDO, David Teixeira de - Citação por requisição 136
Sergio Antonio Fabris Editor
Porto Alegre - RS
CRIMES HEDIONDOS*
Francisco de Assis Toledo
Ministro do STJ
Professor visitante da UnB
SUMÁRIO: J - Aspectos criticos; JJ - Prisão obrigatória;JIl-
Endurecimento das penas; W - Regime carcerário.
1. Inicialmente seja-me permi-
tido dizer, para evitar equívocos
quanto à posição que adoto frente
aos delitos de ação violenta, que é de
todo justificável a preocupação hoje
dominante no sentido de encontrar
soluções mais adequadas em relação
a esses crimes. Lembrem-se todos de
que a reforma do Código Penal
brasileiro, empreendida em 1984,
atingiu apenas a Parte Geral, restan-
do ainda por reformar a Parte Espe-
cial onde estão modelados os crimes
e cominadas as penas. Com a refor-
I - ASPECTOS CRÍTICOS
que o que pretendem é, nada mais,
nada menos, a volta simplista ao
passado, numa espécie de retrocesso
à ideologia do talião, à retórica da
"guerra contra o crime", através da
manipulação da pena criminal como
forma de exercício arbitrário do
poder estatal, com o já historica-
mente conhecido risco de desvios
para fins políticos ou subalternos.
É a respeito desse retrocesso que
me coloco em oposição decidida, em
que peseI; fato incontestável de ser
hoje mais cômodo e talvez mais con-
veniente perfilar-se ao lado da turba
que clama por punições mais severas
e até pela pena de mort~
lPenso, como salientou, em recen-
te obra, Alberto Silva Franco (1),
que o legislador constituinte de 1988,
ao editar a norma do art. 52, XLIII,
criando a categoria dos "crimes
hediondos", bem como o legislador
ordinário, ao regulamentar esse
preceito através da Lei 8.072/90,
agiram apressada e emocionalmente
na linha da referida ideologia da law
and order. Essa ideologia, típica da
sociedade norte-americana, que, di-
ga-se de passagem, desde a década
de 20, vem perdendo a "guerra con-
tra o crime", ganha espaço e adeptos
entre nós, principalmente entre po-
líticos, promotores de justiça e de-
legados de polícia.j
De minha parte, na direção dia-
metrai mente oposta, continuo fiel
aos princípios enunciados em con-
ferência proferida no encerramento
ma, total ou parcial, da Parte Espe-
cial é que se deveria examinar essa
questão da conveniência de maior ou
menor severidade nas sanções de
direito penal, em relação a certos
cnmes.
Infelizmente, sem fazer essa ne-
cessária distinção entre parte geral e
parte especial, misturando, portanto,
alhos com bugalhos, propala-se por
aí que a reforma penal de 1984
enfraqueceu o sistema, que as pe-
nas existentes são insuficientes etc.
Quando, entretanto, topamos com as
soluções preconizadas por esses
críticos improvisados, percebemos
Palestra proferida em 25 de março de 1992, na Associação dos Advogados de São Paulo
(AASP), no Curso de Estudos sobre Temas de Direito Penal e Processo Penal coordenado
pelo professor Alberto Zacharias Toron. 1 - Crimes hediondos, RT, p.22-27, 36 e segs.
Fase. de Clênc. Penais. Porto Alegre, v.S, n.2, p.58-69, abr/mai/jun, 1992
do I Congresso Brasileiro de Política
Criminal e Penitenciária, de 1981, no
qual se discutiram os projetos de
reforma penal, ocasião em que tive
oportunidade de afirmar o seguinte:
"9. Temos defendido a idéia,
hoje dominante, de que não há um
método simples de combate à cri-
minalidade, seja ele jurídico-re-
pressivo, assistencial, político ou
econômico. O que pode haver é
uma estratégia global de pre-
venção e repressão, envolvendo
tudo isso. Qualquer sociedade que
pretenda pelo menos reduzir a
índices toleráveis o nível dos de-
litos que nela se cometem, deve
empenhar-se como um todo na
realização desse objetivo, através
de bem elaborado programa.
Não obstante, dentro dessa
estratégia global, tem o Direito
Penal o seu papel a desempenhar,
pois, conforme vimos, a pena cri-
minal, como dura e necessária
realidade humana, aí está e, em-
bora mutável, não há perspectiva
de que possa um dia vir a ser
totalmente abolida.
Qualquer que seja a idéia que
se tenha do crime e da pena,
correto será, hoje, dizer-se, com
Gimbernat Ordeig, que uma ciên-
cia desenvolvida do Direito Penal
torna possível o controle dos tipos
penais, e porque a pena é um meio
necessário e terrível de política
social e porque temos que con-
viver com o Direito Penal, a dog-
59
.I mática jurídico-penal tem ainda o
seu futuro.
10. É preciso, entretanto, não
confundir a parte com o todo, isto
é, não supor, como se tem feito,
por vezes, que o Direito Penal seja
suficiente ou o único instrumento
válido de combate ao crime. Isso
nos leva a ter que repensar a
missão do Direito Penal para
situá-Ia dentro de seus justos e
verdadeiros limites, sem exageros
e sem deficiências, o que significa,
em última análise, uma profunda
revisão de conceitos e do orde-
namento jurídico vigente." (2)
Como se vê, não é necessário
tomar partido entre os que pro-
fetizam o desaparecimento ou o
enfraquecimento do direito penal,
mas também não é forçoso fazer
parte do coro dos que fizeram opção
em prol de um direito penal do
passado ou do terror, do qual a
humanidade evoluiu, a duras penas,
a partir do Século das Luzes.
A denominada lei dos crimes he-
diondos é um signo dessa última
tendência.
2. (Mas essa malfadada lei que, ao
que parece, não vem produzindo os
efeitos desejados, no sentido de re-
duzir oscrime~de extorsão median-
te seqüestro, estupro, tráfico e ou-
tros (3), possui esse defeito e tam-
60
bém outros de técnica jurídica, de
certa gravidade,
Em trabalho recentemente pu-
blicado (4), examinei alguns desses
defeitos. O primeiro deles está logo
no art. 12 da referida lei, onde se
omitiu, sem qualquer explicação
lógica, algumas formas do homicídio
qualificado. Disso resulta o seguinte:
se o agente mata por encomenda,
mediante pagamento em dinheiro, o
crime não será hediondo, apesar de
tratar-se de uma hipótese de ho-
micídio por motivo torpe; mas, se o
agente tenta matar com o objetivo de
subtrair coisa alheia móvel (tentativa
de latrocínio), o fato, evidentemente
menos grave, será crime hediondo,
ante a expressão final do art. 1Q
("tentados ou consumados").
Qual a razão dessa condescen-
dência com o homicídio qualificado?
Não será ele, no exemplo acima,
igualmente torpe, repulsivo? Que
diferença substancial existe entre
matar ou tentar matar para roubar e
matar por encomenda, para ganhar
certa quantia em dinheiro, ou, ainda,
para assegurar o produto de outro
crime?
Não tenho resposta para tais
indagações. Os responsáveis pela
redação dessa lei estão no dever de
dar explicações convincentes a res-
peito, se é que isso seja possível.
2 - Anais, Imprensa Nacional, v.I, p.74-75.. , . _ '
3 - O Estado de São Paulo, edição de 14/07/91, publicou, com grande destaque, notrcranoso?re a
ineficicãcia dessa lei, decorrido um ano de sua vigência, No mesmo sentido, trabalho CItado
por Alberto Silva Franco, op. cit., p.36, , ,
4 - "Crimes hediondos" (alguns aspectos importantes), in Livro de Estudos Iuridicos, n.S, p.204 e
segs.
3. O art. 2°, I, da lei em exame
contém, segundo penso, evidente in-
constitucionalidade ao incluir a
proibição do "indulto" ,não referida
no art. 5°, XLIII, da Constituição. A
lei ordinária, nesse aspecto, foi além
da autorização constitucional que,
por constituir norma de exceção, é
de interpretação restrita. Além dis-
so, o indulto está expressamente
previsto, com esse nome, no art. 84,
XII, da Constituição, que o inclui na
competência do Presidente da Re-
pública. Esse poder discricionário do
Chefe do Executivo tem seus limites
no próprio texto constitucional, não
podendo sofrer restrições pelo legis-
lador ordinário. Ora, a Constituição,
quando quis fazer restrições, men-
cionou, no art. 52, XLIII, a anistia e a
graça, deixando de fora o indu/to a
que se refere o mencionado art. 84,
XII.
Relembremos alguns conceitos
básicos. Graça, lato sensu, significa
"poder de clemência", abrangendo a
anistia, o indulto e a graça strieto
sensu. Esta última é uma espécie de
benefício emanado do exercício
desse poder, isto é, uma espécie do
gênero. Nesse sentido, Manzini (5),
e entre nós CreteUa Jr. e outros (6).
~ anistia fa~ desaparecer o crime. É
ato legislativo de competência, por-
tanto, do Poder Legislativo. Pode ser
concedida antes (própria) ou depois
(imprópria) da condenação; pode,
ainda, ser geral ou parcial, con-
dicionada ou não. O indulto e a graça
stricto sensu, ao contrário, extinguem
a punibilidade, pressupõem conde-
nação e são atos da competência do
Presidente da República. O indulto,
entretanto, é medida de alcance
geral, aplicável a todos os con-
denados que preencham os requisi-
tos e condições da concessão do
benefício, ao passo que a graça,
diferentemente, é ato concreto, res-
trito à pessoa determinada, que a
tenha requerido (7). É a graça um
indulto individual.
Proibindo o art. 52, XLIII, duas
espécies de clemência, ou seja, a
anistia e a graça, é óbvio que não se
estende a proibição a uma terceira
espécie distinta - o indulto -, não
contida em qualquer dessas duas
espécies. Aliás, se assim não fosse, a
lei de crimes hediondos não pre-
cisaria ter mencionado, destacada-
mente, as três espécies - anistia,
graça e indulto -, bastando repetir o
texto constitucional.
Anote-se que há uma certa lógica
na exclusão do indulto, por se tratar
de medida coletiva, que não apaga o
crime, como ocorre com a anistia,
nem privilegia um certo condenado,
como se dá com a graça strieto sensu.
4. Tão desatento e apressado es-
tava o legislador brasileiro, nessa
ocasião, que não se deu conta de que
5 - Trattato, Utet, v.III, p.404.
6 - Comentários à Constituição de 1988, FU, I, p,488-9.
7 - Heleno Fragoso, Lições, Parte Geral, 5,ed" p.410-12.
61
a lei de crimes hediondos, que é de
25 de julho de 1990, entrava em
choque, em alguns aspectos, com O
estatuto da criança, Lei 8.069, de 13
de julho, isto é, do mesmo mês e ano.
Com isso, parece-me que a es-
tatuto em causa ficou na contramão
ao acrescentar um parágrafo aos
arts. 213 e 214 do Código Penal, sem
considerar a modificação operada no
caput.
Com efeito, o Estatuto da Crian-
ça, na parte infeliz em que se arvorou
em reformador penal, determinou,
no art. 263, entre outr.as, estas mo-
dificações no Código Penal:
"Art, 213....
Parágrafo único. Se a ofendida
é menor de catorze anos:
Pena - reclusão de quatro a
dez anos.
Art. 214....
Parágrafo único. Se o ofendido
é menor de catorze anos:
Pena - reclusão de três a nove
anos."
Ocorre que, pelo art. 62 da Lei
8.072, que é também de julho de
1990, publicada dez dias depois do
estatuto, a pena do caput desses dois
artigos passou a ser de seis a dez
anos de reclusão, sem falar no au-
mento do art. 92• Se procurarmos
compatibilizar essas duas leis, quase
concomitantes, que parecem não ter
sido votadas pelo mesmo Congresso
Nacional, com poucos dias de di-
ferença, teremos esta monstruo-
62
sidade, caso prevaleça o estatuto
que é de vigência posterior: '
a) estupro contra mulher de 14
anos ou mais, pena de seis a dez anos
(Lei 8.072);
b) estupro contra criança de me-
nos de 14 anos, pena mínima re-
duzida para quatro anos (Lei 8.069);
c) atentado sexual violento con-
tra pessoa de 14 anos ou mais, pena
de seis a dez anos (Lei 8.072);
d) se o mesmo atentado atingir
criança com menos de 14 anos, a
pena será reduzida de seis a dez anos
para três a nove anos (Lei 8.069).
A esse resultado .se chegaria pela
consideração de que o estatuto da
criança, por força de seu art. 266,
entrou em vigor após a lei de crimes
hediondos, pelo que, em princípio,
sobre ela deveria prevalecer.
Tenho-me esforçado por superar
esse descuido legislativo, na via de
uma hermenêutica construtiva.
Vejo a questão com estes olhos: o
estatuto das criança (Lei 8.069, de
13/07/90), anterior à lei de crimes
hediondos (Lei 8.072, de 25/07/90),
quis agravar a pena dos delitos
sexuais contra criança, ao acrescen-
tar aos arts. 213 e 214 os parágrafos
citados. A lei posterior de crimes
hediondos aumentou em quantidade
ainda maior as penas desses crimes,
sem reeditar os parágrafos acrescen-
tados pelo anterior estatuto da
criança, por desnecessários.
Com isso, segundo penso, a Lei
8.072/90 revogou, com seu novo sis-
tema de punição aos crimes em foco,
o sistema anteriormente estabele-
cido pelos parágrafos acrescentados
pelo estatuto da criança.
Aliás, só pode ter sido essa a
vontade de um legislador desatento,
que de nenhum modo, supomos nós,
poderia ter pretendido premiar o
atentado sexual contra crianças in-
defesas.
Com essa interpretação, adota-se
princípio de hermenêutica recomen-
dado por Windscheid, segundo o
qual deve-se "atender, por último, ao
valor do resultado, pelo menos na
medida em que será de admitir que o
legislador preferiu dizer algo de sig-
nificativo, de adequado, em vez de
algo de vazio e inconveniente" (8).
Lembro que solução análoga deu
o Supremo Tribunal Federal ao con-
siderar derrogada, tacitamente, a
exigência de recurso de ofício, nos
crimes de tráfico de drogas, por não
reproduzida essa exigência nas leis
posteriores, que, todavia, não re-
vogaram expressamente a norma do
art. 72 da Lei 1.521/57.
O fato de a Lei 8.069/90 (Estatuto
da Criança) ter entrado em vigor
depois da Lei 8.072/90 (crimes he-
diondos) não modifica o raciocínio,
já que a lei pode sofrer alterações
por outra editada no período de
vacatio legis, como ocorreu, por
exemplo, com o Código de 69 (Dec.-
Lei 1.004/69), alterado pela Lei
6.016/73, em pleno prazo de va-
cância.
5. Embora se trate de matéria
polêmica, penso que o art. 82 da lei
de crimes hediondos não deixa dú-
vidas sobre a aplicação do Código
Penal (art. 288) à quadrilha ou ban-
do, em tráfico de entorpecentes, o
que também parece ter ocorrido por
descuido, por se referir apenas ao
tráfico e não a outras modalidades
assemelhadas.
Com isso, parece-nos também
revogado, por incompatibilidade, o
art. 14 da lei de tóxicos (Lei
6.368/76). E assim é porque não terá
sentido punir-se a associação de
duas pessoas com a pena de 3 a 10
anos de reclusão e multa, mas punir
com pena menor, de 3 a 6 anos, o
bando ou a quadrilha de 4 ou mais
pessoas, para o fim de tráfico.
Tem-se a impressão, neste e em
outros aspectos, que o legislador
agiu, consciente ou inconsciente-
mente, como se desconhecesse a
existência de normas legais ante-
riores sobre os temas que, de novo,
estavam sendo objeto de regula-
mentação pela nova lei. É um pri-
marismo injustificável.
Pode-se, contudo, dizer que, nes-
se aspecto, querendo ou não, a nova
lei acertou, já que a associação ou
quadrilhade dois, da lei de tóxicos,
não tinha justificativa e criava enor-
mes dificuldades para a distinção
com a co-autoria e demais formas de
concurso eventual, fato que, de agora
em diante, poderá não se repetir.
8 - In KARL LARENZ, Metodologia da ciência do direito, trad. portuguesa, p.26.
63
6. O parágrafo único do art, 82 e o
acréscimo do § 42 ao art. 159 do
Código Penal, feito pelo art., 72,
determinando redução de um a dois
terços da pena para o membro da
quadrilha que denunciá-Ia à auto-
ridade, tem objetivo louvável mas
não terá, segundo penso, efeitos
práticos porque implica confissão e
condenação do denunciante, o que,
na área da criminalidade, não cons-
titui estímulo para quem, muito
provavelmente, passará a ser objeto
de vingança por parte do bando
(trocará alguns anos ou meses de
cadeia, com assistência e proteção,
por alguns anos de cadeia com a
pena de morte, aplicada pelos com-
parsas, o que é um mau negócio).
O legislador, aqui, foi evidente-
mente ingênuo. Se quisesse os fins,
deveria ter concedido os meios para
atingi-Ias, ou seja: isenção de pena e
proteção do denunciante, como
ocorre nos Estados Unidos da
América.
)
11 - PRISÃO OBRIGATÓRIA
7. A lei em exame abriu, no § 22
do art. 22,uma brecha para aplicação
dos mesmos favores da denominada
Lei Fleury aos crimes hediondos e ao
tráfico de entorpecentes, sem men-
cionar sequer as restrições do art.
594 e do § 22 do art. 408 do CPP
(exigência de primariedade e bons
antecedentes).
Sobre esse tema tive oportuni-
dade de proferir voto no Superior
64
Tribunal de Justiça, no Recurso de
Habeas Corpus n2 1.077-MG, salien-
tando o seguinte:
réu o benefício de apelar em liber-
dade.
Isso implica em ab-rogação ou
revogação total do caput do art. 35
da Lei de Tóxicos pelo § 22 do art.
22 da lei de crimes hediondos?
Penso que não. Primeiro por-
que, como já se viu, a última lei, no
seu art. 10, quis manter o art. 35 ao
acrescentar-lhe um parágrafo.
Segundo, porque a referida norma
do art.' 35 situa-se frente à do
mencionado § 22 do art. 22 numa
evidente relação de regra-exceção.
Vale dizer: confrontando-se os
dois preceitos aparentemente con-
traditórios, teremos não a anu-
lação de um pelo outro, mas sua
compatibilização. O resultado des-
sa compatibilização é o seguinte:
'O réu condenado por infração
dos arts. 12 ou 13 desta Lei (Lei de
Tóxicos) não poderá apelar sem
recolher-se à prisão (art. 35, ca-
Pllt),
exceção será a permissão de ape-
lar em liberdade quando o juiz,
fundamentadamente, deferir tal
benefício ao condenado.
Outra questão que se põe é a de
saber se o benefício de apelar em
liberdade abrange o condenado
que já estava preso, por força de
flagrante ou prisão preventiva, ou
se, como acontece com a hipótese
do art. 594 do CPP, só poderá ser
deferido a quem respondia ao
processo em liberdade.
Tenho, para mim, que é correto
dizer-se não ser possível ao intér-
prete introduzir na lei uma con-
dição não estabelecida pelo le-
gislador. Não obstante, como não
se pode, igualmente, identificar o
§ 22 do art. 2º da lei de crimes
hediondos o intuito de revogação
de prisão fundada em outras
causas que não a exigência para
apelar (a prisão em flagrante ou
preventiva tem outras causas), não
considero abrangido por esse pre-
ceito, tal como ocorre com o art.
594 do CPP, o condenado que já
estava preso em flagrante ou pre-
ventivamente. Nessa hipótese, os
dispositivos aplicáveis são os dos
arts. 310, parágrafo único, e 316 do
CPP.
A não ser assim, chegaríamos a
resultados absurdos, a saber:
a) réu preso em flagrante ou
preventivamente, por furto, não
poderá apelar em liberdade (art.
594 do CPP); mas, nas mesmas
circunstâncias, se for condenado
por latrocínio, poderá ser posto
65
"A lei de crimes hediondos,
criticável pela má técnica com
que foi redigida e pelas con-
tradições que apresenta, manteve
expressamente, o art. 10, o art. 35
da Lei 6.368/76 (Lei de Tóxicos),
tanto que lhe acrescentou um
parágrafo mandando contar em
dobro os prazos procedimen-
tais.
Todavia, em seu art. 22, § 22,
dispõe contraditoriamente o se-
guinte:
'§ 2Íl Em caso de sentença
condenatória, o juiz decidirá fun-
damentadamente se o réu poderá
apelar em liberdade.'
A contradição se estabelece
com o caput do art. 35 estatuindo a
impossibilidade de se apelar em
liberdade, nestes termos:
'Art, 35. O réu condenado por
infração dos arts. 12 ou 13 desta
Lei não poderá apelar sem reco-
lher-se à prisão.'
Como o dispositivo do § 22,
anteriormente transcrito, refere-
se, entre outros, aos crimes de
tráfico ilícito de entorpecentes e
drogas, não-há dúvida de que algo
mudou na draconiana proibição
do art. 35, pois se por este não era
dado ao juiz admitir a apelação
sem a prisão do condenado, agora,
pelo § 22, sobrevindo a condena-
ção, ser-lhe-á permitido, em des-
pacho fundamentado, conceder ao
salvo se
o juiz, em decisão fundamentada,
conceder-lhe tal benefício (§ 2º do
art. 22 da lei de crimes hedion-
dos).'
Nessa linha de raciocínio, che-
ga-se à conclusão de que o
preceito em exame da Lei 8.072/90
não ab-rogou e sim derrogou
(revogação parcial) o art. 35 da
Lei de Tóxicos acrescentando-lhe
uma hipótese de exceção. A regra,
portanto, continua sendo a proi-
bição de apelar em liberdade; a
em liberdade para recorrer (§ 2º
do art. 22);
b) réu, preso preventivamente,
e condenado por prática de es-
tupro, pode ser posto em liber-
dade para recorrer: mas se, em
face da prova, o juiz desclassificar
o crime para a figura bem mais
benigna de posse sexual mediante
fraude, não poderá permitir ao
preso apelar em liberdade."
Em outro Recurso de Habeas
Corpus, de que fui relator, a ementa
espelha esse entendimento:
"PROCESSUAL PENAL. RE-
CURSO DE APELAÇÃO. NE-
CESSIDADE DE PRÉVIO RE-
COLHIMENTO À PRISÃO.
1. Tráfico de tóxicos. Alegação
de revogação do art. 35 da Lei de
Tóxicos pelo § 22 do art. 22 das
lei de crimes hediondos (Lei n2
8.072/90). Improcedência dessa
alegação, visto como os dispo-
sitivos legais em foco posicionam-
se numa evidente relação de re-
gra-exceção, isto é, o art. 35 estatui
a regra, o § 22 do art. 22 uma
exceção quando o juiz fundamen-
tadamente julgar recomendável o
benefício.
2. Condenado que já estava
preso, por ocasião da sentença
condenatoria. Hipótese não alcan-
çada pelo § 22 do art. 22 da Lei
8.072/90 que não tem o intuito de
revogar prisão fundada em outras
causas não identificáveis com a
simples exigência para apelar.
)
66
3. Presunção de inocência. 'A
exigência de prisão provisória, pa-
ra apelar, não ofende a garantia
constitucional da presunção de
inocência'. (Súmula STJ/09).
Recurso de habeas corpus a que
se nega provimento." (RHC n2
1.141-RJ, DJ 10/06/91, p.7.857).
8. Outra questão, que tem sido
suscitada, é a de saber se a proibição
da liberdade provisória sem fiança,
incluída no art. 22,lI, da Lei 8.072/90,
ofende ou não a Constituição, já que
esta cuida da inafiançabilidade dos
crimes que indica, não da hipótese
de liberdade sem fiança.
Saliente-se, inicialmente, no to-
cante à proibição da fiança, a
ociosidade dessa norma. É que a
quase totalidade dos delitos men-
cionados nos arts. 12 e 22 a Lei
8.072/90 possuem pena mínima supe-
rior a dois anos de reclusão ou são
crimes que se cometem com em-
prego de violência ou grave ameaça à
pessoa. Isso quer dizer que, no
tocante a esses crimes, a prestação
de fiança já estava expressamente
vedada pelo Código de Processo
Penal no art. 323, I e V. A nova lei,
nesse aspecto, choveu no molhado, o
que revela uma injustificada desa-
tenção do legislador para com a
legislação vigente.
Relativamente à liberdade provi-
sória sem fiança, a proibição efetiva-
mente inovou. E, nesse particular, há
quem sustente a inconstitucionali-
dade da proibição.
Diz a Constituição no art. 5º,inciso LXVI:
"ninguém será levado à prisão ou
nela mantido, quando a lei admitir
a liberdade provisória, com ou sem
fiança."
Como se vê, a norma cons-
titucional assegura o direito à liber-
dade provisória, com ou sem fiança,
nos limites estabelecidos pela lei
ordinária. Assim, segundo penso,
não há dúvida de que o legislador
ordinário pode ampliar ou restringir
esse direito, sem violentar a letra e o
espírito da lei maior. E assim é
porque, se a Constituição, de um
lado, assegura o direito à liberdade
(art. 52, caput), de outro, permite
expressamente a prisão dos indi-
víduos submetidos a inquérito ou a
processo (art. 52, LXI). Assim, onde
couber a prisão, não se poderá negar
o seu efeito mais imediato, ou seja, a
privação temporária da liberdade.
Ora, só se pode cogitar de liber-
dade provisória, no sistema proces-
sual penal vigente, quando o indi-
ciado ou acusado estiver regular-
mente submetido a uma ordem de
prisão (flagrante ou mandado judi-
cial). Se essa ordem não for regular
ou legítima, caberá, obviamente, o
relaxamento ou a revogação do ato
coator, não a liberdade provisória.
Portanto, a liberdade provisória su-
põe prisão legítima, regular, pelo que
pode ser ampliada ou restringida na
lei que a admite.
Assim, embora não me pareça
inconstitucional a referida proibição
de liberdade provisória sem fiança,
pelo legislador ordinário, ressalvo
que, mesmo nessa hipótese, fica em
aberto a discussão sobre a legali-
dade, ou não, da própria prisão, já
que, no direito brasileiro, a regra é a
da inviolabilidade do direito à liber-
dade (art. 52, caput) e da presunção
da inocência (art. 52, LVII), sub-
metendo-se todas as formas de pri-
são ao princípio da legalidade, vale
dizer, à estrita observância de uma
previsão legal, além dos pressupos-
tos e requisitos também estabe-
lecidos em lei.
Por outro lado, parece-me correta
a conclusão de acórdão da 6a Câ-
mara Criminal do Tribunal de Jus-
tiça de São Paulo no sentido de que,
quando for discutível ou duvidosa a
capitulação do crime constante da
denúncia, não estará o juiz ou tri-
bunal impedido de deferir a liber-
dade provisória, "em face do delito
mais ajustado ao caso concreto",
para evitar uma injustiça flagrante.
(Dos votos dos Des. Nelson Fonseca
e Djalma Lolrano, RT, 671/328-329.)
III - ENDURECIMENTO
DAS PENAS
9. A questão do tamanho de uma
certa pena criminal não pode ser
solucionada de modo empírico, iso-
lado, em desacordo com o sistema de
penas adotado.
67
E isso ocorreu com o art. 92 da Lei
8.072/90. Basta lembrar, como exem-
plo, que, em relação ao latrocínio
(art. 157, § 32), com resultado morte,
a pena de 20 a 30 anos passaria a ser
de 30 a 45 anos, mas observado o
limite de 30 anos, a pena mínima e
máxima se confundiriam nesse li-
mite, tornando sem efeito o art. 59 do
Código Penal que trata da indivi-
dualização da pena. Como, entretan-
to, o citado preceito do Código, pelo
princípio da recepção, está sob a
proteção de norma expressa cons-
titucional ("a lei regulará a indi-
vidualizaçãoda pena" ..., art, 52,
XLVI), parece lógico supor que,
nessa e em outras hipóteses de
identificação do mínimo com o
máximo da pena cominada, o legis-
lador ordinário burla a norma cons-
titucional da individualização, pelo
que, conforme sustenta Alberto
Silva Franco, ingressou, de novo na
via tortuosa da inconstitucionalida-
de (9).
A questão - repita-se - da me-
nor ou maior exacerbação das co-
minações penais deveria ser reme-
tida para a ocasião das reforma da
parte especial do Código.
IV - REGIME CARCERÁRIO
A determinação contida no § 12
do art. 22 ("a pena por crime previsto
neste artigo será cumprida integral-
9 - Op. cit., p.154.
68
mente em regime fechado") é fruto
- só pode ser isso - da. mais
completa ignorância a respeito do
sistema progressivo de execução da
pena adotado pela reforma penal
brasileira de 1984, a respeito do qual
salientei, na conferência inicialmente
citada, o seguinte:
dentro de um retributivismo kan-
tiano, formal e desalmado." (10)
nutenção da disciplina no interior
dos estabelecimentos penais. Sim,
porque, sem o benefício do sistema
progressivo, o condenado só terá um
caminho para antecipar a liberdade:
a rebelião ou a fuga.
É lamentável que um legislador
desatento e mal assessorado tenha
retirado da Administração da Justi-
ça esse precioso instrumento de ma-
"20. Em relação à pena de
prisão, instituiu-se um subsistema
verdadeiramente progressivo, sem
possibilidade de perpetuação da
segregação social, para cumprir-se
o mandamento constitucional do
art. 153, § 11, da Carta Magna. E
deu-se a essa discutida pena o
caráter de "pena programática",
ou seja, de algo que se modifica,
dentro de certos limites e de certas
garantias, no curso da execução,
por atuação da Administração da
Justiça e do próprio condenado,
segundo o seu mérito ou demérito.
Com isso abre-se uma concreta
esperança, para todo condenado,
no sentido de poder conquistar,
por seu próprio esforço, a liber-
dade, bem inalienável de todo ser
humano.
Essa esperança na liberdade
que, para o preso, deve significar
uma conquista, é o único in-
grediente, de que se pode valer o
aparelhamento penitenciário para
impregnar a execução da pena de
algum utilitarismo, de sorte a não
transformá-Ia em mero castigo,
10 =Perspectivas do direit? penal brasileiro, in Anais do I Congresso Brasileiro de Políti
Criminal e Penitenciãria, p.81. I ica
69
sobre a real intenção legislativa, por-
que é completamente desconhecido
o processo de elaboração do di-
ploma.
tado dado ao problema da violência
urbana, nos noticiários e ''programas
especializados em crimes", todos de
nítido caráter sensacionalista, com o
único objetivo de obter pontos nos
índices de medição de audiência,
mediante a exploração degradante
da miséria humana, que passaram a
exercer forte influência sobre a
sociedade, inspirando um grande
sentimento de insegurança, acom-
panhado de um clamor público por
um maior enfrentamento à "onda de
crimes".
O extraordinário poder de pres-
são dos meios de comunicação de
massa é tão forte, impondo aspi-
rações, gostos, costumes, que até as
pessoas componentes de classes
sociais economicamente menos abas-
tadas, influenciadas pela onda de
insegurança, passaram a temer a pos-
sibilidade de serem vítimas daquele
tipo de delito.
. Esse tipo de programação ocasio-
na sobre os seus ouvintes e espec-
tadores uma afetação estranha, que
contém um misto de sentimento de
insegurança, aliado a uma certa
atração pelo crime, conforme des-
tacou Hassemer ao analisar este úl-
timo aspecto que denominou como
"La [ascinaciôn de 10 criminal",
escrevendo que "Las novelas poli-
ciacas (o los te1efilms y películas) son
algo normal y generalmente un buem
negocio. Los medios de comuni-
cación informam casi exclusivamente
CRIMES HEDIONDOS
(Lei 8.072, de 25 de julho de 199())
Márcio Bárto/i
Juiz de Direito em São Paulo
Membro da Associação Juizes para a Democracia
SUMÁRiO: 1 -Aspectos criticos; 2 - Prisão preventiva obrigatória;
3 - Endurecimento das penas; 4 - Regime carcerário; 5 - Conclusão.
1- ASPECfOS CRÍTICOS
Se dezenas de preceitos cons-
titucionais aguardam regulamenta-
ção desde a promulgação da Carta
de 1988, é de indagar-se por que o
legislador ordinário preocupou-se
justamente com a disposição do art.
52, inciso XLVII, da Carta, que
previu as crimes hediondos, elabo-
rando, para tanto, uma lei com dis-
positivos de extrema severidade?
A pretensão seria combater a cri-
minalidade violenta, que tanto te-
mor tem trazido à população dos
grandes centros urbanos?
A resposta parece inclinar-se nes-
sa direção, apesar de pouco se saber
1.1 - Em verdade, se se partir
dessa premissa, verifica-se que o
legislador ordinário, teria demons-
trado preocupação em guerrear
principalmente os crimesde extorsão
mediante seqüestro, que atingiram
algumas pessoas de "extrato social e
econômico diferenciados".
Também cedeu até como uma
decorrência natural à forte coação
exercida pela mídia, através do rádio
e da televisão, pelo destaque exaI-
1 - Winfried Hassemer. Introducciôn a Ia criminologia y ai derecho penal, ed. Trant 10 Branch,
1989, p.3l.
Fase. de Ciênc. Penais. Porto Alegre, v.5, n.2, p.70-82, abr/mai/jun, 1992
de casos penales porque así satis-
facen el interés de sus lectores ... EI
asesinato, el robo, el secuestro y, en
general, todos los delitos violentos
con claras connotaciones delincuen-
te-víctimason Ias formas delictivas que
más fascinam a Ia gente y sobre Ias
que merece Ia pena informar. De Ia
estafa o de Ia falsedad documental,
que sólo producen danos patri-
moniales, apenas se habla" (1).
1.2 - Se o objetivo era, por outro
lado, o de proteger as possíveis
vítimas de seqüestros, deveria o le-
gislador, ao invés de usar a pressa e
simplesmente aumentar penas, ob-
servar a experiência legislativa de
outros Países onde se exerceu forte
combate contra esse tipo de crime,
como por exemplo a Itália, nos anos
6OnO.
Mas para que, se com maior
ameaça penal poderiam resolver
mais facilmente esse problema?
1.3 - Retomando ao aspecto
alusivo à nefasta influência exercida
pelos meios de comunicação sobre a
sociedade, ao explorar desprezivel-
mente a violência anota-se que o fato
foi analisado pela Unesco, órgão da
Organização das Nações Unidas
conforme noticiou o Prof. René
Ariel Dotti afirmando que a en-
tidade, por decisão de sua Con-
ferência Geral, realizada entre 29 de
junho a 7 de julho de 1970, deliberou
71
que a representação da violência nos
meios de comunicação não é causa
de aumento das criminalidade, mas
reconheceu a responsabilidade da
mídia na propagação desse fenô-
meno, e acrescentou que a liberdade
dos meios de comunicação nos
regimes democráticos abre caminho
para o conhecimento de determi-
nados ângulos da violência e da
criminalidade, franquia vedada nos
sistemas autoritários de poder (2).
Citou esse autor, ainda sobre esse
mesmo tema, o escrito de autoria do
ilustre Professor Jorge de Figueiredo
Dias no sentido de que: "Corolário
dos regimes democráticos é o discur-
so polftico do crime, caracterizado
pela exploração dos temas do delito
e do delinqüente com a finalidade de
legitimar ou contestar o poder. Em
Portugal, após a Revolução de 1974,
multiplicaram-se as tentativas de uso
dos problemas da realidade social -
"uma realidade de violência, de
insegurança e de medo generali-
zados - como peças fundamentais
das estratégias de crítica e de usu-
fruto do poder".
)
1.4 - Será que não se tem usado
essa dramatização intencional do
fenômeno da criminalidade, estimu-
lando o sentimento de insegurança
do cidadão comum em face da
delinqüência, com o objetivo de jus-
tificar o crescente controle da so-
I'
)
I,
I
ciedade civil pelo Estado, através do
reforço constante do aparato repres-
sivo? (3).
1.7 - O problema da violência
urbana e rural tem raízes profundas
no quadro de desigualdade social
que atinge a maioria da população.
Não se pode imaginar que se vai
poder conter a criminalidade, com a
promulgação de uma lei com ameaça
penal mais dura, que impõe, como
esta, por exemplo, um regime in-
tegralmente fechado para cumpri-
mento de pena e a impossibilidade
de liberdade provisória, a réus pro-
venientes de uma sociedade terceiro-
mundista, que enfrenta graves pro-
blemas estruturais, como fome, falta
de educação, etc., sem se transitar,
antes, pelo caminho tido para mui-
tos, como inóspito, para outros,
como cansativo e repetitivo, mas de
inarredável presença: o da mais justa
distribuição de riqueza.
Os dados estatísticos demonstram
que:
1.5 - O processo de elaboração
desse diploma legal, como dito, não é
muito conhecido. Não se sabe se foi
precedido de qualquer discussão ou
consultas a entidades da sociedade
civil, como, por exemplo, a Ordem
dos Advogados do Brasil, e a sua
aprovação foi a "toque-de-caixa",
mediante o recurso regimental deno-
minado como "acordo de lideran-
ças". Para que se tenha idéia de
como possa ter se desenrolado esse
procedimento na Câmara, e por mais
insólito que possa parecer, um dos
líderes partidários, com o argumento
de que necessitava apreciar a ma-
téria com calma, e dizendo-se tam-
bém, temeroso pela forma como sua
atuação naquela votação pudesse
repercutir na imprensa, pediu adia-
mento da sessão pelo prazo de uma
hora (4).
a) de 40 a 50 milhões de brasi-
leiros vivem abaixo da linha de po-
breza absoluta.
b) 70% das crianças brasileiras
provêm de famílias cuja renda men-
sal atinge um salário mínimo.
c) o salário-mínimo fica sempre
aquém de 100 "dólares" mensais.
d) a desagregação familiar causa-
da pela miséria e a evasão escolar
atiram nas ruas milhares de crianças,
obrigadas a enfrentar toda sorte de
incertezas e violências.
1.6 - Em verdade, não há solução
mágica para o combate à crimi-
nalidade urbana e rural. Ninguém,
razoavelmente lúcido, poderia acre-
ditar que apenas uma lei penal, como
essa, contendo severíssimas comi-
nações, poderia funcionar como úni-
ca resposta à criminalidade e como
sua causa redutora.
2 - René Ariel Dotti. Reforma penal, Saraiva, 1985, p.70.
3 - Antonio Magalhães Gomes Filho. Presunção de inocência eprisão cautelar. Saraiva, 1991, p.I,
4 - Alberto Silva Franco. Crimes hediondos. RT, 1991, p.30.
5 - H~rbert de Souza. "Quem semeia miséria colhe violência", publicado no jornal O Estado de
Soa Paulo.
72
e) enquanto isso, 1% da popu-
lação detém cerca de 50% da riqueza
nacional.
1.8 - Os que pensam diferente,
negando que a miséria seja causa
principal da violência, argumentam
com o maior percentual da popu-
lação que também vivencia essa
situação de pobreza e não comete
crimes.
E isso é verdade. Porém, como
escreveu o sociólogo Herbert de
Souza a respeito dessa situação de
resignação, é assustadora "a pas-
sividade de nossa sociedade, de nos-
sos trabalhadores que escutam o
choro de fome de seus filhos e con-
tinuam bem-comportados. Com os
milhões de pobres que não roubam
para comer, que não invadem terras
para produzir, que não ocupam casas
para ter onde morar. Confesso que
me espanta o grau de passividade e
de resignação que se abate sobre a
maioria esmagadora da população
brasileira. Fosse ela mais atuante,
mais revoltada, mais exigente, mais
indignada, não teríamos o que temos
agora. E seguramente teríamos me-
nos pobreza e violência" (5).
1.9 - De qualquer forma a lei
está aí e, por mais estranho que
possa parecer, reuniu-se num "paco-
te" condutas díspares, previstas
como latrocínio, extorsão qualificada
pela morte, extorsão mediante seqües-
73
tro, estupro, atentado violento ao pu-
dor, e pasmem, epidemia com resul-
tado morte, envenenamento de água
potável ou de substância alimentícia
ou medicinal, qualificado pela morte.
1.10 - Se o objetivo era o com-
bate à criminalidade urbana, o legis-
lador poderia ter aproveitado esse
momento para incluir outros fatos
penais até mais repugnantes, cuja
prática provoca um resultado que
afeta a sociedade como um todo, por
exemplo: a) a sonegação fiscal, pu-
nida com mera pena detentiva, pois a
cada tributo criminosamente des-
viado sonegado há menos receita e,
em conseqüência, menos cons-
truções de escolas, postos de saúde,
etc. b) e os famosos crimes decorren-
tes de escândalos financeiros prati-
cados contra a administração pública,
como, por exemplo, a fraude em con-
corrências,fato tão em moda, hoje.
E os delitos de trânsito que ferem
e matam dezenas de pessoas aos fins
de semana e milhares ao ano?
Crimes do qual somos recordistas
mundiais, segundo as estatísticas.
E os homicídios dolosos, come-
tidos às dezenas, a cada semana, nas
regiões metropolitanasdas duas
maiores Capitais, estes sim, repug-
nantes, por atingirem o bem jurídico
supremo que é a vida?
Tudo isso sem falar nos fami-
gerados "esquadrões da morte", nos
justiceiros e naqueles que ultima-
mente têm se dedicado a assassinar
menores, todos contando com o
apoio velado de muitos.
74
1.10 - Incluir num mesmo texto
para considerá-los hediondos e au-
mentar suas penas os crimes de es-
tupro, atentado violento ao pudor e
de envenenamento de água potável
ou de substância alimentícia ou me-
dicinal, pela diferença entre essas
atividades criminosas e o resultado
que ocasionam, refoge a qualquer
consideração maior, até porque,
quanto a estes últimos fatos, os re-
pertórios de jurisprudência não re-
gistram qualquer julgado a respeito
há décadas.
2 - PRISÃO PREVENTIVA
OBRIGATÓRIA
2.1 - Num Estado Democrático
de Direito, sob o império da garantia
das liberdades individuais cons-
titucionais, não há nada mais avil-
tante à dignidade humana do que
uma prisão cautelar e inspirada num
juízo de perigosidade do agente ou
de gravidade do fato penal, oriunda
de casuísmo autoritário, e sem uma
razão de necessidade, como ocorre
agora diante da impossibilidade de
concessão de liberdade provisória
aos autores dos denominados crimes
hediondos.
A ofensa maior, dentre outras, é
ao princípio constitucional da dig-
nidade da pessoa humana previsto
(art. 1Q, I1I, da Constituição Federal).
Por isso como não, entender que a
privação não necessária da liberdade
individual não signifique uma pena
precipitada e, por isso, uma ofensa à
dignidade da pessoa atingida e à de
todos aqueles que sofram o risco de
serem também, indistinta e imoti-
vadamente, alcançados pelo arbí-
trio? Quem ousaria negar que a
proibição da liberdade provisória, a
partir de determinados tipos, não
constitua o rompimento da ordem
que está subjacente e dá sentido ao
conglomerado dos direitos fun-
damentais? Vedar-se o direito fun-
damental à liberdade provisória,
quando a prisão é totalmente des-
necessária, é, portanto, afronta fla-
grante ao princípio da dignidade
humana (6).
demonstrar que passa a se constituir
num verdadeiro instrumento de luta
contra alguns crimes que o legislador
considerou como mais repugnantes.
Hassemer afirma, nesse passo,
que "Cuanto más amenazantes son o
se consideram determinados delitos,
tanto más materialistas son Ias exi-
gencias que se imponem em su
tratamiento. Esta tendencia hacia
una lucha sin cuartel parece casi
general en ámbitos como os dei ter-
rorismo e el tráfico de drogas, cons-
tituyendo un 'Derecho Penal para
enemigos', es decir, para deter-
minadas formas de criminalidad o
determinados tipos de delincuentes,
a los que se priva incluso de Ias
tradicionales garantías dei Derecho
Penal material y dei Derecho Pro-
cesal Penal" (8).
2.3 - A impossibilidade de o
denunciado pelos tipos penais
descritos por essa lei alcançar o
benefício da liberdade provisória,
mesmo preenchendo os requisitos
exigidos pelo art. 310, parágrafo
único do Código de Processo Penal,
faz pesar sobre si, inicialmente uma
forte presunção de periculosidade e
sobre o fato penal praticado uma
qualidade de natureza gravíssima, o
que ofende profundamente o prin-
cípio constitucional da presunção de
não-culpabilidade, previsto no inciso
LVII do art. 5Q, porque à luz da
6 - Alberto Silva Franco, ob. cit., p.53.
7 - Fe.mando Tourinho Filho. Processo penal Saraiva, 1992, p.422.
8 - Winfried Hassemer, ob. cit., p.37.
75
2.2 - A verdade é que, mesmo
hoje, a prisão preventiva, só poderá
ser decretada dentro naquele mí-
nimo indispensável, por ser de in-
contrastável necessidade e, assim,
mesmo sujeitando-a a pressupostos e
condições evitando-se ao máximo o
comprometimento do direito de
liberdade que o próprio ordenamen-
to jurídico tutela e ampara (7).
Porém, a denominada Lei de
Crimes Hediondos ao impedir em
seu art. 2Q, inciso lI, a concessão de
liberdade provisória e a fiança, esta
erroneamente, porque este benefício
não poderia mesmo ser concedido
aos autores de crimes hediondos,
cujas penas mínimas são superiores a
dois anos (CPP, art. 323, I), além de
ter trazido de volta a abominada
prisão preventiva obrigatória, veio
presunção de inocência, não se con-
cebem quaisquer formas de encar-
ceramento ordenadas como ante-
cipação da punição, ou que cons-
tituam corolário automático da
imputação, como sucede nas hipó-
teses de prisão obrigatória, em que a
imposição da medida independe da
verificação concreta do periculum
libertatis (9).
2.4 - Se isso já não bastasse, a
imposição dessa drástica medida de
coerção à liberdade pessoal, fere o
princípio do devido processo legal,
ante o preceito constante do inciso
LIV do mesmo artigo da Carta, pois,
afasta-se, desde logo a bilateralidade
processual, porque está impedido o
acusado de opor-se à essa drástica
medida, exercendo qualquer direito
de ser ouvido, e excepcionar a neces-
sidade dessa prisão, iniciando sua
atividade processual vencido.
Nunca se deve esquecer que o
devido processo legal, envolve a ga-
rantia do contraditório, a plenitude
do direito de defesa, a isonomia
processual e a bilateralidade dos atos
procedimentais (10). A privação da
liberdade do acusado sem se lhe
assegurar direito à ampla defesa é
inadmissível.
)
I
2.5 - Na declaração de voto
proferido quando do julgamento do
Habeas Cor pus n2 105.484.3, da co-
marca de Sorocaba, inserto na Revis-
ta dos Tribunais_671/323, ficou as-
sentado que "A Magna Carta tem
como um de seus primados fun-
damentais o direito à liberdade da
pessoa humana, ao consagrar em
seu art. 12, 111, como um de seus
princípios, a dignidade da pessoa
humana; quando declara que um de
seus objetivos é construir uma
sociedade livre, justa e solidária (art.
32, I); quando preceitua que as
relações internacionais serão regidas
pelo princípio da prevalência dos
direitos humanos (art-:42, 11); e, por
fim, quando garante o direito à liber-
dade (art. 52, inciso LXVII)" (11).
2.6 - Por outro lado, é impossível
retirar-se do juiz, o encarregado de
dirigir e presidir o processo, aquele a
quem as partes destinam a prova que
produzem, aquele que vai proferir o
pronunciamento jurisdicional - sem
um justo motivo de suficiência -, a
possibilidade de conceder a liber-
dade provisória ao réu, e aferir da
conveniência, ou não, da aplicação
dessa medida.
Trata-se, nesse caso, como mutio
bem observou o Prof. Odone San-
guiné de uma espécie de Bi// of
attainder (reconhecido como abusivo
pela jurisprudência norte-ameri-
cana), ou seja, um ato legislativo que
9 - Antonio Magalhães Gomes Filho, ob. cit., p.37.
10 -José Afonso da Silva. Curso de direito constitucional positivo. RT, 1990,p.373.
11 - TJSP - HC 105.484.3,6' C. Criminal, RT 671/323 .
. \
\
I
1
I
I
76
implica considerar alguém culpado
diretamente e destinado a infligir-lhe
uma sanção sem processo ou decisão
judiciária" (12).
Esse tipo de "prisão preventiva
obrigatória", que por princípio li-
beral-moderno havia sido abolido da
legislação processual, retomou, ago-
ra, despropositadamente, diga-se,
porque baseado única e exclusiva-
mente em idéia autoritária e de
defesa social, notando-se que esta
influenciou decisivamente a elabo-
ração do CPP italiano de 1931 (que
por sua vez serviu de modelo ao
nosso Estatuto processual de 1941),
de claro caráter antidemocrático on-
de se pregava que é presumível a
procedência da impútação e não o
contrário: se se presume a inocência
do acusado não teria sentido pro-
cessá-lo ou submetê-Ia à prisão pre-
ventiva (13).
2.8 - Já se escreveu que nesses
casos para obviar excessos decorren-
tes da lei, é então necessário realizar
um juízo provisório mais acurado
sobre a correção da capitulação feita
na denúncia, ou existência de justa
causa para a tipificação nela rea-
lizada, seja no seu recebimento,seja
durante o processo, quando a lei
preveja o despacho saneador, seja
ainda na apreciação do pedido de
liberdade provisória (14).
Ocorre que esse exame, caso a
caso, poderá levar aos perigos do
subjetivismo, do casuísmo e do
arbítrio.
2.9 - Mas a incongruência maior
vem a seguir ao dispor a lei no seu
artigo 22, parágrafo 22, que "Em caso
de sentença condenatória, o juiz
decidirá fundamentadamente se o
réu poderá apelar em liberdade"
(art. 2º, § 22).
Ora, pode parecer incrível que
não possa o juiz, antes da sentença,
apreciar pedido de liberdade provi-
sória, mas que o possa, e se entendê-
Ia cabível, deferi-I o após a sua pro-
lação, quando já analisou toda a
prova que lhe foi apresentada e con-
siderou-a como suficiente a impor
um pronunciamento condenatório,
momento em que muito além do
fumus, passa a existir uma verdadeira
fogueira do bom direito, aí sim, se
12 - O~on~ Sangu.iné. "Inconstitucionalidade da proibição de liberdade provisória", Fase. de
Ciências Penais, Porto Alegre, v.3, p.15, Sergio Antonio Fabris.
13 -Antonio ~aga.lhães G?mes Filho. "Prisão cautelar e o princípio da presunção de inocência",
Fase. tJ: Ciências Penais, Porto Alegre, v.5, p.18, Sergio Antonio Fabris.
14 - Antonio Scarance Fernandes. "Considerações sobre a lei 8.072, de 25.7.90", RT 660/261.
77
2.7 - Figure-se, por exemplo, o
caso de processo iniciado por uma
denúncia que, destoando da prova
reunida no inquérito, se constitua
num abuso de poder. Nem assim
poderia o juiz conceder ao réu a
liberdade provisória?
E a hipótese de denúncia por
crime sexual com indício de que o
delito fora cometido com consen-
timento da ofendida?
decidir fundamentadamente, poderá
permitir ao réu apelar em liberdade.
Por que ele não pode aplicar
fundamentadamente esse benefício
antes desse momento?
2.10 - Mas o juiz pode e deve
enfrentar essa proibição, porque,
antes de tudo, não lhe é permitido
passivamente, aceitar e admitir uma
prisão provisória que se revele des-
necessária e que ofende princípios
fundamentais da Constituição Fe-
deral, e, também, porque, a des-
tinação do processo penal, antes de
ser compreendido apenas como um
conjunto de atos direcionados à
aplicação da lei material, representa
"un conjunto de preceptos desti-
nados a Ias poderes públicos y de
limitaciones impuestas a su potestad
punitiva: en otras palabras, un con-
junto de garantias destinadas a
asegurar Ias derechos fundamentales
del ciudadano frente ai arbitrio y el
abuso de Ia fuerza por parte dei
Estado" (15).
2.11 - Na luta decretada contra o
crime e criminosos, principalmente
contra aqueles a que a lei, pelo fato
nela descrito, passou a considerar
como mais perigosos, não se deve
privar ninguém de uma aplicação
correta e formal das garantias cons-
titucionais tradicionais tanto de di-
\
I
reito processual como de direito ma-
terial.
Não pode ° juiz coonestar com
uma prisão cautelar desnecessária e
prolongada com a possibilidade de o
réu vir a ser absolvido posterior-
mente. Agora, o art. 52, inciso
LXXV, da CF, deu maior amplitude
ao direito de indenização, esta-
belecendo que "O Estado indenizará
o condenado por erro judiciário",
assim como o que ficar preso além
do tempo fixando na sentença. Ora
se a Constituição assegura a pre-
sunção de inocência e reconhece o
direito de indenização ao réu que
ficar preso além do tempo fixado na
sentença, parece claro que "o tempo
de prisão provisória sempre deve
merecer reparação" havendo uma
sentença absolutória, o tempo de
prisão cautelar será sempre maior do
que o "fixado na sentença"; o ra-
ciocínio também é válido para o caso
de uma condenação a uma pena
inferior ao prazo já descontado pro-
visoriamente (16).
3 - ENDURECIMENTO
DAS PENAS
3.1 - Um dia já se considerou
como humanitário o cumprimento de
pena no regime prisional fechado,
acolhendo-se a idéia de que se po-
deria recuperar socialmente o cri-
minoso ao invés de brutalmente eli-
15 - Luigi Ferrajoli. Justicia penal y democracia, in Revista Jueces para IaDemocracia, Espanha,
setembro de 1988.
16 - Antonio Magalhães Gomes Filho, ob. cit., p.23.
78
miná-lo ou infligir-lhe castigos cor-
porais.
Como o sistema penitenciário tor-
nou-se um verdadeiro descalabro,
pela indestrutível crise que o afeta,
porque nunca foi um assunto prio-
ritário e jamais foi objeto de um
estudo e de investimento sérios, o
que tornou as penitenciárias em
grandes concentrações humanas e
numa verdadeira escola de formação
de criminosos, não demorou muito
para se descobrir as inconveniências
dessa forma de execução de pena,
tanto que Foucault escreveu que se
conheciam todos os inconvenientes
da prisão, e sabe-se que é perigosa
quando não inútil. E entretanto, não
"vemos" o que pôr em seu lugar. Ela
é a detestável solução, de que não se
pode abrir mão (17).
É mais do que sabido que as
penas de prisão de longa duração
não servem ao fim a que se destinam:
a reeducação do condenado, e se
constituem no que o Prof. Manoel
Pedro Pimentel denomina como um
verdadeiro drama por ser a prisão
uma instituição totalitária, que al-
cança o indivíduo a ela submetido em
toda a extensão de sua persona-
lidade. E exige a sua submissão plena
e o sujeita a regras regulamentares
de maneira coativa. Na prisão se
fazem os criminosos e se os prepa-
ra convenientemente para ingres-
sarem na massa", arremata o au-
tor (18).
3.2 - E quando, atento a essa
situação de precariedade e de dra-
maticidade que cercam o sistema
penitenciário nacional, o legislador,
acolhendo moderna tendência no
sentido de considerar ineficientes as
penas privativas de liberdade de
longa duração, que de nada adian-
tam em termos de reeducação para
posterior reinserção do condenado
na sociedade, acolheu, na Parte
Geral do CP, afonna progressiva de
sua execução, o que antes era re-
gulado tibiamente, ou pela lei local,
ou por provimentos, surgiu a lei dos
Crimes Hediondos não só dobrando
as penas mínimas e máximas dos
crimes por ela previstos, como
também determinando que o seu
regime de execução seria o integral-
mente fechado (art. 22, § 12).
Contrariou-se, nesse passo, fron-
talmente a determinação constante
do art. 59 do CP, que faz expressa
referência ao princípio da suficiência
e necessidade, como medida de
quantificação e qualificação da pena
e de reprovação ao crime e, prin-
cipalmente, o princípio constitu-
cional da sua individualização des-
crito no art. 52, XLVII.
Adotando o regime fechado in-
tegralmente para cumprimento de
longas penas torna-se praticamente
impossível a reabilitação do con-
denado. Pena longa e regime fe-
chado são elementos contraditórios
à idéia de reinserção social e inúteis
17 -Michel Foucault. Vigiare punir. Vozes, p.20B.
18 - Manoel Pedra Pimentel. Reforma penal Saraiva, p.30.
79
para tornar possível ao autor do
crime uma vida futura em liberdade
e, por último, porque uma das con-
dições para preservação da iden-
tidade moral do condenado, com
positivas repercussões na disciplina
carcerária está na possibilidade de
vislumbrar a liberdade. Daí fixar-se
um limite do tempo de cumprimento,
mesmo porque o encarceramento
por mais de quinze ou vinte anos
destrói por completo o homem,
tornando-o inadequado à vida li-
vre (19).
3.4 - Então, pela lei atual, o
estupro, por exemplo, passou de um
mínimo de três e um máximo de oito
anos ao mínimo de seis e o máximo
de dez. Se a pessoa da ofendida for
menor de 14 anos de idade o mínimo
de pena será obrigatoriamente de
nove anos de reclusão.
O atentado violento ao pudor que
tinha a pena mínima de dois anos e o
máximo de sete, passou de seis a dez.
Na mesma hipótese, quando a pessoa
do ofendido for menor de 14 anos de
idade, o mínimo de pena será o
mesmo previsto no preceito secun-
dário do estupro.
3.5 - Verifica-se, inicialmente,
que com relação a esses crimes
sexuais,o legislador equiparou, er-
radamente, num mesmo patamar,
ações bastante diversas: a prática de
atos libidinosos - que podem se
traduzir num toque lascivo - e a de
J
conjunção carnal, mediante violência
ou grave ameaça, exemplo maior de
que, sem analisar a natureza tipo-
lógica penal, pôs-se a despropor-
cionadamente dobrar penas.
fato praticado. A tendência é a de
que a culpabilidade do agente é o
fundamento da determinação da
pena e a reinserção do condenado na
sociedade a sua finalidade maior.
Segundo Roxin "En Alemanía existe
hoy unanimidad acerca de-que Ia
pena ha de ser limitada por Ia cul-
pabilidad del autor y que, em con-
secuencia, Ias razones de prevención
general o especial no puedem llevar
a imponer a nadie una pen-a de
mayor gravedad que Ia que se cor-
responda con Ia del hecho cometido
y con el grado de su culpabilidad
personal... A todo condenado le de-
be quedar siempre Ia possibilidad
de reinsertarse en Ia sociedad" (20).
Se a finalidade da pena é a
punição e a educação para a pos-
terior reinserção do condenado à
sociedade, o que se pretende com a
imposição de longas penas, des-
medidas e desproporcionadas, em
relação ao fato cometido, a serem
cumpridas em regime integralmente
fechado, se o sistema instituído para
fazer funcionar a prisão fechada é o
próprio instrumento de negação des-
sa possibilidade?
3.6 - A expressão endurecimento
das penas poderá ser bem avaliada se
se imaginar que alguém com 18 anos
de idade poderá ser condenado a 9
anos de reclusão, em regime de
execução integralmente fechado, se
praticar qualquer ato libidinoso com
uma moça, prestes a completar 14
anos de idade. Esse agente que se
pode considerar como um autor
ocasional de um delito, deverá
cumprir essa quantidade de pena em
estabelecimento penitenciário fe-
chado, onde passará a conviver com
criminosos de alta periculosidade, lá
permanecendo até que desconte a
quantidade de mais de 2/3, cerca de 7
anos, para depois lhe ser aplicada a
medida de livramento condicional.
A lei endureceu na medida em
que penas foram dobradas sem ne-
nhuma proporção e porque se es-
tabeleceu que seriam executadas em
regime integralmente fechado, res-
salvado apenas livramento condi-
cional a quem as cumprisse por mais
de 2/3, e se não fosse reincidente
específico (art. 22, § 5Q).
Nos países modernos não há mais
previsão de penas longas de prisão a
serem cumpridas integralmente em
regime fechado, e, muito menos,
fixadas com base na gravidade do
4 - SISTEMA CARCERÁRIO
4.1 - Prescreve o art. 12 da 'Lei
7.210/84 - Lei de Execução Penal
que "a execução penal tem por
objeto efetivar as disposições de sen-
tença ou decisão criminal e propor-
20 - Claus Roxin, Introducciôn ai derecho penal y ai derecho penal procesal. Barcelona Ed Ariel
p.27. ,. ,
19 - Miguel Reale Jr. e outros. Penas e medidas de segurança no novo código. Forense, p.13l.
80
cionar condições para a harmônica
integração social do condenado e do
internado" .
Como se pode cumprir esse dis-
positivo legal se não há equipamen-
tos prisionais básicos? Se o Estado
não investe corajosamente no setor?
4.2 - A dramática e interminável
crise que afeta o setor prisional,
causada 1) pela superpopulação do
sistema penitenciário, que origina as
grandes rebeliões; 2) pela ausência
de condições materiais e morais
mínimas para o cumprimento da
pena; 3) pela transformação dos dis-
tritos policiais em verdadeiros de-
pósitos humanos; e 4) pela mais
completa falta de vontade política de
resolver o problema, continua, por
anos e anos, e ninguém se preocupa
ou demonstra qualquer disposição
em construir novos presídios, fe-
chados, semi-abertos e abertos.
Sem se esquecer que se pretende,
agora, cogitando da possibilidade de
redução da imputabilidade penal
para 16 anos, a criação de outros
grandes depósitos humanos para
recolhimento de menores infratores.
4.3 - A Lei dos Crimes Hedion-
dos menciona em seu artigo 32, que
"a União manterá estabelecimentos
penais, de segurança máxima, des-
tinados ao cumprimento de penas
impostas a condenados de alta pe-
riculosidade, cuja permanência em
81
\
I
presídios estaduais ponha em risco a
ordem, ou incolumidade pública".
Porém, é desconhecida a exis-
tência de qualquer investimento pú-
blico na construção de presídios, e se
há previsão para tanto, há quase dois
anos da promulgação do diploma,
sendo que esse novo sistema de-
penderá fundamentalmente da cons-
trução de estabelecimentos penais,
para que os condenados sejam ade-
quadamente alojados, evitando-se o
que hoje ocorre, pois os que recebem
o benefício da prisão-albergue, à
míngua de vagas em locais próprios,
são autorizados a permanecer no
regime de prisão domiciliar, sem cor-
reta e continuada fiscalização, o que
equivale a ficar impunes (21).
4.4 - Julgados dos Tribunais,
reiteradamente têm decidido dessa
forma, acentuando a impossibilidade
do cumprimento integral da Lei de
Execução Penal, pela mais completa
negligência do Estado, que não se in-
teressa pela construção de presí-
dios, impossibilitando o cumprimen-
to da rena em estágios, ocasionando
a denominada "promoção por salto",
passando o condenado do regime fe-
chado diretamente à prisão domiciliar.
Mas em contrapartida cresce, em
grande proporção, o número de deci-
sões afirmando que à falta de estabe-
lecimento semi-aberto deve o conde-
nado permanecer no regime fechado,
suprimindo-lhe inarredável direito à
progressão.
21 - Miguel Reale Jr. Reforma penal. Saraiva, p.57.
22 - Alberto Silva Franco, ob. cit., p.153.
82
4.5 - Tudo continua como antes:
o mesmo obsoleto, corrompido e
fracassado sistema de concentração
de pessoas, incapaz, agora, de supor-
tar mais essa grande carga.
Tudo isso sem pensar que, cum-
prida a pena o condenado é simples-
mente jogado à rua, sem qualquer
assistência por parte do Estado, no
que se refere à sua reaproxirnação
com a família, colocação em em-
prego, etc.
PARA REPENSAR A PAIU:MIA
"SOCIETAS DELINQUERE NON POTEST"*
Gérson Pereira dos Santos
Professor da Universidade Federal da 8ahia
5 - CONCLUSÃO
A incumbência que agora se atri-
bui aos operadores jurídicos é a de
combater, de negar vigência, de não
aplicar os dispositivos desse diploma
que já foi qualificado como "mal-
sinado", que fere princípios e garan-
tias constitucionais fundamentais.
Os juízes atentos à realidade so-
cial, preocupados com o cumprimen-
to das normas constitucionais e com-
prometidos com as liberdades pú-
blicas, não devem concorrer para a
consum., ,ão de casos de teratologia
legal decorrentes de aplicação dessa
lei que tornam o referido diploma de
nenhuma viabilidade concreta, de
absoluta inaplicabilidade (22), sob o
cômodo pretexto de que, como
neutros executores do conjunto de
leis vigentes, só Ihes compete aplicá-
Ia, pois a sua revogação ou sua
substituição são tarefas afetas ao
legislador.
1- INTRODUÇÃO
Convocado para condensar, com
a possível brevidade, algumas obser-
vações em derredor da problemática
da responsabilidade penal da pessoa
jurídica no amplo domínio do direito
penal econômico, acolh.i com muito
agrado o chamado da Associação
dos Advogados de São Paulo, feito
por intermédio do ilustre Doutor
Antônio Carlos Malheiros e do
Professor Alberto Zacharias Toron,
o que me propicia a ocasião para
rever velhos amigos e colegas tão
queridos, bem assim (e por acrés-
cimo) a oportunidade de mais um
reencontro com esta terra extremada
onde deixei estar os mais saudosos
anos da juventude, antes de seguir
outras direções, por inevitáveis con-
tingências da vida.
Não ousei gizar o campo e a
topografia. Também não trouxe da
Bahia "régua e compasso". Subme-
to-me à irrevogabilidade do com-
promisso com o assunto indicado,
certo da impossibilidade de alcançá-
10, por inteiro, em sua vastidão de
capítulos, a serem desdobradospelos mais doutos, em encontros
como este, em que possamos avançar
passo a passo.
No Fôrum Internacional de Direito
Penal Comparado, há três anos
realizado em Salvador, Francisco
Muíioz Conde focalizou o tema da
delinqüência econômica a partir de
dois pontos de vista diferentes, de
dois diferentes modelos de direito
Palestra proferida em 30 de março de 1992, na Associação dos Advogados de São Paulo, no
Curso de Estudos sobre Temas de Direito Penal e Processo Penal coordenado pelo professor
Alberto Zacharias Toron.
Fase. de Clêne. Penais. Porto Alegre, v.5, n.2, p.83,95, aor/mai/jun, 1992

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