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r-. ( ., ;r" I, FASCÍCULOS DE CIÊNCIAS PENAIS trimestral - ano 5 - v.s - n.2 - p.1-144 - abr/mai/jun - 1992 ÍNDICE CORRÊA, Gilberto Niederauer - Aspectos penais e processuais no Có- digo Eleitoral 3 CÂNDIDO, Joel José - Os direitos políticos, a condenação criminal irre- corrível e o papel do Ministério Público Eleitoral na nova Constituição . 27 MENDES, Antonio Carlos - Da suspensão dos direitos políticos por efei- to de condenação criminal . . . . . . . .. 35 FRANCO, Alberto Silva - Lei de crimes hediondos . . . . . . .. 43 TOLEDO, Francisco de Assis - Crimes hediondos . . . . . . . 58 BÁRTOLI, Márcio - Crimes hediondos (Lei 8.072 de 25-07-90) ..... 70 SANTOS, Gérson Pereira dos - Para repensar a parêmia "Societas delin- quere 1l01l potest" 83 SANGUlNÉ, Odone - Prisão provisória e princípios constitucionais 96 DEL OLMO, Rosa - O Estado na América Latina: mitos e realidades na legislação de drogas 125 I I I I il JURISPRUDÊNCIA ANOTADA TUCCI, Rogério Lauria - "Presunção de inocência" e prisão provisória 133 AZEVEDO, David Teixeira de - Citação por requisição 136 Sergio Antonio Fabris Editor Porto Alegre - RS CRIMES HEDIONDOS* Francisco de Assis Toledo Ministro do STJ Professor visitante da UnB SUMÁRIO: J - Aspectos criticos; JJ - Prisão obrigatória;JIl- Endurecimento das penas; W - Regime carcerário. 1. Inicialmente seja-me permi- tido dizer, para evitar equívocos quanto à posição que adoto frente aos delitos de ação violenta, que é de todo justificável a preocupação hoje dominante no sentido de encontrar soluções mais adequadas em relação a esses crimes. Lembrem-se todos de que a reforma do Código Penal brasileiro, empreendida em 1984, atingiu apenas a Parte Geral, restan- do ainda por reformar a Parte Espe- cial onde estão modelados os crimes e cominadas as penas. Com a refor- I - ASPECTOS CRÍTICOS que o que pretendem é, nada mais, nada menos, a volta simplista ao passado, numa espécie de retrocesso à ideologia do talião, à retórica da "guerra contra o crime", através da manipulação da pena criminal como forma de exercício arbitrário do poder estatal, com o já historica- mente conhecido risco de desvios para fins políticos ou subalternos. É a respeito desse retrocesso que me coloco em oposição decidida, em que peseI; fato incontestável de ser hoje mais cômodo e talvez mais con- veniente perfilar-se ao lado da turba que clama por punições mais severas e até pela pena de mort~ lPenso, como salientou, em recen- te obra, Alberto Silva Franco (1), que o legislador constituinte de 1988, ao editar a norma do art. 52, XLIII, criando a categoria dos "crimes hediondos", bem como o legislador ordinário, ao regulamentar esse preceito através da Lei 8.072/90, agiram apressada e emocionalmente na linha da referida ideologia da law and order. Essa ideologia, típica da sociedade norte-americana, que, di- ga-se de passagem, desde a década de 20, vem perdendo a "guerra con- tra o crime", ganha espaço e adeptos entre nós, principalmente entre po- líticos, promotores de justiça e de- legados de polícia.j De minha parte, na direção dia- metrai mente oposta, continuo fiel aos princípios enunciados em con- ferência proferida no encerramento ma, total ou parcial, da Parte Espe- cial é que se deveria examinar essa questão da conveniência de maior ou menor severidade nas sanções de direito penal, em relação a certos cnmes. Infelizmente, sem fazer essa ne- cessária distinção entre parte geral e parte especial, misturando, portanto, alhos com bugalhos, propala-se por aí que a reforma penal de 1984 enfraqueceu o sistema, que as pe- nas existentes são insuficientes etc. Quando, entretanto, topamos com as soluções preconizadas por esses críticos improvisados, percebemos Palestra proferida em 25 de março de 1992, na Associação dos Advogados de São Paulo (AASP), no Curso de Estudos sobre Temas de Direito Penal e Processo Penal coordenado pelo professor Alberto Zacharias Toron. 1 - Crimes hediondos, RT, p.22-27, 36 e segs. Fase. de Clênc. Penais. Porto Alegre, v.S, n.2, p.58-69, abr/mai/jun, 1992 do I Congresso Brasileiro de Política Criminal e Penitenciária, de 1981, no qual se discutiram os projetos de reforma penal, ocasião em que tive oportunidade de afirmar o seguinte: "9. Temos defendido a idéia, hoje dominante, de que não há um método simples de combate à cri- minalidade, seja ele jurídico-re- pressivo, assistencial, político ou econômico. O que pode haver é uma estratégia global de pre- venção e repressão, envolvendo tudo isso. Qualquer sociedade que pretenda pelo menos reduzir a índices toleráveis o nível dos de- litos que nela se cometem, deve empenhar-se como um todo na realização desse objetivo, através de bem elaborado programa. Não obstante, dentro dessa estratégia global, tem o Direito Penal o seu papel a desempenhar, pois, conforme vimos, a pena cri- minal, como dura e necessária realidade humana, aí está e, em- bora mutável, não há perspectiva de que possa um dia vir a ser totalmente abolida. Qualquer que seja a idéia que se tenha do crime e da pena, correto será, hoje, dizer-se, com Gimbernat Ordeig, que uma ciên- cia desenvolvida do Direito Penal torna possível o controle dos tipos penais, e porque a pena é um meio necessário e terrível de política social e porque temos que con- viver com o Direito Penal, a dog- 59 .I mática jurídico-penal tem ainda o seu futuro. 10. É preciso, entretanto, não confundir a parte com o todo, isto é, não supor, como se tem feito, por vezes, que o Direito Penal seja suficiente ou o único instrumento válido de combate ao crime. Isso nos leva a ter que repensar a missão do Direito Penal para situá-Ia dentro de seus justos e verdadeiros limites, sem exageros e sem deficiências, o que significa, em última análise, uma profunda revisão de conceitos e do orde- namento jurídico vigente." (2) Como se vê, não é necessário tomar partido entre os que pro- fetizam o desaparecimento ou o enfraquecimento do direito penal, mas também não é forçoso fazer parte do coro dos que fizeram opção em prol de um direito penal do passado ou do terror, do qual a humanidade evoluiu, a duras penas, a partir do Século das Luzes. A denominada lei dos crimes he- diondos é um signo dessa última tendência. 2. (Mas essa malfadada lei que, ao que parece, não vem produzindo os efeitos desejados, no sentido de re- duzir oscrime~de extorsão median- te seqüestro, estupro, tráfico e ou- tros (3), possui esse defeito e tam- 60 bém outros de técnica jurídica, de certa gravidade, Em trabalho recentemente pu- blicado (4), examinei alguns desses defeitos. O primeiro deles está logo no art. 12 da referida lei, onde se omitiu, sem qualquer explicação lógica, algumas formas do homicídio qualificado. Disso resulta o seguinte: se o agente mata por encomenda, mediante pagamento em dinheiro, o crime não será hediondo, apesar de tratar-se de uma hipótese de ho- micídio por motivo torpe; mas, se o agente tenta matar com o objetivo de subtrair coisa alheia móvel (tentativa de latrocínio), o fato, evidentemente menos grave, será crime hediondo, ante a expressão final do art. 1Q ("tentados ou consumados"). Qual a razão dessa condescen- dência com o homicídio qualificado? Não será ele, no exemplo acima, igualmente torpe, repulsivo? Que diferença substancial existe entre matar ou tentar matar para roubar e matar por encomenda, para ganhar certa quantia em dinheiro, ou, ainda, para assegurar o produto de outro crime? Não tenho resposta para tais indagações. Os responsáveis pela redação dessa lei estão no dever de dar explicações convincentes a res- peito, se é que isso seja possível. 2 - Anais, Imprensa Nacional, v.I, p.74-75.. , . _ ' 3 - O Estado de São Paulo, edição de 14/07/91, publicou, com grande destaque, notrcranoso?re a ineficicãcia dessa lei, decorrido um ano de sua vigência, No mesmo sentido, trabalho CItado por Alberto Silva Franco, op. cit., p.36, , , 4 - "Crimes hediondos" (alguns aspectos importantes), in Livro de Estudos Iuridicos, n.S, p.204 e segs. 3. O art. 2°, I, da lei em exame contém, segundo penso, evidente in- constitucionalidade ao incluir a proibição do "indulto" ,não referida no art. 5°, XLIII, da Constituição. A lei ordinária, nesse aspecto, foi além da autorização constitucional que, por constituir norma de exceção, é de interpretação restrita. Além dis- so, o indulto está expressamente previsto, com esse nome, no art. 84, XII, da Constituição, que o inclui na competência do Presidente da Re- pública. Esse poder discricionário do Chefe do Executivo tem seus limites no próprio texto constitucional, não podendo sofrer restrições pelo legis- lador ordinário. Ora, a Constituição, quando quis fazer restrições, men- cionou, no art. 52, XLIII, a anistia e a graça, deixando de fora o indu/to a que se refere o mencionado art. 84, XII. Relembremos alguns conceitos básicos. Graça, lato sensu, significa "poder de clemência", abrangendo a anistia, o indulto e a graça strieto sensu. Esta última é uma espécie de benefício emanado do exercício desse poder, isto é, uma espécie do gênero. Nesse sentido, Manzini (5), e entre nós CreteUa Jr. e outros (6). ~ anistia fa~ desaparecer o crime. É ato legislativo de competência, por- tanto, do Poder Legislativo. Pode ser concedida antes (própria) ou depois (imprópria) da condenação; pode, ainda, ser geral ou parcial, con- dicionada ou não. O indulto e a graça stricto sensu, ao contrário, extinguem a punibilidade, pressupõem conde- nação e são atos da competência do Presidente da República. O indulto, entretanto, é medida de alcance geral, aplicável a todos os con- denados que preencham os requisi- tos e condições da concessão do benefício, ao passo que a graça, diferentemente, é ato concreto, res- trito à pessoa determinada, que a tenha requerido (7). É a graça um indulto individual. Proibindo o art. 52, XLIII, duas espécies de clemência, ou seja, a anistia e a graça, é óbvio que não se estende a proibição a uma terceira espécie distinta - o indulto -, não contida em qualquer dessas duas espécies. Aliás, se assim não fosse, a lei de crimes hediondos não pre- cisaria ter mencionado, destacada- mente, as três espécies - anistia, graça e indulto -, bastando repetir o texto constitucional. Anote-se que há uma certa lógica na exclusão do indulto, por se tratar de medida coletiva, que não apaga o crime, como ocorre com a anistia, nem privilegia um certo condenado, como se dá com a graça strieto sensu. 4. Tão desatento e apressado es- tava o legislador brasileiro, nessa ocasião, que não se deu conta de que 5 - Trattato, Utet, v.III, p.404. 6 - Comentários à Constituição de 1988, FU, I, p,488-9. 7 - Heleno Fragoso, Lições, Parte Geral, 5,ed" p.410-12. 61 a lei de crimes hediondos, que é de 25 de julho de 1990, entrava em choque, em alguns aspectos, com O estatuto da criança, Lei 8.069, de 13 de julho, isto é, do mesmo mês e ano. Com isso, parece-me que a es- tatuto em causa ficou na contramão ao acrescentar um parágrafo aos arts. 213 e 214 do Código Penal, sem considerar a modificação operada no caput. Com efeito, o Estatuto da Crian- ça, na parte infeliz em que se arvorou em reformador penal, determinou, no art. 263, entre outr.as, estas mo- dificações no Código Penal: "Art, 213.... Parágrafo único. Se a ofendida é menor de catorze anos: Pena - reclusão de quatro a dez anos. Art. 214.... Parágrafo único. Se o ofendido é menor de catorze anos: Pena - reclusão de três a nove anos." Ocorre que, pelo art. 62 da Lei 8.072, que é também de julho de 1990, publicada dez dias depois do estatuto, a pena do caput desses dois artigos passou a ser de seis a dez anos de reclusão, sem falar no au- mento do art. 92• Se procurarmos compatibilizar essas duas leis, quase concomitantes, que parecem não ter sido votadas pelo mesmo Congresso Nacional, com poucos dias de di- ferença, teremos esta monstruo- 62 sidade, caso prevaleça o estatuto que é de vigência posterior: ' a) estupro contra mulher de 14 anos ou mais, pena de seis a dez anos (Lei 8.072); b) estupro contra criança de me- nos de 14 anos, pena mínima re- duzida para quatro anos (Lei 8.069); c) atentado sexual violento con- tra pessoa de 14 anos ou mais, pena de seis a dez anos (Lei 8.072); d) se o mesmo atentado atingir criança com menos de 14 anos, a pena será reduzida de seis a dez anos para três a nove anos (Lei 8.069). A esse resultado .se chegaria pela consideração de que o estatuto da criança, por força de seu art. 266, entrou em vigor após a lei de crimes hediondos, pelo que, em princípio, sobre ela deveria prevalecer. Tenho-me esforçado por superar esse descuido legislativo, na via de uma hermenêutica construtiva. Vejo a questão com estes olhos: o estatuto das criança (Lei 8.069, de 13/07/90), anterior à lei de crimes hediondos (Lei 8.072, de 25/07/90), quis agravar a pena dos delitos sexuais contra criança, ao acrescen- tar aos arts. 213 e 214 os parágrafos citados. A lei posterior de crimes hediondos aumentou em quantidade ainda maior as penas desses crimes, sem reeditar os parágrafos acrescen- tados pelo anterior estatuto da criança, por desnecessários. Com isso, segundo penso, a Lei 8.072/90 revogou, com seu novo sis- tema de punição aos crimes em foco, o sistema anteriormente estabele- cido pelos parágrafos acrescentados pelo estatuto da criança. Aliás, só pode ter sido essa a vontade de um legislador desatento, que de nenhum modo, supomos nós, poderia ter pretendido premiar o atentado sexual contra crianças in- defesas. Com essa interpretação, adota-se princípio de hermenêutica recomen- dado por Windscheid, segundo o qual deve-se "atender, por último, ao valor do resultado, pelo menos na medida em que será de admitir que o legislador preferiu dizer algo de sig- nificativo, de adequado, em vez de algo de vazio e inconveniente" (8). Lembro que solução análoga deu o Supremo Tribunal Federal ao con- siderar derrogada, tacitamente, a exigência de recurso de ofício, nos crimes de tráfico de drogas, por não reproduzida essa exigência nas leis posteriores, que, todavia, não re- vogaram expressamente a norma do art. 72 da Lei 1.521/57. O fato de a Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança) ter entrado em vigor depois da Lei 8.072/90 (crimes he- diondos) não modifica o raciocínio, já que a lei pode sofrer alterações por outra editada no período de vacatio legis, como ocorreu, por exemplo, com o Código de 69 (Dec.- Lei 1.004/69), alterado pela Lei 6.016/73, em pleno prazo de va- cância. 5. Embora se trate de matéria polêmica, penso que o art. 82 da lei de crimes hediondos não deixa dú- vidas sobre a aplicação do Código Penal (art. 288) à quadrilha ou ban- do, em tráfico de entorpecentes, o que também parece ter ocorrido por descuido, por se referir apenas ao tráfico e não a outras modalidades assemelhadas. Com isso, parece-nos também revogado, por incompatibilidade, o art. 14 da lei de tóxicos (Lei 6.368/76). E assim é porque não terá sentido punir-se a associação de duas pessoas com a pena de 3 a 10 anos de reclusão e multa, mas punir com pena menor, de 3 a 6 anos, o bando ou a quadrilha de 4 ou mais pessoas, para o fim de tráfico. Tem-se a impressão, neste e em outros aspectos, que o legislador agiu, consciente ou inconsciente- mente, como se desconhecesse a existência de normas legais ante- riores sobre os temas que, de novo, estavam sendo objeto de regula- mentação pela nova lei. É um pri- marismo injustificável. Pode-se, contudo, dizer que, nes- se aspecto, querendo ou não, a nova lei acertou, já que a associação ou quadrilhade dois, da lei de tóxicos, não tinha justificativa e criava enor- mes dificuldades para a distinção com a co-autoria e demais formas de concurso eventual, fato que, de agora em diante, poderá não se repetir. 8 - In KARL LARENZ, Metodologia da ciência do direito, trad. portuguesa, p.26. 63 6. O parágrafo único do art, 82 e o acréscimo do § 42 ao art. 159 do Código Penal, feito pelo art., 72, determinando redução de um a dois terços da pena para o membro da quadrilha que denunciá-Ia à auto- ridade, tem objetivo louvável mas não terá, segundo penso, efeitos práticos porque implica confissão e condenação do denunciante, o que, na área da criminalidade, não cons- titui estímulo para quem, muito provavelmente, passará a ser objeto de vingança por parte do bando (trocará alguns anos ou meses de cadeia, com assistência e proteção, por alguns anos de cadeia com a pena de morte, aplicada pelos com- parsas, o que é um mau negócio). O legislador, aqui, foi evidente- mente ingênuo. Se quisesse os fins, deveria ter concedido os meios para atingi-Ias, ou seja: isenção de pena e proteção do denunciante, como ocorre nos Estados Unidos da América. ) 11 - PRISÃO OBRIGATÓRIA 7. A lei em exame abriu, no § 22 do art. 22,uma brecha para aplicação dos mesmos favores da denominada Lei Fleury aos crimes hediondos e ao tráfico de entorpecentes, sem men- cionar sequer as restrições do art. 594 e do § 22 do art. 408 do CPP (exigência de primariedade e bons antecedentes). Sobre esse tema tive oportuni- dade de proferir voto no Superior 64 Tribunal de Justiça, no Recurso de Habeas Corpus n2 1.077-MG, salien- tando o seguinte: réu o benefício de apelar em liber- dade. Isso implica em ab-rogação ou revogação total do caput do art. 35 da Lei de Tóxicos pelo § 22 do art. 22 da lei de crimes hediondos? Penso que não. Primeiro por- que, como já se viu, a última lei, no seu art. 10, quis manter o art. 35 ao acrescentar-lhe um parágrafo. Segundo, porque a referida norma do art.' 35 situa-se frente à do mencionado § 22 do art. 22 numa evidente relação de regra-exceção. Vale dizer: confrontando-se os dois preceitos aparentemente con- traditórios, teremos não a anu- lação de um pelo outro, mas sua compatibilização. O resultado des- sa compatibilização é o seguinte: 'O réu condenado por infração dos arts. 12 ou 13 desta Lei (Lei de Tóxicos) não poderá apelar sem recolher-se à prisão (art. 35, ca- Pllt), exceção será a permissão de ape- lar em liberdade quando o juiz, fundamentadamente, deferir tal benefício ao condenado. Outra questão que se põe é a de saber se o benefício de apelar em liberdade abrange o condenado que já estava preso, por força de flagrante ou prisão preventiva, ou se, como acontece com a hipótese do art. 594 do CPP, só poderá ser deferido a quem respondia ao processo em liberdade. Tenho, para mim, que é correto dizer-se não ser possível ao intér- prete introduzir na lei uma con- dição não estabelecida pelo le- gislador. Não obstante, como não se pode, igualmente, identificar o § 22 do art. 2º da lei de crimes hediondos o intuito de revogação de prisão fundada em outras causas que não a exigência para apelar (a prisão em flagrante ou preventiva tem outras causas), não considero abrangido por esse pre- ceito, tal como ocorre com o art. 594 do CPP, o condenado que já estava preso em flagrante ou pre- ventivamente. Nessa hipótese, os dispositivos aplicáveis são os dos arts. 310, parágrafo único, e 316 do CPP. A não ser assim, chegaríamos a resultados absurdos, a saber: a) réu preso em flagrante ou preventivamente, por furto, não poderá apelar em liberdade (art. 594 do CPP); mas, nas mesmas circunstâncias, se for condenado por latrocínio, poderá ser posto 65 "A lei de crimes hediondos, criticável pela má técnica com que foi redigida e pelas con- tradições que apresenta, manteve expressamente, o art. 10, o art. 35 da Lei 6.368/76 (Lei de Tóxicos), tanto que lhe acrescentou um parágrafo mandando contar em dobro os prazos procedimen- tais. Todavia, em seu art. 22, § 22, dispõe contraditoriamente o se- guinte: '§ 2Íl Em caso de sentença condenatória, o juiz decidirá fun- damentadamente se o réu poderá apelar em liberdade.' A contradição se estabelece com o caput do art. 35 estatuindo a impossibilidade de se apelar em liberdade, nestes termos: 'Art, 35. O réu condenado por infração dos arts. 12 ou 13 desta Lei não poderá apelar sem reco- lher-se à prisão.' Como o dispositivo do § 22, anteriormente transcrito, refere- se, entre outros, aos crimes de tráfico ilícito de entorpecentes e drogas, não-há dúvida de que algo mudou na draconiana proibição do art. 35, pois se por este não era dado ao juiz admitir a apelação sem a prisão do condenado, agora, pelo § 22, sobrevindo a condena- ção, ser-lhe-á permitido, em des- pacho fundamentado, conceder ao salvo se o juiz, em decisão fundamentada, conceder-lhe tal benefício (§ 2º do art. 22 da lei de crimes hedion- dos).' Nessa linha de raciocínio, che- ga-se à conclusão de que o preceito em exame da Lei 8.072/90 não ab-rogou e sim derrogou (revogação parcial) o art. 35 da Lei de Tóxicos acrescentando-lhe uma hipótese de exceção. A regra, portanto, continua sendo a proi- bição de apelar em liberdade; a em liberdade para recorrer (§ 2º do art. 22); b) réu, preso preventivamente, e condenado por prática de es- tupro, pode ser posto em liber- dade para recorrer: mas se, em face da prova, o juiz desclassificar o crime para a figura bem mais benigna de posse sexual mediante fraude, não poderá permitir ao preso apelar em liberdade." Em outro Recurso de Habeas Corpus, de que fui relator, a ementa espelha esse entendimento: "PROCESSUAL PENAL. RE- CURSO DE APELAÇÃO. NE- CESSIDADE DE PRÉVIO RE- COLHIMENTO À PRISÃO. 1. Tráfico de tóxicos. Alegação de revogação do art. 35 da Lei de Tóxicos pelo § 22 do art. 22 das lei de crimes hediondos (Lei n2 8.072/90). Improcedência dessa alegação, visto como os dispo- sitivos legais em foco posicionam- se numa evidente relação de re- gra-exceção, isto é, o art. 35 estatui a regra, o § 22 do art. 22 uma exceção quando o juiz fundamen- tadamente julgar recomendável o benefício. 2. Condenado que já estava preso, por ocasião da sentença condenatoria. Hipótese não alcan- çada pelo § 22 do art. 22 da Lei 8.072/90 que não tem o intuito de revogar prisão fundada em outras causas não identificáveis com a simples exigência para apelar. ) 66 3. Presunção de inocência. 'A exigência de prisão provisória, pa- ra apelar, não ofende a garantia constitucional da presunção de inocência'. (Súmula STJ/09). Recurso de habeas corpus a que se nega provimento." (RHC n2 1.141-RJ, DJ 10/06/91, p.7.857). 8. Outra questão, que tem sido suscitada, é a de saber se a proibição da liberdade provisória sem fiança, incluída no art. 22,lI, da Lei 8.072/90, ofende ou não a Constituição, já que esta cuida da inafiançabilidade dos crimes que indica, não da hipótese de liberdade sem fiança. Saliente-se, inicialmente, no to- cante à proibição da fiança, a ociosidade dessa norma. É que a quase totalidade dos delitos men- cionados nos arts. 12 e 22 a Lei 8.072/90 possuem pena mínima supe- rior a dois anos de reclusão ou são crimes que se cometem com em- prego de violência ou grave ameaça à pessoa. Isso quer dizer que, no tocante a esses crimes, a prestação de fiança já estava expressamente vedada pelo Código de Processo Penal no art. 323, I e V. A nova lei, nesse aspecto, choveu no molhado, o que revela uma injustificada desa- tenção do legislador para com a legislação vigente. Relativamente à liberdade provi- sória sem fiança, a proibição efetiva- mente inovou. E, nesse particular, há quem sustente a inconstitucionali- dade da proibição. Diz a Constituição no art. 5º,inciso LXVI: "ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança." Como se vê, a norma cons- titucional assegura o direito à liber- dade provisória, com ou sem fiança, nos limites estabelecidos pela lei ordinária. Assim, segundo penso, não há dúvida de que o legislador ordinário pode ampliar ou restringir esse direito, sem violentar a letra e o espírito da lei maior. E assim é porque, se a Constituição, de um lado, assegura o direito à liberdade (art. 52, caput), de outro, permite expressamente a prisão dos indi- víduos submetidos a inquérito ou a processo (art. 52, LXI). Assim, onde couber a prisão, não se poderá negar o seu efeito mais imediato, ou seja, a privação temporária da liberdade. Ora, só se pode cogitar de liber- dade provisória, no sistema proces- sual penal vigente, quando o indi- ciado ou acusado estiver regular- mente submetido a uma ordem de prisão (flagrante ou mandado judi- cial). Se essa ordem não for regular ou legítima, caberá, obviamente, o relaxamento ou a revogação do ato coator, não a liberdade provisória. Portanto, a liberdade provisória su- põe prisão legítima, regular, pelo que pode ser ampliada ou restringida na lei que a admite. Assim, embora não me pareça inconstitucional a referida proibição de liberdade provisória sem fiança, pelo legislador ordinário, ressalvo que, mesmo nessa hipótese, fica em aberto a discussão sobre a legali- dade, ou não, da própria prisão, já que, no direito brasileiro, a regra é a da inviolabilidade do direito à liber- dade (art. 52, caput) e da presunção da inocência (art. 52, LVII), sub- metendo-se todas as formas de pri- são ao princípio da legalidade, vale dizer, à estrita observância de uma previsão legal, além dos pressupos- tos e requisitos também estabe- lecidos em lei. Por outro lado, parece-me correta a conclusão de acórdão da 6a Câ- mara Criminal do Tribunal de Jus- tiça de São Paulo no sentido de que, quando for discutível ou duvidosa a capitulação do crime constante da denúncia, não estará o juiz ou tri- bunal impedido de deferir a liber- dade provisória, "em face do delito mais ajustado ao caso concreto", para evitar uma injustiça flagrante. (Dos votos dos Des. Nelson Fonseca e Djalma Lolrano, RT, 671/328-329.) III - ENDURECIMENTO DAS PENAS 9. A questão do tamanho de uma certa pena criminal não pode ser solucionada de modo empírico, iso- lado, em desacordo com o sistema de penas adotado. 67 E isso ocorreu com o art. 92 da Lei 8.072/90. Basta lembrar, como exem- plo, que, em relação ao latrocínio (art. 157, § 32), com resultado morte, a pena de 20 a 30 anos passaria a ser de 30 a 45 anos, mas observado o limite de 30 anos, a pena mínima e máxima se confundiriam nesse li- mite, tornando sem efeito o art. 59 do Código Penal que trata da indivi- dualização da pena. Como, entretan- to, o citado preceito do Código, pelo princípio da recepção, está sob a proteção de norma expressa cons- titucional ("a lei regulará a indi- vidualizaçãoda pena" ..., art, 52, XLVI), parece lógico supor que, nessa e em outras hipóteses de identificação do mínimo com o máximo da pena cominada, o legis- lador ordinário burla a norma cons- titucional da individualização, pelo que, conforme sustenta Alberto Silva Franco, ingressou, de novo na via tortuosa da inconstitucionalida- de (9). A questão - repita-se - da me- nor ou maior exacerbação das co- minações penais deveria ser reme- tida para a ocasião das reforma da parte especial do Código. IV - REGIME CARCERÁRIO A determinação contida no § 12 do art. 22 ("a pena por crime previsto neste artigo será cumprida integral- 9 - Op. cit., p.154. 68 mente em regime fechado") é fruto - só pode ser isso - da. mais completa ignorância a respeito do sistema progressivo de execução da pena adotado pela reforma penal brasileira de 1984, a respeito do qual salientei, na conferência inicialmente citada, o seguinte: dentro de um retributivismo kan- tiano, formal e desalmado." (10) nutenção da disciplina no interior dos estabelecimentos penais. Sim, porque, sem o benefício do sistema progressivo, o condenado só terá um caminho para antecipar a liberdade: a rebelião ou a fuga. É lamentável que um legislador desatento e mal assessorado tenha retirado da Administração da Justi- ça esse precioso instrumento de ma- "20. Em relação à pena de prisão, instituiu-se um subsistema verdadeiramente progressivo, sem possibilidade de perpetuação da segregação social, para cumprir-se o mandamento constitucional do art. 153, § 11, da Carta Magna. E deu-se a essa discutida pena o caráter de "pena programática", ou seja, de algo que se modifica, dentro de certos limites e de certas garantias, no curso da execução, por atuação da Administração da Justiça e do próprio condenado, segundo o seu mérito ou demérito. Com isso abre-se uma concreta esperança, para todo condenado, no sentido de poder conquistar, por seu próprio esforço, a liber- dade, bem inalienável de todo ser humano. Essa esperança na liberdade que, para o preso, deve significar uma conquista, é o único in- grediente, de que se pode valer o aparelhamento penitenciário para impregnar a execução da pena de algum utilitarismo, de sorte a não transformá-Ia em mero castigo, 10 =Perspectivas do direit? penal brasileiro, in Anais do I Congresso Brasileiro de Políti Criminal e Penitenciãria, p.81. I ica 69 sobre a real intenção legislativa, por- que é completamente desconhecido o processo de elaboração do di- ploma. tado dado ao problema da violência urbana, nos noticiários e ''programas especializados em crimes", todos de nítido caráter sensacionalista, com o único objetivo de obter pontos nos índices de medição de audiência, mediante a exploração degradante da miséria humana, que passaram a exercer forte influência sobre a sociedade, inspirando um grande sentimento de insegurança, acom- panhado de um clamor público por um maior enfrentamento à "onda de crimes". O extraordinário poder de pres- são dos meios de comunicação de massa é tão forte, impondo aspi- rações, gostos, costumes, que até as pessoas componentes de classes sociais economicamente menos abas- tadas, influenciadas pela onda de insegurança, passaram a temer a pos- sibilidade de serem vítimas daquele tipo de delito. . Esse tipo de programação ocasio- na sobre os seus ouvintes e espec- tadores uma afetação estranha, que contém um misto de sentimento de insegurança, aliado a uma certa atração pelo crime, conforme des- tacou Hassemer ao analisar este úl- timo aspecto que denominou como "La [ascinaciôn de 10 criminal", escrevendo que "Las novelas poli- ciacas (o los te1efilms y películas) son algo normal y generalmente un buem negocio. Los medios de comuni- cación informam casi exclusivamente CRIMES HEDIONDOS (Lei 8.072, de 25 de julho de 199()) Márcio Bárto/i Juiz de Direito em São Paulo Membro da Associação Juizes para a Democracia SUMÁRiO: 1 -Aspectos criticos; 2 - Prisão preventiva obrigatória; 3 - Endurecimento das penas; 4 - Regime carcerário; 5 - Conclusão. 1- ASPECfOS CRÍTICOS Se dezenas de preceitos cons- titucionais aguardam regulamenta- ção desde a promulgação da Carta de 1988, é de indagar-se por que o legislador ordinário preocupou-se justamente com a disposição do art. 52, inciso XLVII, da Carta, que previu as crimes hediondos, elabo- rando, para tanto, uma lei com dis- positivos de extrema severidade? A pretensão seria combater a cri- minalidade violenta, que tanto te- mor tem trazido à população dos grandes centros urbanos? A resposta parece inclinar-se nes- sa direção, apesar de pouco se saber 1.1 - Em verdade, se se partir dessa premissa, verifica-se que o legislador ordinário, teria demons- trado preocupação em guerrear principalmente os crimesde extorsão mediante seqüestro, que atingiram algumas pessoas de "extrato social e econômico diferenciados". Também cedeu até como uma decorrência natural à forte coação exercida pela mídia, através do rádio e da televisão, pelo destaque exaI- 1 - Winfried Hassemer. Introducciôn a Ia criminologia y ai derecho penal, ed. Trant 10 Branch, 1989, p.3l. Fase. de Ciênc. Penais. Porto Alegre, v.5, n.2, p.70-82, abr/mai/jun, 1992 de casos penales porque así satis- facen el interés de sus lectores ... EI asesinato, el robo, el secuestro y, en general, todos los delitos violentos con claras connotaciones delincuen- te-víctimason Ias formas delictivas que más fascinam a Ia gente y sobre Ias que merece Ia pena informar. De Ia estafa o de Ia falsedad documental, que sólo producen danos patri- moniales, apenas se habla" (1). 1.2 - Se o objetivo era, por outro lado, o de proteger as possíveis vítimas de seqüestros, deveria o le- gislador, ao invés de usar a pressa e simplesmente aumentar penas, ob- servar a experiência legislativa de outros Países onde se exerceu forte combate contra esse tipo de crime, como por exemplo a Itália, nos anos 6OnO. Mas para que, se com maior ameaça penal poderiam resolver mais facilmente esse problema? 1.3 - Retomando ao aspecto alusivo à nefasta influência exercida pelos meios de comunicação sobre a sociedade, ao explorar desprezivel- mente a violência anota-se que o fato foi analisado pela Unesco, órgão da Organização das Nações Unidas conforme noticiou o Prof. René Ariel Dotti afirmando que a en- tidade, por decisão de sua Con- ferência Geral, realizada entre 29 de junho a 7 de julho de 1970, deliberou 71 que a representação da violência nos meios de comunicação não é causa de aumento das criminalidade, mas reconheceu a responsabilidade da mídia na propagação desse fenô- meno, e acrescentou que a liberdade dos meios de comunicação nos regimes democráticos abre caminho para o conhecimento de determi- nados ângulos da violência e da criminalidade, franquia vedada nos sistemas autoritários de poder (2). Citou esse autor, ainda sobre esse mesmo tema, o escrito de autoria do ilustre Professor Jorge de Figueiredo Dias no sentido de que: "Corolário dos regimes democráticos é o discur- so polftico do crime, caracterizado pela exploração dos temas do delito e do delinqüente com a finalidade de legitimar ou contestar o poder. Em Portugal, após a Revolução de 1974, multiplicaram-se as tentativas de uso dos problemas da realidade social - "uma realidade de violência, de insegurança e de medo generali- zados - como peças fundamentais das estratégias de crítica e de usu- fruto do poder". ) 1.4 - Será que não se tem usado essa dramatização intencional do fenômeno da criminalidade, estimu- lando o sentimento de insegurança do cidadão comum em face da delinqüência, com o objetivo de jus- tificar o crescente controle da so- I' ) I, I ciedade civil pelo Estado, através do reforço constante do aparato repres- sivo? (3). 1.7 - O problema da violência urbana e rural tem raízes profundas no quadro de desigualdade social que atinge a maioria da população. Não se pode imaginar que se vai poder conter a criminalidade, com a promulgação de uma lei com ameaça penal mais dura, que impõe, como esta, por exemplo, um regime in- tegralmente fechado para cumpri- mento de pena e a impossibilidade de liberdade provisória, a réus pro- venientes de uma sociedade terceiro- mundista, que enfrenta graves pro- blemas estruturais, como fome, falta de educação, etc., sem se transitar, antes, pelo caminho tido para mui- tos, como inóspito, para outros, como cansativo e repetitivo, mas de inarredável presença: o da mais justa distribuição de riqueza. Os dados estatísticos demonstram que: 1.5 - O processo de elaboração desse diploma legal, como dito, não é muito conhecido. Não se sabe se foi precedido de qualquer discussão ou consultas a entidades da sociedade civil, como, por exemplo, a Ordem dos Advogados do Brasil, e a sua aprovação foi a "toque-de-caixa", mediante o recurso regimental deno- minado como "acordo de lideran- ças". Para que se tenha idéia de como possa ter se desenrolado esse procedimento na Câmara, e por mais insólito que possa parecer, um dos líderes partidários, com o argumento de que necessitava apreciar a ma- téria com calma, e dizendo-se tam- bém, temeroso pela forma como sua atuação naquela votação pudesse repercutir na imprensa, pediu adia- mento da sessão pelo prazo de uma hora (4). a) de 40 a 50 milhões de brasi- leiros vivem abaixo da linha de po- breza absoluta. b) 70% das crianças brasileiras provêm de famílias cuja renda men- sal atinge um salário mínimo. c) o salário-mínimo fica sempre aquém de 100 "dólares" mensais. d) a desagregação familiar causa- da pela miséria e a evasão escolar atiram nas ruas milhares de crianças, obrigadas a enfrentar toda sorte de incertezas e violências. 1.6 - Em verdade, não há solução mágica para o combate à crimi- nalidade urbana e rural. Ninguém, razoavelmente lúcido, poderia acre- ditar que apenas uma lei penal, como essa, contendo severíssimas comi- nações, poderia funcionar como úni- ca resposta à criminalidade e como sua causa redutora. 2 - René Ariel Dotti. Reforma penal, Saraiva, 1985, p.70. 3 - Antonio Magalhães Gomes Filho. Presunção de inocência eprisão cautelar. Saraiva, 1991, p.I, 4 - Alberto Silva Franco. Crimes hediondos. RT, 1991, p.30. 5 - H~rbert de Souza. "Quem semeia miséria colhe violência", publicado no jornal O Estado de Soa Paulo. 72 e) enquanto isso, 1% da popu- lação detém cerca de 50% da riqueza nacional. 1.8 - Os que pensam diferente, negando que a miséria seja causa principal da violência, argumentam com o maior percentual da popu- lação que também vivencia essa situação de pobreza e não comete crimes. E isso é verdade. Porém, como escreveu o sociólogo Herbert de Souza a respeito dessa situação de resignação, é assustadora "a pas- sividade de nossa sociedade, de nos- sos trabalhadores que escutam o choro de fome de seus filhos e con- tinuam bem-comportados. Com os milhões de pobres que não roubam para comer, que não invadem terras para produzir, que não ocupam casas para ter onde morar. Confesso que me espanta o grau de passividade e de resignação que se abate sobre a maioria esmagadora da população brasileira. Fosse ela mais atuante, mais revoltada, mais exigente, mais indignada, não teríamos o que temos agora. E seguramente teríamos me- nos pobreza e violência" (5). 1.9 - De qualquer forma a lei está aí e, por mais estranho que possa parecer, reuniu-se num "paco- te" condutas díspares, previstas como latrocínio, extorsão qualificada pela morte, extorsão mediante seqües- 73 tro, estupro, atentado violento ao pu- dor, e pasmem, epidemia com resul- tado morte, envenenamento de água potável ou de substância alimentícia ou medicinal, qualificado pela morte. 1.10 - Se o objetivo era o com- bate à criminalidade urbana, o legis- lador poderia ter aproveitado esse momento para incluir outros fatos penais até mais repugnantes, cuja prática provoca um resultado que afeta a sociedade como um todo, por exemplo: a) a sonegação fiscal, pu- nida com mera pena detentiva, pois a cada tributo criminosamente des- viado sonegado há menos receita e, em conseqüência, menos cons- truções de escolas, postos de saúde, etc. b) e os famosos crimes decorren- tes de escândalos financeiros prati- cados contra a administração pública, como, por exemplo, a fraude em con- corrências,fato tão em moda, hoje. E os delitos de trânsito que ferem e matam dezenas de pessoas aos fins de semana e milhares ao ano? Crimes do qual somos recordistas mundiais, segundo as estatísticas. E os homicídios dolosos, come- tidos às dezenas, a cada semana, nas regiões metropolitanasdas duas maiores Capitais, estes sim, repug- nantes, por atingirem o bem jurídico supremo que é a vida? Tudo isso sem falar nos fami- gerados "esquadrões da morte", nos justiceiros e naqueles que ultima- mente têm se dedicado a assassinar menores, todos contando com o apoio velado de muitos. 74 1.10 - Incluir num mesmo texto para considerá-los hediondos e au- mentar suas penas os crimes de es- tupro, atentado violento ao pudor e de envenenamento de água potável ou de substância alimentícia ou me- dicinal, pela diferença entre essas atividades criminosas e o resultado que ocasionam, refoge a qualquer consideração maior, até porque, quanto a estes últimos fatos, os re- pertórios de jurisprudência não re- gistram qualquer julgado a respeito há décadas. 2 - PRISÃO PREVENTIVA OBRIGATÓRIA 2.1 - Num Estado Democrático de Direito, sob o império da garantia das liberdades individuais cons- titucionais, não há nada mais avil- tante à dignidade humana do que uma prisão cautelar e inspirada num juízo de perigosidade do agente ou de gravidade do fato penal, oriunda de casuísmo autoritário, e sem uma razão de necessidade, como ocorre agora diante da impossibilidade de concessão de liberdade provisória aos autores dos denominados crimes hediondos. A ofensa maior, dentre outras, é ao princípio constitucional da dig- nidade da pessoa humana previsto (art. 1Q, I1I, da Constituição Federal). Por isso como não, entender que a privação não necessária da liberdade individual não signifique uma pena precipitada e, por isso, uma ofensa à dignidade da pessoa atingida e à de todos aqueles que sofram o risco de serem também, indistinta e imoti- vadamente, alcançados pelo arbí- trio? Quem ousaria negar que a proibição da liberdade provisória, a partir de determinados tipos, não constitua o rompimento da ordem que está subjacente e dá sentido ao conglomerado dos direitos fun- damentais? Vedar-se o direito fun- damental à liberdade provisória, quando a prisão é totalmente des- necessária, é, portanto, afronta fla- grante ao princípio da dignidade humana (6). demonstrar que passa a se constituir num verdadeiro instrumento de luta contra alguns crimes que o legislador considerou como mais repugnantes. Hassemer afirma, nesse passo, que "Cuanto más amenazantes son o se consideram determinados delitos, tanto más materialistas son Ias exi- gencias que se imponem em su tratamiento. Esta tendencia hacia una lucha sin cuartel parece casi general en ámbitos como os dei ter- rorismo e el tráfico de drogas, cons- tituyendo un 'Derecho Penal para enemigos', es decir, para deter- minadas formas de criminalidad o determinados tipos de delincuentes, a los que se priva incluso de Ias tradicionales garantías dei Derecho Penal material y dei Derecho Pro- cesal Penal" (8). 2.3 - A impossibilidade de o denunciado pelos tipos penais descritos por essa lei alcançar o benefício da liberdade provisória, mesmo preenchendo os requisitos exigidos pelo art. 310, parágrafo único do Código de Processo Penal, faz pesar sobre si, inicialmente uma forte presunção de periculosidade e sobre o fato penal praticado uma qualidade de natureza gravíssima, o que ofende profundamente o prin- cípio constitucional da presunção de não-culpabilidade, previsto no inciso LVII do art. 5Q, porque à luz da 6 - Alberto Silva Franco, ob. cit., p.53. 7 - Fe.mando Tourinho Filho. Processo penal Saraiva, 1992, p.422. 8 - Winfried Hassemer, ob. cit., p.37. 75 2.2 - A verdade é que, mesmo hoje, a prisão preventiva, só poderá ser decretada dentro naquele mí- nimo indispensável, por ser de in- contrastável necessidade e, assim, mesmo sujeitando-a a pressupostos e condições evitando-se ao máximo o comprometimento do direito de liberdade que o próprio ordenamen- to jurídico tutela e ampara (7). Porém, a denominada Lei de Crimes Hediondos ao impedir em seu art. 2Q, inciso lI, a concessão de liberdade provisória e a fiança, esta erroneamente, porque este benefício não poderia mesmo ser concedido aos autores de crimes hediondos, cujas penas mínimas são superiores a dois anos (CPP, art. 323, I), além de ter trazido de volta a abominada prisão preventiva obrigatória, veio presunção de inocência, não se con- cebem quaisquer formas de encar- ceramento ordenadas como ante- cipação da punição, ou que cons- tituam corolário automático da imputação, como sucede nas hipó- teses de prisão obrigatória, em que a imposição da medida independe da verificação concreta do periculum libertatis (9). 2.4 - Se isso já não bastasse, a imposição dessa drástica medida de coerção à liberdade pessoal, fere o princípio do devido processo legal, ante o preceito constante do inciso LIV do mesmo artigo da Carta, pois, afasta-se, desde logo a bilateralidade processual, porque está impedido o acusado de opor-se à essa drástica medida, exercendo qualquer direito de ser ouvido, e excepcionar a neces- sidade dessa prisão, iniciando sua atividade processual vencido. Nunca se deve esquecer que o devido processo legal, envolve a ga- rantia do contraditório, a plenitude do direito de defesa, a isonomia processual e a bilateralidade dos atos procedimentais (10). A privação da liberdade do acusado sem se lhe assegurar direito à ampla defesa é inadmissível. ) I 2.5 - Na declaração de voto proferido quando do julgamento do Habeas Cor pus n2 105.484.3, da co- marca de Sorocaba, inserto na Revis- ta dos Tribunais_671/323, ficou as- sentado que "A Magna Carta tem como um de seus primados fun- damentais o direito à liberdade da pessoa humana, ao consagrar em seu art. 12, 111, como um de seus princípios, a dignidade da pessoa humana; quando declara que um de seus objetivos é construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 32, I); quando preceitua que as relações internacionais serão regidas pelo princípio da prevalência dos direitos humanos (art-:42, 11); e, por fim, quando garante o direito à liber- dade (art. 52, inciso LXVII)" (11). 2.6 - Por outro lado, é impossível retirar-se do juiz, o encarregado de dirigir e presidir o processo, aquele a quem as partes destinam a prova que produzem, aquele que vai proferir o pronunciamento jurisdicional - sem um justo motivo de suficiência -, a possibilidade de conceder a liber- dade provisória ao réu, e aferir da conveniência, ou não, da aplicação dessa medida. Trata-se, nesse caso, como mutio bem observou o Prof. Odone San- guiné de uma espécie de Bi// of attainder (reconhecido como abusivo pela jurisprudência norte-ameri- cana), ou seja, um ato legislativo que 9 - Antonio Magalhães Gomes Filho, ob. cit., p.37. 10 -José Afonso da Silva. Curso de direito constitucional positivo. RT, 1990,p.373. 11 - TJSP - HC 105.484.3,6' C. Criminal, RT 671/323 . . \ \ I 1 I I 76 implica considerar alguém culpado diretamente e destinado a infligir-lhe uma sanção sem processo ou decisão judiciária" (12). Esse tipo de "prisão preventiva obrigatória", que por princípio li- beral-moderno havia sido abolido da legislação processual, retomou, ago- ra, despropositadamente, diga-se, porque baseado única e exclusiva- mente em idéia autoritária e de defesa social, notando-se que esta influenciou decisivamente a elabo- ração do CPP italiano de 1931 (que por sua vez serviu de modelo ao nosso Estatuto processual de 1941), de claro caráter antidemocrático on- de se pregava que é presumível a procedência da impútação e não o contrário: se se presume a inocência do acusado não teria sentido pro- cessá-lo ou submetê-Ia à prisão pre- ventiva (13). 2.8 - Já se escreveu que nesses casos para obviar excessos decorren- tes da lei, é então necessário realizar um juízo provisório mais acurado sobre a correção da capitulação feita na denúncia, ou existência de justa causa para a tipificação nela rea- lizada, seja no seu recebimento,seja durante o processo, quando a lei preveja o despacho saneador, seja ainda na apreciação do pedido de liberdade provisória (14). Ocorre que esse exame, caso a caso, poderá levar aos perigos do subjetivismo, do casuísmo e do arbítrio. 2.9 - Mas a incongruência maior vem a seguir ao dispor a lei no seu artigo 22, parágrafo 22, que "Em caso de sentença condenatória, o juiz decidirá fundamentadamente se o réu poderá apelar em liberdade" (art. 2º, § 22). Ora, pode parecer incrível que não possa o juiz, antes da sentença, apreciar pedido de liberdade provi- sória, mas que o possa, e se entendê- Ia cabível, deferi-I o após a sua pro- lação, quando já analisou toda a prova que lhe foi apresentada e con- siderou-a como suficiente a impor um pronunciamento condenatório, momento em que muito além do fumus, passa a existir uma verdadeira fogueira do bom direito, aí sim, se 12 - O~on~ Sangu.iné. "Inconstitucionalidade da proibição de liberdade provisória", Fase. de Ciências Penais, Porto Alegre, v.3, p.15, Sergio Antonio Fabris. 13 -Antonio ~aga.lhães G?mes Filho. "Prisão cautelar e o princípio da presunção de inocência", Fase. tJ: Ciências Penais, Porto Alegre, v.5, p.18, Sergio Antonio Fabris. 14 - Antonio Scarance Fernandes. "Considerações sobre a lei 8.072, de 25.7.90", RT 660/261. 77 2.7 - Figure-se, por exemplo, o caso de processo iniciado por uma denúncia que, destoando da prova reunida no inquérito, se constitua num abuso de poder. Nem assim poderia o juiz conceder ao réu a liberdade provisória? E a hipótese de denúncia por crime sexual com indício de que o delito fora cometido com consen- timento da ofendida? decidir fundamentadamente, poderá permitir ao réu apelar em liberdade. Por que ele não pode aplicar fundamentadamente esse benefício antes desse momento? 2.10 - Mas o juiz pode e deve enfrentar essa proibição, porque, antes de tudo, não lhe é permitido passivamente, aceitar e admitir uma prisão provisória que se revele des- necessária e que ofende princípios fundamentais da Constituição Fe- deral, e, também, porque, a des- tinação do processo penal, antes de ser compreendido apenas como um conjunto de atos direcionados à aplicação da lei material, representa "un conjunto de preceptos desti- nados a Ias poderes públicos y de limitaciones impuestas a su potestad punitiva: en otras palabras, un con- junto de garantias destinadas a asegurar Ias derechos fundamentales del ciudadano frente ai arbitrio y el abuso de Ia fuerza por parte dei Estado" (15). 2.11 - Na luta decretada contra o crime e criminosos, principalmente contra aqueles a que a lei, pelo fato nela descrito, passou a considerar como mais perigosos, não se deve privar ninguém de uma aplicação correta e formal das garantias cons- titucionais tradicionais tanto de di- \ I reito processual como de direito ma- terial. Não pode ° juiz coonestar com uma prisão cautelar desnecessária e prolongada com a possibilidade de o réu vir a ser absolvido posterior- mente. Agora, o art. 52, inciso LXXV, da CF, deu maior amplitude ao direito de indenização, esta- belecendo que "O Estado indenizará o condenado por erro judiciário", assim como o que ficar preso além do tempo fixando na sentença. Ora se a Constituição assegura a pre- sunção de inocência e reconhece o direito de indenização ao réu que ficar preso além do tempo fixado na sentença, parece claro que "o tempo de prisão provisória sempre deve merecer reparação" havendo uma sentença absolutória, o tempo de prisão cautelar será sempre maior do que o "fixado na sentença"; o ra- ciocínio também é válido para o caso de uma condenação a uma pena inferior ao prazo já descontado pro- visoriamente (16). 3 - ENDURECIMENTO DAS PENAS 3.1 - Um dia já se considerou como humanitário o cumprimento de pena no regime prisional fechado, acolhendo-se a idéia de que se po- deria recuperar socialmente o cri- minoso ao invés de brutalmente eli- 15 - Luigi Ferrajoli. Justicia penal y democracia, in Revista Jueces para IaDemocracia, Espanha, setembro de 1988. 16 - Antonio Magalhães Gomes Filho, ob. cit., p.23. 78 miná-lo ou infligir-lhe castigos cor- porais. Como o sistema penitenciário tor- nou-se um verdadeiro descalabro, pela indestrutível crise que o afeta, porque nunca foi um assunto prio- ritário e jamais foi objeto de um estudo e de investimento sérios, o que tornou as penitenciárias em grandes concentrações humanas e numa verdadeira escola de formação de criminosos, não demorou muito para se descobrir as inconveniências dessa forma de execução de pena, tanto que Foucault escreveu que se conheciam todos os inconvenientes da prisão, e sabe-se que é perigosa quando não inútil. E entretanto, não "vemos" o que pôr em seu lugar. Ela é a detestável solução, de que não se pode abrir mão (17). É mais do que sabido que as penas de prisão de longa duração não servem ao fim a que se destinam: a reeducação do condenado, e se constituem no que o Prof. Manoel Pedro Pimentel denomina como um verdadeiro drama por ser a prisão uma instituição totalitária, que al- cança o indivíduo a ela submetido em toda a extensão de sua persona- lidade. E exige a sua submissão plena e o sujeita a regras regulamentares de maneira coativa. Na prisão se fazem os criminosos e se os prepa- ra convenientemente para ingres- sarem na massa", arremata o au- tor (18). 3.2 - E quando, atento a essa situação de precariedade e de dra- maticidade que cercam o sistema penitenciário nacional, o legislador, acolhendo moderna tendência no sentido de considerar ineficientes as penas privativas de liberdade de longa duração, que de nada adian- tam em termos de reeducação para posterior reinserção do condenado na sociedade, acolheu, na Parte Geral do CP, afonna progressiva de sua execução, o que antes era re- gulado tibiamente, ou pela lei local, ou por provimentos, surgiu a lei dos Crimes Hediondos não só dobrando as penas mínimas e máximas dos crimes por ela previstos, como também determinando que o seu regime de execução seria o integral- mente fechado (art. 22, § 12). Contrariou-se, nesse passo, fron- talmente a determinação constante do art. 59 do CP, que faz expressa referência ao princípio da suficiência e necessidade, como medida de quantificação e qualificação da pena e de reprovação ao crime e, prin- cipalmente, o princípio constitu- cional da sua individualização des- crito no art. 52, XLVII. Adotando o regime fechado in- tegralmente para cumprimento de longas penas torna-se praticamente impossível a reabilitação do con- denado. Pena longa e regime fe- chado são elementos contraditórios à idéia de reinserção social e inúteis 17 -Michel Foucault. Vigiare punir. Vozes, p.20B. 18 - Manoel Pedra Pimentel. Reforma penal Saraiva, p.30. 79 para tornar possível ao autor do crime uma vida futura em liberdade e, por último, porque uma das con- dições para preservação da iden- tidade moral do condenado, com positivas repercussões na disciplina carcerária está na possibilidade de vislumbrar a liberdade. Daí fixar-se um limite do tempo de cumprimento, mesmo porque o encarceramento por mais de quinze ou vinte anos destrói por completo o homem, tornando-o inadequado à vida li- vre (19). 3.4 - Então, pela lei atual, o estupro, por exemplo, passou de um mínimo de três e um máximo de oito anos ao mínimo de seis e o máximo de dez. Se a pessoa da ofendida for menor de 14 anos de idade o mínimo de pena será obrigatoriamente de nove anos de reclusão. O atentado violento ao pudor que tinha a pena mínima de dois anos e o máximo de sete, passou de seis a dez. Na mesma hipótese, quando a pessoa do ofendido for menor de 14 anos de idade, o mínimo de pena será o mesmo previsto no preceito secun- dário do estupro. 3.5 - Verifica-se, inicialmente, que com relação a esses crimes sexuais,o legislador equiparou, er- radamente, num mesmo patamar, ações bastante diversas: a prática de atos libidinosos - que podem se traduzir num toque lascivo - e a de J conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça, exemplo maior de que, sem analisar a natureza tipo- lógica penal, pôs-se a despropor- cionadamente dobrar penas. fato praticado. A tendência é a de que a culpabilidade do agente é o fundamento da determinação da pena e a reinserção do condenado na sociedade a sua finalidade maior. Segundo Roxin "En Alemanía existe hoy unanimidad acerca de-que Ia pena ha de ser limitada por Ia cul- pabilidad del autor y que, em con- secuencia, Ias razones de prevención general o especial no puedem llevar a imponer a nadie una pen-a de mayor gravedad que Ia que se cor- responda con Ia del hecho cometido y con el grado de su culpabilidad personal... A todo condenado le de- be quedar siempre Ia possibilidad de reinsertarse en Ia sociedad" (20). Se a finalidade da pena é a punição e a educação para a pos- terior reinserção do condenado à sociedade, o que se pretende com a imposição de longas penas, des- medidas e desproporcionadas, em relação ao fato cometido, a serem cumpridas em regime integralmente fechado, se o sistema instituído para fazer funcionar a prisão fechada é o próprio instrumento de negação des- sa possibilidade? 3.6 - A expressão endurecimento das penas poderá ser bem avaliada se se imaginar que alguém com 18 anos de idade poderá ser condenado a 9 anos de reclusão, em regime de execução integralmente fechado, se praticar qualquer ato libidinoso com uma moça, prestes a completar 14 anos de idade. Esse agente que se pode considerar como um autor ocasional de um delito, deverá cumprir essa quantidade de pena em estabelecimento penitenciário fe- chado, onde passará a conviver com criminosos de alta periculosidade, lá permanecendo até que desconte a quantidade de mais de 2/3, cerca de 7 anos, para depois lhe ser aplicada a medida de livramento condicional. A lei endureceu na medida em que penas foram dobradas sem ne- nhuma proporção e porque se es- tabeleceu que seriam executadas em regime integralmente fechado, res- salvado apenas livramento condi- cional a quem as cumprisse por mais de 2/3, e se não fosse reincidente específico (art. 22, § 5Q). Nos países modernos não há mais previsão de penas longas de prisão a serem cumpridas integralmente em regime fechado, e, muito menos, fixadas com base na gravidade do 4 - SISTEMA CARCERÁRIO 4.1 - Prescreve o art. 12 da 'Lei 7.210/84 - Lei de Execução Penal que "a execução penal tem por objeto efetivar as disposições de sen- tença ou decisão criminal e propor- 20 - Claus Roxin, Introducciôn ai derecho penal y ai derecho penal procesal. Barcelona Ed Ariel p.27. ,. , 19 - Miguel Reale Jr. e outros. Penas e medidas de segurança no novo código. Forense, p.13l. 80 cionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado" . Como se pode cumprir esse dis- positivo legal se não há equipamen- tos prisionais básicos? Se o Estado não investe corajosamente no setor? 4.2 - A dramática e interminável crise que afeta o setor prisional, causada 1) pela superpopulação do sistema penitenciário, que origina as grandes rebeliões; 2) pela ausência de condições materiais e morais mínimas para o cumprimento da pena; 3) pela transformação dos dis- tritos policiais em verdadeiros de- pósitos humanos; e 4) pela mais completa falta de vontade política de resolver o problema, continua, por anos e anos, e ninguém se preocupa ou demonstra qualquer disposição em construir novos presídios, fe- chados, semi-abertos e abertos. Sem se esquecer que se pretende, agora, cogitando da possibilidade de redução da imputabilidade penal para 16 anos, a criação de outros grandes depósitos humanos para recolhimento de menores infratores. 4.3 - A Lei dos Crimes Hedion- dos menciona em seu artigo 32, que "a União manterá estabelecimentos penais, de segurança máxima, des- tinados ao cumprimento de penas impostas a condenados de alta pe- riculosidade, cuja permanência em 81 \ I presídios estaduais ponha em risco a ordem, ou incolumidade pública". Porém, é desconhecida a exis- tência de qualquer investimento pú- blico na construção de presídios, e se há previsão para tanto, há quase dois anos da promulgação do diploma, sendo que esse novo sistema de- penderá fundamentalmente da cons- trução de estabelecimentos penais, para que os condenados sejam ade- quadamente alojados, evitando-se o que hoje ocorre, pois os que recebem o benefício da prisão-albergue, à míngua de vagas em locais próprios, são autorizados a permanecer no regime de prisão domiciliar, sem cor- reta e continuada fiscalização, o que equivale a ficar impunes (21). 4.4 - Julgados dos Tribunais, reiteradamente têm decidido dessa forma, acentuando a impossibilidade do cumprimento integral da Lei de Execução Penal, pela mais completa negligência do Estado, que não se in- teressa pela construção de presí- dios, impossibilitando o cumprimen- to da rena em estágios, ocasionando a denominada "promoção por salto", passando o condenado do regime fe- chado diretamente à prisão domiciliar. Mas em contrapartida cresce, em grande proporção, o número de deci- sões afirmando que à falta de estabe- lecimento semi-aberto deve o conde- nado permanecer no regime fechado, suprimindo-lhe inarredável direito à progressão. 21 - Miguel Reale Jr. Reforma penal. Saraiva, p.57. 22 - Alberto Silva Franco, ob. cit., p.153. 82 4.5 - Tudo continua como antes: o mesmo obsoleto, corrompido e fracassado sistema de concentração de pessoas, incapaz, agora, de supor- tar mais essa grande carga. Tudo isso sem pensar que, cum- prida a pena o condenado é simples- mente jogado à rua, sem qualquer assistência por parte do Estado, no que se refere à sua reaproxirnação com a família, colocação em em- prego, etc. PARA REPENSAR A PAIU:MIA "SOCIETAS DELINQUERE NON POTEST"* Gérson Pereira dos Santos Professor da Universidade Federal da 8ahia 5 - CONCLUSÃO A incumbência que agora se atri- bui aos operadores jurídicos é a de combater, de negar vigência, de não aplicar os dispositivos desse diploma que já foi qualificado como "mal- sinado", que fere princípios e garan- tias constitucionais fundamentais. Os juízes atentos à realidade so- cial, preocupados com o cumprimen- to das normas constitucionais e com- prometidos com as liberdades pú- blicas, não devem concorrer para a consum., ,ão de casos de teratologia legal decorrentes de aplicação dessa lei que tornam o referido diploma de nenhuma viabilidade concreta, de absoluta inaplicabilidade (22), sob o cômodo pretexto de que, como neutros executores do conjunto de leis vigentes, só Ihes compete aplicá- Ia, pois a sua revogação ou sua substituição são tarefas afetas ao legislador. 1- INTRODUÇÃO Convocado para condensar, com a possível brevidade, algumas obser- vações em derredor da problemática da responsabilidade penal da pessoa jurídica no amplo domínio do direito penal econômico, acolh.i com muito agrado o chamado da Associação dos Advogados de São Paulo, feito por intermédio do ilustre Doutor Antônio Carlos Malheiros e do Professor Alberto Zacharias Toron, o que me propicia a ocasião para rever velhos amigos e colegas tão queridos, bem assim (e por acrés- cimo) a oportunidade de mais um reencontro com esta terra extremada onde deixei estar os mais saudosos anos da juventude, antes de seguir outras direções, por inevitáveis con- tingências da vida. Não ousei gizar o campo e a topografia. Também não trouxe da Bahia "régua e compasso". Subme- to-me à irrevogabilidade do com- promisso com o assunto indicado, certo da impossibilidade de alcançá- 10, por inteiro, em sua vastidão de capítulos, a serem desdobradospelos mais doutos, em encontros como este, em que possamos avançar passo a passo. No Fôrum Internacional de Direito Penal Comparado, há três anos realizado em Salvador, Francisco Muíioz Conde focalizou o tema da delinqüência econômica a partir de dois pontos de vista diferentes, de dois diferentes modelos de direito Palestra proferida em 30 de março de 1992, na Associação dos Advogados de São Paulo, no Curso de Estudos sobre Temas de Direito Penal e Processo Penal coordenado pelo professor Alberto Zacharias Toron. Fase. de Clêne. Penais. Porto Alegre, v.5, n.2, p.83,95, aor/mai/jun, 1992
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